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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Questão 45: Da coragem.

Em seguida devemos tratar a coragem. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 8 — Se Damasceno assinala convenientemente três espécies de ira, a saber: o fel, a mania e o furor.

O oitavo discute-se assim. — Parece que Damasceno assinala1 inconvenientemente três espécies de ira: o fel, a mania e o furor.
 
1. — Pois, as espécies de nenhum gênero se diversificam por um acidente, Ora, o fel, a mania e o furor se diversificam acidentalmente, pois, chama-se fel o princípio do movimento da ira; a ira permanente chama-se mania; e por fim, o furor é a ira que se vinga num certo tempo. Logo, não são espécies diferentes de ira.
 
2. Demais — Túlio diz, que o arrebatamento se chama em grego, θυμός é uma ira que ora nasce e ora desaparece2. Ora, θυμός, segundo Damasceno, é o mesmo que o furor. Logo, este não precisa de tempo para a vindicta mas se extingue com o tempo.
 
3. Demais — Gregório estabelece três graus na ira: a ira sem palavras, a ira acompanhada de palavras e a ira com palavras expressas, de conformidade com aquelas três partes do dito do Senhor no Evangelho (Mt 5, 22): o que se ira contra seu irmão, em que se refere à ira sem palavras; e depois acrescenta: e o que disser a seu irmão: Raca, onde toca na ira acompanhada da palavra, mas não ainda com sentido pleno; e depois acrescenta: e o que lhe disser a seu irmão: És um tolo, onde a palavra se completa pelo discurso perfeito. Logo, Damasceno dividiu insuficientemente a ira, não compreendendo nela nada do que se refere à palavra.
 
Mas, em contrário, é a autoridade de Damasceno e de Gregório Nisseno (Nemésio).
 
Solução. — As três espécies de ira, na divisão de Damasceno e também de Gregório Nisseno (Nemésio) se fundam naquilo que intensifica a ira. E isto pode dar-se de três modos. Primeiro, pela facilidade do movimento mesmo; e essa ira ele a denomina fel, porque se acende facilmente. Segundo, pela tristeza que causa a ira, que perdura muito tempo na memória; e esta pertence à mania, palavra derivada de permanecer. Terceiro, por aquilo que o irado deseja, a saber, a vindicta; e esta pertence ao furor, que não se aplaca enquanto não pune. Por onde o Filósofo3 chama a certos irados agudos, por se irarem prontamente; a certos outros, amargos, por conservarem a ira por muito tempo; e certos, enfim, difíceis, porque não descansam enquanto não punem.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Tudo aquilo que dá à ira algum complemento não se lhe refere acidentalmente. Donde, nada impede que nisso nos fundemos para especificá-la.
 
Resposta à segunda. — O arrebatamento, que Túlio introduz, parece antes pertencer à primeira espécie de ira, que se consuma com a prontidão desta, do que ao furor. Nada porém impede que o θυμός grego, que se chama em latim furor, importe numa e noutra coisa: a prontidão no irar-se e a firmeza de propósito em punir.
 
Resposta à terceira. — Os graus dessa ira se distinguem pelo efeito da mesma; não porém pela diversa perfeição do movimento mesmo da ira.

  1. 1. Lib. II Orth. Fid., cap. XVI.
  2. 2. IV De tusculanis quaestionibus (cap. IX).
  3. 3. IV ethic. (lect. XIII).

Art. 7 — Se a ira só tem por objeto os susceptíveis de justiça.

O sétimo discute-se assim. — Parece que a ira não tem por objeto só os susceptíveis de justiça.
 
1. — Pois, o homem não pode exercer a justiça para com os seres irracionais. Ora, às vezes o homem se encoleriza contra seres irracionais; assim, quando um escritor, irado, arroja a pena ou o cavaleiro açoita o cavalo. Logo, a ira não tem por objeto somente os seres susceptíveis de receber a justiça.
 
2. Demais — Não há justiça do homem para consigo mesmo nem para com tais coisas que a ele próprio lhe dizem justiça, como diz o Filósofo. Ora, às vezes o homem se encoleriza contra si mesmo; assim o penitente, por causa do pecado, donde o dizer a Escritura (Sl 4, 5): Irai-vos e não queirais pecar. Logo, a ira não tem como objeto somente os seres susceptíveis de receberem a justiça.
 
3. Demais — Podemos praticar a justiça e a injustiça para com toda uma classe de pessoas ou toda uma comunidade; p. ex., quando uma cidade lesa a alguém. Ora, a ira não recai sobre nenhuma classe de pessoas, mas só sobre um indivíduo singular, como diz o Filósofo1. Logo, a ira não tem como objeto próprio aqueles somente que são susceptíveis de justiça ou injustiça.
 
Mas o contrário se pode conclui do que diz o Filósofo2.
 
Solução. — Como já dissemos3, a ira busca o mal na medida em que este exerce a função de justiça vindicativa. Por onde a ira é relativa aos mesmos a que o é a justiça e a injustiça. Pois, é próprio da justiça exercer a vingança; e lesar a outrem é o constitutivo da injustiça. Assim, tanto pela causa, que é a lesão praticada por outrem, como também por parte da vindicta a tirar dele, o que visa o irado, é manifesto que a ira tem o mesmo objeto que a justiça e a injustiça.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Como já se disse, a ira, embora seja acompanhada da razão pode porém existir também nos brutos, carecentes de razão, enquanto movidos por um instinto natural mediante a imaginação à prática de atos semelhantes aos atos racionais. Assim pois, tendo o homem razão e imaginação, de dois modos pode nele nascer o movimento da ira. — Primeiro, quando só a imaginação denuncia a lesão. E assim algum movimento de ira nasce mesmo contra seres irracionais e inanimados, à semelhança do movimento originado nos animais contra tudo o que lhes seja nocivo. — De outro modo, quando a razão é a que denuncia a lesão. E assim, como diz o Filósofo, de nenhum modo pode se exercer a ira contra seres insensíveis nem contra os mortos4; quer por não sentirem, qualidade que sobretudo supõe os irados naqueles contra quem se encolerizam; quer também por não ser possível exercer contra eles a vindicta, pois não podem cometer nenhuma injúria.
 
Resposta à segunda. — Como diz o Filósofo, o homem pode exercer para consigo mesmo uma certa justiça e injustiça metafórica5: é enquanto a razão rege o irascível e o concupiscível. E neste sentido também se diz que o homem tira vindicta de si mesmo; e por conseqüência se encoleriza contra si mesmo. Mas própria e essencialmente falando, ninguém pode irar-se contra si mesmo.
 
Resposta à terceira. — A diferença única assinalada pelo Filósofo entre o ódio e a ira está em o ódio poder referir-se a uma classe de pessoas e assim odiamos todo gênero de ladrões; ao passo que a ira não pode recair senão sobre um indivíduo singularmente considerado6. E a razão disso está em o ódio ser causado porque a qualidade de um ser é apreendida como dissonante da nossa disposição; e isto pode dar-se tanto em universal como em particular. Enquanto que a ira é causada por alguém que, com um ato seu, nos lesou; ora todos os atos dizem respeito ao singular. Por isso a ira versa sempre sobre algo de singular. — E quando foi toda a cidade que nos lesou, toda ela é considerada como um indivíduo singular.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. IV).
  2. 2. II Rhetoric. (cap. II, III).
  3. 3. Q. 46, a. 6.
  4. 4. II Rhetoric., cap. III.
  5. 5. V Ethic. (lect. XVII).
  6. 6. II Rhetoric. (cap. IV).

Art. 6 — Se a ira é mais grave que o ódio.

(IIª-IIªº, q. 158, a . 4; De Malo, q. 12, a . 4).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que a ira é mais grave que o ódio.
 
1. — Pois, como diz a Escritura (Pr 27, 4), a ira não tem misericórdia, nem o furor que rompe. Ora, o ódio às vezes tem misericórdia. Logo, a ira é mais grave que o ódio.
 
2. Demais — Sofrer um mal e padecer dor por causa disso é mais que sofrer apenas. Ora, a quem odeia lhe basta que a pessoa odiada sofra um mal; ao passo que o irado quer, além disso, que ela o saiba e padeça com isso, como diz o Filósofo1. Logo, a ira é mais grave que o ódio.
 
3. Demais — Quanto mais elementos concorrem para a estabilidade de uma coisa tanto mais estável ela é; assim, o hábito mais permanente é o causado por muitos atos. Ora, a ira é causada pelo concurso de várias paixões, como já se disse2, o que se não dá com o ódio. Logo, é mais grave e mais estável que este.
 
Mas, em contrário, Agostinho compara o ódio a uma trave, e a ira a uma palha3.
 
Solução. — A espécie e a natureza de uma paixão se deduzem do seu objeto. Ora, a ira e o ódio, de um mesmo sujeito, têm o mesmo objeto; pois, como quem odeia deseja o mal ao odiado, assim o irado aquele contra quem dirige a sua ira. Mas, não pela mesma razão, pois o primeiro deseja o mal do inimigo, enquanto mal; ao passo que o segundo o deseja para aquele contra o qual está encolerizado, não enquanto mal, mas enquanto tem um certo caráter de bem, i. é, enquanto o considera como justo, por ser uma vingança. Por onde, como também antes já dissemos4, o ódio consiste na aplicação do mal ao mal; ao passo que a ira, na do bem ao mal. Ora, é manifesto que desejar o mal a alguém, sob a idéia de justiça, encerra menos da essência do mal, do que lhe querer, pura e simplesmente, o mal. Pois, no primeiro caso pode-se estar de acordo com a virtude da justiça, se for por obediência a uma prescrição da razão. Ao passo que a ira só é má porque, no vingar-se, não obedece ao preceito da razão. Por onde, é manifesto que o ódio é muito pior e mais grave que a ira.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Dois elementos podemos levar em conta, na ira e no ódio, a saber: aquilo mesmo que desejamos e a intensidade do desejo. — Quanto ao primeiro, a ira tem mais misericórdia que o ódio. Pois, como o ódio deseja o mal de outrem, em si mesmo, não há medida de mal que o sacie; porque, no dizer do Filósofo, as coisas desejadas em si mesmas são-no sem medida5; assim o avarento deseja as riquezas. Donde o dito da Escritura (Ecle 12, 16): O inimigo, se achar ocasião, não se fartará de sangue. Ao passo que a ira não deseja o mal senão sob as aparências de justa vingança; por onde, o irado se compadece quando o mal que lhe foi feito excede, na sua apreciação, a medida da justiça. E, por isso, o Filósofo diz que o irado se compadece à vista dos muitos males sofridos pelo seu adversário, ao passo que quem odeia de nenhum modo se compadece6. — De outro lado, quanto à intensidade do desejo, a ira exclui a misericórdia, mais que o ódio porque o seu movimento é mais impetuoso, por causa da inflamação da cólera. Por isso, a Escritura logo acrescenta (Pr 27, 4): quem poderá suportar o ímpeto de um espírito concitado?
 
Resposta à segunda. — Como já dissemos, o irado deseja o mal de alguém enquanto este se reveste das aparências de uma vingança justa. Ora, a vingança se realiza pela aplicação de uma pena; e da natureza desta é ser contrária à vontade, ser aflitiva e aplicada em expiação de alguma culpa. Por isso, o irado deseja que aquele a quem castigou o sinta e o sofra e conheça que esse castigo lhe é aplicado por causa da injúria assacada a outrem. Quem odeia porém nada disso lhe importa, porque deseja o mal de outrem como tal. Ora, não é verdade que aquilo que nos causa pena seja pior. Pois, a injustiça e a imprudência, sendo males não causam pena àqueles em quem existem7, por serem voluntários, como diz o Filósofo.
 
Resposta à terceira. — O causado por muitas causas é mais estável quando as causas estão compreendidas numa mesma noção; mas, uma causa pode prevalecer sobre muitas outras. Ora, o ódio provém de causa mais permanente que a ira. Pois esta provém de uma comoção do ânimo, por causa de um mal que nos foi feito; ao passo que o ódio, de uma disposição pela qual reputamos como nos sendo contrário e nocivo o que odiamos. Por onde, como a paixão passa mais depressa que a disposição ou o hábito, assim a ira se desvanece mais rápido que o ódio, embora também o ódio seja paixão proveniente de uma determinada disposição. Por isso o Filósofo diz, que o ódio é mais incurável que a ira8.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. IV).
  2. 2. Q. 46, a. 1.
  3. 3. Regula.
  4. 4. Q. 46, a. 2.
  5. 5. I Polit. (lect. VIII).
  6. 6. II Rhetoric. (cap. IV).
  7. 7. II Rhetoric. (cap. IV).
  8. 8. II Rhetoric. (cap. IV).

Art. 5 — Se a ira é mais natural que a concupiscência.

(IIª-IIªº, q. 156, a . 4; De Verit., q. 25, a . 6, ad 4; VII Ethic., lect. VI).
 
O quinto discute-se assim. — Parece que a ira não é mais natural que a concupiscência.
 
1. — Pois, diz-se que é próprio do homem ser um animal manso por natureza. Ora, a mansidão opõe-se à ira1, como diz o Filósofo. Logo, esta não é mais natural que a concupiscência; antes, parece de todo contrária à natureza do homem.
 
2. Demais — A razão se opõe à natureza, pois, não dizemos que quem age conforme a razão também o faz de conformidade com a natureza. Ora, a ira é acompanhada da razão, ao passo que a concupiscência não o é, como diz Aristóteles2. Logo, esta é mais natural que aquela.
 
3. Demais — A ira é o desejo da vingança; ora, a concupiscência é sobretudo o apetite dos prazeres do tato, a saber, os da mesa e os venéreos. Ora, estes são mais naturais ao homem que a vingança. Logo, a concupiscência é mais natural que a ira.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a ira é mais natural que a concupiscência3.
 
Solução. — Chama-se natural ao que é causado pela natureza, como se vê claramente em Aristóteles4. Por onde, só pela sua causa é que podemos saber se uma paixão é mais ou menos natural. Ora, a causa de uma paixão, como já dissemos5, pode ser considerada de dois modos: em relação ao objeto e em relação ao sujeito. — Se pois considerarmos a causa da ira e da concupiscência em relação ao objeto, esta, sobretudo quanto referente aos prazeres da mesa e aos venéreos, é mais natural que aquela, porquanto esses prazeres são mais naturais que a vingança. — Se porém considerarmos a causa da ira relativamente ao sujeito, então ela é de certo modo mais natural, assim como, de certo modo, também a concupiscência o é.
 
Pois, a natureza de um homem pode ser considerada, genérica, especificamente, ou segundo a compleição própria do indivíduo. — Assim, se considerarmos a natureza genérica, que é a do homem enquanto animal, então a concupiscência é mais natural que a ira; pois, é pela natureza comum em si mesma, que o homem tem certa inclinação para desejar o que lhe conserva a vida, específica ou individualmente. — Se porém considerarmos a sua natureza específica, i. é, enquanto racional, então a ira é-lhe mais natural que a concupiscência, por ser, mais que esta, acompanhada da razão. Por isso, diz o Filósofo, que é mais humano punir — o que diz respeito à ira — que ser manso6, porque todos os seres se insurgem naturalmente contra o que lhes é contrário e nocivo. — Se porém considerarmos a natureza de um indivíduo na sua compleição própria, então a ira é mais natural que a concupiscência, porque mais facilmente que a esta ou qualquer outra paixão, segue uma tendência natural, resultante da compleição. Ora, é predisposto à ira quem tem compleição colérica; e a cólera move-se mais rapidamente que os outros humores, comparável por isso ao fogo. Por onde, quem por compleição natural tem predisposição para a ira, encoleriza-se mais prontamente do que cede à concupiscência o que é para esta predisposto. Por isso, como diz o Filósofo7, a ira, mais que a concupiscência, transmite-se dos pais aos filhos.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Podemos considerar no homem a compleição natural, corpórea, que é equilibrada, e a razão em si mesma. Relativamente pois a essa compleição, não há no homem, natural e especificamente, sobreexcelência da ira nem de qualquer outra paixão, por causa do equilíbrio da compleição. Ao passo que os brutos, quanto mais se afastam dessa qualidade de compleição para a disposição de uma compleição extrema, tanto mais ficam naturalmente dispostos ao excesso de alguma paixão; assim, o leão, à audácia; o cão, à ira, a lebre, ao temor e assim por diante. Quanto à razão, por outro lado, é natural ao homem tanto o irar-se como o ser manso, pois ela de certo modo provoca a ira, indicando-lhe a causa e, de certo modo, a acalma, enquanto o irado não obedecer totalmente ao império da razão, como já dissemos8.
 
Resposta à segunda. — A razão em si mesma também pertence à natureza do homem. Logo, por isso mesmo que a ira é acompanhada da razão, é que, de certo modo, é natural ao homem.
 
Resposta à terceira. — A objeção procede, quanto à ira e à concupiscência, relativamente ao objeto.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. III).
  2. 2. VII Ethic. (lect. VI).
  3. 3. VII Ethic. (lect. VI).
  4. 4. II Physic. (lect. I).
  5. 5. Q. 36, a. 2.
  6. 6. IV Ethic., lect. XIII.
  7. 7. VII Ethic. (lect. VI).
  8. 8. Q. 46, a. 4, ad 3.

Art. 4 — Se a ira é acompanhada da razão.

(IIª IIªº, q. 156, a . 4;VII Ethic., lect. VI).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que a ira não é acompanhada da razão.
 
1. — Pois a ira, sendo uma paixão, tem sua sede no apetite sensitivo. Ora, este segue, não a apreensão da razão, mas a da parte sensitiva. Logo, a ira não é acompanhada da razão.
 
2. Demais — Os brutos não tem razão, e contudo são susceptíveis de ira. Logo, esta não é acompanhada daquela.
 
3. Demais — A embriaguez, que priva da razão, dá incremento à ira. Logo, esta não é acompanhada da razão.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a ira, de certo modo, é consecutiva à razão1.
 
Solução. — Como já dissemos2, a ira é o desejo da vingança. Ora, este importa uma relação entra a pena que deve ser infligida e o mal que sofremos; donde o dizer o Filósofo, que quando pensamos que é necessário atacar alguém de tal modo, logo ficamos irados3. Ora, comparar e pensar é próprio da razão. Logo, a ira vai de certo modo acompanhada da razão.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O movimento da potência apetitiva pode ir acompanhado da razão, de dois modos. Ou quando a razão ordena, o que faz com que a vontade, dela acompanhada, se chame apetite racional; ou quando a razão enuncia, e assim a ira é acompanhada da mesma. Pois, diz o Filósofo, que a ira vai acompanhada da razão, não como ordenante, mas como manifestativa da injúria4. Porque o apetite sensitivo obedece à razão, não imediatamente, mas, mediante a vontade.
 
Resposta à segunda. — Os brutos têm um instinto natural que lhes foi infundido pela razão divina, em virtude do qual são dotados de movimentos interiores e exteriores semelhantes aos da razão, como já dissemos5.
 
Resposta à terceira. — Segundo já foi dito, a ira ouve de certo modo a razão, que nos anuncia que fomos injuriados; mas não a ouve perfeitamente, porque não lhe observa a regra6, no tirar a vingança. Por onde, para haver ira é necessário um ato de razão e mais o impedimento da mesma. E por isso o Filósofo diz7, que os demasiado ébrios não ficam irados, por não serem susceptíveis de nenhum juízo da razão; mas, quando pouco ébrios, podem ficar irados, como quem tem o juízo da razão, mas travado.

  1. 1. VII Ethic (lect. VI).
  2. 2. Q. 46, a. 2.
  3. 3. VII Ethic. (lect. VI).
  4. 4. De problematibus (sect. XXVIII, probl. 3).
  5. 5. Q. 40, a. 3.
  6. 6. VII Ethic. (lect. VI).
  7. 7. De problemat. (sect. III, probl. 2 et 27).

Art. 3 — Se a ira tem sua sede no concupiscível.

(III Sent., dist. XXVI, q. 1, a . 2).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que a ira tem a sua sede no concupiscível.
 
1. — Pois, como diz Túlio, a ira é uma espécie de desejo1. Ora, o desejo, pertence ao concupiscível. Logo, também a ira.
 
2. Demais — Agostinho diz que a ira se transforma no ódio2. E Túlio, no livro supra-citado, que o ódio é a ira inveterada. Ora, o ódio, como o amor, tem a sua sede no concupiscível. Logo, também a ira.
 
3. Demais — Damasceno e Gregório Nisseno3 dizem que a ira compõe-se da tristeza e do desejo. Ora, tanto este como aquele têm sua sede no concupiscível. Logo, também a ira.
 
Mas, em contrário. — A potência concupiscível é diferente da irascível. Se pois a ira pertencesse ao concupiscível, a potência irascível não tiraria dela a sua denominação.
 
Solução. — Como já dissemos4, as paixões do irascível diferem das do concupiscível, por serem os objetos destas o bem e o mal absolutos; ao passo que os objetos daquelas são o bem e o mal acompanhados de certa dificuldade ou arduidade. Ora, como já dissemos5, a ira visa dois termos: a vindicta que deseja, e a pessoa de quem quer tirá-la. E em ambos esses casos ela requer uma certa arduidade, pois o seu movimento não se manifesta senão com uma certa grandeza relativamente a esses dois termos; pois, como diz o Filósofo, às coisas nulas ou muito pequenas não lhes damos nenhum valor6. Por onde é manifesto, que a ira não tem sua sede no concupiscível, mas, no irascível.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Túlio denomina desejo o apetite de qualquer bem futuro, sem levar em conta as condições de árduo ou não árduo. E, a esta luz, inclui a ira no desejo, como desejo que é da vingança. E assim o desejo é comum ao irascível e ao concupiscível.
 
Resposta à segunda. — Diz-se que a ira se transforma no ódio, não porque a mesma paixão, numericamente, que era antes ira, venha a ser, em seguida, quando inveterada, o ódio; mas, isso se dá em virtude da causalidade. Pois a ira, quando diuturna, causa o ódio.
 
Resposta à terceira. — Diz-se que a ira se compõe da tristeza e do desejo, não como partes, mas como causas. Pois, como já dissemos7, as paixões do concupiscível são as causas das do irascível.

  1. 1. IV De tuscul. Quaestion. (cap. IX).
  2. 2. In Regula.
  3. 3. Nemésio, De nat. hom.
  4. 4. Q. 23, a. 1.
  5. 5. Q. 46, a. 2.
  6. 6. II Rhetoric. (cap. II).
  7. 7. Q. 24, a. 2.

Art. 2 — Se o objeto da ira é o mal.

(Infra, a . 6; De malo, q. 12, a . 2, 4).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que o objeto da ira é o mal.
 
1. — Pois, como diz Gregório Nisseno1, a ira é quase a escudeira da concupiscência , porque impugna o que impede a esta. Ora, todo impedimento implica a noção de mal. Logo, a ira diz respeito ao mal, como seu objeto.
 
2. Demais — A ira e o ódio convêm no mesmo efeito, pois uma e o outro nos causam dano. Ora, o ódio tem o mal como objeto, segundo já se disse2. Logo, também a ira.
 
3. Demais — A ira é causada pela tristeza, e por isso o Filósofo diz que a ira age acompanhada da tristeza3. Ora, o objeto desta é o mal. Logo, também o daquela.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho, que a ira provoca a vindicta4. Ora, o desejo da vindicta é o desejo do bem, pois se refere à justiça. Logo, o objeto da ira é o bem.
 
Demais. — A ira vai sempre junta com a esperança, e por isso causa o prazer, como diz o Filósofo5. Ora, o objeto da esperança e do prazer é o bem. Logo, também o da ira.
 
Solução. — O movimento da virtude apetitiva é consecutivo ao ato da apreensiva. Ora, esta pode apreender um objeto de dois modos; de modo incomplexo, como quando inteligimos o que é o homem; e de modo complexo, como quando inteligimos que a cor branca existe num homem. Por onde, de ambos esses modos a virtude apetitiva pode tender para o bem e para o mal. A modo de simples e incomplexo, quando o apetite segue simplesmente o bem ou adere a ele, ou quando foge do mal. E tais movimentos constituem o desejo e a esperança, o prazer e a tristeza, e outros semelhantes. A modo de complexo, como quando o apetite deseja algum bem ou mal para alguém, quer tendendo para um determinado objeto, quer fugindo do mesmo. E isto é manifesto no amor e no ódio, pois amamos a quem desejamos o bem, e odiamos a quem queremos o mal. E o mesmo se dá com a ira: quem está irado procura vingar-se. Por onde, o movimento da ira tende para dois termos: para a vindicta em si, que deseja e espera, como um bem, provindo daí o deleite; e para aquele de quem quer tirar vingança, como alguém que lhe é contrário e nocivo, o que implica a noção do mal.
 
Ora a esta luz, há uma dupla diferença a considerar entre a ira e o amor e o ódio. A primeira é que a ira sempre diz respeito a dois objetos; ao passo que o amor e o ódio às vezes visam só um objeto, como quando dizemos que alguém ama ou detesta o vinho ou coisa semelhante. A segunda é que os dois objetos a que diz respeito o amor são bons, pois o amante quer o bem a alguém como sendo conveniente a este último. E os dois objetos a que diz respeito o ódio são um e outro de natureza má; pois, quem odeia quer o mal a alguém como lhe sendo inconveniente a este. A ira, ao contrário, considera como bom um objeto, a saber, a vindicta que deseja; e outro, como mal, a saber, o homem nocivo, de quem se quer vingar. Por onde, é uma paixão composta, de certo modo, de paixões contrárias.
 
E daqui se deduz claras as respostas às objeções.

  1. 1. Nemésio, De nat. hom.
  2. 2. Q. 29, a. 1.
  3. 3. VII Ethic. (lect. VI).
  4. 4. II Rhetoric. (cap. II).
  5. 5. II Rhetoric (cap. II).

Art. 1 — Se a ira é uma paixão especial.

(Supra, q. 23, a . 4; III Sent., dist. XXVI, q. 1, a . 3).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que a ira não é uma paixão especial.
 
1. — Pois, da ira tem a sua denominação a potência irascível. Ora, a esta pertence, não só uma, mas muitas paixões. Logo, a ira não é uma paixão especial.
 
2. Demais — Cada paixão especial tem a sua contrária, como verá claramente quem as examinar uma por uma. Ora, não há nenhuma paixão contrária à ira, como já se disse1. Logo, não é uma paixão especial.
 
3. Demais — Uma paixão especial não inclui outra. Ora, a ira inclui muitas paixões, pois vai de mescla com a tristeza, com a esperança e com o prazer, como se vê claramente no Filósofo2. Logo, não é uma paixão especial.
 
Mas, em contrário, Damasceno considera a ira como uma paixão especial3; e semelhantemente Túlio4.
 
Solução. — De dois modos pode uma expressão ser geral. Ou como predicação, e assim a palavra animal se aplica geralmente a todos os animais; ou como causa, e assim o sol é a causa geral de tudo o que se produz nos seres da terra, segundo Dionísio5. Ora, assim como o gênero contém, potencialmente, muitas diferenças, quanto à semelhança da matéria, assim a causa agente, muitos efeitos quanto à virtude ativa. Um efeito porém pode ser produzido pelo concurso de diversas causas. E como toda causa permanece, de certa maneira, no seu efeito, podemos também dizer, de um terceiro modo, que o efeito, produzido pela reunião de muitas causas, tem uma certa generalidade, enquanto as encerra, de certo modo, atualmente.
 
Por onde, do primeiro modo, a ira não é uma paixão geral, mas entra na mesma divisão que as outras, como já dissemos6. — E nem do segundo. Pois, não é a causa das outras paixões; ao passo que, deste modo, podemos considerar o amor como uma paixão geral, segundo vemos claramente em Agostinho7; pois, ele é a raiz primeira de todas as paixões, como já dissemos8. Num terceiro modo porém, a ira pode ser considerada paixão geral, enquanto causada pelo concurso de muitas paixões. Pois, o movimento da ira não se manifesta senão porque sofremos alguma tristeza e porque nos está presente o desejo e a esperança de nos vingarmos, porquanto, no dizer do Filósofo, o irado nutre a esperança de se vingar; pois, deseja a vindicta como lhe sendo possível9. Por onde, se for muito avantajada a pessoa que nos causou um mal, não dará lugar à ira, mas só à tristeza, como diz Avicena10.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A potência irascível recebe da ira a sua denominação; não que todos os movimentos dessa potência se lhe reduzam a ela, mas porque todos nela acabam; ora, entre todos os referidos movimentos este é o mais manifesto.
 
Resposta à segunda. — Por isso mesmo que a ira é causada por paixões contrárias, a saber, pela esperança, que visa o bem, e pela tristeza, que visa o mal, ela inclui em si a contrariedade; por isso não tem contrário. Como também as cores médias não têm contrariedade senão a que resulta das cores simples que as causam.
 
Resposta à terceira. — A ira inclui muitas paixões; não, certo, como o gênero inclui as espécies, mas antes, como a causa contem o efeito.

  1. 1. Q. 23, a. 3.
  2. 2. II Rhetoric. (cap. II).
  3. 3. Lib. II Orth. Fid., cap. XVI.
  4. 4. IV De tuscul. Quaestion. (cap. VII).
  5. 5. IV cap. De div. nom. (lect. III).
  6. 6. Q. 23, q. 4.
  7. 7. XIV De civit. Dei (cap. VII).
  8. 8. Q. 27, a. 4.
  9. 9. II Rhetoric. (cap. II).
  10. 10. De anima (lib. IV, cap. VI).

Questão 46: Da ira, em si mesma.

Em seguida, devemos tratar da ira. — E, primeiro, da ira em si mesma. Segundo, da causa produtiva da ira e do seu remédio. Terceiro, do seu efeito.
 
Sobre a primeira questão oito artigos se discutem:

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