Category: Santo Tomás de Aquino
Suposto, conforme a fé católica, que o mundo não foi desde sempre, como equivocadamente afirmaram alguns filósofos, mas que o mundo teve um começo em sua duração, segundo atesta a Sagrada Escritura, que não pode enganar-se, suscita-se porém a dúvida de se poderia ter sido desde sempre.
(III Sent., XXIII, q. 1, a . 1; De Verit., q. 20, a . 2; De Virtut., q. 1, a . 1).
O quarto discute-se assim. — Parece que não é necessário existir o hábito.
1. — Pois, pelos hábitos um ser fica bem ou mal disposto para alguma coisa, como já se disse. Ora, essa boa ou má disposição os seres a têm da forma, pois por esta é que cada um deles tem a bondade e é ente. Logo, não há nenhuma necessidade dos hábitos.
2. Demais — O hábito implica em ordenar-se para o ato. Ora, a potência implica em ser princípio suficiente do ato, pois as potências, sem os hábitos, são princípios dos atos. Logo, não há necessidade da existência daqueles.
3. Demais — O hábito se comporta do mesmo modo que a potência, em relação ao bem e ao mal; e como a potência, também o hábito nem sempre age. Logo, a existência das potências torna supérflua a do hábito.
Mas, em contrário, os hábitos são certas perfeições, como diz Aristóteles. Ora, a perfeição é sumamente necessária, porque tem a natureza de fim. Logo, é necessária a existência dos hábitos.
Solução. — Como já dissemos, o hábito implica uma certa disposição ordenada à natureza da coisa e à operação ou fim da mesma, e em virtude da qual um ser fica bem ou mal disposto para essa operação ou esse fim. Porém para que um ser deva ser disposto para outro três condições são necessárias. — Primeira, o que é disposto deve ser diferente daquilo a que é disposto e estar para este como a potência, para o ato. Por onde, o ser que tiver a natureza não composta de potência e ato cuja operação for substancial e em si mesmo subsistente não é susceptível de hábito ou disposição. — A segunda é que o ser potencial possa ser determinado de vários modos e relativamente a vários atos. Por onde, o que for potencial relativamente a um ato, e só a esse, não é susceptível de disposição nem de hábito, porque um tal sujeito já tem, por natureza, a devida predisposição para um determinado ato. Assim, se o corpo celeste for composto de matéria e de forma, como essa matéria não é potencial em relação a mais de uma forma, segundo já dissemos na Primeira Parte, não será susceptível de disposição ou de hábito relativamente à forma ou à operação, porque a natureza do corpo celeste não é potencial senão a um movimento determinado. — A terceira é que vários elementos qualitativos concorram para dispor o sujeito a um daqueles termos em relação ao qual é potencial e que podem ser proporcionados diversamente entre si, de modo a ser ele bem ou mal disposto para a forma ou para a operação. Por onde, as qualidades simples dos elementos, que, de um determinado modo lhes convêm às naturezas, não as denominamos disposições ou hábitos. Denominamos porém assim a saúde, a beleza e atributos semelhantes, que implicam uma certa proporção entre muitos elementos qualitativos, susceptíveis de serem combinados de modos diversos. E por isto o Filósofo diz, que o hábito é uma disposição; e que a disposição é a ordem do que tem parte, local, potencial ou especificamente, como já dissemos.
Por onde, como há muitos entes, para cujas naturezas e operações necessariamente concorrem muitos elementos qualitativos, que podem ser combinados de diversos modos, é necessário existam os hábitos.
Donde a resposta à primeira objeção. — A natureza de um ser se aperfeiçoa pela forma; mas é necessário que o sujeito se disponha, por alguma disposição ordenada a essa forma. Esta última por sua vez se ordena ulteriormente à operação, que é o fim ou a via para ele. Se porém a forma for susceptível de uma só operação determinada, não é necessária, para tal operação, além dessa forma, nenhuma outra disposição. Se porém a forma for tal que possa operar de modos diversos, como é o caso da alma, é necessário seja disposta para as suas operações por alguns hábitos.
Resposta à segunda. — A potência às vezes é relativa a muitos atos, e, por isso, é necessário seja determinada por outro ser. A potência porém que se não referir a muitos atos, não precisa de nenhum hábito determinante, como já dissemos. E por isso as potências naturais não produzem as suas operações mediante certos hábitos, porque já por si mesmas estão determinadas a um termo.
Resposta à terceira. — Não é um mesmo hábito que se refere ao bem e ao mal, como a seguir se dirá , ao contrário do que se dá com uma mesma potência. E portanto os hábitos são necessários para determinarem as potências ao bem.
O terceiro discute-se assim. — Parece que o hábito não implica ordenação para o ato.
1. — Pois, um ser age enquanto atual. Ora, o Filósofo diz: o hábito adquirido da ciência não exclui de nós a potencialidade, embora diferente da que existia antes de sabermos. Logo, o hábito não implica relação de princípio com o ato.
2. Demais — O que entra numa definição convém por si mesmo ao definido. Ora, está incluído na definição de potência o ser princípio de ação, como se vê em Aristóteles. Logo, ser princípio do ato convém, em si mesmo, à potência. Ora, o que é por si é princípio, em qualquer gênero. Se portanto, o hábito é princípio do ato, segue-se que é posterior à potência e assim o hábito ou disposição não será a primeira espécie de qualidade.
3. Demais — A saúde é, às vezes, um hábito, bem como a magreza e a beleza. Ora, estas últimas não se chamam assim por se ordenarem ao ato. Logo, não é da natureza do hábito ser princípio do ato.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o hábito é o que leva um ser a agir, quando for preciso. E o Comentador diz, que pelo hábito agimos quando queremos.
Solução. — Ordenar-se ao ato pode convir ao hábito tanto em razão dele próprio como em razão do sujeito no qual existe.
No primeiro caso, convém a todo hábito ordenar-se, de certo modo, ao ato. Pois o hábito implica por essência uma certa relação ordenada à natureza da coisa, enquanto lhe convém ou não. E a natureza da coisa, por sua vez, que é o fim da geração, também se ordena a outro fim, que ou é uma operação ou alguma obra a que chegamos pela operação. Por onde, o hábito não somente supõe uma ordenação à natureza mesma da coisa, mas também e conseqüentemente à operação, enquanto fim da natureza, ou conducente ao fim. E por isso, Aristóteles diz, definindo o hábito, que é uma disposição pela qual ficamos bem ou mal dispostos, ou em nós mesmos, i. é, de conformidade com a nossa natureza, ou relativamente a outra coisa, i. é, em ordem ao fim.
Há porém certos hábitos que, mesmo por parte do sujeito em que estão, implicam primária e principalmente ordenação ao ato. Porque, como já dissemos, o hábito, primariamente e por si implica relação com a natureza da coisa. Se portanto, a natureza da coisa, na qual existe o hábito, consiste propriamente no mesmo ordenar-se ao ato, resulta que o hábito implica, principalmente essa mesma ordenação. Ora, é manifesto, que é da natureza e da essência da potência ser princípio do ato. Donde, todo hábito que pertence a alguma potência, como sujeito, implica principalmente ordenação ao ato.
Donde a resposta à primeira objeção. — O hábito é um ato, como qualidade que é, e assim pode ser princípio de operação. Mas, é potencial, relativamente à operação; e por isso é chamado ato primeiro, sendo a operação chamada ato segundo, como se vê claramente.
Resposta à segunda. — É da essência do hábito respeitar não à potência, mas à natureza. E como esta precede a ação, a que respeita a potência, resulta que o hábito, como espécie de qualidade, tem prioridade sobre a potência.
Resposta à terceira. — A saúde é considerada um hábito ou disposição habitual em ordem à natureza, como já dissemos. Como princípio do ato, porém e por conseqüência a natureza implica em se lhe ordenar. E por isso o Filósofo diz, que consideramos são o homem, ou um membro qualquer, quando pode obrar como são. E o mesmo se dá com os demais seres.
(De Virtut., q. 1, a . 1).
O segundo discute-se assim. — Parece que o hábito não é uma determinada espécie de qualidade.
1. — Pois, como já se disse, o hábito, como qualidade, é uma disposição pela qual o sujeito fica bem ou mal disposto. Ora, isto se dá em virtude de uma certa qualidade; assim pela figura, pelo calor, pelo frio e por outros modos semelhantes é que um ser fica bem ou mal disposto. Logo, o hábito não é uma determinada espécie de qualidade.
2. Demais — O Filósofo diz que a calidez e a frieza são disposições ou hábitos, como a doença e a saúde. Ora, o calor e o frio pertencem à terceira espécie de qualidade. Logo, o hábito ou disposição não se distingue das outras espécies de qualidade.
3. Demais — Ser dificilmente mutável não é uma diferença pertencente ao gênero da qualidade, mas antes, ao movimento ou paixão. Ora, nenhum gênero se determina, relativamente à espécie, pela diferença de outro gênero, mas é preciso que aquela se aplique, por si mesma, a este, como diz o Filósofo. Logo, chamando-se ao hábito uma qualidade dificilmente mutável, resulta que não é uma espécie determinada de qualidade.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que uma espécie de qualidade é o hábito e a disposição.
Solução. — Entre as quatro espécies de qualidade, o Filósofo considera como primeira a disposição e o hábito. E Simplício explica as diferenças dessas espécies, dizendo que certas qualidades existentes num sujeito por natureza e sempre, são naturais; outras porém, oriundas de uma causa extrínseca, e que podem ser perdidas, chamam-se adventícias. E estas últimas, as adventícias, são hábitos e disposições diferentes entre si por se poderem perder, umas, fácil e outras, dificilmente. Por outro lado, das qualidades naturais umas se referem ao que é potencial, e tal é o caso da segunda espécie de qualidade. Outras ao que é atual, e isto profunda ou superficialmente; no primeiro caso, temos a terceira espécie de qualidade; no segundo, a quarta, como a figura, a forma, que é a figura do ser animado. — Mas esta distinção das espécies de qualidade é inadmissível. Pois, há muitas figuras e qualidades patíveis, não naturais, mas adventícias; e muitas disposições não adventícias, mas naturais, como a saúde, a beleza e outras. E além disso, essa distinção não convém à ordem das espécies, pois sempre o natural tem prioridade.
Por onde, devemos explicar de outro modo a distinção entre as disposições e os hábitos, e as outras qualidades. Pois, propriamente, a qualidade implica um certo modo da substância. Ora, o modo é, no dizer de Agostinho, prefixado pela medida, e portanto implica uma certa determinação de conformidade com alguma medida. Por onde, assim como aquilo pelo que é determinada a potência da matéria, no seu ser substancial, se chama qualidade, que é uma diferença da substância; assim, o que determina a potência do sujeito, no seu ser acidental, chama-se qualidade acidental, que também é uma certa diferença, como se vê claramente no Filósofo. Ora, o modo ou determinação do sujeito no seu ser acidental, pode ser considerado ou em relação à natureza mesma do sujeito, ou relativamente à ação e à paixão resultantes dos princípios da natureza, que são a matéria e a forma, ou em relação à quantidade. — Se, pois, considerarmos o modo ou a determinação do sujeito, relativamente à quantidade, vem ele a ser a quarta espécie de qualidade. E como a quantidade, por essência, não é dotada de movimento e nem implica as noções de bem e de mal, não pertence à quarta espécie da qualidade dispor alguma coisa bem ou mal nem fazer com que ela seja rápida ou lentamente mutável. — Por outro lado, o modo ou a determinação do sujeito, quanto à ação e à paixão, constitui a segunda ou a terceira espécie de qualidade. E por isso, numa e noutra se considera o fazer-se alguma coisa fácil ou dificilmente, ou o mudar-se rápida ou diuturnamente; não se considera porém, no caso vertente, nada que implica a noção de bem ou de mal, porque o movimento e a paixão, ao contrário do bem e do mal, não implicam a noção de fim. — O modo, finalmente, e a determinação do sujeito em relação à natureza da causa pertence à primeira espécie de qualidade, que é o hábito e a disposição. Pois, diz o Filósofo, tratando dos hábitos da alma e do corpo, que eles são certas disposições, do que é perfeito, para o que é ótimo; e denomino perfeito o que é disposto de conformidade com a natureza. E como a forma em si mesma e a natureza da coisa é o fim e a causa pela qual alguma causa é feita, como diz Aristóteles, por isso, na primeira espécie, incluímos o bem e o mal, e também o que é fácil e dificilmente mutável, de conformidade com o que numa determinada natureza é o fim da geração e do movimento. Por isso, o Filósofo define o hábito como uma disposição que nos torna bem ou mal dispostos; e diz mais que pelos hábitos é que nos havemos bem ou mal, relativamente às paixões. Assim pois, o modo conveniente à natureza de uma coisa é por essência bom; e é mau por essência o que lhe não convém. E como a natureza é primariamente considerada, nas coisas, o hábito é tido como a primeira espécie de qualidade.
Donde a resposta à primeira objeção. — A disposição implica uma certa ordem, como já dissemos. E por isso não dizemos que alguém é disposto pela qualidade, senão em relação a alguma coisa. E se acrescentarmos bem ou mal, o que implica a noção de hábito, é necessário levemos em conta a ordem para a natureza, que é o fim. Por onde, não dizemos que alguém é bem ou mal disposto, pela figura, ou pelo calor ou frio, senão relativamente à ordem para a natureza da coisa, de cuja ordem depende a conveniência ou não conveniência. E por isso as próprias figuras e as qualidades passíveis, consideradas como convenientes ou não convenientes à natureza da coisa, pertencem aos hábitos ou disposições. Pois, enquanto convenientes à natureza da coisa, a figura e a cor se incluem na beleza; o calor e o frio, na saúde. E deste modo a calidez e a frigidez o Filósofo as inclui na primeira espécie de qualidade.
Donde se deduz clara a resposta à segunda objeção embora outros a resolvam diversamente, como diz Simplício.
Resposta à terceira. — A diferença — dificilmente mutável — não diversifica o hábito, das outras espécies de qualidade, mas da disposição, que pode ser tomada em dupla acepção. Ou como um gênero do hábito, pois Aristóteles a inclui na definição deste; ou como constituindo uma divisão oposta ao hábito. E podemos entender que a disposição propriamente dita constitui uma divisão oposta ao hábito, de duplo modo. Como o perfeito e o imperfeito, incluímos na mesma espécie; e então, por uma denominação comum, chamaremos disposição ou que existe num sujeito imperfeitamente, de maneira a poder ser perdido facilmente; e hábito ao que no sujeito existe perfeitamente, de maneira que não possa ser facilmente perdido; e assim a disposição se transforma em hábito, como a criança em adulto. De outro modo, podem ser distinguidos como espécies diversas de um gênero subalterno; e então chamaremos disposições às qualidades da primeira espécie que podem, por natureza, perder-se facilmente porque têm causas mutáveis, como a doença e a saúde. E reservamos o nome de hábitos às qualidades, que por natureza não podem ser facilmente mutáveis, por terem causas imóveis, como as ciências e as virtudes; e neste sentido a disposição não pode vir a ser um hábito. Esta doutrina parece estar mais de acordo com a intenção de Aristóteles. Por isso, para provar tal distinção, apóia-se no uso comum de falar, pelo qual as qualidades por natureza, facilmente mutáveis chamam-se hábitos quando, por qualquer acidente, vêm a sê-lo dificilmente; e o inverso se dá com as qualidades dificilmente mutáveis, por natureza, por natureza; assim, quem tiver a ciência tão imperfeitamente que possa facilmente perdê-la, antes o consideramos como disposto para a ciência do que como possuidor dela. Por onde é claro que o nome de hábito implica uma certa diuturnidade, o que se não dá com a disposição. E nada impede que, neste sentido, o ser fácil e dificilmente mutável sejam diferenças específicas, por pertencerem à paixão e ao movimento e não, ao gênero da qualidade. Pois, essas diferenças, embora sejam acidentais relativamente à qualidade, designam contudo, diferenças próprias, e em si mesmas, das qualidade; assim como também, no gênero da substância, admitimos freqüentemente diferenças acidentais, em lugar das substanciais, enquanto que, por elas, são designados os princípios essenciais.
(III. Sent., dist. XXIII, q. 1, a . 1; V Metaph., lect XX)
O primeiro discute-se assim. — Parece que o hábito não é uma qualidade.
1. — Pois, como diz Agostinho, a palavra hábito vem do verbo habere, que significa ter, e que se refere não só à qualidade, mas também aos outros gêneros; assim, quando dizemos: ter quantidade, dinheiro e coisas semelhantes. Logo, o hábito não é uma qualidade.
2. Demais — O hábito é considerado como um dos predicamentos, como diz Aristóteles. Ora, um predicamento não pode estar contido em outro. Logo, o hábito não é uma qualidade.
3. Demais — Todo hábito é uma disposição, no dizer de Aristóteles. Ora, a disposição é a ordem do que tem partes, como diz Aristóteles; o que pertence ao predicamento de lugar. Logo, o hábito não é uma qualidade.
Mas, em contrário, o Filósofo diz, que o hábito é uma qualidade dificilmente mutável.
Solução. — O nome hábito é derivado do verbo latino habere, ter, e isto de duplo modo. Ou no sentido em que dizemos tem o homem, ou qualquer outro ser, alguma coisa; ou porque um ser tem, em si mesmo ou em relação a outro, um certo feitio.
Quanto ao primeiro sentido, devemos considerar que o verbo ter, significando uma coisa possuída, é comum a diversos gêneros. Por isso, o Filósofo coloca o ter (habere) entre os postpredicamentos, consecutivos aos diversos gêneros das coisas, como os contrários, a anterioridade, a posterioridade e outros. — Mas entre as coisas que podem ser tidas há a distinção seguinte: certas não admitem nenhum meio termo em relação a quem as tem; assim, não há nenhum meio termo entre o sujeito e a qualidade ou a quantidade. Outras há, porém, entre as quais não há nenhuma mediação, mas só uma relação; tal se dá, quando dizemos que alguém tem um companheiro ou um amigo. Por outro lado, coisas há dentre as de que tratamos, que admitem um certo termo médio que não é, propriamente, ação nem paixão, mas algo de comparável com elas; assim quando uma é o que orna ou cobre e outra, a ornada ou coberta. Donde o dizer o Filósofo, que ter (hábito) exprime uma como ação entre o possuidor e a coisa possuída, segundo se dá com aquilo que temos. E portanto, neste caso, constitui-se um gênero especial chamado predicamento do hábito ou posse, a propósito do qual diz o Filósofo, que o hábito ou posse é um termo médio entre um vestuário e quem o possui.
Se porém tomarmos a palavra ter (habere), no sentido de dizermos que uma coisa tem, em si mesma ou relativamente a outra, um certo feitio, como este modo de ter-se a si mesmo se funda nalguma qualidade, então o hábito é uma qualidade. E a este respeito diz o Filósofo: chama-se hábito uma disposição em virtude da qual um ser é bem ou mal disposto, em si ou relativamente a outro; assim, nesta acepção, a saúde é um hábito. Ora, como é neste sentido que agora tratamos do hábito, devemos dizer que ele é uma qualidade.
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção procede quanto ao verbo ter tomado em sentido geral, em que é comum a muitos gêneros, como já dissemos.
Resposta à segunda. — A objeção procede quanto ao hábito entendido como meio termo entre o possuidor e a coisa possuída, pois, nessa acepção, é um predicamento, como já se disse.
Resposta à terceira. — Certamente que a disposição sempre implica uma ordem no ser que tem partes. E isto pode dar-se de três maneiras, como no mesmo lugar o Filósofo logo acrescenta: local, potencial ou especificamente. E nisto, no dizer de Simplício, compreende todas as disposições. As corporais, quando diz — localmente, o que pertence ao predicamento de lugar, que é a ordem local das partes. Quando diz potencialmente, aí inclui as disposições existentes em preparação e em capacidade e ainda não perfeitas; tal é o caso da ciência e da virtude incoada. Quando por fim diz especificamente, aí inclui as disposições perfeitas chamadas hábitos, como a ciência e a virtude completas.
Sobre a primeira questão quatro artigos se discutem:
O quarto discute-se assim. — Parece que a ira não causa a taciturnidade.
1. — Pois, a taciturnidade se opõe à loquacidade. Ora, a ira, no seu crescer provoca-nos a fala, como se vê claramente pelos graus da mesma, que o Senhor assinala, dizendo (Mt 5, 22): O que se ira contra seu irmão; e o que disser a seu irmão: Raca; e o que lhe disser: és um tolo. Logo, a ira não causa a taciturnidade.
2. Demais — É por faltar à vigilância da razão que o homem prorrompe em palavras desordenadas; donde o dito da Escritura (Pr 25, 28): Assim como é uma cidade toda aberta e que não está cercada de muros, assim é o homem que quando fala não pode conter o seu espírito. Ora, a ira impede, por excelência, o juízo da razão, como já dissemos (a. 3). Logo, leva-nos, sobretudo a prorromper em palavras desordenadas. Portanto, não causa a taciturnidade.
3. Demais — Diz a Escritura (Mt 12, 34): A boca fala do que está cheio o coração. Ora, pela ira o coração fica soberanamente perturbado, como já dissemos. Logo, causa principalmente à loquacidade e, não portanto, a taciturnidade.
Mas, em contrário, diz Gregório, que a ira reprimida pelo silêncio, estua mais veemente no coração.
Solução. — A ira, como já dissemos, é, de um lado, acompanhada da razão, e de outro, priva-nos dela. E, em ambos os casos, pode causar a taciturnidade. No primeiro, quando o juízo da razão, embora não coíba o afeto do desejo desordenado da vingança, tem contudo vigor para coibir a língua de expressões desordenadas. Donde o dizer Gregório: Às vezes a ira impõe silêncio, quase por um juízo, ao espírito perturbado. — No segundo caso, porque, como já dissemos, a perturbação da ira é levada até às partes exteriores do corpo e sobretudo, àquelas onde se manifesta mais expresso o influxo do coração, como os olhos, a face e a língua; e por isso, como já se disse, a língua trava-se, as faces afogueiam-se, incendem-se os olhos; podendo ser tal a perturbação da ira que prive absolutamente a língua do uso da palavra. Daí resulta a taciturnidade.
Donde a resposta à primeira objeção. — A intensidade da ira chega às vezes até impedir a razão de dominar a língua; outras vezes, vai mesmo além, até impedir o movimento da língua e dos outros órgãos externos do corpo.
Donde se deduz clara a resposta à segunda objeção.
Resposta à terceira. — A perturbação do coração pode às vezes ser tão intensa a ponto de impedir, pelo seu movimento desordenado, o movimento dos órgãos exteriores; o que causa a taciturnidade, a imobilidade dos membros exteriores e até mesmo a morte. Se porém não for tamanha a perturbação, a boca desata a falar, pela superabundância do coração perturbado.
(De Malo, q. XII, a . 1).
O terceiro discute-se assim. — Parece que a ira não priva da razão.
1. — Pois, o que vai acompanhado da razão parece que não nos pode privar dela. Ora, a ira é acompanhada da razão, como diz Aristóteles. Logo, não nos priva da mesma.
2. Demais — Quanto mais privados formos da razão, tanto menos podemos nos exteriorizar. Ora, o Filósofo diz, que o iracundo não o é oculta, mas manifestamente. Logo, parece que a ira não priva do uso da razão, como a concupiscência, que é insidiosa, conforme diz ainda ele, no mesmo lugar.
3. Demais — O juízo da razão torna-se mais claro pela adjunção do elemento contrário, pois os contrários, juxtapostos, aumentam a clareza. Ora, isto mesmo faz crescer a ira, pois, como diz o Filósofo, os homens tornam-se mais irados quando os contrários preexistem; isso se dá, p. ex., com os honrados que perdem a honra. Logo, a mesma causa que aumenta a ira também fortifica o juízo da razão. Portanto, aquela não impede este.
Mas, em contrário, diz Gregório, que a ira priva da luz a inteligência, agitando a mente na confusão.
Solução. — A mente ou razão, embora não dependa, pra o seu ato próprio, de um órgão corpóreo, contudo, como depende, para o mesmo, de certas potências sensitivas, cujos atos ficam impedidos pela perturbação do corpo, necessariamente as perturbações corpóreas hão-de impedir também o juízo da razão, como mui claramente o manifesta a embriaguez e o sono. Pois, como já dissemos, a ira produz perturbação corpórea sobretudo no coração e de modo tal que esta deriva até para os membros exteriores. Por onde, dentre as demais paixões, ela é a que mais manifestamente nos priva do uso da razão, conforme aquilo da Escritura (Sl 30, 10): Conturbados com a ira estão os meus olhos.
Donde a resposta à primeira objeção. — O movimento apetitivo, elemento formal da ira, tem na razão o seu princípio. Mas, pelo seu elemento material, que é a comoção do calor, que impede velozmente, a paixão da ira trava o juízo perfeito da razão, quase não obedecendo perfeitamente a esta. E assim impede o seu uso.
Resposta à segunda. — Diz-se que o iracundo o é manifestamente, não que lhe seja manifesto o que deva fazer, mas por obrar desse modo, não buscando ocultar-se de maneira nenhuma. E isso se dá em parte pela privação da razão, que não pode discernir o que deve ocultar e o que deve manifestar, e nem mesmo pensar nos meios de ocultar; e em parte, pelo dilatar-se do coração, causado pela magnanimidade, que a ira produz. Por onde, o Filósofo diz, que o magnânimo ama e odeia manifestamente, e manifestamente fala e age. Porém dizemos da concupiscência que é latente e insidiosa, por, no mais das vezes, o prazer desejado ser acompanhado de certa torpeza e malícia, que queremos esconder. Apraz-nos, entretanto, agir manifestamente, quando devemos manifestar a virilidade e a excelência, como é o caso da vingança.
Resposta à terceira. — Como já dissemos, o movimento da ira tem na razão a sua origem. Por onde, a aposição de um contrário a outro, no mesmo ponto de vista, fortifica o juízo da razão e aumenta a ira. Assim, parece-nos maior o detrimento que sofremos na honra ou nas riquezas, que possuíamos, quer pela vizinhança do contrário, quer por ser inopinado. Por isso causa sofrimento maior, assim como também grandes bens, surgindo inopinados, causam maior prazer. E, conforme a intensidade do sofrimento precedente, cresce também a ira, conseqüentemente.
O segundo discute-se assim. — Parece que o ardor não é, por excelência, efeito da ira.
1. — Pois, como já se disse, o ardor é relativo ao amor. Ora este, como também já se disse, é o princípio e a causa de todas as paixões. Ora, sendo a causa mais poderosa que o efeito, resulta que a ira não causa, por excelência, o ardor.
2. Demais — O que em si mesmo excita o ardor aumenta cada vez mais no decorrer do tempo; assim, o amor diuturno mais se fortifica. Ora, a ira diminui com o passar do tempo, pois, como diz o Filósofo, o tempo acalma a ira. Logo, esta não causa, propriamente o ardor.
3. Demais — O ardor aumenta o ardor. Ora, uma ira maior, superveniente, faz diminuir a menor, como diz o Filósofo. Logo, a ira não causa o ardor.
Mas, em contrário, diz Damasceno, que a ira é ardor do sangue no coração, proveniente da evaporação do fel.
Solução. — Como já dissemos, a transmutação corpórea provocada pelas paixões da alma é proporcionada ao movimento do apetite. Ora, é manifesto que qualquer apetite, ainda natural, tende mais fortemente ao que lhe é contrário, se este estiver presente; e por isso vemos a água aquecida congelar-se mais fortemente, quase por ação mais veemente do frio sobre o quente. Ora, o movimento apetitivo da ira é causado por alguma injúria que nos é feita, como pelo que é presentemente contrário. Por isso, o apetite tende principalmente, a repelir a injúria, pelo desejo da vindicta; donde uma grande veemência e impetuosidade no movimento da ira. E como este não se dá por retração, a que o frio é proporcionado, mas antes, pela prossecução, a que é proporcionado o calor, conseqüentemente o movimento da ira causa um certo ardor do sangue e dos espíritos no coração, que é o instrumento das paixões da alma. Donde vem que, por causa da intensa perturbação do coração, que acompanha a ira, sobretudo nos irados se manifestam certos indícios, nos membros exteriores. Pois, como diz Gregório, estimulado pela ira, o coração, incendiado, palpita, o corpo treme, a língua trava-se as faces afogueiam-se, excitam-se os olhos e já os conhecidos de nenhum modo se reconhecem; a boca do irado quer gritar mas ignora o sentido o que haja de dizer.
Donde a resposta à primeira objeção. — O amor em si mesmo, como diz Agostinho, nós não o sentimos senão quando o perdemos. Por onde, quanto mais sofremos, pela injúria que nos é feita, detrimento nalguma excelência amada, tanto mais sentimos o amor, e portanto mais ardorosamente o coração se nos altera, afim de remover o impedimento que nos separa do objeto amado; de modo que a ira aumenta e faz sentirmos mais o ardor amoroso. Contudo, o ardor resultante do calor pertence-lhe, por uma razão, e, por outra, à ira. Pois, o ardor amoroso é acompanhado de certa doçura e suavidade, por ter por objeto o bem amado; e daí vem o assemelhar-se ao calor do ar e do sangue; e isso explica que os sanguíneos são mais amorosos, e o dizer-se que o fígado provoca o amor, no qual se opera uma certa geração do sangue. O ardor da ira porém é acompanhado de amargura consumptiva, porque tende à punição do contrário; por isso é assimilado ao calor do fogo e da cólera; donde o dizer Damasceno, que a ira procede da evaporação do fel e é chamada félea.
Resposta à segunda. — Aquilo cuja causa se enfraquece com o tempo necessariamente há-de ir-se debilitando. Ora, é manifesto, que a memória se enfraquece com o tempo, pois os fatos antigos facilmente lhe escapam. E sendo a ira causada pela memória da injúria feita, a sua causa há-de, por força, diminuir com o tempo, paulatinamente, até desaparecer. E isso explica que a injúria parece maior logo depois de sentida, diminuindo-se-lhe a importância que lhe damos quando mais ela se esbate no sentimento atual. O mesmo se dá com o amor, se a sua causa permanecer só na memória. Donde o dizer do Filósofo, que a ausência diuturna do amigo parece fazer esquecer a amizade. Ao contrário, com a presença dele, sempre a causa da amizade se intensifica no tempo e, portanto, a amizade cresce. E o mesmo se daria com a ira se a sua causa se multiplicasse continuamente. Contudo, o fato mesmo de ela consumir-se rapidamente atesta-lhe o veemente ardor. Pois assim como um grande fogo logo se extingue, uma vez consumida a sua matéria, assim também a ira, pela sua veemência, logo se desvanece.
Resposta à terceira. — Toda virtude, dividida em muitas partes, logo diminui. Por isso, quando nos iramos contra uma pessoa e, logo a seguir, contra outra, por isso mesmo a primeira ira diminui, sobretudo se a segunda for maior. Pois, a injúria que provocou a ira contra a primeira, será considerada pequena ou nula comparada com a segunda, julgada maior.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a ira não causa o prazer.
1. — Pois, a tristeza exclui o prazer. Ora, a ira vai sempre acompanhada da tristeza, porque, como diz Aristóteles, quem age levado pela ira o faz com pena. Logo, a ira não causa o prazer.
2. Demais — Como diz o Filósofo, a punição acalma o ímpeto da ira, substituindo a alegria pela tristeza; donde podemos deduzir que o prazer do irado lhe advém da punição. Ora, esta exclui a ira. Logo, a presença do prazer elimina a ira, e portanto não é um efeito acompanhado de prazer.
3. Demais — Nenhum efeito impede a sua causa, porque lhe é conforme com ela. Ora, os prazeres impedem a ira, como diz Aristóteles. Logo, o prazer não é efeito da ira.
Mas, em contrário, o Filósofo cita o provérbio seguinte: a ira, muito mais doce que o mel, que corre com limpidez, se entumesce no peito dos homens.
Solução. — Como diz o Filósofo, os prazeres mais sensíveis e mais corpóreos são remédios contra o sofrimento; por onde, quando recorremos ao prazer como remédio contra um grande sofrimento ou ansiedade, tanto mais o sentimos; assim, na sede a água se nos torna mais agradável. Ora, é manifesto, pelo sobredito que o movimento da ira surge em nós provocado por alguma injúria a nós feita e que nos penaliza, sendo então a vindicta o remédio contra essa pena. Por isso, da vingança presente resulta o prazer e tanto maior quanto maior for a ofensa. — Por onde, se a vindicta se realizar, o prazer, que exclui totalmente o sofrimento, torna-se completo e assim acalma o movimento da ira. Mas antes de ser a vingança uma realidade atual, já ela se torna presente ao irado de dois modos: pela esperança, porque ninguém se ira que não espere a vindicta, como já dissemos; ou pelo pensamento continuado, pois é-nos deleitável demorar no pensamento daquilo que desejamos; isso explica nos sejam agradáveis mesmo às imaginações do sonho. Por isso o irado se deleita revolvendo continuamente no ânimo o pensamento da vingança. Contudo, não é um prazer perfeito que elimina o sofrimento, e por conseguinte a ira.
Donde a resposta à primeira objeção. — O irado não sofre e alegra com um mesmo objeto; mas sofre com a injúria e goza com a vingança planejada e esperada. Por onde, o sofrimento está para a ira como um princípio; o prazer porém, como efeito ou termo.
Resposta à segunda. — A objeção procede quanto ao prazer causado pela realização da vingança, que exclui totalmente a ira.
Resposta à terceira. — O prazer precedente exclui o sofrimento e por conseguinte, a ira. Porém o prazer da vindicta é consecutivo à ira.