Skip to content

Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 — Se os hábitos são susceptíveis de aumento.

(Infra, q. 66, a . 1; De Vertut., q. 1, a . 11; q. 5, a . 3; X Ethic., lect. III).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que os hábitos não podem aumentar.
 
1. — Pois, aumento supõe quantidade, como já se disse1. Ora, os hábitos pertencem, não ao gênero da quantidade, mas ao da qualidade. Logo, não podem receber aumento.
 
2. Demais — O hábito é uma perfeição, como já se disse2. Ora esta, implicando um fim e um termo, parece não ser susceptível de mais nem de menos. Logo, o hábito não pode aumentar.
 
3. Demais — O susceptível de mais e de menos há-de por força sofrer alteração; assim dizemos que se altera o que, de menos, se torna mais quente. Ora, os hábitos não sofrem alteração, como já se provou3. Logo, os hábitos não podem aumentar.
 
Mas, em contrário, a fé é um hábito e, contudo, pode aumentar; por isso os discípulos dizem ao Senhor: aumenta-nos a fé, como se lê no Evangelho (Lc 17, 5). Logo, os hábitos podem aumentar.
 
Solução. — O aumento, como tudo o relativo à quantidade, é transferido ao espiritual e ao intelectual, das coisas corpóreas, por causa do conaturalidade do nosso intelecto com essas coisas, que estão ao alcance da nossa imaginação.
 
Ora, dizemos que uma quantidade corpórea é grande, quando realiza a perfeição devida à quantidade; por isso considera-se grande uma quantidade, no homem, que não se consideraria tal no elefante. Donde vem o dizermos que uma forma é grande quando é perfeita. E como o bem implica a noção de perfeito, em relação ao que não é materialmente grande, ser grande é o mesmo que ser melhor, como diz Agostinho4.
 
Ora, a perfeição da forma pode ser considerada à dupla luz: quanto à forma em si mesma, e enquanto o sujeito dela participa. No primeiro caso podemos considerá-la pequena ou grande; p. ex., a saúde ou a ciência grande ou pequena. No segundo, consideramo-la como susceptível de mais ou de menos; p. ex., mais ou menos branco ou são. Mas esta distinção não procede no sentido de ter a forma o ser independente da matéria ou do sujeito; senão que a consideramos, de um modo, quanto à sua essência especifica e, de outro, enquanto participada por um sujeito.
 
Quanto a esta doutrina, pois, são quatro as opiniões dos Filósofos, segundo refere Simplício, sobre a intenção e a remissão dos hábitos e das formas5. — Assim, Plotino e os demais Platônicos ensinavam que as qualidades e os hábitos, em si mesmos, são susceptíveis de mais e de menos, por serem materiais e terem por causa da infinidade da matéria, uma certa indeterminação. — Outros porém, ao contrário, ensinavam que as qualidades e os hábitos, em si mesmos, não são susceptíveis de mais nem de menos, mas que atribuímos às qualidades o mais e o menos, conforme a diversidade de participação; assim, não dizemos que a justiça o é, mais ou menos, mas, sim, o justo. E a esta opinião Aristóteles alude6. — A terceira é a opinião dos Estóicos, média entre as duas supra-referidas. Diziam eles que certos hábitos, como as artes, são em si susceptíveis de mais e de menos; outros, porém, não, como as virtudes. — A quarta opinião é a dos que diziam que as qualidades e as formas imateriais não são susceptíveis de mais e de menos; são-no porém as materiais.
 
Para estabelecermos pois a verdade das coisas, devemos considerar, que o princípio de especificação dos seres deve necessariamente ser algo de fixo, estável e quase indivisível. E assim tudo o que ele abrange por ele se especifica; e tudo o que dele se separa, mais ou menos, pertence a outra espécie, mais ou menos imperfeita. Por isso, o Filósofo diz que as espécies das coisas são como os números, cuja espécie varia pela adição ou diminuição7. — Por onde, se uma forma ou qualquer outra coisa, em si mesma por algo de seu, pertencer a uma determinada espécie, há-de necessariamente, considerada em si mesma, realizar uma determinada essência, em relação à qual não pode ser nem excedente nem deficiente. E tal é o calor, a brancura e qualidades semelhantes, não relativas a outras e, com maior razão, a substância, que é ente por si mesma. — Coisas porém que se especificam por um termo para o qual se ordenam, podem, em si mesmas, diversificar-se mais ou menos; e contudo pertencem à mesma espécie por causa da unidade do termo a que se ordenam e que as especifica. Assim, o movimento, em si mesmo, pode ser mais intenso ou remisso, permanecendo contudo na mesma espécie, por causa da unidade do seu termo especificado. E o mesmo pode-se dar com a saúde; pois, o corpo se manifesta como saudável quando tem disposições convenientes à natureza animal, que podem ser diversas e portanto variar mais ou menos, sempre permanecendo contudo o princípio constitutivo da saúde. Por isso, o Filósofo diz que a saúde, em si mesma, é susceptível de maior e menor grau; pois, não há a mesma proporção em todos os seres, nem sempre, num mesmo ser; mas, mesmo diminuída, permanece até um certo termo8. Ora, essas diversas disposições ou proporções da saúde são relativas ao excedente e ao excesso; por onde, se aplicássemos o nome de saúde só àquela que fosse dotada de perfeito equilíbrio, então a saúde, em si mesma, não seria susceptível de maior ou menor grau. E fica assim claro o modo por que uma qualidade ou forma pode ou não, em si mesma, aumentar ou diminuir.
 
Se porém levarmos em conta a qualidade ou a forma, quanto à participação do sujeito, veremos também que umas qualidades e formas são susceptíveis de mais e de menos e outras, não. E a causa desta diversidade Simplício9 descobre em que a substância, sendo um ser em si, não é por si mesma, susceptível de mais e de menos. E portanto, toda forma participada substancialmente pelo sujeito não é susceptível de intenção nem de remissão; e por isso no gênero da substância, nada é susceptível de mais nem de menos. E como a quantidade é próxima da substância, da qual resulta a forma e a figura, dizemos que também esta e aquela não são susceptíveis de mais nem de menos. Donde, segundo o Filósofo, do que recebe a forma e a figura, nós dizemos, não que se alterou, mas, que vem a ser10. Ao passo que as outras qualidades, mais distantes da substâncias, e subordinadas à paixão e à ação, são susceptíveis de mais e de menos, conforme a participação do sujeito.
 
Mas a razão desta diversidade pode ser ainda melhor explicada. Pois, como já dissemos, o princípio especificador deve ser fixo e estável na sua indivisibilidade. Ora, de dois modos pode se dar que a forma não seja participada mais nem menos. — Ou porque o participante contém a espécie em si mesma. Por isso nenhuma forma substancial pode ser mais ou menos participada. Por onde, diz o Filósofo que, como o número não é susceptível de mais nem de menos, também não o é a substância especificada11, i. é, no concernente à participação da forma específica; mas se for acompanhada da matéria, i. é, quanto às disposições materiais, é susceptível de mais e de menos. — De outro modo, tal pode se dar se a própria indivisibilidade for da essência da forma. Por onde, o que dela participar há-de fazê-lo na sua essência indivisível. Donde vem que as espécies do número não as consideramos como susceptíveis de mais nem de menos; pois, cada uma dessas espécies é constituída pela unidade indivisível. E o mesmo se dá com as espécies da quantidade contínua, consideradas numericamente, como o que tem dois ou três côvados; e com as relações, como o que é duplo ou triplo; e com as figuras, como o triângulo e o quadrado. E esta razão Aristóteles a expõe quando, explicando porque as figuras não são susceptíveis de mais nem de menos, diz: Aquilo que realiza a essência do triângulo e do círculo é triângulo ou círculo12, porque a indivisibilidade é inerente a essas essências; por onde, tudo o que delas participa há-de lhes participar também a indivisibilidade.
 
Donde consta com clareza que, sendo os hábitos e as disposições assim chamados por se ordenarem a algum termo, como diz Aristóteles13, de dois modos podemos levar em conta a intenção e a remissão deles. — Ou em si mesmos, como quando dizemos que a saúde é maior ou menor; ou que o é a ciência, conforme tem maior ou menor extensão. — Ou de outro modo, quanto à participação do sujeito, quando uma mesma saúde ou ciência é participada mais por um que por outro, conforme as diversas aptidões provenientes da natureza ou do costume. Pois, o hábito e a disposição não especificam o sujeito, nem além disso incluem, por essência, a indivisibilidade.
 
E quanto à relação do hábito com a virtude a seguir se dirá14.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Assim como a denominação de grandeza derivou das quantidades corpóreas, para as perfeições inteligíveis das formas, assim também o nome de aumento, cujo termo é o grande.
 
Resposta à segunda. — Certamente o hábito é uma perfeição; não porém de tal natureza que seja o termo do seu sujeito, como lhe dando o ser específico; e nem inclui na sua essência o termo, como as espécies dos números.
 
Resposta à terceira. — A alteração, primariamente, está nas qualidades da terceira espécie. Ela pode porém existir nas qualidades da primeira espécie por posterioridade. Assim, produzida a alteração relativa ao calor e ao frio, resulta a natureza animal alterada na saúde e na doença. E semelhantemente, causada a alteração nas paixões do apetite sensitivo ou nas potências sensitivas apreensivas, segue-se à alteração na ciência e nas virtudes, como já se disse.
 

  1. 1. V Physic. (lect. IV).
  2. 2. VII Phsyc. (lect. V).
  3. 3. VII Physic. (lect. V, VI).
  4. 4. VI De Trinit. cap (VIII).
  5. 5. In comment. Praed. (cap. De qualit).
  6. 6. In praedicamentis (cap. VI).
  7. 7. VIII Metaph. (lect. III).
  8. 8. X Ethic. (lect. III).
  9. 9. loc. cit.
  10. 10. VII Physic. (lect. V).
  11. 11. VIII Metaph. (lect. III).
  12. 12. Praedicam. (cap. VI).
  13. 13. VII Physic. (lect. V, VI).
  14. 14. Q. 46, a. 9.

Questão 52: Do aumento dos hábitos.

 

Em seguida devemos tratar do aumento dos hábitos. E, sobre esta questão, três artigos se discutem:

 

Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado

59 — Como é necessário ao cristão acreditar na Encarnação do Filho de Deus, é também necessário acreditar na sua Paixão e Morte, por que, como disse S. Gregório, “em nada nos teria sido útil o seu nascimento, se não favorecesse à Redenção”. Essa verdade, isto é, que Cristo morreu por nós, é de tal modo difícil que a nossa inteligência pode apenas conhecê-la, mas, de modo algum, por si mesmo descobri-la. Isso é confirmado pelas palavras do Apóstolo: “Farei uma obra em vossos dias, que nela não podereis acreditar se alguém antes não a tiver revelado” (At 13, 41). Confirma-o também o que falou o Profeta Habacuc: “Será feita uma obra em vossos dias que ninguém acreditará quando for narrada” (Hab 1, 5).

Art. 4 — Se o homem tem hábitos infundidos por Deus.

(Infra, q. 63, a. 3).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que nenhum hábito do homem é infundido por Deus.
 
1. — Pois, Deus procede igualmente para com todos. Se portanto infundir certos hábitos em alguns homens, há-de infundi-los em todos; o que é evidentemente falso.
 
2. Demais — Deus opera em todos os seres pelo modo que lhes convém à natureza; pois, pertence à Divina Providência salvar a natureza, como diz Dionísio1. Ora, o hábito do homem é naturalmente causado pelos atos, como já dissemos2. Logo, Deus não causa, nos homens, nenhuns hábitos sem atos.
 
3. Demais — Pelo hábito infundido por Deus, o homem poderia produzir muitos atos. Ora, tais atos causariam um hábito semelhante, como já se disse3. Donde resultaria existirem dois hábitos da mesma espécie no mesmo indivíduo; um adquirido e outro, infuso. Ora, isto é impossível, pois duas formas da mesma espécie não podem coexistir no mesmo sujeito. Logo, nenhum hábito é infundido no homem por Deus.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Ecle 15, 5): O Senhor o encherá do espírito de sabedoria e de inteligência. Ora, a sabedoria e a inteligência são hábitos. Logo, certos hábitos são infundidos no homem por Deus.
 
Solução. — Por dupla razão certos hábitos são infundidos no homem por Deus. — A primeira é que há certos pelos quais ele se dispõe bem para um fim excedente à capacidade da sua natureza, que é a sua última e perfeita beatitude, com já dissemos4. E como os hábitos devem ser proporcionados aquilo a que dispõem o homem, os que o dispõem para um tal fim hão-de também necessariamente exceder-lhe a capacidade da natureza. Por onde, poderão nele existir só por infusão divina; e tal é o caso de todas as virtudes gratuitas. — A outra razão é que Deus pode produzir os efeitos das causas segundas, sem elas, como já dissemos na Primeira Parte5. Ora, assim como às vezes para ostentar o seu poder, produz a saúde que podia ser causada pela natureza, sem a cooperação de nenhuma causa natural; assim também, às vezes, para o mesmo fim, infunde no homem hábitos que podem ser causados por uma virtude natural. Assim deu aos Apóstolos a ciência das Escrituras e de todas as línguas, que os homens podem adquirir pelo estudo ou pelo costume, embora não de modo tão perfeito.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Deus, pela sua natureza, procede igualmente para com todos; mas, quanto à ordem da sua sabedoria, dá por alguma certa razão, a uns o que não dá a outros.
 
Resposta à segunda. — O que Deus opera em todos os seres, por meio deles, não impede faça certas coisas que a natureza não pode fazer; mas daqui se segue que não obra nada contra o que convém à natureza.
 
Resposta à terceira. — Os atos produzidos por um hábito infuso não causam nenhum outro hábito; mas confirmam o preexistente. — Assim os remédios, ministrados ao homem são, não causam, por natureza, a saúde, mas, fortificam a que ele já tinha.

  1. 1. IV cap. De divin. Nomin. (lect. XXIII).
  2. 2. Q. 51, a. 2.
  3. 3. II Ethic. (lect. I).
  4. 4. Q. 5, a. 5.
  5. 5. Q. 105, a. 6.

Art. 3 — Se o hábito pode ser gerado por um só ato.

(I Sent., dist. XVII, q. 2, a . 3, ad 4; De Virtut., q. 1, a . 9 ad 11).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que o hábito pode ser gerado por um só ato.
 
1. — Pois, a demonstração é um ato da razão. Ora, por uma só demonstração é causada a ciência, que é o hábito de uma conclusão. Logo, o hábito pode ser causado por um só ato.
 
2. Demais — Como o ato pode aumentar por multiplicação, assim também o pode pela intensidade. Ora, o hábito é gerado por atos multiplicados. Logo também, se um ato for muito intenso, poderá ser causa geratriz do hábito.
 
3. Demais — A saúde e a doença são hábitos. Ora, por um ato o homem pode sarar ou ficar enfermo. Logo, um ato pode causar o hábito.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que, assim como uma andorinha não faz primavera, nem um só dia; assim também não é um só dia, ou pouco tempo, que poderá fazer um homem bem-aventurado ou feliz1. Ora, a beatitude é uma operação conforme ao hábito da virtude perfeita, como já se disse2. Logo, o hábito da virtude e, pela mesma razão, outro qualquer hábito, não pode ser causado por um só ato.
 
Solução. — Como já dissemos3, o hábito é gerado pelo ato, enquanto a potência passiva é movida por um princípio ativo. Para uma qualidade qualquer porém ser causada no ser passivo, é necessário que o princípio ativo o domine totalmente. Por isso vemos que o fogo, não podendo dominar totalmente o seu combustível, não pode inflamá-lo imediatamente, mas vai, aos poucos, eliminando as disposições contrárias, de modo a dominá-lo totalmente, imprimindo-lhe a sua semelhança.
 
Ora, como é manifesto, o princípio ativo, que é a razão, não pode, por um só ato dominar totalmente a potência apetitiva, porque esta se conduz, de modos diversos e tem muitos objetos; pode porém por um único ato julgar se um objeto é desejável segundo determinadas razões e circunstâncias. E por isso a potência apetitiva não é vencida totalmente, de modo a, na maioria dos casos, a modo da natureza, ser levada para o mesmo objeto; e isso pertence ao hábito da virtude. Por onde, este hábito não pode ser causado por um só ato, mas por muitos.
 
Em relação porém às potências apreensivas, devemos levar em conta uma dupla passividade: a do intelecto possível, e a do que Aristóteles denomina passivo, que é uma razão particular, i. é, a potência cogitativa juntamente com a memorativa e a imaginativa. — Mas em relação ao ser passivo primeiro, pode existir um ativo que, por um único ato o domine totalmente, como lhe sendo subordinado; assim uma proposição evidente leva o intelecto a assentir firmemente na conclusão. O que não faz a proposição provável; e por isso é necessário que por muitos atos da razão seja causado o hábito opinativo, mesmo por parte do intelecto passível. Ao passo que o hábito da ciência pode ser causado por um só ato da razão, quanto ao intelecto passível. — Mas, quanto às potências inferiores apreensivas, é necessário sejam os mesmos atos reiterados muitas vezes, para produzirem uma forte impressão na memória. E por isso o Filósofo diz, que a meditação fortalece a memória4.
 
Os hábitos corpóreos porém é possível sejam causados por um só ato, se o princípio ativo tiver forte virtude; assim às vezes um remédio forte produz a saúde prontamente.
 
E daqui consta com evidência a resposta às objeções.

  1. 1. I Ethic. (lect. X).
  2. 2. I Ethic. (ibid).
  3. 3. Q. 51, a. 2.
  4. 4. Lib. De memoria et reminiscentia (lect. III).

Art. 2 — Se certos hábitos podem ser causados por algum ato.

(De Malo, q. 11. a . 2 ad 4, 6; De Virtut., q. 1. a . 9).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que um hábito não pode ser causado por nenhum ato.
 
1. — Pois, o hábito é uma qualidade, como já se disse1. Ora, toda qualidade é causada num sujeito, enquanto este é susceptível de receber alguma coisa. Ora, como o agente, por isso mesmo que o é, não é receptivo, mas antes, produtor, conclui-se que nenhum hábito pode nele ser gerado pelos seus próprios atos.
 
2. Demais — Aquilo em que alguma qualidade é causada move-se para essa qualidade, como se vê claramente no que é aquecido ou resfriado. Ora, o que produz um ato causador da qualidade, move, como claramente o deixa ver aquilo que aquece ou resfria. Se portanto o hábito fosse causado num ser por um ato próprio deste, resultaria que o mesmo ser seria motor e movido, ou, agente e paciente, o que é impossível, como já se disse2.
 
3. Demais — Um efeito não pode ser mais nobre que a sua causa. Ora, o hábito é mais nobre que o ato que o precede, o que se evidencia por torná-los mais nobres. Logo, o hábito não pode ser causado por um ato precedente.
 
Mas, em contrário, o Filósofo ensina que os hábitos das virtudes e dos vícios são causados pelos atos3.
 
Solução. — O agente inclui às vezes só o princípio ativo do seu ato; assim, no fogo há apenas o princípio ativo do aquecimento. E, nenhum hábito de tal agente pode ser causado pelo ato próprio do mesmo. Donde vem que os seres naturais não podem acostumar-se ou desacostumar-se em relação a nada, como já se disse4.
 
Certos agentes, porém, incluem um princípio ativo e passivo dos seus atos, como se vê claramente nos atos humanos. Pois os atos da potência apetitiva dela procedem enquanto movida pela potência apreensiva representativa do objeto; e ulteriormente, a potência intelectiva, quando raciocina sobre as conclusões, implica, como princípio ativo, uma proposição evidente. Por onde, por meio de tais atos, certos hábitos podem ser causados nos agentes, não certamente quanto ao primeiro princípio ativo, mas quanto ao princípio do ato que põe o móvel em movimento. Pois, tudo o que recebe de fora a paixão e o movimento, recebe a sua disposição do ato do agente. E por isso os atos multiplicados geram uma certa qualidade na potência passiva e movida, denominada hábito; assim, os hábitos das virtudes morais são causados nas potências apetitivas, enquanto movidas pela razão; e os hábitos das ciências são causados no intelecto enquanto movido pelas proposições primeiras.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O agente como tal nada recebe; mas quando age movido por outro, recebe algo do motor, e assim é causado o hábito.
 
Resposta à segunda. — Nada, em si mesmo, pode ser simultaneamente motor e movido; mas nada impede possa um ser mover-se por si mesmo, em pontos de vista diversos, como já se provou5.
 
Resposta à terceira. — O ato que precede o hábito, enquanto proveniente de um princípio ativo, se origina de um princípio mais nobre que o ato gerado. Assim a razão, em si mesma, é princípio mais nobre que o hábito da virtude moral da potência apetitiva, gerado por atos costumeiros; e o intelecto dos princípios é princípio mais nobre que a ciência das conclusões.

  1. 1. Q. 49, a. 1.
  2. 2. VII Phys. (lect. I).
  3. 3. II Ethic. (lect. 1).
  4. 4. II Ethic. (lect. I).
  5. 5. VIII Phys. (lect. VIII, X).

Art. 1 — Se há hábitos procedentes da natureza.

(Infra, q. 63, a. 1)
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que nenhum hábito é procedente da natureza.
 
1. — Pois, o uso do que procede da natureza não depende da nossa vontade. Ora, o hábito é aquilo de que usamos quando quisermos1, como diz o Comentador. Logo, o hábito não procede da natureza.
 
2. Demais — O que a natureza pode fazer por um meio não o faz por dois. Ora, as potências da alma procedem da natureza. Se, pois, os hábitos das potências também dela procedessem, o hábito e a potência seriam idênticos.
 
3. Demais — A natureza não falha no necessário. Ora, os hábitos são necessários para operarmos bem, como já se disse2. Se pois houvesse hábitos procedentes da natureza, esta não falharia e portanto causaria necessariamente todos os hábitos. Ora, isto é claramente falso. Logo, o hábito não procede da natureza.
 
Mas, em contrário, Aristóteles coloca, entre os hábitos, o intelecto dos princípios, que procede da natureza, sendo por isso que os primeiros princípios se consideram naturalmente conhecidos3.
 
Solução. — Uma coisa pode ser natural de dois modos. Pela natureza da espécie; assim, é natural ao homem o riso e ao fogo o ser levado para cima. Ou pela natureza do indivíduo; assim é natural a Sócrates ou a Platão ser doentio ou sadio, segundo a própria compleição. Além disso, relativamente a uma e outra natureza, uma coisa pode chamar-se natural de dois modos. Ou por proceder totalmente da natureza; ou por dela proceder em parte e, em parte, de um princípio exterior. Assim, quando alguém sara por si, toda a saúde procede da natureza; e quando sara com o auxílio de um remédio, a saúde provém, parte da natureza e, parte, de um princípio exterior.
 
Se considerarmos, pois, o hábito como disposição do sujeito em relação à forma ou à natureza, ele é natural de qualquer dos dois modos supra-referidos. Assim, há uma disposição natural, própria à espécie humana, que abrange todos os homens; e essa é natural pela natureza da espécie. Mas como essa disposição implica uma certa amplitude, os seus diversos graus podem convir aos diversos homens segundo a natureza do indivíduo; e tal disposição pode provir totalmente da natureza ou, em parte apenas, provindo então, por outra parte, de um princípio exterior, como já dissemos referindo-nos aos que saram por meio da arte médica.
 
O hábito porém, que é disposição para a operação cujo sujeito é alguma potência da alma, como já dissemos4, pode, certo, ser natural, tanto pela natureza da espécie, como pela do indivíduo. Pela natureza da espécie, enquanto depende da alma que, sendo forma do corpo, é um princípio específico. Pela natureza do indivíduo, enquanto depende do corpo, que é um princípio material. De nenhum desses dois modos porém pode o homem ter hábitos naturais, de maneira que procedam totalmente da natureza. Podem eles existir porém nos anjos, enquanto têm espécies inteligíveis naturalmente infusas, o que não convém à natureza humana, como já dissemos na Primeira Parte5
 
Logo, há nos homens certos hábitos naturais, procedentes, parte, da natureza e, parte, de um princípio exterior.
 
Isso dá-se porém de um modo, com as potências apreensivas e, de outro, com as apetitivas.
 
Em relação às primeiras um hábito pode ser natural, incoativamente, quanto à natureza da espécie e quanto à do indivíduo. — Quanto aquela, por parte da alma em si mesma; assim, dizemos que o intelecto dos princípios é um hábito natural. Pois, pela natureza mesma da alma intelectual é próprio ao homem conhecer o todo como maior que uma das partes, desde que conheça o que é todo e o que é parte; e assim, em casos semelhantes. Mas, conhecer o todo e a parte ele não o pode senão pelas espécies inteligíveis hauridas nos fantasmas. E, por isso, o Filósofo mostra que o conhecimento dos princípios provém em nós dos sentidos. — Quanto à natureza do indivíduo, um hábito cognoscitivo é natural incoativamente, enquanto um homem, por disposição orgânica, é mais apto para bem inteligir, que outro, na medida em que precisamos das potências sensitivas para a operação do intelecto.
 
Nas potências apetitivas porém, não há nenhum hábito natural, incoativamente, por parte da alma, se levamos em conta a substância mesma do hábito, mas só se nos referimos a certos princípios deste; assim, os princípios do direito comum são chamados sementeiras das virtudes. E isto porque a inclinação para os objetos próprios, que é considerada uma incoação do hábito, não lhe pertence a este, mas antes, à natureza mesma da potência. — Quanto ao corpo, porém, levando em conta a natureza do indivíduo, há certos hábitos apetitivos por incoações naturais. Pois, certos são dispostos, pela própria compleição do corpo, à castidade, à mansidão ou a disposições semelhantes.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção colhe quanto à natureza dividida por oposição à razão e à vontade, embora esta e aquela, em si mesmas, pertençam à natureza do homem.
 
Resposta à segunda. — O que não pode pertencer a uma potência, em si mesma, pode contudo, se lhe acrescentar naturalmente. Assim, não pode pertencer à potência intelectiva mesma dos anjos o ser cognoscitiva de tudo, porque então haveria necessariamente de ser o ato de tudo, o que só a Deus convém. Pois é necessário seja aquilo pelo que um objeto é conhecido uma semelhança natural dele. Donde se seguiria que se a potência do anjo conhecesse tudo por si mesma, seria semelhança e ato de tudo. Por onde é necessário que às suas potências intelectivas se acrescentem certas espécies inteligíveis, semelhanças das coisas inteligidas; pois, por participação da divina sabedoria, e não pela essência própria, os intelectos deles podem ser, em ato, aquilo que inteligem. E assim é claro que nem tudo o que pertence ao hábito natural pode pertencer à potência.
 
Resposta à terceira. — A natureza não se comporta do mesmo modo no causar todas as diversidades dos hábitos; pois, certos podem ser causados por ela e certos, não, como já dissemos. Donde não se segue que todos os hábitos sejam naturais, pelo serem alguns.

  1. 1. III De anima (comment. XVIII).
  2. 2. Q. 49, a. 4.
  3. 3. VI Ethic. (lect. V).
  4. 4. Q. 50, a. 2.
  5. 5. Q. 55, a. 2; q. 84, a. 3.

Questão 51: Da causa dos hábitos quanto à geração deles.

 

Em seguida devemos tratar da causa dos hábitos. E, primeiro, quanto à geração deles. Segundo, quanto ao aumento. Terceiro, quanto à diminuição e à corrupção.
 
Sobre a primeira questão quatro artigos se discutem:

 

Foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria

45 — Não é somente necessário ao cristão acreditar que Jesus é o Filho de Deus, como acima mostramos, mas também convém crer na Sua Encarnação. Por isso, o Bem-aventurado João, após ter falado muitas coisas elevadas e de difícil compreensão, logo a seguir nos insinua a Sua Encarnação, quando diz: “E o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14).

Art. 6 — Se nos anjos há hábitos.

(III Sent., dist. XIV, a . 1, qª 2, ad 1).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que nos anjos não há hábitos.
 
1. — Pois, diz Máximo, comentador de Dionísio: Não devemos julgar que as virtudes intelectuais, i. é, espirituais, existam nos intelectos divinos, i. é, nos anjos, como em nós, a modo de acidentes, de maneira que um destes exista em outro como num sujeito; pois, nos anjos não há qualquer acidente1. Ora, todo hábito é acidente. Logo, nos anjos não há hábitos.
 
2. Demais — Como diz Dionísio, as disposições santas das essências celestes participam, por excelência, da bondade de Deus2. Ora, o que é por si é sempre anterior e mais principal do que o existente por meio de outro ser. Logo, as essências dos anjos, em si mesmas, se aperfeiçoam pela conformidade com Deus e não, portanto, por meio de quaisquer hábitos. E esta parece ser a razão de Máximo, que logo a seguir se lê: Se tal não se desse, a essência dos anjos não subsistiria em si mesma, nem poderia, o quanto possível, ser, em si mesma, deificada.
 
3. Demais — O hábito é uma disposição, como já se disse3. Ora, a disposição, como no mesmo lugar se acrescenta, é a ordem do que tem partes. Ora, os anjos sendo substâncias simples, resulta que neles não há disposições e hábitos.
 
Mas, em contrário, diz Dionísio, os anjos da primeira hierarquia chamam-se Ardentes, Tronos e Efusão da sapiência, manifestação deiforme dos hábitos dos mesmos4.
 
SOLUÇÃO. — Certos disseram que nos anjos não há hábitos, mas que tudo que deles dizemos essencialmente o dizemos. Por isso Máximo, depois das palavras supra-citadas, acrescentou: Os hábitos e as virtudes neles existentes são essenciais por causa da imaterialidade dos mesmos. E Simplício também diz: A sapiência da alma é um hábito; a do intelecto, substância; pois, tudo o que é divino tem em si mesmo a sua suficiência e a sua existência5.
 
Esta opinião é em parte verdadeira e em parte, falsa. Pois é manifesto, pelo que já dissemos6, que o sujeito do hábito não é senão o ser em potência. Ora, considerando os preditos comentadores que os anjos são imateriais e que neles não há a potência da matéria, deles excluíram o hábito e qualquer acidente. Entretanto, embora não haja nos anjos a potência da matéria, há todavia alguma potência, porque ser ato puro é só próprio de Deus; e portanto, na mesma medida em que neles há potências, pode haver também hábitos. Mas como a potência da matéria e a da substância intelectual não têm a mesma essência, conseqüentemente também os hábitos, num e noutro caso, não podem tê-la idêntica. Donde o dizer Simplício, que os hábitos da substância intelectual não são semelhantes aos de que tratamos aqui; mas são, antes, semelhantes às espécies simples e materiais que ela contêm em si mesma7.
 
Em relação a tais hábitos porém uma é a posição do intelecto angélico e outra, do humano. Este, que é infinito na ordem das inteligências, é potencial relativamente a todos os inteligíveis, como o é a matéria prima em relação a todas as formas sensíveis; e por isso, para inteligir todas as coisas precisa de um certo hábito. O intelecto angélico porém não se comporta como pura potência no gênero dos inteligíveis, mas como um certo ato. Não certo como ato puro, o que é próprio só de Deus, mas, vai de mistura com alguma potência, da qual tanto menos tem quanto mais superior é. Por onde, como dissemos na Primeira Parte8, enquanto potencial, necessita ser aperfeiçoado habitualmente por certas espécies inteligíveis, para o fim da sua operação própria. Enquanto atual porém pode, pela sua essência, inteligir certos objetos, ao menos a si próprio, e os demais ao modo da sua substância, com se diz no livro De causis9; e isso tanto mais perfeitamente quanto mais perfeito for. Como nenhum anjo porém alcança a perfeição de Deus, do qual dista infinitamente, necessita, para atingir a Deus pelo intelecto e pela vontade, de certos hábitos, como potencial que é em relação ao ato puro. E por isso Dionísio diz que os hábitos dos anjos pelos quais se conformam com Deus, são deiformes. — Os hábitos porém, que são disposições para o ser natural, não existem nos anjos, que são imateriais.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras de Máximo devem ser entendidas dos hábitos e dos acidentes materiais.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — No que convém essencialmente aos anjos, ele não precisam de hábito. Mas, como não são seres de tal modo por si mesmos existentes, que não participem da sabedoria e da bondade divina, por isso, na medida em que precisam participar de algo exterior, nessa mesma devemos admitir que neles há hábitos.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Nos anjos não há partes essenciais, mas apenas potenciais, enquanto o intelecto se lhes aperfeiçoa por meio de várias espécies, e a vontade se refere a vários objetos.

  1. 1. VII cap. De cael. Hier.
  2. 2. IV De cael. Hier.
  3. 3. V Metaph. (lect. XX).
  4. 4. VII cap. Cael. Hier.
  5. 5. Comm. Praedicam. (cap. De qual.).
  6. 6. Q. 49, a. 4.
  7. 7. loc. cit.
  8. 8. Q. 55, a. 1.
  9. 9. lect. VIII, XIII.
AdaptiveThemes