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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 5 — Se a vontade é susceptível de algum hábito.

(II Sent., dist. XXVII, a . 1, ad 2; III, dist. XXIII, q. 1, a . 1; De Verit., q. 20, a . 2; De Virtut., q. 1, a . 1).
 
O quinto discute-se assim. — Parece que a vontade não é susceptível de nenhum hábito.
 
1. — Pois, os hábitos existentes no intelecto são espécies inteligíveis, pelas quais ele intelige em ato. Ora, a vontade não opera por meio de nenhumas espécies. Logo, a vontade não é sujeito de nenhum hábito.
 
2. Demais — O intelecto agente não o julgamos susceptível de nenhum hábito, ao contrário do que se dá com o intelecto possível, que é uma potência ativa. Ora, a vontade é, por excelência, uma potência ativa, porque move todas as potências a concorrerem aos seus atos, como já se disse1. Logo, nela não há nenhum hábito.
 
3. Demais — Nas potências naturais não há nenhum hábito, pois por natureza elas são determinadas a um certo termo. Ora, a vontade, por sua natureza, se ordena a tender para o bem ordenado pela razão. Logo, a vontade não é susceptível de nenhum hábito.
 
Mas, em contrário, a justiça é um hábito. Ora, ela existe na vontade, pois é o hábito pelo qual queremos e obramos o que é justo, como já se disse2. Logo, a vontade pode ser sujeito de algum hábito.
 
SOLUÇÃO. — Toda potência que pode ordenar-se diversamente à ação necessita de um hábito pelo qual se dispõe bem para o seu ato. Ora, a vontade, sendo uma potência racional, pode ordenar-se diversamente à ação. Logo, é necessário admitirmos nela algum hábito pelo qual se disponha bem para o seu ato. Demais, da sua própria noção resulta que o hábito se ordena principalmente à vontade, pois é o de que usamos quando quisermos, segundo já ficou dito3.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como no intelecto há uma espécie que é semelhança do objeto; assim é necessário haver na vontade e em qualquer potência apetitiva algo pelo qual ela se inclina ao seu objeto, pois o ato da virtude apetitiva não passa de uma inclinação, como já dissemos4. Ora, aquilo a que uma potência se inclina suficientemente, pela sua própria natureza não exige nenhuma qualidade inclinante. Mas como é necessário, para o fim da vida humana, que a potência apetitiva se incline a um objeto determinado, para o qual não se inclina pela própria natureza, que é relativa a muitos e diversos objetos, é necessário haja na vontade e nas outras potências apetitivas certas qualidades inclinantes, chamadas hábitos.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — O intelecto agente é só agente e, de nenhum modo paciente. A vontade porém e qualquer potência apetitiva é motora e movida, como já se disse5. Logo, não há semelhança, em ambos os casos; pois, ser susceptivo de hábito convém ao que está de certo modo em potência.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A vontade, pela sua natureza mesma, inclina-se para o bem da razão. Mas, como este bem se diversifica de múltiplas maneiras, necessário é a vontade inclinar-se por algum hábito, a um determinado bem da razão, para que daí resulte mais pronta a operação.

  1. 1. Q. 9, a. 1.
  2. 2. V Ethic. (lect. I).
  3. 3. q. 50, a. 1.
  4. 4. Q. 6, a. 4.
  5. 5. III De anima (lect. XV).

Art. 4 — Se o intelecto é susceptível de hábitos.

(III Sent., dist. XIV, a . 1, qª 2; dist. XXIII, q. 1, a . 1; De Verit., q. 10, a . 2; De Virtut., q. 1, a . 1).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que o intelecto não é susceptível de hábito.
 
1. — Pois, os hábitos são conformados às operações, como já se disse (a. 1). Ora, as operações do homem são comuns à alma e ao corpo, conforme diz Aristóteles1. Logo, também o hábito. Ora, o intelecto não é ato do corpo, como ensina Aristóteles2. Logo, o intelecto não é sujeito de nenhum hábito.
 
2. Demais — Tudo o existente em outro ser, neste existe ao modo do mesmo. Ora, o que é forma sem matéria é somente ato; ao passo que o composto de forma e de matéria encerra simultaneamente a potência e o ato. Logo, no ser puramente formal nada pode existir que esteja simultaneamente em potência e em ato, mas somente no ser composto de matéria e forma. Ora, o intelecto é forma sem matéria. Logo, o hábito, que encerra simultaneamente a potência e o ato, sendo um quase termo médio entre este e aquela, não pode existir no intelecto, mas só no conjunto, composto de alma e corpo.
 
3. Demais — O hábito é uma disposição pela qual nos dispomos bem ou mal para alguma coisa, como diz Aristóteles3. Ora, é por uma disposição do corpo, que nos dispomos bem ou mal para o ato da inteligência; por onde, Aristóteles diz ainda, que os de carne delicada são, como vemos, de boa aptidão mental4. Logo, os hábitos cognoscitivos não existem no intelecto, que é separado, mas em alguma potência que seja ato de uma parte do corpo.
 
Mas, em contrário, o Filósofo coloca a ciência, a sapiência, e o intelecto, que é o hábito dos princípios, na parte intelectiva mesma da alma5.
 
SOLUÇÃO. — São várias as opiniões a respeito dos hábitos cognoscitivos. Assim uns, ensinando que o intelecto possível é o mesmo para todos os homens, são forçados a admitir que os hábitos cognoscitivos existem, não no intelecto mesmo, mas nas virtudes interiores sensitivas. Pois, os homens, diversificando-se pelos hábitos, como é manifesto, não podemos admitir que os hábitos cognoscitivos existam diretamente no que, sendo numericamente uno, é comum a todos os homens. Por onde, se o intelecto possível é numericamente um, para todos os homens, os hábitos das ciências, que os diversificam, não poderão existir nele como sujeito, mas sim, nas potências interiores sensitivas, diversas nos diversos homens.
 
Mas, esta opinião, primeiro é contra a intenção de Aristóteles. Pois, é manifesto que as potências sensitivas não são racionais por essência, mas só, por participação, como diz Aristóteles6. Ora, o Filósofo inclui as virtudes intelectuais — a sapiência, a ciência e o intelecto — na parte racional por essência. Por onde, não existem nas potências sensitivas, mas no próprio intelecto. Pois, diz expressamente que o intelecto possível, quando se torna em cada coisa singular, i. é, quando é reduzido ao ato (apreensivo) das coisas singulares pelas espécies inteligíveis, então se atualiza, do modo pelo qual dizemos que quem é ciente está em ato; e isto se dá quando podemos operar por nós mesmos, i. é, refletindo. E é, sem dúvida, certo que, também neste caso, é potencial, de certa maneira; não, porém, como antes de aprender ou descobrir7.
 
Por onde, é no intelecto possível que está o hábito da ciência, pelo qual ele pode refletir, embora não esteja refletindo. — Em segundo lugar, a opinião de que se trata vai também contra a verdade das coisas. Pois, assim como a potência também o hábito é próprio do ser ao qual é própria a operação. Ora, inteligir e refletir é ato próprio do intelecto. Logo, também o hábito, pelo qual refletimos, está propriamente no intelecto.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Certos disseram, como o refere Simplício8, que, como toda operação do homem pertence, de certo modo, ao composto, segundo o diz o Filósofo9, nenhum hábito pertence só à alma, senão ao conjunto. Donde se seque que, sendo o intelecto separado, nenhum hábito nele existe, como o pretende a razão anterior. — Mas esta objeção não colhe; pois, o hábito não é uma disposição do objeto para a potência, mas antes, desta para aquele. Por onde e necessariamente, o hábito há-de existir na potência mesma, que é princípio do ato, não porém no que está para a potência como seu objeto. Ora, só em razão dos fantasmas, como já se estabeleceu10, é que dizemos que inteligir é comum à alma e ao corpo; e é claro que o fantasma se reporta ao intelecto possível como seu objeto, segundo já se demonstrou11. Donde se conclui, que o hábito intelectivo se radica principalmente no próprio intelecto e não nos fantasmas, comuns à alma e ao corpo. Logo, devemos concluir, que o intelecto possível é o sujeito do hábito. Ora, isso é próprio ao que é potencial em relação a muitos termos, o que convém, por excelência, ao intelecto possível. Portanto, este é o sujeito dos hábitos intelectuais.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como ser potencial em relação ao ser sensível é natural à matéria corpórea, assim o é ao intelecto possível sê-lo em relação ao ser inteligível. Por onde, nada impede exista no intelecto possível o hábito, meio termo entre a pura potência e o ato perfeito.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — De prepararem interiormente as potências apreensivas o objeto próprio ao intelecto possível, resulta que, pela boa disposição de tais potências, para a qual coopera a boa disposição do corpo, o homem se torna apto a inteligir. E assim, o hábito intelectivo pode, secundariamente, existir nessas potências; principalmente porém existe no intelecto possível.

  1. 1. I De anima (lect. II, X).
  2. 2. III De anima (lect. VII).
  3. 3. V Metaph. (lect. XX).
  4. 4. II De anima (lect. XIX).
  5. 5. VI Ethic. (lect. II sqq).
  6. 6. I Ethic. (lect. XX).
  7. 7. III De anima(lect. VIII).
  8. 8. Comment. Praedicam. (cap. De qualit.).
  9. 9. I De anima.
  10. 10. I De anima (lect. II).
  11. 11. III De anima (lect. XII).

Art. 3 — Se as potências da parte sensitiva são susceptíveis de algum hábito.

(III Sent., dist. XIV, a . 1 qª 2; dist. XXIII, q. 1, a . 1; De Virtut., q. 1, a . 1).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que as potências da parte sensitiva não são susceptíveis de nenhum hábito.
 
1. — Pois, como a potência nutritiva, também a sensitiva pertence ao irracional. Ora, não se admite nenhum hábito nas potências da parte nutritiva. Logo, também não devemos admitir nenhum nas da parte sensitiva.
 
2. Demais — As partes sensitivas são-nos comuns com os brutos. Ora, estes não são susceptíveis de nenhum hábito por não terem vontade, que entra na definição do hábito, como já se disse1. Logo, as potências sensitivas não são susceptíveis de nenhum hábito.
 
3. Demais — Os hábitos da alma são as ciências e as virtudes; e assim como a ciência diz respeito à potência apreensiva, assim a virtude, à apetitiva. Ora, as potências sensitivas não são susceptíveis de nenhuma ciência, porque esta tem por objeto o universal, que aquelas não podem apreender. Logo, também as partes sensitivas não podem ter os hábitos das virtudes.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que as partes irracionais têm certas virtudes2, a saber, a temperança e a fortaleza.
 
SOLUÇÃO. — As potências sensitivas podem considerar-se de duplo modo, enquanto operam pelo instinto da natureza, ou pelo império da razão. — No primeiro caso ordenam-se, bem como a natureza, a um só termo. E portanto, assim como as potências naturais não são susceptíveis de hábitos, assim também não o são, no caso vertente, as potências sensitivas. — No segundo modo, podem se ordenar a termos diversos. E assim, podem ser susceptíveis de certos hábitos, pelos quais ficam bem ou mal dispostos para alguma atividade.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não é natural às potências da parte nutritiva obedecer ao império da razão e, portanto, não são susceptíveis de quaisquer hábitos. Mas as potências sensitivas o são, e por isso são capazes de ter certos hábitos, pois na medida em que obedecem à razão, consideram-se de certa maneira, racionais, como diz Aristóteles3.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — As potências sensitivas, nos brutos, não operam pelo império da razão, pois, abandonados a si mesmos, os brutos agem por instinto da natureza. Por onde, os brutos não têm hábitos ordenados às operações, embora haja neles certas disposições ordenadas à natureza, como a saúde e a beleza. Como porém eles são dispostos, pela razão do homem, e em virtude de um certo costume, a operar de tal ou de tal outro modo, podemos admitir que haja neles de certa maneira hábitos. Por isso, diz Agostinho: vemos certos animais, dos mais brutos, absterem-se dos máximos prazeres, por medo das dores; e esses mesmos os consideramos como domesticados e mansos, uma vez assim habituados4. Falta-lhes porém o que no hábito implica o uso da vontade, pois não têm o poder de usar dela ou não, o que pertence à razão. Por onde, propriamente falando, não podem ser susceptíveis de hábito.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — É natural ao apetite sensitivo ser movido pelo racional, como diz Aristóteles5; ao passo que às potências racionais apreensivas é natural serem influenciadas pelas virtudes sensitivas. Por onde, é mais curial existam os hábitos nas potências sensitivas apetitivas, do que nas sensitivas apreensivas, pois naquelas eles não existem senão enquanto agem ao império da razão. Nas próprias potências internas sensitivas apreensivas porém podem existir certos hábitos, que facilitam ao homem lembrar-se, cogitar ou imaginar; por isso o Filósofo diz, que o costume contribui muito para termos boa memória6; pois as potências sensitivas são levadas a agir pelo império da razão. As potências apreensivas externas porém como a visão, a audição e outras, não são susceptíveis de quaisquer hábitos, mas são ordenadas aos seus atos determinados pela disposição da sua natureza; e tal é também o caso dos membros do corpo, não susceptíveis de hábitos, que pertencem, antes, às potências que lhes impõem os movimentos.

  1. 1. Q.50, a. 1.
  2. 2. III Ethic (lect. XIX).
  3. 3. I Ethic. (lect. XX).
  4. 4. LXXXIII Quaestion. (q. XXXVI).
  5. 5. III De anima (lect. XVI).
  6. 6. Ibid., lect. VI.

Art. 2 — Se os hábitos existem na alma, mais pela essência do que pela potência.

 (II Sent., dist. XXVI, a . 3, ad 4, 5).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que os hábitos existem na alma mais pela essência que pela potência.
 
1. — Pois, disposições e hábitos respeitam a ordem da natureza, como já se disse1. Ora, a natureza é relativa mais à essência da alma do que às potências da mesma, porque esta é, por essência, a natureza de um tal corpo e a sua forma. Logo, os hábitos estão na alma essencial mais do que potencialmente.
 
2. Demais — Não pode haver acidente de acidente. Ora, de um lado o hábito é um acidente e, de outro, as potências da alma também pertencem ao gênero dos acidentes, como já se disse na Primeira Parte2. Logo, o hábito não está na alma, em razão da sua potência.
 
3. Demais — O sujeito é anterior ao que nele existe. Ora, o hábito, pertencente à primeira espécie de qualidade é anterior à potência, que pertence à segunda. Logo, o hábito não tem na potência da alma o seu sujeito.
 
Mas, em contrário, o Filósofo introduz hábitos diversos nas diversas partes da alma3.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos4, o hábito implica uma certa disposição ordenada para a natureza ou para a operação.
 
Se o considerarmos como ordenado para a natureza, ele não pode existir na alma; isto se nos referimos à natureza humana, porque a alma é em si forma completiva dessa natureza. Por onde, a esta luz, um hábito ou uma disposição existirá antes no corpo, ordenado para a alma, que na alma, ordenado para o corpo. — Se nos referimos porém a alguma natureza superior, da qual o homem possa tornar-se participante, conforme aquilo da Escritura (2 Pd 1, 4) — para que sejamos feitos participantes da natureza divina — então nada impede haja na alma essencialmente algum hábito, a saber, a graça, como a seguir se dirá5.
 
Se porém considerarmos o hábito relativamente à operação, então ele existe por excelência na alma, porque esta não é determinada a uma só operação, mas, é susceptível de muitas, o que é exigido para o hábito, como já dissemos6. E como, pelas suas potências, é que a alma é princípio das operações, os hábitos nela existem pelas potências da mesma.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A essência da alma pertence à natureza humana, não como sujeito que deve receber alguma outra disposição, mas como forma e natureza à qual qualquer disposição é relativa.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Um acidente não pode, em si mesmo, ser sujeito de outro. Mas como mesmo entre os acidente há uma certa ordem, pode um sujeito, enquanto por sua vez é acidente, ser também sujeito de outro acidente. E então dizemos que um acidente é o sujeito de outro; assim, a superfície é sujeito da cor e, do mesmo modo, a potência pode ser sujeito do hábito.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O hábito tem prioridade sobre a potência enquanto importa disposição para a natureza; a potência porém sempre implica relação com a operação, que é posterior, porque a natureza é o princípio da operação. Ao passo que o hábito, cujo sujeito é a potência, não implica em ordenar-se para a natureza, mas para a operação, e por isso é posterior à potência. — Ou podemos dizer que o hábito é anterior à potência como o completo o é ao incompleto e o ato, à potência; pois, o ato tem naturalmente, prioridade, embora a potência lhe seja anterior na ordem da geração e do tempo, como diz Aristóteles7.

  1. 1. Q. 49, a. 2.
  2. 2. Q. 77, a. 1, ad 5.
  3. 3. I Ethic. (lect. XX).
  4. 4. Q. 49, a. 2, 3.
  5. 5. Q. 110, a. 4.
  6. 6. Q. 49, a. 4.
  7. 7. VII et IX Metaph. (lect. VII).

Art. 1 — Se o corpo é susceptível de algum hábito.

(III. Sent., dist. XXIII, q. 1, a . 1).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que o corpo não é susceptível de nenhum hábito.
 
1. — Pois, como diz o Comentador, o hábito é que nos leva a agir quando quisermos1. Ora, as ações corpóreas, sendo naturais, não estão sujeitas à vontade. Logo, o corpo não é susceptível de nenhum hábito.
 
2. Demais — Todas as disposições corpóreas são facilmente mutáveis. Ora, o hábito é uma qualidade que se muda dificilmente. Logo, nenhuma disposição corpórea pode ser hábito.
 
3. Demais — Todas as disposições corpóreas estão sujeitas à alteração. Ora, esta pertence à terceira espécie de qualidade, que, na divisão, se opõe ao hábito. Logo, o corpo não é susceptível de nenhum hábito.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo que se chama hábito à saúde do corpo ou a uma doença incurável2.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos3, o hábito é uma certa disposição de um sujeito potencial em relação a uma forma ou a uma operação.
 
Por onde, enquanto implica disposição para a operação, nenhum hábito existe, principalmente, no corpo como sujeito. Pois, toda operação do corpo ou provêm de uma qualidade natural do mesmo, ou da alma que o move. Portanto, o corpo não fica disposto, por nenhum hábito, às operações procedentes da natureza, pois, as virtudes naturais são determinadas a um só termo; pois, como já dissemos, a disposição habitual é necessária quando o sujeito é potencial em relação a muitos termos. As operações porém que procedem da alma, por meio do corpo, pertencem, por certo, principalmente, à alma mesma, mas, secundariamente, ao corpo. Ora, os hábitos proporcionam-se às operações, sendo por isso que atos semelhantes causam hábitos semelhantes4, como diz Aristóteles. E portanto as disposições para tais operações existem, principalmente, na alma. Podem porém existir no corpo, secundariamente, enquanto este fica disposto e habilitado a servir prontamente às operações da alma.
 
Se porém considerarmos a disposição do sujeito em relação à forma, então pode existir uma disposição habitual no corpo, que está para a alma como o sujeito para a forma. E deste modo, a saúde, a beleza e atribuições semelhantes chamam-se disposições habituais, embora não realizem perfeitamente a noção de hábito, porque as suas causas por natureza são facilmente mutáveis.
 
Alexandre, entretanto, como o refere Simplício, era de doutrina que um hábito ou disposição da primeira espécie de nenhum modo pode existir no corpo, e dizia que a primeira espécie de qualidade pertence somente à alma. E o que Aristóteles diz, sobre a saúde e a doença é a título de exemplo e não que pertençam essas disposições à primeira espécie de qualidade, de modo que o sentido do seu pensamento é — assim como a doença e a saúde podem mudar-se fácil ou dificilmente, assim também as qualidades da primeira espécie a que se dá o nome de hábito e disposição5. Ora, isto vai claramente contra a intenção de Aristóteles, quer porque usa do mesmo modo de falar, dando como exemplos à saúde, a doença, a virtude e a ciência; quer porque coloca expressamente, entre os hábitos, a beleza e a saúde6.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção é procedente quanto ao hábito como disposição a agir; e quanto aos atos do corpo procedentes da natureza, mas não, dos que procedem da alma, cujo princípio é à vontade.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — As disposições corpóreas não são em si mesmas dificilmente mutáveis, por causa da mutabilidade das causas corpóreas. Podem sê-lo porém por comparação com um determinado sujeito, isto é, por não poderem ser removidas desse sujeito, durante a sua existência; ou por comparação com outras disposições. Ao passo que as qualidades da alma são em si mesmas dificilmente mutáveis por causa da imobilidade do sujeito. E por isso Aristóteles não diz que a saúde, quando dificilmente mutável, seja em si mesma um hábito, mas que é como um hábito, segundo está no texto grego. As qualidades da alma porém consideram-se, em si mesmas, hábitos.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — As disposições corpóreas pertencentes à primeira espécie de qualidade, como certos disseram, diferem das qualidades da terceira espécie em que estas estão como em vir-a-ser e em movimento, sendo por isso chamadas paixões ou qualidades passíveis; quando, porém chegarem à perfeição, i. é, quase à espécie, então já pertencem à primeira espécie de qualidade. — Mas, contra isto se insurge Simplício, porque, deste modo, a calefação pertenceria à terceira espécie de qualidade, ao passo que o calor, à primeira7; ora, Aristóteles coloca o calor na terceira.
 
Donde o dizer Porfírio, como Simplício o refere no lugar citado, que a paixão ou a qualidade passível, e a disposição e o hábito diferem, nos corpos, pela intensidade e pela remissão. Assim, quando um corpo recebe a calidez mas só porque é aquecido, sem poder aquecer, nele existe então a paixão, se for transitória, ou a qualidade passível se for permanente. Quando porém adquire também o poder de aquecer outros corpos, possui uma disposição. Se além disso essa disposição se firmar de tal modo que venha a ser dificilmente mutável, ela se transformará em hábito. De maneira que a disposição é uma certa intensidade ou perfeição da paixão ou da qualidade passível; ao passo que o hábito o é, da disposição. — Mas isto não é admitido por Simplício, porque essa intensidade a remissão não implicam diversidade por parte da forma em si mesma, mas pela diversa participação do sujeito; por onde, desse modo, não se poderiam diversificar as espécies de qualidade.
 
E portanto devemos dizer, de outro modo, que, como já o demonstramos8, a comensuração das qualidades passíveis em si mesmas, relativamente à conveniência com a natureza, implica a noção de disposição. Por onde, alterando-se o calor e o frio, a unidade e a secura, que são qualidades passíveis, resulta conseqüentemente, a alteração relativamente à doença e à saúde. Mas, primariamente e por si, não há alteração relativamente a tais hábitos e disposições.

  1. 1. III De anima (comm. XVIII).
  2. 2. Praedicamentis (cap. IV).
  3. 3. Q. 49, a. 2.
  4. 4. II Ethic. (lect I).
  5. 5. Comm. Praed. (cap. De qual.).
  6. 6. VII Physic. (lect. V).
  7. 7. Comm. Praed. (loc. cit).
  8. 8. Q. 49, a. 2; ad 1.

Questão 50: Do sujeito dos hábitos.

 

Em seguida devemos tratar do sujeito dos hábitos. E sobre esta questão seis artigos se discutem:

 

Creio em Jesus Cristo, Seu Único Filho, Nosso Senhor

31 — Não é somente necessário crerem os cristãos que existe um só Deus, e que Ele é Criador do céu, da terra e de todas as coisas, mas também é necessário crerem que Deus é Pai e que Jesus Cristo é seu verdadeiro Filho.
 
Esse mistério não é um mito, mas uma verdade certa e comprovada pela palavra de Deus no monte, conforme a afirmação de S. Pedro: “Porque não foi baseando-nos em fábulas engenhosas que vos demos a conhecer o poder e a presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por termos visto a Sua Majestade com os nossos próprios olhos. Porque Ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foram dirigidas estas palavras: ‘Este é meu Filho muito amado, em quem pus as minhas complacências’. E nós mesmos ouvimos esta voz vinda do céu, quando estávamos com Ele no monte santo” (II Ped. 1, 16-18).
 
O próprio Jesus Cristo muitas vezes chama a Deus como seu Pai, e, também, denominava-se Filho de Deus.
 
Os Apóstolos e os Santos Padres colocaram entre os artigos de fé que Jesus Cristo é Filho de Deus, quando definiram este artigo do Credo: “E em Jesus Cristo seu Filho”, isto é, Filho de Deus.
 
32 — Mas existiram alguns heréticos que acreditaram de um modo perverso nessa verdade de fé. Fotino1, um deles, declarou que Cristo não é filho de Deus senão como os outros homens bons o são, os quais, por viverem bem, merecem ser chamados filhos de Deus por adoção, enquanto fazem a vontade de Deus.
 
Do mesmo modo, dizem eles, Cristo, que viveu bem e fez a vontade de Deus, mereceu ser chamado de Filho de Deus.
 
O mesmo herético queria que Cristo não tivesse existido antes da Virgem Maria, mas que só começasse a existir quando nela foi concebido.
 
Cometeu Fotino dois erros: um, porque não disse que Ele era Filho de Deus segundo a natureza; o outro, porque disse que Ele começou a existir, conforme todo o seu ser, no tempo, enquanto a nossa fé afirma que Ele é por natureza Filho de Deus e eterno. Ora, essa duas verdades encontram-se claramente expressas na Sagrada Escritura, opostas que são ao que ele afirma.
 
Contra o primeiro erro, declara a Escritura que Jesus Cristo não só é Filho de Deus, mas também Filho Unigênito: “O Unigênito que está no seio do Pai é que O fez conhecido” (Jo 1, 18). Contra o segundo, lê-se: “Antes de Abraão existir, eu já existia” (Jo 8, 58). Ora, é certo que Abraão existiu antes da Virgem Maria.
 
Por esse motivo, os Santos Padres acrescentaram, em outro símbolo2, contra o primeiro erro: “Filho de Deus Unigênito”; e, contra o segundo: “nascido do Pai antes de todos os séculos”.
 
33 — Sabélio3, embora tivesse dito que Cristo existiu antes da Virgem Maria, afirmou que a Pessoa do Pai outra não era que a do Filho, e que o próprio Pai se encarnou. Desse modo, a Pessoa do Pai seria a mesma que a do Filho. Mas isso é um erro, porque destrói a trindade das Pessoas. Contra esse erro, há a autoridade do Evangelista S. João, que nos relatou as palavras do próprio Cristo: “Eu não sou Eu só; sou Eu e o Pai que me enviou” (Jo 8, 16).
 
Ora, é evidente que ninguém pode ser enviado por si mesmo. Eis porque Sabélio errou. Acrescentou-se por isso, no Símbolo dos Padres: “Deus de Deus, luz de luz”; isto é, Deus Filho de Deus Pai; Filho que é luz, luz que procede do Pai, que também é luz. É nessas verdades que devemos crer.
 
34 — Ário4, embora tivesse afirmado que Cristo existira antes da Virgem Maria e que era uma a Pessoa do Pai, outra, a do Filho, atribuiu, ao ser de Cristo, três erros: primeiro, que Cristo foi criatura; segundo, que Ele foi feito por Deus como a mais nobre das criaturas, não desde a eternidade, mas no tempo; terceiro, que não havia uma só natureza de Deus Filho com Deus Pai, e, por esse motivo, Cristo era verdadeiro Deus.
 
Tais afirmações são evidentemente errôneas por que contrárias à autoridade da Sagrada Escritura.
 
Lê-se no Evangelho de S. João: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10, 30), isto é, pela natureza. Ora, como o Pai sempre existiu, do mesmo modo o Filho; como o Pai é verdadeiro Deus, assim também o Filho.
 
Em oposição à afirmação de Ário, isto é, que Cristo é criatura, está declarado no Símbolo dos Padres: “gerado, não feito”.
 
Contra o erro propalado de que Ele não era da mesma substância do Pai, foi acrescentado no Símbolo: “consubstancial com o Pai”.
 
35 — Está, pois, esclarecido porque devemos crer que Cristo é o Filho Unigênito de Deus, e verdadeiro Filho de Deus; que sempre existiu com o Pai; que uma é a Pessoa do Filho, outra, a do Pai; que Ele tem uma só natureza com o Pai.
 
Cremos nessas verdades, aqui, pela fé; conhecê-las-emos, porém, na vida eterna, por uma perfeita visão.
 
Para nossa consolação, acrescentemos algumas palavras a essas verdades.
 
36 — Devemos saber que há diversos modos de geração, conforme a diversidade dos seres5. A geração em Deus é diferente da geração nos outros seres. Por isso, não podemos chegar a conhecer a geração de Deus, a não ser por meio da geração de criaturas que mais se aproximam de Deus e que mais se assemelham a Ele. Ora, como foi dito, nada se assemelha tanto a Deus, como a alma humana.
 
Há, na alma, uma espécie de geração, quando o homem conhece alguma coisa pela própria alma, que se chama conceito intelectivo. Esse conceito (efeito da concepção) tem a sua origem da própria alma, como de um pai. Chama-se verbo (isto é, palavra) da inteligência ou do homem.
 
A alma, portanto, gera o seu verbo, pelo conhecimento.
 
O Filho de Deus, também, nada mais é que o Verbo de Deus, não como se fosse um verbo (uma palavra) já pronunciado exteriormente, porque assim seria transitório, mas como um verbo (uma palavra) concebido no interior. Eis porque o próprio verbo de Deus possui uma só natureza de Deus, e é igual a Deus.
 
O Bem-aventurado João, quando falou do verbo de Deus, destruiu as três heresias acima definidas: a de Fotino, quando disse: “No princípio era o Verbo”; a de Sabélio, quando disse: “e o verbo estava em Deus”; e a de Ário, quando disse: “e o Verbo era Deus”.
 
37 — Mas o Verbo (a palavra) existe diversamente em nós e em Deus. Em nós, o verbo é um acidente6; em Deus, o Verbo de Deus mais identifica-se com o próprio Deus, pois nada há em Deus que não seja essência de Deus.
 
Ninguém pode afirmar que Deus não possui um verbo, porque, se o fizesse, estaria também afirmando que em Deus não há absolutamente conhecimento. Como, porém, Deus sempre existiu, assim também o seu Verbo.
 
38 — Como o artista executa as suas obras de acordo com o modelo que prefigurou em sua inteligência, que é o seu verbo; assim também Deus faz todas as coisas pelo seu Verbo, que é como o seu pensamento artístico. Por isso lê-se em S. João: “Todas as coisas foram feitas por Ele” (Jo. 1, 3).
 
39 — Se o Verbo de Deus é o Filho de Deus e todas as palavras (os verbos) de Deus possuem alguma semelhança com esse verbo, todos nós devemos, em primeiro lugar, ouvir com satisfação as palavras de Deus. Se ouvirmos com prazer as palavras de Deus, isto é sinal de que amamos a Deus.
 
40 — Em segundo lugar, devemos crer nas palavras de Deus, porque é assim que o Verbo de Deus habita em nós, isto é, Cristo, que é o Verbo de Deus. Lê-se no Apóstolo S. Paulo: “Habitar Cristo, pela fé, em vossos corações”. (Ef. 3, 17). Lê-se também em S. João: “Não tendes o Verbo de Deus permanecendo em vós porque não acreditais n’Aquele que Ele enviou”. (Jo. 5, 38).
 
41 — Em terceiro lugar, convém que sempre tenhamos o Verbo de Deus, que permanece em nós, como objeto das nossas meditações. Não é conveniente apenas crer, mas é necessário também meditar, pois de outro modo, a fé não nos seria útil. A meditação sobre o Verbo de Deus é muito útil contra o pecado. Lê-se nos Salmos: “Escondi no meu coração a Vossa palavra, para não pecar contra vós” (Ps. 118, 11). Lê-se, ainda, a respeito do homem justo: “Meditarei dia e noite na Sua Lei” (Ps. 1, 2). Por isso sabemos que a Virgem Maria “conservava todas essas palavras, meditando sobre elas no seu coração” (Lc. 2, 51).
 
42 — Em quarto lugar, convém que o homem comunique aos outros a palavra de Deus, admoestando, pregando-a para eles e afervorando-lhes a fé. Encontram-se nas cartas de S. Paulo os seguintes textos: “Que nenhuma palavra má proceda da vossa boca, mas somente as boas palavras que edificam” (Ef. 4, 29). “Que a palavra de Cristo habite em vós abundantemente, com toda sabedoria, culminando e admoestando uns aos outros” (Col. 3, 16); “Prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, pede e ameaça com toda a paciência e com toda a doutrina” (II Tess. 4, 2).
 
43 — Em último lugar, devemos cumprir o que a palavra de Deus determinou. Lê-se em S. Tiago: “Sede realizadores da palavra de Deus e não apenas ouvintes, enganando-vos uns aos outros” (Tiag. 1, 22).
 
44 — Na mesma ordem, a Bem-aventurada Virgem Maria seguiu essas cinco recomendações, quando nela foi gerado o Verbo de Deus. Primeiramente, ouviu: “O Espírito Santo virá sobre ti” (Lc. 1, 35). Depois, consentiu pela fé: “Eis a escrava do Senhor” (Lc. 1, 38). Em terceiro lugar, recebeu o Verbo Encarnado e O carregou em seu seio. Em quarto lugar, ela O pronunciou quando a Ele deu a luz. Finalmente, nutriu-O e amamentou-o. Eis porque a Igreja canta: “A Virgem amamentava, fortalecida do céu, o próprio Rei dos Anjos”.

  1. 1. A heresia do Bispo Fotino de Sírmio († 376) tem sua fonte próxima na do Bispo Marcelo de Ancira († 374) e, remota, no Monarquismo Dinâmico. Esta. Propalada em Roma pelo grego Teódoto em 190, condenada pelo Papa Vitor, ensinava que Cristo era simples homem e, no batismo, foi revestido de poderes divinos. Marcelo ensinava que havia uma mônada que evoluiu com o aparecimento do Filho, na Encarnação, e do Espírito Santo, em Pentecostes. No fim dos tempos voltarão o Filho e o Espírito para a mônada primitiva. Não há, portanto, trindade eterna. Contra Marcelo foi acrescentado no Símbolo: “e o seu reino não terá fim”. S. Tomás sintetiza fielmente o erro de Fotino neste sermão. Fotino foi condenado várias vezes, destituído da Diocese de Sírmio, e exilado. Os seus asseclas perseveraram até o século VII.
  2. 2. Sendo a fé, por parte do homem, primeiramente um ato de conhecimento da inteligência, devem ter sentido as palavras que exprimem as suas verdades. Por isso a Igreja, desde os tempos Apostólicos, exigia, dos que procuravam o batismo, inteligência das palavras da fé, que eram definidas. Para que essa finalidade fosse alcançada, formularam-se sínteses das verdades fundamentais da fé com palavras de sentido preciso, compreensível e tradicional. Eram os símbolos da fé. A palavra símbolo, que primitivamente, na língua grega, significava um objeto que se dividia em duas partes, como contra-senha para identificação posterior, na tradição católica designava o resumo das verdades da fé que identificavam a religião de Cristo. Como começava pela palavra Credo, esta tornou-se sinônimo de Símbolo. Na antiguidade o Credo era unido ao ritual do catecumenato, isto é, na preparação para o batismo: os “electi” (eleitos) acabavam a sua preparação recebendo os ensinamentos do Símbolo da Fé (Traditio Symboli = entrega de símbolo), e depois deviam recitá-lo diante do Bispo (redditio symbolo = devolução do símbolo). Com o correr dos tempos , para maior defesa contra as heresias, passou para a Liturgia Eucarística. A sua posição atual, após o Evangelho das Missas, foi introduzido por Carlos Magno († 794), para combater a heresia do adopcionismo. Os símbolos mais importantes são os seguintes: I) Símbolo dos Apóstolos: É o mais antigo Símbolo da Igreja, chamado por Tertuliano de “Regula Fidei”, cujas origens vêm dos tempos dos Apóstolos, conforme a tradição. A sua mais primitiva fórmula, baseada nas Escrituras, seria a seguinte: “Creio no Pai Todo Poderoso; em Jesus Cristo, nosso Salvador; no Espírito Santo Paráclito, na Santa Igreja e na remissão dos pecados”. Como se vê, nele estavam contidos os Mistérios da Trindade, da Encarnação e da Redenção. A fórmula atual do Símbolo Romano tem suas origens no século III. Consta de 12 artigos; II) Símbolo de Santo Atanásio: É uma profissão de fé mais ampla, atribuída a Santo Atanásio, mas provavelmente foi transmitida por Santo Ambrósio (séc. IV) que a recebera da tradição. Procura definir com bastante exatidão o Mistério da Santíssima Trindade; III) Símbolo de Nicéia: Elaborado e aprovado no Concílio Ecumênico de Nicéia. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo Imperador Constantino para pôr fim à heresia do arianismo (nota 8). Presidiu-o o Bispo Ósio e os representantes do Papa Silvestre. Participaram dele mais 300 Bispos. Na sessão de 19 de junho de 325 foi aprovado o “Símbolo de Nicéia”, onde é definidio que o Filho é da mesma natureza do Pai: “Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, da idêntica natureza do Pai”; IV) Símbolo Niceno-Constantinopolitano: Elaborado e aprovado no Concílio Ecumênico de Constantinopla, reunido nesta cidade no ano de 31. Reproduz o Símbolo de Nicéia, fazendo alguns acréscimos, principalmente com relação à Terceira Pessoa da Trindade: “e (nós cremos) no Espírito Santo, Senhor e vivificador, procedente do pai, que é adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, procedente do Pai, que é adorado e glorificado juntamente como Pai e o Filho, e que falou pelos Profetas”. É na Igreja Oriental a fórmula única de profissão de fé. Há outras profissões de fé na Igreja antiga, uma mais, outras menos desenvolvidas, mas todas concordes no sentido das palavras e nos mistérios da fé.
  3. 3. Sabélio (século II) não aceitava a Trindade em Deus, mas confundia as Pessoas numa só unidade em Deus. Para ele, as Pessoas são modos em que Deus se manifesta. A sua heresia é denominada “monarquianismo modalista”, e, também, “patripassionismo”, ou, ainda, “sabelianismo”. Admitia três manifestações de Deus: como Pai, na criação e legislação; como Filho, na redenção, e, como Espírito Santo, na obra de santificação.
  4. 4. O Arianismo foi a mais perigosa heresia dos primitivos tempos do cristianismo. Foi seu criador um sacerdote de Alexandria, chamado Ario ( 336). Ensinava ele um certo subordicianismo, heresia mais antiga, que afirmava ser o Filho subordinado ao Pai, negando-lhe, desse modo, identidade de natureza. Para Ario, o Filho era um ser divino de segunda ordem, o qual, por ser desprovido dos atributos absolutos da divindade, podia realizar a criação e a redenção. Há na doutrina de Ario dependência da mentalidade neoplatônica reinante no seu tempo. O arianismo ensinava que “houve um tempo em que o Verbo não era”, e “ele (o Verbo) provém do não ser”. Portanto, a Segunda Pessoa seria uma criatura. Condenada a heresia pelo Concílio de Nicéia (nota 6), não cessou a sua obra deletéria nos meios católicos, tomando novo alento com os dois Imperadores arianos Constâncio (337-361) e Valente (364-378). O Imperador Teodório, o Grande (379-395), reafirmando a ortodoxia católica, conseguiu atenuar os males do arianismo, que por mais de 50 anos dilaceraram a Igreja. Foi definitivamente condenado pelo Concílio de Constantinopla, de 381, após polêmicas violentas, lutas e separações entre os católicos. Se a Tradição ortodoxa teve a seu lado grandes doutores da Igreja como Atanásio, Basílio, Gregório de Lauzianze e grandes Bispos, os arianos conseguiram envolver muitos Bispos e católicos nas suas ambíguas e imprecisas fórmulas heterodoxas. A heresia tomou tal proporções nos meios católicos que S. Jerônimo chegou a descrever a situação com essas palavras: “Lastimou-se todo o orbe e admirou-se porque estava ariano”.
  5. 5. Aqui S. Tomás esclarece-nos como a possessão do Verbo na Trindade é uma geração, donde a Segunda Pessoa denominar-se também Filho. No texto latino a palavra e o conceito são expressos pelo mesmo termo — verbum —, podendo-se então mais de perto seguir o pensamento do Doutor Angélico. Define S. Tomás geração, conforme realiza-se nos seres vivos, como sendo a “origem de um ser vivo, de um principio vivo conjunto”. Aplica a definição à possessão da Segunda Pessoa: “Portanto a possessão do Verbo em Deus tem a formalidade de uma geração. Ele procede à semelhança de ação inteligível, que é uma operação vital; de um princípio vivo conjunto, como foi dito anteriormente (isto é, da inteligência divina), e de modo semelhante, porque o conceito intelectivo é semelhante coisa conhecida; e na mesma natureza, porque em Deus ser e conhecer são a mesma realidade... Por conseguinte a processão do Verbo em Deus chama-se geração, e o próprio Verbo procedente chama-se Filho” (S. T. I. 7, 2; cf. I. 27, 1; cf. I. 34, 2).  A questão é tratada com notável clareza na Suma Teológica em linguagem teológica, da qual neste sermão percebe-se a influência.
  6. 6. S. Tomás assim precisa a noção de substância: “A substância que é sujeito tem duas propriedades: primeiro, não ter necessidade de um fundamento extrínseco para ser sustentada, mas sustenta-se em si mesma; segundo, ser fundamento dos acidentes, sustentando-os, e por isso diz-se que sub-está” (Pot. 9, 1). A substância subsiste em si mesma e sustenta os acidentes. Acidente é justamente o ser que existe, mas não subsiste, porque está acidente à substância. “Acidente — diz S. Tomás — é o ser cuja essência deve estar em outra coisa” (Qdc. IX, 5, ad 2) “Convém que o ser deles (isto é, dos acidentes) seja acrescido ao ser da substância, e dependente deste” (C. G. IV, 14). O acidente é um ser secundário, mais imperfeito que o ser da substância e, sem a sua substância, o acidente não pode existir (a não ser por um milagre de Deus). “A substância, diz Aristóteles, é o simples ser e se realiza por si mesmo: todos os outros gêneros de ser diversos da substância são seres de certo modo e existem pela substância. Por conseguinte, a substância é o primeiro entre os seres” (Met., VII, 1, 1028).

Creio em Deus, Pai todo poderoso, criador do céu e da terra

13 — Entre todas as verdades nas quais os fiéis devem acreditar, em primeiro lugar devem acreditar que Deus existe1.

  1. 1. O leitor deve estar sempre atento ao estilo de São Tomás, claro, conciso e lógico. Não há palavras supérfluas. As palavras, no estilo do Doutor Angélico, têm o significado preciso e manifestam os conceitos de uma inteligência lúcida. Essa simplicidade despida de artifícios é adequada à comunicação da verdade pura. Nota-se que São Tomás jamais apela para a emotividade ou para os recursos oratórios de sugestionamento. Ele quer que se aceite a verdade pela clarividência da verdade. Aceita a verdade pela inteligência, naturalmente a vontade inflamar-se-á de amor por ela. Esse método comunicativo de São Tomás é essencialmente humano. Para o homem de hoje, condicionado pelos processos comunicativos audiovisuais, pela propaganda subliminal e pelos recursos emocionantes, torna-se um tanto difícil, e por isso exige um esforço de atenção, seguir a tranqüila e pura apresentação da verdade feita por São Tomás. O seu estilo literário assemelha-se à pureza musical do estilo de Bach. O vocabulário de São Tomás por essa razão, não é muito rico, naturalmente dificultando a tradução, podendo parecer o seu estilo monótono. Mas se o leitor esforçar-se por penetrar na limpidez das suas frases, na rica repetição dos conceitos sempre com novas modalidades, sentir-se-á logo atraído pela beleza do estilo do Doutor Angélico e admirado pelas verdades que expõe. São Tomás é simbolizado pelo sol. O seu estilo tem os encantos da luz. Atenta-se também neste sermão de São Tomás, que, provavelmente, seria mais de um sermão, o modo como a Sagrada Escritura é citada, ajustando-se espontaneamente, ao contexto e, fundamentando a doutrina exposta. Sem que se perceba, São Tomás aqui realiza uma atividade teológica inicial, quando a inteligência, usando apenas dos primeiros esforços do senso comum procura, sem argumentação metafísica e sem terminologia científica, penetrar no conteúdo das verdades reveladas.

Introdução — A Fé

Durante a Quaresma de 1273, S. Tomás, entre outros sermões, proferiu este, que é uma das mais perfeitas exposições que existem sobre o Credo. Pronunciado em dialeto napolitano, foi traduzido fielmente (conforme atestam os testemunhos históricos) para o latim, pelos discípulos do Santo. Para ouvir a palavra do Doutor Angélico, acorriam às igrejas de Nápoles, os habitantes dessa agitada cidade medieval e os seus alunos universitários. Por isso o grande teólogo usava de uma linguagem mais acessível que a das suas obras teológicas. O conteúdo, porém, dos seus sermões, conserva a mesma profundeza doutrinária e a peculiar ortodoxia do Doutor Comum:

O Credo

 

Expositio in Symbolum Apostolorum
reportatio Reginaldi de Piperno
 
Tradução e Notas: DOM ODILÃO MOURA, OSB
 
EDIÇÃO ELETRÔNICA
Rio de Janeiro, 2004
 
SEPARATAS
Revista Permanência nos. 63/1974 a 75/1975
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