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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Questão 48: Dos efeitos da ira.

Em seguida devemos tratar dos efeitos da ira. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 4 — Se uma deficiência é causa de mais facilmente nos irarmos contra outrem.

O quarto discute-se assim. — Parece que uma deficiência não é causa de mais facilmente nos irarmos contra outrem.
 
1. — Pois, como diz o Filósofo, não nos iramos contra os que confessam o mal que fizeram, dele se arrependem e se humilham; antes, somos brandos para com eles. Assim também os cães não mordem os que estão sentados1. Ora, isto supõe fraqueza e deficiência. Logo, a fraqueza é causa de não nos irarmos contra outrem.
 
2. Demais — Não há deficiência maior que a morte. Ora, para com os mortos cessa a ira. Logo, a deficiência de uma pessoa não é causa de nos irarmos contra ela.
 
3. Demais — Não julgamos que alguém valha pouco por ser nosso amigo. Ora, ofendemo-nos, sobretudo, quando os amigos nos fazem mal ou não nos ajudam; e por isso diz a Escritura (Sl 54, 13): Porque se o meu inimigo houvera falado mal de mim, eu o houvera sofrido por certo. Logo, a deficiência não é causa de nos irarmos contra ninguém.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, o rico se ira contra o pobre, que o despreza, e o chefe, contra o súbdito2.
 
Solução. — Como já dissemos3, o desprezo imerecido é o que sobretudo provoca a ira. Por onde, a deficiência ou a fraqueza daquele contra quem estamos irados contribui para o aumento da ira, enquanto aumenta o desprezo imerecido. E assim, quanto maior for alguém tanto mais será imerecidamente desprezado; e quanto menor, tanto mais imerecidamente despreza. Por isso os nobres se iram quando desprezados pelos rústicos; bem como os sábios, quando o são pelos ignorantes e os senhores, pelos servos.
 
A fraqueza porém ou a deficiência, que diminui o desprezo imerecido não aumenta, mas diminui a ira. E deste modo, os que se arrependem das injúrias feitas, confessam o mal praticado, se humilham e pedem perdão mitigam a ira, conforme aquilo da Escritura (Pr 15, 1): A resposta branda quebra a ira. Porque vemos que esses tais não desprezam, mas antes, estimam aqueles ante quem se humilham.
 
E daqui se deduz clara a resposta à primeira objeção.
 
Resposta à segunda. — É dupla a causa porque cessa a ira em relação aos mortos. Primeiro por não poderem sofrer e sentir, o que sobretudo desejam os irados em relação aos de quem têm ira. Segundo, por vermos que já sofreram o último dos males. Por isso a ira também cessa relativamente aos que já sofreram graves penas, por exceder o mal deles a medida da justa retribuição.
 
Resposta à terceira. — O desprezo dos amigos está em o número dos mais imerecidos. Por isso, por semelhante causa, mais nos iramos contra eles, se nos desprezarem, quer nos fazendo mal, ou não nos auxiliando, assim como contra os que nos são inferiores.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. III).
  2. 2. II Rhetoric. (cap. II).
  3. 3. q. 47, a. 2, 3.

Art. 3 — Se a nossa excelência é a causa de nos irarmos mais facilmente.

O terceiro discute-se assim. — Parece que a nossa excelência não é a causa de nos irarmos mais facilmente.
 
1. — Pois, como diz o Filósofo, certos, como os enfermos, os necessitados e os que não obtêm o que desejam ficam mais irados, quando ofendidos1. Ora, tudo isto parece supor uma certa deficiência. Logo, esta, mais que a excelência, nos torna inclinados à ira.
 
2. Demais — No mesmo passo diz o Filósofo, que nós nos iramos, sobretudo, quando os outros nos desprezam suspeitando não tenhamos uma determinada qualidade, ou apenas diminutamente; mas, isso não nos importa, pois nos julgamos excelentes relativamente aquilo mesmo por que nos desprezam2. Ora, o desprezo em questão se funda numa deficiência. Logo, esta é, mais que a excelência, causa de nos irarmos.
 
3. Demais — Tudo o concernente à excelência é o que sobretudo torna os homens alegres e esperançosos. Ora, o Filósofo diz, que os homens não se iram quando se divertem, riem, vão a festas, gozam da prosperidade, realizam seus planos, se deleitam com o que não é torpe e vivem esperançosos3. Logo, a excelência não é causa da ira.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a excelência é causa de os homens ficarem indignados4.
 
Solução. — De dois modos podemos considerar a causa da ira, no irado. — Primeiro, relativamente ao motivo dela; e, então a excelência é causa de nos irarmos facilmente. Pois, o motivo da ira é o injusto desprezo, como já dissemos5. Ora, é claro que quanto mais excelentes formos, tanto mais injustamente seremos desprezados, naquilo por que excelemos. Por onde, os que têm alguma excelência ficam sobretudo irados quando os desprezamos; p. ex., quando desprezamos o rico no seu dinheiro, o orador na sua eloqüência e assim por diante. — De outro modo, relativamente à disposição que o desprezo causa em nós. Pois, como é manifesto, o que nos move à ira não é senão a ofensa, que nos punge. Ora, é por algum defeito que sobretudo sofremos, pois facilmente nos ofendemos pelos defeitos que temos. E esta é a causa de os fracos, ou os que têm outras deficiências, irarem-se mais facilmente; pois, mais facilmente se ofendem.
 
Donde se deduz clara a resposta à primeira objeção.
 
Resposta à segunda. — Quem é desprezado naquilo mesmo por onde é manifestamente excelente, como julga não padecer com isso nenhum detrimento, não sofre, e por isso não se ira. Mas, por outro lado, por ser mais indignamente desprezado tem maior razão de se irar, a menos que não se julgue objeto de zombaria e escárneo, não por desprezo, mas por ignorância ou coisa semelhante.
 
Resposta à terceira. — Tudo o que a objeção enumera trava a ira na medida em que impede o sofrimento. Mas por outro lado, provoca naturalmente a ira, fazendo com que sejamos desprezados mais inconvenientemente.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. II).
  2. 2. Ibidem.
  3. 3. II Rhetoric. (cap. III).
  4. 4. II Rhetoric. (cap. IX).
  5. 5. Q. 47, a. 2.

Art. 2 — Se o contempto ou o desprezo é motivo de ira.

O segundo discute-se assim. — Parece que não só o contempto ou o desprezo é motivo da ira.
 
1. — Pois, como diz Damasceno, iramo-nos quando sofremos ou julgamos que sofremos alguma injúria1. Ora, podemos sofrer uma injúria mesmo sem contempto ou desprezo. Logo, nem só o desprezo é motivo de ira.
 
2. Demais — Quem deseja a honra também sofre com o desprezo. Ora, os brutos não desejam a honra. Logo, também não sofrem com o desprezo. E contudo, quando feridos, se lhes excita a ira2, como diz o Filósofo. Logo, nem só o desprezo é motivo da ira.
 
3. Demais — O Filósofo diz que há muitas outras causas da ira, p. ex.: o esquecimento, a exultação no infortúnio, o anúncio dos males, o impedimento de realizar a vontade própria3. Logo, nem só o desprezo é que provoca a ira.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a ira é o desejo da punição, acompanhado da pena, provocada por um ostensivo desprezo, contrário à conveniência4.
 
Solução. — Todas as causas da ira se reduzem ao desprezo. Ora, há três espécies de desprezo, como diz o Filósofo, a saber: o desdém, o epereasmus, i, é, o impedimento de realizarmos a vontade própria e a contumélia. E a estas três se reduzem todos os motivos da ira, podendo-se dar disso dúplice razão.
 
A primeira é que a ira deseja o mal de outrem, enquanto fundada na justiça vindicativa; e por isso, busca a vingança na medida mesma em que esta é considerada justa. Ora, não podemos tirar vingança justa senão daquilo que foi injustamente feito; e, portanto, o que provoca a ira é sempre algo considerado como injusto. Donde o dizer o Filósofo que os homens não haveriam de irar-se se considerassem como justo o que sofreram dos que os lesaram; pois, não há ira contra o que é justo5. Ora, podemos causar mal a outrem de três modos: por ignorância, paixão e eleição. Assim, cometemos a máxima injustiça quando, por eleição, indústria, ou com determinada malícia, causamos mal a outrem, como diz Aristóteles6. Por onde, iramo-nos sobretudo contra aqueles que consideramos como nos tendo feito mal de caso pensado. Não nos iramos porém, ou iramo-nos pouco, contra aqueles que nos fizeram alguma injuria, em nosso sentir, por ignorância ou paixão. Pois, agir por ignorância ou paixão diminui a injúria e provoca, de certo modo, a misericórdia e o perdão. Pois, consideramos como tendo pecado por desprezo os que, por indústria, nos causam mal, e por isso nos irritamos sobretudo contra eles. Por onde, diz o Filósofo, que não nos iramos, ou iramo-nos pouco, contra os que, por cólera, nos fizeram algum mal7, pois não os consideramos como tendo agido por desprezo.
 
A segunda razão é que o desprezo se opõe à excelência do homem; pois desprezamos aquilo a que não damos nenhum valor. Ora, com todos os nossos bens pretendemos a uma certa excelência. Por onde, os que nos ofendem consideramo-los como atacando a nossa excelência e como manifestando, portanto, o desprezo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Quando sofremos uma injúria proveniente de qualquer causa que não o desprezo, essa causa a diminui. Ao passo que só o desprezo ou contempto aumenta a ira, e portanto, é por si mesmo causa de nos irarmos.
 
Resposta à segunda. Embora o bruto não deseje a honra como tal, deseja contudo naturalmente uma certa excelência, e se ira contra o que se opõe a tal excelência.
 
Resposta à terceira. — Todas as causas que a objeção refere se reduzem a um certo desprezo. — Assim, o esquecimento é evidente sinal de desprezo; pois, ao que damos grande valor fixamos mais profundamente na memória. — Semelhantemente, por um certo desprezo é que não tememos penalizar a outrem, anunciando-lhe coisas tristes. — Por outro lado, quem, mesmo no infortúnio de outrem, dá sinais de hilaridade, mostra que pouco se lhe importa com o bem ou o mal. — E por fim, quem nos impede realizarmos o nosso propósito, e não por qualquer utilidade que disso lhe advenha, não demonstra curar muito da nossa amizade. — Por onde, tudo isso significando desprezo, provoca a ira.

  1. 1. Lib. II Orth. Fid., cap. XVI.
  2. 2. III Ethic. (lect. XVII).
  3. 3. II Rhetoric. (cap. II).
  4. 4. II Rhetoric. (cap. II).
  5. 5. II Rhetoric. (cap. III).
  6. 6. V Ethic (lect. XIII).
  7. 7. II Rhetoric. (cap. III).

Art. 1 — Se sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.

O primeiro discute-se assim. — Parece que nem sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.
 
1. — Pois, pecando, nada podemos contra Deus, conforme a Escritura (Jó 35, 6): se as tuas iniqüidades se multiplicarem, que farás tu contra ele? E contudo a Escritura também diz que Deus se ira contra os homens, por causa dos pecados (Sl 105, 40): E se abrasou de furor o Senhor contra o seu povo. Logo, nem sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.
 
2. Demais — A ira é o desejo da vingança. Ora, podemos querer tirar vingança mesmo daquilo que é feito contra outros. Logo, nem sempre o motivo da ira é o feito contra nós.
 
3. Demais — Como diz o Filósofo, iramo-nos principalmente contra os que desprezam aquilo com que nos ocupamos de preferência; assim, os que se ocupam com a filosofia se iram contra os que a desprezam1; e o mesmo se dá com outras coisas. Ora, desprezar a filosofia não é fazer mal aos que com ela se ocupam. Logo, nem sempre nos iramos contra aquilo que é feito contra nós.
 
4. Demais — Se calamos em face de quem nos injuria, mais lhe provocamos a ira, como diz Crisóstomo2. Mas, pelo fato de calarmos, nada fazemos contra ele. Logo, a ira nem sempre é provocada pelo que é feito contra nós.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo: a ira provém sempre do feito contra nós; a inimizade porém, mesmo que isso não se dê; assim, odiamos alguém só pelo reputarmos tal3.
 
Solução. — Como já dissemos4, a ira é o desejo de fazer mal a outrem, com fundamento na justiça vindicativa. Ora, a vingança supõe sempre a injúria preexistente. Nem toda injúria porém provoca a vindicta, senão só a que atinge o que deseja vingar-se; pois, assim como cada ser naturalmente deseja o seu próprio bem, assim também naturalmente repele o próprio mal. Ora, a injúria que outrem nos faça não nos atinge, se não fizer nada que seja contra nós. Donde se segue que o motivo da ira de alguém é sempre alguma coisa contra ele feita.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Não se atribui a ira a Deus como paixão da alma, mas como juízo da justiça, enquanto que quer tirar vingança do pecado. Pois, embora, pecando, não possamos fazer mal a Deus efetivamente; contudo, por nossa parte, agimos de dois modos contra Ele. Primeiro, porque o desprezamos nos seus mandamentos. Segundo, enquanto causamos algum mal a outrem ou a nós mesmos, o que diz respeito a Deus, porque a pessoa a quem fizemos mal está sob a sua providência e tutela.
 
Resposta à segunda. — Iramo-nos contra aqueles que fazem mal aos outros; e desejamos tirar vingança, enquanto aqueles a quem foi feito mal, de certo modo nos dizem respeito, quer por alguma afinidade, quer pela amizade, ou ao menos por alguma comunhão de natureza.
 
Resposta à terceira. — Aquilo por que sobretudo nos interessamos consideramos como bem nosso. Por onde, quando isso é desprezado, consideramo-nos também como desprezados e lesados.
 
Resposta à quarta. — Provocamos a ira de quem nos injuria, ficando calado, quando o fazemos por desprezo, quase desdenhando a ira do mesmo. Ora, esse desdém já é, por si, um ato.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. II).
  2. 2. Hom. XXII, in epist. Ad Rom.
  3. 3. II Rhetoric. (cap. IV).
  4. 4. Q. 46, a. 6.

Questão 47: Da causa eficiente da ira e dos seus remédios.

Em seguida devemos tratar da causa eficiente da ira e dos seus remédios. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 4 — Se os corajosos são mais audazes antes dos perigos do que depois de estarem neles.

(III Ethic., lect. XV).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que os corajosos não o são mais antes dos perigos do que depois de neles estarem.
 
1. — Pois, o tremor é causado pelo temor, que é contrário à coragem, como do sobredito resulta1. Ora, os corajosos, a princípio tremem, às vezes, como diz o Filósofo2. Logo, não são mais corajosos antes dos perigos que depois de neles estarem.
 
2. Demais — A paixão se intensifica com o crescimento do seu objeto; assim, se o bom é amável, mais sê-lo-á o melhor. Ora, o árduo é o objeto de coragem. Logo, o crescimento daquele importa o desta. E como o perigo presente se torna mais árduo e difícil, há-de acarretar também o aumento da coragem.
 
3. Demais — Sofrimentos causados provocam a ira. Ora, esta causa a coragem; pois, como diz o Filósofo, a ira é corajosa3. Logo, parece que se tornam mais corajosos os que já estão nos perigos e feridos.
 
Mas, em contrário, diz Aristóteles, que os corajosos, antes dos perigos, correm-lhes veloz e ardentemente ao encontro; mas, quando neles se acham, recuam4.
 
SOLUÇÃO. — A coragem, sendo um movimento do apetite sensitivo, resulta da apreensão da potência sensitiva. E, esta não compara nem indaga circunstâncias particulares, mas julga subitamente. Ora, acontece às vezes que, por uma súbita apreensão, não pode ser conhecido tudo o que suscita dificuldade, num caso dado. Donde, os movimentos da coragem, que afrontam o perigo. Pelo que, quando entramos a experimentá-lo, sentimos maiores dificuldades do que a princípio pensávamos, e por isso recuamos.
 
Ao passo que a razão examina tudo o que, num caso dado, pode suscitar dificuldades. E isto explica que os fortes, que afrontam os perigos, depois de havê-los examinados, parecem remissos, a princípio, porque os afrontam não apaixonadamente, senão com a devida deliberação. Mas, quando já se acham metidos nos perigos, nenhuma surpresa experimentam; antes, eles lhes parecem menores do que a princípio pensaram. — Ou então é que os fortes afrontam os perigos movidos pelo bem da virtude, perseverando neles a vontade do bem, quaisquer que sejam aqueles. Ao passo que os corajosos, só pela impressão alimentam a esperança e excluem o temor, como já dissemos5.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Também aos corajosos pode sobrevir o tremor, pelo concentrar-se do calor, de fora para dentro, como se dá com os que temem, Ao passo, que aos corajosos o calor se lhes concentra no coração, aos que temem se lhes concentra nas partes inferiores.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — O objeto do amor é o bem puro e simples; por isso, se este aumenta, aumenta pura e simplesmente aquele. Ao passo que o objeto da coragem é composto de bem e de mal; e o seu movimento contra o mal pressupõe o da esperança para o bem. Por onde, o tal movimento não cresce mas, antes, diminui, quando a dificuldade do perigo cresce a ponto de exceder a esperança. Se esse movimento, porém, se mantiver quanto maior for o perigo, tanto maior será julgada a coragem.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Um ferimento não causa a ira se não supusermos a existência da esperança, como a seguir se dirá6. Se pois, o perigo for tamanho, que excede a esperança da vitória, dele não resultará a ira. Mas é verdade que, da seqüência desta, resulta o aumento da coragem.

  1. 1. Q. 45, a. 1; q. 44, a. 3.
  2. 2. De problematibus (sect. XXVII, probl. 4).
  3. 3. II Rhetoric. (cap. V).
  4. 4. III Ethic. (lect. XV).
  5. 5. Q. 45, a. 3.
  6. 6. Q. 46, a. 1.

Art. 3 — Se a deficiência pode ser causa da coragem.

O terceiro discute-se assim. — Parece que a deficiência pode ser causa da coragem.
 
1. — Pois, diz o Filósofo, que os amantes do vinho são fortes e audazes1. Ora, do vinho provém o efeito da embriaguez. Logo, a coragem é causada por um defeito.
 
2. Demais — O Filósofo diz, que os inexperientes dos perigos são corajosos2. Ora, a inexperiência é um defeito. Logo, a coragem é causada por um defeito.
 
3. Demais — Os que sofreram injustiças costumam ser mais corajosos, como também os animais, quando açoitados, como diz Aristóteles3. Ora, sofrer injustiça é uma deficiência. Logo, a coragem é causada por esta.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a causa da coragem está em se trazer na fantasia, a esperança da salvação próxima e de estarem longe ou não existirem coisas que aterrorizam4. Ora, o que implica uma deficiência ou diz respeito à remoção do que salva, ou à proximidade do que aterroriza. Logo, nada que implique deficiência pode ser causa da coragem.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos antes5, a coragem resulta da esperança e é contrária ao temor. Por onde, tudo o que, por natureza, causa a esperança ou exclui o temor é causa da coragem. Como porém o temor, a esperança e também a coragem, sendo paixões, supõem um movimento do apetite, e uma certa transmutação corpórea, à dupla luz podemos considerar a causa da coragem: quanto à provocação da esperança ou quanto à exclusão do temor. Aquela é relativa ao movimento apetitivo; esta, à transmutação corpórea.
 
Quanto ao movimento apetitivo, resultante da apreensão, a esperança, causadora da coragem, é provocada pelo que nos leva a pensar ser-nos possível alcançar a vitória. Ou pelo nosso próprio poder, como pela força do corpo, pela experiência dos perigos, pela abundância do dinheiro e por coisas semelhantes. Ou pelo poder de outros, como o grande número de amigos ou quaisquer outros auxiliares; e principalmente se confiarmos no auxílio divino. Por onde, os de mais confiança em Deus são os mais corajosos6, como diz o Filósofo. Ao passo que, segundo este mesmo modo, o temor é excluído pelo afastamento de coisas aterrorizantes, próximas; p. ex., por não termos inimigos, por não termos feito mal a ninguém, por não vermos nenhum perigo iminente; pois os perigos parecem iminentes sobretudo aos que fizeram mal aos outros.
 
De outro lado, quanto à transmutação corpórea, a coragem é causada pela provocação da esperança e pela exclusão do temor, por parte dos elementos que produzem o calor no coração. E por isso diz o Filósofo, que os de coração pequeno são mais corajosos; e os animais de coração grande são tímidos; porque o calor natural não pode aquecer um coração grande tão bem como aquece um pequeno, assim como o fogo não pode aquecer uma casa grande tão bem como uma pequena7. E noutro livro, diz que os de pulmão sanguíneo são mais corajosos, por causa do calor do coração daí resultante8. E no mesmo lugar diz que os amantes do vinho são mais corajosos, por causa da calidez do mesmo. Por isso dissemos, que a embriaguez contribui para a firmeza da esperança; pois, o calor do coração repele o temor e causa a esperança, pelo distender-se, pelo amplificar-se do coração.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A embriaguez causa a coragem, não como defeito, mas por dilatar o coração, e também por dar uma certa amplitude à estimativa.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os inexperientes dos perigos são mais corajosos, não por deficiência, mas por acidente; isto é, enquanto que, pela inexperiência, não conhecem a própria debilidade nem a presença dos perigos; e assim, da eliminação da causa do temor resulta a coragem.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Filósofo, os que sofreram injustiça tornam-se corajosos por pensarem que Deus lhes vem em auxílio aos que se acham nessas condições9. Por onde é claro que nenhuma deficiência pode causar a coragem senão por acidente; i. é, enquanto tem alguma excelência adjunta, verdadeira ou julgada tal, seja por nós mesmos, ou por outrem.

  1. 1. De problematibus (séc. XXVII, probl. 4).
  2. 2. II Rhetoric. (cap. V).
  3. 3. III Ethic. (lect. XVII).
  4. 4. II Rhetoric. (cap. V).
  5. 5. Q. 45, a. 1, 2.
  6. 6. II Rhetoric. (cap. V).
  7. 7. lib. III De partibus animalium (cap. IV).
  8. 8. De probl. (sect. XXVII, probl. 4).
  9. 9. II Rhetoric., cap. V.

Art. 2 — Se a coragem resulta da esperança.

(Supra, q.25, a . 3; De Verit., q. 26, a . 5, ad 2; III Ethic., lect. XV).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que a coragem não resulta da esperança.
 
1. — Pois, a coragem é relativa ao mal aterrorizante, como diz Aristóteles1. Ora, a esperança diz respeito ao bem, como já dissemos2. Logo, têm objetos diversos e não pertencem à mesma ordem. Portanto, a coragem não resulta da esperança.
 
2. Demais — Como a coragem é contrária ao temor, assim o desespero o é à esperança. Ora, o temor não resulta do desespero, pois antes, este exclui aquele, como diz o Filósofo3. Logo, a coragem não resulta da esperança.
 
3. Demais — A coragem visa um certo bem, a saber, a vitória. Ora, tender para um bem árduo é próprio da esperança. Logo, a coragem é o mesmo que a esperança e, portanto, dela não resulta.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo: os que têm esperança firme são corajosos4. Logo, parece que a coragem resulta da esperança.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos muitas vezes5, todas as paixões da alma, de que tratamos, pertencem à potência apetitiva. Ora, todos os movimentos dessa potência se reduzem à busca e à fuga. Ora, uma e outra visam um determinado objeto essencial ou acidentalmente; essencialmente falando, buscamos o bem e fugimos do mal. Acidentalmente porém, podemos buscar o mal por causa de algum bem, que vai de mistura com ele, e fugir do bem, por causa de algum mal que lhe está adjunto. Mas, como o acidental depende do essencial, a busca do mal depende da do bem, assim como a fuga do bem depende da do mal. Ora, os quatro casos considerados dizem respeito às quatro paixões; a busca do bem é própria da esperança; a fuga do mal é própria do temor; a busca do mal aterrorizante pertence à coragem, e a fuga do bem, ao desespero. Donde se conclui que a coragem resulta da esperança, pois, é porque esperamos superar um mal aterrorizante iminente que o afrontamos audazmente. Ao passo que do temor resulta o desespero, pois desesperamos quando tememos a dificuldade que rodeia o bem esperado.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colheria se o bem e o mal fossem objetos sem dependência entre si. Mas como o mal se ordena, de certo modo, ao bem, pois lhe é posterior como a privação o é ao hábito, há-de, por força, a coragem, que afronta o mal, ser posterior à esperança, que busca o bem.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora o bem em si mesmo tenha prioridade sobre o mal, contudo a fuga diz respeito, primeiro, ao mal, que ao bem; assim como a prossecução é própria primeiro ao bem, que ao mal. Por onde, como a esperança tem prioridade sobre a coragem, assim o temor a tem sobre a desesperação. E como do temor nem sempre resulta o desespero, mas, só quando for intenso; assim, da esperança nem sempre resulta coragem, senão só quando ela for veemente.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A coragem embora relativa ao mal a que está conjunto o bem da vitória, segundo o pensa o corajoso, visa contudo o mal; ao passo que a esperança visa o bem conjunto. E semelhantemente, o desespero visa o bem diretamente, de que foge; ao passo que o temor respeita o mal adjunto. Por onde, propriamente falando, a coragem não é parte, mas efeito da esperança; assim como o desespero não é parte, mas efeito do temor. E por isto também, a coragem não pode ser uma paixão principal.

  1. 1. III Ethic. (lect. XV).
  2. 2. Q. 40, a. 1.
  3. 3. II Rhetoric. (cap. V).
  4. 4. III Ethic. (lect. XVII).
  5. 5. Q. 22, a. 2; q. 35, a. 1; q. 41, a. 1.

Art. 1 — Se a coragem é contrária ao temor.

(Supra, q. 23, a. 2).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que a coragem não é contrária ao temor.
 
1. — Pois, como diz Agostinho, a coragem é um vício1. Ora, o vício é contrário à virtude. Logo, não sendo o temor virtude, mas paixão, a coragem não lhe é contrária.
 
2. Demais — A unidade é contrária à unidade. Ora, a esperança é contrária ao temor. Logo, não o é o temor.
 
3. Demais — Uma paixão exclui a sua oposta. Ora, a segurança é a excluída pelo temor; pois, como diz Agostinho, o temor vela pela sua segurança2. Logo, a segurança é contrariada pelo temor e não pela coragem.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a coragem é contrária ao temo3.
 
SOLUÇÃO. — Está em a natureza dos contrários distarem entre si no máximo grau4, como diz Aristóteles. Ora, o que dista em máximo grau do temor é a coragem. Pois, aquele receia o dano futuro, por causa da vitória deste sobre a pessoa que teme; ao passo que a coragem afronta o perigo iminente, por causa da sua vitória sobre o próprio perigo. Por onde e manifestamente, a coragem é contrária ao temor.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A ira, a coragem e os nomes de todas as paixões podem ser tomados em dupla acepção. Numa, enquanto implicam, absolutamente, o movimento do apetite sensitivo para algum objeto bom ou mau; e nesse sentido designam paixões. Noutra, enquanto simultaneamente com esse movimento, implicam desvio da ordem da razão; e nesse sentido designam vícios. Ora, é nesta última acepção que Agostinho toma a coragem; ao passo que nós a tomamos na primeira.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Não pode haver pluralidade de contrários à unidade, tomada num mesmo sentido; mas nada impede tal se dê quando ela é tomada em sentidos diversos. E assim, como já dissemos5, as paixões do irascível têm dupla contrariedade: uma, pela oposição do bem e do mal, e assim o temor é contrário à esperança; outra, pela de aproximação e afastamento, e assim a coragem é contrária ao temor, ao passo que a esperança o é ao desespero.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A segurança nada significa de contrário ao temor, mas só a exclusão deste; pois, dizemos que está seguro quem não teme. Por onde, a segurança se opõe ao temor, como privação; a coragem, porém, como contrário. Ora, como este inclui em si a privação, assim a coragem inclui a segurança.

  1. 1. Lib. LXXXIII Quaestion. (quaest. XXX, XXIV).
  2. 2. II Confess. (cap. VI).
  3. 3. II Rhetoric. (cap. V).
  4. 4. X Metaph. (lect. V).
  5. 5. Q. 23, a. 2; q. 40, a. 4.
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