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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 4 — Se o irascível e o concupiscível podem ser sujeitos da virtude.

(Infra, a. 5, ad 1; III Sent., dist. XXXIII, q. 2, a. 4, qª 2 ; De Verit. q. 24, a. 4, ad 9; De Virtut., q. 1, a. 10, ad 5).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que o irascível e o concupiscível não podem ser sujeitos da virtude.
 
1. — Pois, essas potências são comuns aos homens e aos brutos. Ora, por enquanto tratamos da virtude própria ao homem, chamada por isso humana. Logo, o irascível e o concupiscível, partes do apetite sensitivo, como já dissemos na Primeira Parte1, não podem ser sujeitos da virtude.
 
2. Demais. — O apetite sensitivo é uma potência que se serve de órgão corpóreo. Ora, o bem da virtude não pode ter sua sede no corpo do homem; pois diz o Apóstolo, (Rm 7,18): eu sei que na minha carne não habita o bem. Logo, para apetite sensitivo não pode ser sujeito da virtude.
 
3. Demais. — Agostinho prova que a virtude não tem a sua sede no corpo, mas na alma, porque aquele é governado por esta2; e assim, é pela alma que usamos bem do corpo, do mesmo modo que eu sou a causa de um auriga, que me obedece, dirigir bem os cavalos. Ora, assim como a alma rege o corpo, assim também a razão o apetite sensitivo. Logo, é totalmente pela razão que o irascível e o concupiscível são retamente governados. Ora, pela virtude é que vivemos retamente, como antes se disse3. Logo, não há virtude no irascível e no concupiscível, mas só na parte racional.
 
4. Demais. — O ato principal da virtude moral é a eleição, como já se disse4. Ora, a eleição não pertence ao irascível e ao concupiscível, mas à razão, como já se disse5. Logo, a virtude moral pertence a esta e não aqueles.
 
Mas, em contrário, atribuímos a fortaleza ao irascível e a temperança, ao concupiscível. E por isso o Filósofo diz, que tais virtudes são próprias das partes irracionais6.
 
SOLUÇÃO. — O irascível e o concupiscível são susceptíveis de dupla consideração. — Em si mesmos, como partes do apetite sensitivo, e então não podem ser sujeitos da virtude. Ou como participantes da razão, por lhes ser natural obedecer a ela. E assim podem ser sujeitos da virtude humana, pois enquanto participantes da razão são princípio dos atos humanos.
 
E é necessário admitir a existência de virtudes nessas potências; pois é claro que elas aí existem. Porque o ato procedente de uma potência movida por outra não pode ser perfeito sem ambas as potências estarem bem dispostas ao ato; assim, o ato do artífice não pode ser congruente se ele não estiver bem disposto a agir, assim como o seu instrumento. Por onde, para o irascível e o concupiscível, enquanto movidos pela razão, operarem acertadamente, é necessário o hábito que os aperfeiçoa e leva a bem agir existir, não só na razão, mas também neles. E como a boa disposição da potência motora e movida depende da conformidade com a potência motora, a virtude do irascível e do concupiscível não é senão uma conformidade habitual dessas potências com a razão.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O irascível e o concupiscível em si mesmos considerados, como partes do apetite sensitivo, nos são comuns com os brutos. Mas enquanto racionais por participação, por obedientes à razão, são potências próprias ao homem. E deste modo podem ser sujeitos da virtude humana.
 
Resposta à segunda. — Assim como o corpo do homem, não tendo por si mesmo o bem da virtude, torna-se contudo instrumento de atos virtuosos, quando, pelo movimento da razão, aplicamos os nossos membros a servir à justiça; assim também o irascível e o concupiscível não tem, certamente, por si mesmos o bem da virtude, mas antes, a contaminação do fomes; quando, porém, se conformam com a razão, gera-lhes o bem da virtude moral.
 
Resposta à terceira. — De um modo é o corpo governado pela razão, e de outro por esta o irascível e o concupiscível. Pois, o corpo obedece ao nuto da alma, sem contradição, em tudo o que lhe é natural ser movido por ela. Por onde, diz o Filósofo, que a alma rege o corpo com governo despótico7, i. é, como o senhor, o escravo. E portanto todo movimento do corpo é referido à alma, e por isso naquele não há virtudes, mas só nesta. O irascível e o concupiscível porém, não obedecem ao nuto da razão, mas tem os seus movimentos próprios, às vezes, repugnantes à razão. Por isso no mesmo livro, o Filósofo8 diz que a razão rege o irascível e o concupiscível com um governo político, como o pelo que se governam seres livres, dotados em certos casos de vontade própria. E por isso é preciso haja no concupiscível e no irascível certas virtudes pelas quais essas potências fiquem bem dispostas ao ato.
 
Resposta à quarta. — Dois elementos há na eleição: a intenção do fim, pertencente à virtude moral; e a aceitação prévia do conducente ao fim, pertencente à prudência, como já se disse9. Ora, é pela boa disposição do irascível e do concupiscível que a eleição nutre a intenção reta do fim, no atinente às paixões da alma. E portanto as virtudes morais relativas às paixões tem sua sede no irascível e no concupiscível; ao passo que a prudência é própria da razão.

  1. 1. Q. 81, a. 2.
  2. 2. De moribus Eccles. (cap. V).
  3. 3. Q. 55, a. 4.
  4. 4. VIII Ethic., lect. XIII.
  5. 5. Q. 13, a. 2.
  6. 6. III Ethic., lect. XIX.
  7. 7. I Polit. (lect. III).
  8. 8. Loc. cit.
  9. 9. VI Ethic. (lect. X).

Art. 3 — Se o intelecto é o sujeito da virtude.

(III Sent. Dist. XXIII. q. 1, a. 4 qª 1., De Virtut., q. 1 a. 7; C.G. III, XXVI).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que o intelecto não é o sujeito da virtude.
 
1. — Pois, diz Agostinho, que toda virtude é amor1. Ora, o sujeito do amor não é o intelecto, senão a potência apetitiva. Logo, nenhuma virtude existe no intelecto.
 
2. Demais. — A virtude ordena-se para o bem, como do sobredito resulta2. Ora, o bem é objeto, não do intelecto, mas da potência apetitiva. Logo, o sujeito da virtude não é o intelecto, mas esta última potência.
 
3. Demais. — A virtude torna bom quem a tem, como diz o Filósofo3. Ora, o hábito, que aperfeiçoa o intelecto, não torna bom quem o tem; pois, não é pela ciência nem pela arte que o homem é considerado bom. Logo, o intelecto não é sujeito da virtude.
 
Mas, em contrário, a mente é, por excelência, considerada como intelecto. Ora, ela é o sujeito da virtude, como é claro pela definição desta supra-referida4. Logo, o intelecto é o sujeito da virtude.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos5, a virtude é um hábito pelo qual obramos retamente. Ora, de dois modos um hábito pode ordenar-se ao ato reto. — De um modo, enquanto, por esse hábito, adquirimos a faculdade de praticar o ato reto; assim, pelo hábito da gramática temos a faculdade de falar retamente, embora a gramática não faça com que sempre falemos retamente, pois um gramático pode cometer barbarismos ou solecismos. E o mesmo se pode dizer das outras ciências e artes. — De outro modo, um hábito não só dá a faculdade de agir bem, mas ainda nos leva a usar retamente dessa faculdade; assim, a justiça não só nos torna de vontade pronta a obrar justamente, mas também faz com que obremos justamente. E como nada se chama bem, assim como ser absolutamente falando, pelo que tem de potencial, senão enquanto atual, assim também tais hábitos levam o homem, absolutamente, a obrar o bem e a ser bom; assim se dá com o que é justo temperante, ou tem virtudes semelhantes. E, como a virtude torna bom quem a possui, e boa a sua obra, tais hábitos se chamam em si mesmos, virtudes por tornarem boa a obra atualizada e bom, simplesmente, quem a pratica. Os hábitos primeiros porém não se consideram em si mesmos, virtudes, por não tornarem boa à obra senão de uma faculdade determinada; nem tornam simplesmente bons quem os possui. Assim, nenhum homem é considerado absolutamente bom por ser sábio ou artífice, senão só relativamente, como bom gramático ou bom ferreiro; e, por isto freqüentemente a ciência e a arte se opõem à virtude, e às vezes se consideram virtudes, como já se disse6.
 
Por onde, o sujeito do hábito considerado relativamente como virtude pode ser o intelecto, não só o prático, mas também o especulativo, sem nenhuma ordenação relativa à vontade; e assim o Filósofo7 considera a ciência, a sabedoria, a inteligência e mesmo a arte como virtudes intelectuais.
 
O sujeito do hábito porém, considerado absolutamente como virtude, não pode ser senão à vontade, ou alguma potência movida por ela. E a razão é que a vontade move todas as demais faculdades, de certo modo racionais, para os seus atos, como já dissemos8. E portanto é por ter boa vontade que o homem age bem. Logo, a virtude que nos leva a agir bem atualmente, e não só em possibilidade, é necessário exista ou na vontade mesma, ou em alguma potência enquanto movida por esta.
 
Ora, o intelecto, como as demais potências, pode ser movido pela vontade, pois consideramos alguma coisa atualmente porque queremos. E portanto, o intelecto, enquanto ordenado à vontade, pode ser sujeito da virtude, em si mesma. E deste modo o intelecto especulativo ou razão é sujeito da fé, pois o intelecto é movido a assentir ao que pertence à fé, pelo império da vontade, pois ninguém crê senão porque quer. O intelecto prático, por seu lado, é sujeito da prudência. E como esta é a razão reta do que devemos praticar, exige que o homem leve em conta os princípios dessa razão referentes ao que deve praticar, que são os fins, aos quais ele bem se adapta pela retidão da vontade, assim como aos princípios das coisas especulativas, pelo lume natural do intelecto agente. Por onde, assim como o sujeito da ciência, que é a razão reta das coisas especulativas, é o intelecto especulativo, ordenado ao intelecto agente, assim o sujeito da prudência é o intelecto prático, ordenado à vontade reta.
 
Donde a resposta à primeira objeção.  — As palavras de Agostinho devem entender-se da virtude absolutamente considerada; não que toda virtude dessa natureza seja, absolutamente falando, amor, mas porque depende dele de certo modo, enquanto depende da vontade, cujo primeiro afeto é o amor, como já se disse9.
 
Resposta à segunda. — O bem de cada ser é o seu fim. E portanto, como a verdade é o fim do intelecto, conhecê-la é o ato reto deste; por onde, o hábito, que aperfeiçoa o intelecto para conhecer a verdade, tanto na ordem especulativa como na prática, chama-se virtude.
 
Resposta à terceira. — A objeção colhe quanto à virtude absolutamente considerada.

  1. 1. De moribus Ecclesiae (cap. X).
  2. 2. Q. 55 a. 3.
  3. 3. II Ethic., lect. VI.
  4. 4. Q. 55, a. 4.
  5. 5. Q. 55, a. 4.
  6. 6. VI Ethic., lect. II.
  7. 7. VI Ethic. (ibid).
  8. 8. Q. 9, a. 1.
  9. 9. Q. 24, a. 1, 2, 3.

Art. 2 — Se uma virtude pode existir em duas potências.

(Infra. Q. 60, ª 5: IV Sent., dist. XIV. Q. 1. a 3. qª 1: De Verit., q.14. ª 4. ad 7)
 
O segundo discute-se assim. — Parece que uma virtude pode existir em duas potências.
 
1. — Pois, os hábitos conhecem-se pelos atos. Ora, um mesmo ato procede diversamente de diversas potências; assim, o ato de andar procede da razão como dirigente, da vontade como motora, e da potência motiva como exeqüente. Logo, também o mesmo hábito da virtude pode existir em várias potências.
 
2. Demais. — O Filósofo diz, que três elementos são exigidos pela virtude, que são: saber, querer e operar imovelmente1. Ora, saber é próprio do intelecto e querer, da vontade. Logo, a virtude pode existir em várias potências.
 
3. Demais. — A prudência existe na razão, pois é a razão reta do que devemos praticar, como diz Aristóteles2. Logo, existe também na vontade, porque não pode ir junto com a vontade perversa, como na mesma obra se diz3. Logo, a mesma virtude pode existir em duas potências.
 
Mas, em contrário. — A virtude está na potência da alma como num sujeito. Ora, um mesmo acidente não pode existir em vários sujeitos. Logo, a mesma virtude não pode existir em várias potências da alma.
 
SOLUÇÃO. — De dois modos pode uma realidade existir em duas outras. De um modo, existindo em ambas igualmente. Ora, assim é impossível uma virtude existir em duas potências, porque a diversidade destas é considerada relativamente às condições gerais dos objetos; ao passo que a diversidade dos hábitos é relativa às condições especiais dos mesmos; e assim, onde há diversidade de potências há também a dos hábitos, mas não inversamente. De outro modo, pode uma realidade existir em duas ou várias outras, não igualmente, mas numa certa ordem. E assim, a mesma virtude pode pertencer a várias potências, mas de maneira que pertença a uma, principalmente, e se estenda às outras a modo de difusão ou disposição, sendo uma potência movida por outra, e sendo uma receptiva em relação à outra.
 
Donde a resposta à primeira objeção.  — Um mesmo ato não pode pertencer a diversas potências, igualmente e na mesma ordem; mas, segundo razões e ordem diversas.
 
Resposta à segunda. — A virtude moral preexige o saber porque obra segundo a razão reta. Mas, essencialmente, a virtude moral se funda no apetite.
 
Resposta à terceira. — A prudência, realmente, está na razão como no seu sujeito; mas, pressupõe a retidão da vontade, como princípio, conforme a seguir se dirá4.

  1. 1. II Ethic., lect. IV.
  2. 2. VI Ethic., lect. IV.
  3. 3. VI Ethic., lect. X.
  4. 4. Q. 56, a. 3; q. 57 a. 4.

Art. 1 — Se a virtude existe na potência da alma como sujeito.

(III Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 4, qª 1; De Virtut., q. 1 a. 3).
 
O primeiro discute-se assim. Parece que a virtude não existe na potência da alma como sujeito.
 
1. — Pois, diz Agostinho, que a virtude é que nos leva a viver retamente1. Ora, nós não vivemos pela potência da alma, mas pela sua essência. Logo, a virtude tem sua sede nesta e não naquela.
 
2. Demais. — O Filósofo diz: a virtude torna bom tanto quem a possui, como as suas obras2. Ora, como a obra é realizada pela potência, assim o virtuoso o é pela essência da alma. Logo, a virtude não reside antes na potência que na essência da alma.
 
3. Demais. — A potência pertence à segunda espécie de qualidade. Ora, a virtude é uma qualidade, como já se disse3. E como não pode haver qualidade de qualidade, a virtude não pode existir na potência da alma, como sujeito.
 
Mas, em contrário. — A virtude é o que, na potência, é último, como se disse4. Ora, o que em alguma coisa é último nessa existe. Logo, a virtude existe na potência da alma.
 
SOLUÇÃO. — Por três razões pode-se tornar manifesto que a virtude pertence à potência da alma. A primeira se funda na essência mesma da virtude, que implica a perfeição da potência; ora, a perfeição existe naquilo a que pertence. A segunda, naquilo mesmo que constitui um hábito operativo, como já dissemos5. Ora, toda operação procede da alma mediante alguma potência. A terceira, na disposição para o que é ótimo; ora, este é o fim que é, ou uma operação do ser, ou algo consecutivo à operação procedente da potência. Por onde, a virtude humana existe na potência da alma como sujeito.
 
Donde a resposta à primeira objeção.  — O termo — viver pode ser tomado em duplo sentido. Às vezes significa o ser mesmo que vive, e assim, pertence à essência da alma, que é, para o vivente, o princípio do existir. Outras vezes viver significa a operação do ser vivo, e assim vivemos retamente pela virtude, enquanto que por ela obramos retamente.
 
Resposta à segunda. — O bem ou é o fim ou é considerado como ordenado para o fim. Logo, como o bem do operador consiste na operação, esse mesmo efeito da virtude, que é tornar bom o operador, é relativo à operação, e por conseqüente à potência.
 
Resposta à terceira. — Quando se diz que um acidente existe em outro como num sujeito isto não significa que um, por si mesmo, pode sustentar outro, mas que um existe na substância mediante outro; assim, a cor existe no corpo mediante a superfície, e por isso dizemos que esta é o sujeito da cor. E desse mesmo modo, dizemos que a potência da alma é sujeito da virtude.

  1. 1. II lib. De libero arbit. (cap. XIX).
  2. 2. II Ethic., lect. IV.
  3. 3. Q. 55 a. 4.
  4. 4. I De caelo, lect. XXV.
  5. 5. Q. 55, a. 2.

Questão 56: Do sujeito da virtude.

Em seguida devemos tratar do sujeito da virtude.
 
E sobre esta questão seis artigos se discutem:

Tratado dos hábitos

 

Depois dos atos e das paixões, devemos tratar dos princípios dos atos humanos. Primeiro, dos princípios intrínsecos. Segundo, dos princípios extrínsecos. Ora, o princípio intrínseco é a potência e o hábito. Mas como na Primeira Parte já tratamos das potências (q. 77, sqq.), resta agora tratar dos hábitos.
 
Primeiro, em geral. Segundo, das virtudes, dos vícios e dos outros hábitos semelhantes, que são os princípios dos atos humanos.
 
A respeito dos hábitos em geral, quatro pontos devemos considerar. Primeiro, da substância dos hábitos. Segundo, do sujeito deles. Terceiro, da causa da geração, do aumento e da corrupção dos mesmos. Quarto, da distinção entre eles.

 

Donde há de vir julgar os vivos e os mortos

101 — Julgar é função do rei: “O rei, que está sentado no trono da justiça, pelo seu olhar dissipa todo o mal”. (Pr 20, 8). Porque Cristo subiu ao céu e sentou-se à direita de Deus como Senhor de todos, evidentemente compete-lhe o juízo. Por isso pela Regra da Fé Católica confessamos que virá julgar os vivos e os mortos. Isto também foi dito pelo Anjo: “Este Jesus, que do meio de vós foi elevado aos céus, virá também assim como o vistes subir par aos céus” (Mt 1, 11).
 
102 — Devemos considerar nesse Juízo três coisas: primeiro, a sua forma; segundo, que ele deve ser temido, e, terceiro, como para ele devemos nos preparar.
 
103 — No juízo devemos ainda distinguir três elementos concorrentes: quem é o juiz, quem deve ser julgado e qual a matéria do julgamento.
 
104 — Cristo é o Juiz, conforme se lê no Livro dos Atos: “Ele que foi constituído por Deus Juiz dos vivos e dos mortos” (Mt 10, 42). Pode este texto ser interpretado, ou chamando de mortos os pecadores e, de vivos, os que vivem retamente, ou designando vivos, por interpretação literal, os que agora vivem, e mortos, todos os que morreram. Ele é Juiz não só enquanto Deus, mas também como homem, por três motivos1.
 
Primeiro, porque é necessário, aos que vão ser julgados, verem o juiz. Como a Divindade é de tal modo deleitável que ninguém a pode ver sem se deleitar, e nenhum condenado poderia vê-la sem que não sentisse logo alegria, foi necessário que Cristo aparecesse só em forma de homem, para que fosse visto por todos. Lê-se em S. João: “Deu-lhe o poder de julgar, porque é Filho do Homem” (Jo 5, 27).
 
Segundo, porque Ele mereceu este ofício como homem. Ele, enquanto homem, foi injustamente julgado e, por isso, Deus O fez Juiz de todos. Lê-se: “A tua causa foi julgada como a de um ímpio; receberás o julgamento das causas” (Jo 36, 17).
 
Terceiro, para que os homens não mais desesperem, vendo-se julgados por um homem. Se somente Deus julgasse, os homens ficariam desesperados, devido ao temor. (Mas todos verão um homem julgar), pois se lê em São Lucas: “Verão o Filho do Homem vindo na nuvem” (Lc 21, 27). Serão julgados os que existiram, os que existem e existirão, conforme ensina São Paulo: “Convém que todos nós sejamos apresentados diante do tribunal de Cristo, para que cada um manifeste o que fez de bom e de mal enquanto estava neste corpo” (2 Cor 5, 10).
 
105 — Há quatro diferenças, segundo São Gregório, entre os que devem ser julgados. Estes, ou são bons, ou são maus.
 
Entre os maus, alguns serão condenados, mas não julgados, como os infiéis, cujas ações não serão discutidas, por que, como está escrito, “o que não crer já está julgado” (Jo 3, 18). Outros, porém, serão condenados e julgados, como os fiéis que morreram em estado de pecado mortal. Disse o Apóstolo: “o salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23). Estes não serão excluídos do Julgamento por causa da fé que tiveram.
 
Entre os bons também haverá os que serão salvos sem o Julgamento, os pobres de espírito por amor de Deus. Lê-se em São Mateus: “vós que me seguistes, na regeneração, quando o Filho do Homem estiver sentado em seu trono majestoso, sentar-vos-eis também sobre doze tronos, julgando as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28).
 
Estas palavras não se dirigem só aos discípulos, mas a todos os pobres de espírito. Caso assim não fosse, São Paulo que trabalhou mais que todos, não estaria nesse número.
 
Este texto deve, portanto, ser aplicado a todos os que seguiram os Apóstolos, e aos varões apostólicos. Eis porque São Paulo escreve: “Não sabeis que julgamos os Anjos?” (1 Cor 6, 3). Lê-se ainda em Isaías: “O Senhor virá com seniores e com os príncipes do seu povo” (Is 3, 14).
 
Outros serão salvos e julgados, isto é, aqueles que morreram em estado de justificação. Bem que tivessem morrido neste estado, erraram todavia em alguma coisa durante a vida terrestre. Serão, por isso, julgados, mas receberão a salvação.
 
106 — Todos serão julgados pelos atos bons e maus que praticaram. Lê-se na Escritura: “Segue os caminhos do teu coração... mas fica certo de que Deus te levará ao julgamento por causa deles” (Ecle 11, 9); “Deus citará no julgamento todas as tuas ações, até as ocultas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ecle 13, 14).
 
Serão julgados também pelas palavras inúteis: “Toda palavra inútil pronunciada por alguém, este dará conta dela no dia do juízo” (Mt 12, 36).
 
Serão julgados, por fim, pelos pensamentos que tiveram. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Os ímpios serão argüidos a respeito dos seus pensamentos” (Sb 1, 9).
 
Fica assim esclarecida qual a matéria do julgamento.
 
107 — Por quatro motivos deve ser aquele Juízo temido.
 
Primeiro, devido à sabedoria do Juiz, porque Ele conhece todas as coisas, os pensamentos, as palavra e as ações, já que, como se lê na Carta aos Hebreus, “todas as coisas estão nuas e descobertas aos seus olhos” (Heb 4, 13). Lê-se ainda na Escritura: “Todos os caminhos dos homens estão diante dos seus olhos” (Pr 16, 1).
 
Conhece Ele as nossas palavras: “Os seus ouvidos atentos ouvem tudo” (Sb 1, 10).
 
Conhece os nossos pensamentos: “O coração do homem é depravado e impenetrável. Quem o pode conhecer? Eu, o Senhor, penetro nos corações e sondo os rins, retribuo a cada um conforme o seu caminho e conforme os pontos dos seus pensamentos” (Jr 17, 9).
 
Haverá também neste Juízo testemunhas infalíveis, isto é, as próprias consciências dos homens, segundo se lê em São Paulo: “A consciência deles servirá de testemunho no dia em que o Senhor julgar as coisas ocultas dos homens, enquanto pelos pensamentos se acusam ou se defendem” (Rm 2, 15-16).
 
108 — Segundo, devido ao poder do Juiz, porque Ele é em si mesmo todo poderoso. Lê-se: “Eis que o Senhor virá com fortaleza” (Is 11, 10).
 
É poderoso também sobre os outros, porque toda criatura estava com Ele. Lê-se:
O universo inteiro combaterá com ele contra os insensatos” (Sb 5, 2); “Ninguém há que possa livrar-se da Vossa mão” (Jo 10, 7); e ainda: “Se subo aos céus, Vós ali estais; se desço aos infernos, estais lá também” (Sl 138, 8).
 
109 — Terceiro, devido à justiça inflexível do Juiz. Agora é o tempo da misericórdia. Mas o tempo futuro é tempo só de justiça. Por isso, o tempo de agora é nosso; mas o tempo futuro será só de Deus.
 
Lê-se: “No tempo que eu determinar, farei justiça” (Sl. 134, 3). “O varão furioso de ciúmes não lhe perdoará no dia da vingança, não atenderá às suas súplicas, nem receberá como satisfação presentes, por maiores que sejam” (Pr 6, 34).
 
110 — Quarto, devido à ira do Juiz. Aparecerá aos justos doce e deleitável, porque, conforme diz Isaías: “Verão o rei na sua beleza” (Is 33, 17). Aos maus, porém, aparecerá tão irado e cruel, que eles dirão aos montes: “Cai sobre nós, e escondei-nos da ira do cordeiro” (Ap 6, 16).
 
Esta ira em Deus não significa uma comoção do espírito, mas significa o efeito da ira, a pena infligida aos pecados, isto é, a pena eterna. A propósito disso escreveu Orígenes: “Como serão estreitos os caminhos no juízo! No fim estará o Juiz irado”.
 
111 — Contra este temor devemos aplicar quatro remédios.
 
O primeiro remédio é a boa ação. Lê-se em São Paulo: “Queres não temer a autoridade? Faz o bem e receberás dela o louvor” (Rm 13, 3).
 
O segundo, é a confissão dos pecados cometidos e a penitência feita por eles. Na confissão deve haver três coisas: a dor interior, a vergonha da confissão dos pecados e o rigor da satisfação por eles. São essas três coisas que redimem a pena eterna.
 
O terceiro remédio é a esmola que torna tudo puro, segundo as palavras do Senhor: “Conquistai amigos com dinheiro da iniqüidade, para que, quando cairdes, eles vos recebam nas tendas eternas” (Lc 26, 9) 2.
 
O quarto remédio é a caridade, quer dizer, o amor de Deus e do próximo, pois, conforme a Escritura: “A caridade cobre uma multidão de pecados” (1 Pd 4, 8; Pr 10, 12)3.

  1. 1. Conforme São Tomás, o poder de julgamento compete só a Deus, de modo comum à Santíssima Trindade, por apropriação (isto é, atribuição de uma ação comum das Três Pessoas a uma só, por motivos razoáveis) ao Filho (cfr. S.T. III, 59, 1c). A Cristo, enquanto homem, o poder judicativo compete-lhe por comissão de Deus, enquanto Cristo é a cabeça do corpo da Igreja e tem os membros desse corpo sob a sua jurisdição (cfr. S.T. III, 59, 2c).
  2. 2. Conforme São Tomás, a esmola é um ato externo da virtude teologal da caridade, imperado pela virtude interior (efeito também da caridade) da misericórdia. Somente informada pela caridade a esmola realiza-se plenamente, isto é, por amor de Deus, prontamente, com prazer e adequada (cfr. S T. II. II, 32 c e ad 1). É obrigação para o cristão dar esmola para aos que estão em extrema necessidade; para os outros, é aconselhável (cfr. I, c. art. 5 c). Quer dada por obrigação, quer apenas por respeito ao conselho, a esmola manifesta a caridade que vai no coração do cristão. Mesmo que o cristão esteja dando a esmola como satisfação dos pecados, que é ato de justiça; ou como a oferta a Deus, que é ato de religião, ela não deixa de ser imperada pela caridade (cfr. I. c. art. 1 ad 2). Ainda em nossos dias, quando as obras de justiça social e de beneficência realizam aquilo que pertenceria à esmola, o amor de caridade faz com que o cristão execute aquelas obras com sentimento interior de misericórdia, e, que não deixe de dar esmola, quando se apresenta uma situação que a requer.
  3. 3. A caridade é uma virtude sobrenatural e somente a possuem aqueles que a receberam como um dom gratuito de Deus. não é apenas uma amizade efetiva ou compassiva ao próximo. Aos que assim a entendem, São Tomás responde: “Essa razão seria certa, se Deus e o próximo fossem objeto da caridade no mesmo nível. Mas isso não é verdadeiro. Deus é o principal objeto da caridade; o próximo é amado com caridade por causa de Deus” (II. II. 23, 5 ad 1). Deus deve ser mais amado que o próximo (aliás é doutrina evangélica), conforme o argumento de São Tomás: “Qualquer amizade dirige-se em primeiro lugar para aquilo em que se encontra principalmente o bem sobre o qual se fundamenta a comunicação. [...] A amizade de caridade fundamenta-se sobre a comunicação da felicidade, que consiste essencialmente em Deus, como no primeiro princípio do qual ela deriva para todos os que são capazes de alcançar a felicidade. Por isso, em primeiro lugar, e máxime, Deus deve ser amado com caridade; o próximo, porém, como aquele que conosco juntamente participa da felicidade” (II. II, 26, 2c).

Subiu aos céus está sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso

96 — Depois de se afirmar a Ressurreição de Cristo, convém crer na sua Ascensão, pois Ele subiu para o céu após quarenta dias de ressuscitado. Eis porque se diz no Credo: “Subiu aos céus”.
 
Devemos considerar as três características principais deste acontecimentos, isto é, que ele foi sublime, racional e útil.
 
97 — Foi sublime, porque Ele subiu para os céus. Explica-se isto por três maneiras:
 
Primeiro, porque Ele subiu acima de todos os céus corpóreos1, conforme se lê em São Paulo: “Subiu acima de todos os céus” (Ef 4, 10).
 
Tal ascensão foi realizada pela primeira vez por Cristo, porque até então o corpo terreno estivera somente na terra, sendo o paraíso, onde esteve Adão, situado também na terra.
 
Segundo, porque subiu sobre todos os céus espirituais, isto é, acima das naturezas espirituais, como se lê também em São Paulo: “Colocando (o Pai) Jesus à sua direita nos céus, sobre todo Principado, Potestade, Virtude, Dominação e acima de todo nome que se pronuncia não só neste século, mas também nos futuros, e tudo colocou sob os seus pés” (Ef 1, 20).
 
Terceiro, porque subiu até ao trono do Pai. Lê-se nas Escrituras: “Eis que vinha sobre as nuvens do céu como o Filho de Homem; Ele dirigiu-se para o Ancião, e foi conduzido à sua presença” (Dn 7, 13). Lê-se também em São Marcos: “E o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado subiu ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16, 19).
 
98 — A expressão direita de Deus não deve ser entendida no sentido corporal, mas em sentido metafórico. Enquanto Deus, diz-se que Cristo está sentado à direita de Deus, porque é igual ao Pai; enquanto homem, diz-se que Cristo está sentado à direita do Pai, porque goza dos melhores bens. O diabo aspirou também semelhante elevação, como se lê em Isaías: “Subirei ao céu, acima dos astros de Deus colocarei o meu trono; sentar-me-ei no Monte da Promessa, que está do lado do Aquilão; subirei acima da elevação das nuvens, serei semelhante ao Altíssimo” (Is 14, 13) 2.
 
Mas a semelhante altura não se elevou senão Cristo, razão pela qual se diz no Credo: “Subiu aos céus está sentado à direita do Pai”, o que é confirmado no Livro dos Salmos: “Disse o Senhor ao meu Senhor, senta-te a minha direita” (Sl 109, 1).
 
99 — A Ascensão de Cristo foi racional por três motivos3. Primeiro, porque o céu era devido a Cristo por exigência da sua natureza. É, com efeito, natural que cada coisa retorne à sua origem. Cristo tem sua origem em Deus, que está acima de todas as coisas, conforme Ele mesmo disse: “Saí do Pai, e vim ao mundo; deixo agora o mundo e voto para o Pai” (Jo 16, 18).
 
Disse também: “ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu” (Jo 3, 13).
 
Apesar de os Santos irem para o céu, todavia não o fazem como Cristo: porque Cristo o fez por seu próprio poder; os santos, porém, levados por Cristo. Lê-se no Livro dos Cânticos: “Leva-me na Vossa seqüência” (Ct 1, 3).
 
Pode-se explicar de outra maneira porque se diz que ninguém subiu ao céu a não ser Cristo: os santos não sobem senão enquanto membros de Cristo, que é a cabeça da Igreja, conforme está escrito em São Mateus: “Onde estiver o corpo, aí as águias se congregarão” (Mt 24, 28) 4.
 
Em segundo lugar, a Ascensão de Cristo foi racional devido à sua vitória. Sabemos que Cristo veio ao mundo para lutar contra o diabo, e o venceu. Por isso mereceu ser exaltado sobre todas as coisas. Confirma-o o Apóstolo: “Eu venci, e sentei-me com o Pai no seu trono” (Ap 3, 21).
 
A Ascensão de Cristo foi racional, em terceiro lugar por causa da humildade de Cristo, que, sendo Deus, quis fazer-se homem; sendo Senhor, quis suportar a condição de escravo, fazendo-se obediente até à morte, segundo se lê na Carta aos Filipenses, (2, 1), descendo ainda até o inferno. Por isso mereceu ser exaltado até ao céu e sentar-se à direita de Deus. A humildade é, com efeito, o caminho da exaltação, como se lê em São Lucas: “Quem se humilha, será exaltado” (Lc 14, 11). Escreveu também São Paulo: “O que desceu do céu, este é o que subiu acima de todos os céus” (Ef 4, 10).
 
100 — A Ascensão de Cristo foi além de sublime e racional, também útil.
 
Essa afirmação pode ser esclarecida em três dos seus aspectos:
 
O primeiro, refere-se ao fim da Ascensão, pois Cristo foi para o céu para nos conduzir até lá. Desconhecíamos o caminho, mas Ele no-lo ensinou. Lê-se: “Subiu abrindo o caminho na frente deles” (Mq 2, 13).
 
Subiu ao céu também para nos fazer seguros da posse do reino celeste, conforme se lê em São Paulo: “Vou preparar-vos o lugar” (Jo 14, 2).
 
O segundo, refere-se à segurança que a Ascensão nos trouxe, pois subiu aos céus para interceder por nós. Lê-se: “Subiu por si mesmo ao Deus sempre vivo para interceder por nós” (Heb 7, 25). Lê-se também: “Temos um advogado junto ao Pai, Jesus Cristo” (1 Jo 21).
 
O terceiro para atrair a si os nossos corações, segundo está escrito em São Mateus: “Onde está o teu coração está o teu tesouro” (Mt 6, 21), e para que desprezemos as coisas temporais, como nos exorta o Apóstolo São Paulo: “Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus; saboreai as coisas do alto e não as da terra” (Col 3, 1).

  1. 1. São Tomás fala conforme o sistema dos antigos que distinguiam muitos céus materiais, como nós distinguimos troposfera, estratosfera, ionosfera... A Ascensão de Cristo — acima de todos os céus materiais — significa que Ele saiu do cosmos” (Le Credo, Saint Thomas d’Aquin, Introduction, traduction et notes par un moine de Fontgombault, Nov. Ed. Latines, Paris, 1969, pág. 230).Na “Suma Teológica” São Tomás explica o que seja “subir acima de todos os céus”: “quanto mais alguns corpos participam da divina bondade, tanto mais estão acima da ordem corporal, que é a ordem local (...) Mais participa da bondade divina um corpo pela glória, que qualquer corpo natural pela forma da sua natureza. Ora, entre os demais corpos gloriosos, é evidente que o corpo de Cristo refulge por maior glória. Portanto foi convenientíssimo a Ele que fosse constituído sobre todos os corpos no alto. Comentando a carta aos Efésios, capítulo IV, — ‘Subindo ao alto’ —, assim lê-se na glossa: ‘Isto é, pelo lugar e pela dignidade’” (S. T. III, 57, 4 ,c).
  2. 2. Assim precisa S. Tomás na “Suma Teológica” o sentido da expressão direita de Deus: “Sentar-se à direita de Deus não significa estar simplesmente na bem-aventurança eterna, mas possuir a bem-aventurança com certo poder dominativo, quase próprio e natural. Esse poder só a Cristo convém, não a nenhuma outra criatura” (S.T. III. 58, 4, ad2).
  3. 3. Apesar de toda a exposição do Credo feita aqui por São Tomás ser no sentido de um trabalho teológico, no qual ele usa argumentos muito simples acessíveis ao senso comum, quis ressaltar mais, neste ponto, a conveniência da Ascensão de Cristo, demonstrada por motivos racionais. Esses motivos procuram sempre explicar um texto da Sagrada Escritura. A teologia não é apenas uma explicação filológica ou histórica da Revelação, mas é principalmente o esforço da inteligência humana para penetrar no sentido racional da Palavra de Deus revelada. Como a inteligência humana procura a verdade pelo raciocínio lógico e certo, a teologia é uma ciência especulativa coerente e racional. Objeto da ciência teológica refere-se “a Deus principalmente; às criaturas conforme referem-se a Deus como princípio e fim” (S. T. I. 1, 3 ad 1). A teologia é ciência superior a todas as outras, quer às ciências especulativas, quer às ciências práticas, quanto à certeza das suas conclusões e quanto à dignidade do seu objeto (S. T. I. 1, 5). Porque a teologia apresenta a última e satisfatória explicação das coisas na última causa, que é Deus, é chamada de Sabedoria. “Esta doutrina (i. é. a teologia) é máxime a sabedoria entre todas as sabedorias humanas, não apenas em uma determinada ordem, mas de um modo absoluto”. (S. T. I. 1, 6c).
  4. 4. O mesmo texto escriturístico (Mt. 24, 28) é interpretado por São Tomás, anteriormente, com pequena diferença.

Questão 55: Das virtudes quanto à sua essência.

Em seguida e conseqüentemente devemos tratar dos hábitos em especial. E como estes, conforme já se disse1, distinguem-se pelo bem e pelo mal, devemos tratar, primeiro dos hábitos bons, que são as virtudes, e do que lhes é anexo, a saber, os dons, as beatitudes e os frutos. Segundo, dos hábitos maus, a saber, dos vícios e dos pecados.
 
Quanto às virtudes, cinco questões devem ser tratadas. Primeira, da essência da virtude. Segunda, do seu sujeito. Terceira, da divisão das virtudes. Quarta, da causa da virtude. Quinta, de certas propriedades da virtude.
 
Na primeira questão, quatro artigos se discutem:

 

  1. 1. Q. 54, a. 3.

Desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

77 — Como dissemos acima, a morte de Cristo consistiu na separação da alma e do corpo, como na morte dos outros homens. Mas a divindade estava de tal modo ligada ao homem Cristo, que, apesar de a alma e o corpo terem se separado entre si, a própria Deidade1  sempre esteve unida ao corpo e à alma de um modo perfeitíssimo. Eis por que no sepulcro estava presente o Filho de Deus, o qual desceu também com a alma aos infernos2.
 
 
78 — Por quatro razões Cristo desceu com a alma aos infernos. A primeira, para que suportasse toda a pena do pecado, e, assim, expiar toda a culpa. A pena do pecado do homem não foi somente a morte do corpo, mas também uma punição na alma. Por que o pecado era também da alma, esta deveria ser punida pela privação da visão divina.
 
Ora, não se tinha ainda apresentado uma satisfação para que esta privação fosse afastada. Por isso, antes do advento de Cristo, todos desciam aos infernos, até os Santos Patriarcas.
 
Para Cristo carregar sobre si toda a punição devida aos pecadores, quis não somente morrer, bem como descer com a alma aos infernos. Lê-se nos Salmos: “Fui considerado como um homem caído na fossa; fiquei como um homem sem auxílio, livre no meio dos mortos” (Sl 87, 5-6).
 
79 — A segunda razão da descida de Cristo aos infernos foi ir em socorro de todos os seus amigos. Tinha Ele os seus amigos não só no mundo, mas também nos infernos. Manifestam-se alguns como amigos de Cristo, nisto: têm caridade. Muitos estavam nos infernos que para lá desceram possuindo caridade e fé no Esperado, como Abraão, Issac, Jacó, David, muitos outros homens justos e perfeitos.
 
Como Cristo visitava os seus amigos no mundo, e os socorrera pela própria morte, quis também visitar aqueles amigos que estavam no inferno, e socorrê-los, indo também a eles. Lê-se no Livro do Eclesiástico: “Penetrarei em todas as partes interiores da terra, e verei todos os que aí dormem, e iluminarei todos os que esperam no Senhor”. (Ecl 24, 45).
 
80 — A terceira razão, foi para que Cristo tivesse uma vitória perfeita contra o diabo. Alguém somente tem um perfeito triunfo sobre outrem, não apenas quando o vence no campo de batalha, mas até quando ainda lhe invade a própria casa, e se apodera da sede do reino e do palácio.
 
Cristo já havia triunfado do diabo e já o vencera na Cruz, pois se lê em São João: “Agora é o julgamento do mundo, agora o príncipe deste mundo (isto é, o diabo) será lançado fora” (Jo 12, 31).
 
Para que Cristo triunfasse sobre o diabo de um modo completo, quis tirar-lhe a sede do reino, e prende-lo na sua própria casa, que é o inferno. Por isso aí desceu, tirou-lhe todos os bens, aprisionou-o e apoderou-se da sua presa. Lê-se: “Despojando os principados e as sociedades, exibiu-os publicamente, triunfando deles na Cruz” (Cl 2, 15).
 
Devemos considerar que, como Cristo recebera o poder e a posse do céu e da terra, deveria também ter a posse do inferno, como se lê na Carta aos Filipenses: “Ao nome de Jesus dobre-se todo o joelho, dos que estão nos céus, na terra e nos infernos” (Fp 2, 10). O próprio Jesus dissera: “Em meu nome expulsarão os demônios” (Mt 16, 17).
 
81 — A quarta e última razão, foi para libertar os santos que estavam nos infernos. Assim como Cristo quis submeter-se à morte para libertar os vivos da morte, quis também descer aos infernos, para libertar os que aí se encontravam: Lê-se: “Vós também (Senhor), pelo Sangue do vosso testamento, tirastes os Seus que estavam presos na fossa, onde não havia água” (Zc 9, 11). — “Ó morte, serei a tua morte, ó inferno, serei para ti como uma mordida” (Os 13, 14) 3.
 
Bem que Cristo tivesse totalmente destruído a morte, não destruiu completamente o inferno, mas como que o mordeu, por que não libertou todos os que nele estavam, mas somente os que não tinham pecado mortal, nem o pecado original. Deste, foram libertados, enquanto pessoas indivíduos, pela circuncisão, e, antes da instituição da circuncisão, as crianças privadas do uso da razão, pela fé dos pais fiéis; os adultos, pelos sacrifícios e pela fé no Cristo que esperavam.
 
Estavam no inferno devido ao pecado original causado por Adão, do qual não poderiam ser libertados, enquanto pecado que era da natureza humana, senão por Cristo.
 
Deixou então os que aí desceram com pecado mortal, e as crianças incircuncisas4. Por isso disse ao descer ao inferno: “serei para ti como uma mordida” (Os 13, 14).
 
82 — Do exposto, podemos tirar quatro ensinamentos para nossa instrução. Primeiro, uma firme esperança em Deus, pois quando quer que o homem esteja em aflição, deve sempre esperar do auxílio divino e nele confiar. Nada há de mais sério do que cair no inferno. Se portanto Cristo libertou os que estavam nos infernos, cada um, se é de fato amigo de Deus, deve muito confiar para que Ele o liberte de qualquer angústia. Lê-se: “Esta (isto e, a sabedoria) não abandonou o justo que foi vencido (...) desceu com ele na fossa, e na prisão o não abandonou” (Sab. 10, 13-14). Como Deus auxilia aos seus servos de um modo todo especial, aquele que O serve deve estar sempre muito seguro. Lê-se: “O que teme ao Senhor por nada trepidará e nada temerá por que Ele é a sua esperança” (Ecl 39, 16).
 
83 — Segundo, devemos despertar em nós o temor, e de nós afastar a presunção. Pois, apesar de Cristo ter suportado a paixão pelos pecadores, e ter descido aos infernos, não libertou a todos, mas somente àqueles que estavam sem pecado mortal, como acima foi dito.
 
Aqueles que morreram em pecado mortal, deixou-os abandonados.
 
Por isso, ninguém que desça de lá com pecado mortal espere perdão.
 
Mas ficarão no inferno o tempo em que os Santos Patriarcas estiverem no Paraíso, isto é, para toda a eternidade. Lê-se em São Mateus: “Irão os malditos para o suplício eterno, os justos, porém, para o Paraíso” (Mt 25, 46) 5.
 
84 — Terceiro, devemos viver atentos, porque se Cristo desceu aos infernos para a nossa salvação, também nós devemos com solicitude lá descer em espírito, meditando sobre às penas nele existentes, imitando o Santo Ezequias, que dizia: “Irão os malditos para o suplício eterno, os justos, porém, para o Paraíso” (Is. 38, 10).
 
Desse modo, aquele que em vida vai lá pela meditação, não descerá facilmente para o inferno na morte, porque essa meditação afasta do pecado.
 
Aos vermos como os homens deste mundo evitam as más ações por temor das penas infernais, como não deveriam eles muito mais se resguardarem do pecado por causa das penas do inferno, que são muito mais longas, mais cruéis e mais numerosas? Eis porque lê-se nas Escrituras: “Lembra-te dos teus últimos dias, e não pecarás para sempre” (Ecl 7, 40).
 
85 — O quarto ensinamento tirado da descida de Cristo aos infernos, é nos ter Ele oferecido um exemplo de amor. Cristo desceu aos infernos para libertar os seus. Devemos também nós lá descer pela meditação, para auxiliar os nossos. Eles, por si mesmos, nada podem conseguir. Nós é que devemos ir em socorro dos que estão no purgatório. Se alguém não quisesse socorrer um ente querido que estivesse na prisão, como isso nos pareceria cruel! No entanto, seria muito mais cruel aquele que não viesse em socorro do amigo que está no purgatório, pois não há comparação entre as penas deste mundo e aquelas. Lê-se a esse respeito: “Tende piedade de mim, tende piedade de mim, pelo menos vós, ó meus amigos, porque a mão de Deus me socorre” (Jo 19, 21). — “É santo e salutar o pensamento de orar pelos defuntos para que sejam livres dos pecados” (Mc 19, 46).
 
86 — São auxiliados os que estão no purgatório principalmente por três atos, conforme disse Agostinho: pelas Missas, pelas orações e pelas esmolas. Gregório acrescenta um quarto: o jejum. Não deve causar admiração que assim seja, porque também neste mundo o amigo pode satisfazer pelo amigo. A mesma coisa acontece com os que estão no purgatório.
 
87 — É necessário que o homem conheça duas coisas: a glória de Deus e a pena do inferno. Elevados pela glória de Deus, e aterrorizados pela pena do inferno, os homens cuidam melhor das suas ações e afastam-se do pecado. Mas é muitíssimo difícil para o homem conhecer essas duas coisas. Com relação à glória, lê-se: “Quem poderá conhecer as coisas do céu?” (Sb 9, 16). Isso é realmente muito difícil para os habitantes da terra, porque se lê em São João: “O que é da terra, fala das coisas da terra” (Jo 3, 31). Para os espirituais, porém, não o é, porque “o que veio do céu, está acima de todos”, conforme continua aquele texto. Por conseguinte, Deus desceu do céu e se encarnou, para nos ensinar as coisas do céu.
 
Com relação à pena do inferno, era também muito difícil conhece-la. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Não se conhece quem tenha voltado dos infernos” (Sb 2, 1). Essa passagem da Escritura refere-se às pessoas dos ímpios. Mas agora isso não mais pode ser dito, porque, como Ele desceu do céu para ensinar as coisas do céu, também ressurgiu dos infernos para esclarecer-nos sobre as coisas do inferno.
 
É necessário, pois, que creiamos não apenas que Ele se fez homem e que morreu, bem como que ressurgiu dos mortos. Por esse motivo é professado no Credo: “Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos 6.
 
88 — Lemos nos Evangelhos que muitos ressuscitaram dos mortos, como Lázaro, o filho da viúva e o filho do chefe da Sinagoga.
 
Mas a Ressurreição de Cristo difere daquelas e de outras, em quatro aspectos.
 
Primeiro, devido à causa da ressurreição, porque os outros que ressuscitaram, não ressuscitaram por próprio poder, mas pelo poder de Cristo ou, das orações de algum santo. Cristo ressuscitou por próprio poder, porque não era apenas homem, mas também Deus, e a divindade do Verbo jamais se separou nem da sua alma, nem do seu corpo. Por isso, o corpo reassumiu a alma e a alma o corpo, quando queria. Lê-se: “Tenho poder para entregar a minha alma, bem como para a reassumir” (Jo 10, 18).
 
Bem que tenha sido morto, não o foi por fraqueza ou por necessidade, mas, espontaneamente. Isto é verdade, porque quando Cristo entregou o seu espírito, deu um grito. Os outros, porém, que morrem, não o podem dar, porque morrem por fraqueza. O centurião exclamou no Calvário: “Ele era verdadeiramente o Filho de Deus” (Mt 87,54).
 
Como Cristo por sua própria força entregou a alma, reassumiu-a também por própria força. Por isso é dito no Credo — ressuscitou e não — foi ressuscitado, como se o fosse por outro. Lê-se nos Salmos: “Dormi, cai em profundo sono e ressurgi” (Sl 29, 10). Não há, porém, contradição entre este texto e o dos Atos dos Apóstolos: “Este Jesus, ressuscitou-O Deus” (At 2, 32), porque o Pai O ressuscitou, e o Filho também o ressuscitou, já que a virtude do Pai e do Filho são a mesma virtude.
 
89 — Difere, em segundo lugar, devido à vida que fora ressuscitada. Cristo ressuscitou para a vida gloriosa e incorruptível, conforme se lê na Carta aos Romanos: “Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai” (Cor 6, 4). Os outros, para a mesma vida que antes possuíam, como se verificou em Lázaro e nos outros ressuscitados.
 
90 — Difere ainda a Ressurreição de Cristo da dos outros quanto à sua eficácia e quanto ao seu fruto, porque foi em virtude daquela que todos ressuscitaram. Lê-se: “Muitos corpos dos Santos que dormiam ressuscitaram” (Mt 2, 7, 52) — “Cristo ressurgiu dos mortos, primícia dos que dormem” (Cor 15, 20).
 
Vede bem que Cristo pela Paixão chegou à glória, conforme está escrito em São Lucas: “Não foi conveniente que Cristo assim padecesse, para poder entrar na sua glória?” (Is 24, 26) — para nos ensinar como podemos chegar à glória: “Por muitas tributações devemos passar para entrar no reino de Deus” (Mt 14, 21).
 
91 — A quarta diferença é relativa ao tempo, porque a ressurreição dos outros foi retardada para o fim dos tempos, a não ser que tenha sido concedida por privilégio, como a da Virgem Santa, e, conforme se crê piedosamente, a de São João Evangelista.
 
Cristo, porém, ressuscitou ao terceiro dia porque a sua Ressurreição e a sua Morte realizaram-se para a nossa salvação, e Ele, portanto, só quis ressurgir quando fosse isso vantajoso para a nossa salvação.
 
Ora, se ressuscitasse imediatamente após a morte, não se acreditaria que Ele tivesse morrido. Se fosse demasiadamente protelada a ressurreição, os discípulos não perseverariam na fé, e nenhuma utilidade teria a sua Paixão. Lê-se nos Salmos: “Que utilidade haveria em ter eu derramado o sangue, se desci ao lugar da corrupção?” (Sl 29, 10). Ressuscitou no terceiro dia para que se acreditasse na sua morte e para que os discípulos não perdessem a fé.
 
92 — Sobre o que acabamos de expor, podemos fazer quatro considerações para nossa instrução.
 
Primeiro, que devemos nos esforçar para ressurgirmos espiritualmente da morte da alma, contraída pelo pecado, para a vida da justificação que se obtêm pela penitência. Escreve o Apóstolo: “Surge, tu que dormes, ressurge dos mortos, e Cristo te iluminará” (Ef 5, 14).
 
Esta é a primeira ressurreição da qual nos fala o Apocalipse: “Feliz o que teve parte na primeira ressurreição” (Ap 20, 6).
 
93 — Segundo, que não devemos protelar a nossa ressurreição da morte, mas realizá-la já, porque Cristo ressuscitou no terceiro dia.
 
Lê-se: “Não tardes na conversão para o Senhor, e não a delongues dia por dia” (Ecl 5, 8).
 
Por que estás agravado pela fraqueza, não podes pensar nas coisas da salvação, e porque perdes parte de todos os bens que te são concedidos pela Igreja, incorres em muitos males perseverando no pecado.
 
Como disse o Venerável Beda, o diabo quando mais tempo possui uma pessoa, tanto mais dificilmente a deixa.
 
94 — Terceiro, que devemos também ressurgir para a vida incorruptível, de modo que não mais morramos, isto é, que devemos perseverar no propósito de não mais pecar. Lê-se na Carta aos Romanos: “Assim também vós vos considereis mortos para o pecado, vivendo para Deus em Cristo Jesus. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo, obedecendo-lhes as concupiscências; não exibais os vossos membros como armas de maldade para o pecado, mas deveis vos exibir a vós mesmos para Deus como vivos que saíram da morte” (Rm 6, 9; 11-13).
 

95 — Quarto, que devemos ressurgir para uma vida nova e gloriosa evitando tudo o que antes nos foram ocasião e causa de morte e de pecado. Lê-se na Carta aos Romanos: “Como Cristo ressuscitou de entre os mortos pela glória do Pai, também nós devemos andar na novidade de vida” (Rm 5, 4). Esta vida nova é a vida de justiça, que renova a alma e a conduz para a glória. Amém.

  1. 1. Usa São Tomás na mesma frase as palavras “divindade” (divinitas) e deidade (deitas), que, de certo modo, podem ter o mesmo significado. Mas “deitas” precisa de maneira mais perfeita o conteúdo da essência divina. “Quer dizer que a perfeição divina, a Deitas, creia acima, não apenas de tudo o que existe, mas de tudo que podemos conceber: [...] ela é uma outra perfeição, que não é nem a sabedoria, nem a bondade, nem a intelectualidade, nem nada do que são essas coisas, mas a Deidade, perfeição singular e transcendente, infinitamente simples” (H. Nicolas — “Dieu connu comme inconnu” — Desiclée — Paris, 1966, pág. 138). A palavra divindade é usada para exprimir a essência divina enquanto conhecida pela razão abstrativa, ao passo que os teólogos usam mais “Deitas” para exprimir a essência divina enquanto conhecida pela fé: o conhecimento da fé atinge a vida íntima de Deus, que só se tornará perfeito na visão beatífica. (cfr. Garrigou- Lagrange, “De Deo Uno” Paris, 1937, pág. 245).
  2. 2. A questão da descida de Cristo aos infernos é longa e claramente tratada principalmente na Suma Teológica (III, q. 52): “Na morte de Cristo apesar de a alma ter sido separada do corpo, nenhum dos dois foi separado da Pessoa do Filho de Deus. Por isso deve-se dizer que, no tríduo da morte, todo o Cristo estava no sepulcro, porque toda a sua Pessoa estava aí pelo corpo a ela unido; semelhantemente esteve todo no inferno, porque toda a Pessoa de Cristo estava aí devido à alma a ela unida, e também (se pode dizer) que todo o Cristo estava em toda parte devido à sua natureza divina” (III, 52, 3, c). De como Cristo esteve presente e atuou nas diversas partes do inferno, assim nos esclarece São Tomás: “De duas maneiras pode estar uma coisa em algum lugar: de uma maneira, pelo seu efeito (e dessa maneira Cristo desceu em qualquer dos infernos, mas diversamente; no inferno dos condenados produziu o efeito de argüi-los da sua incredulidade e malícia: aos que estavam detidos no purgatório, deu a esperança de alcançarem a vida eterna; aos Santos Patriarcas, que apenas devido ao pecado original, entravam no inferno, infundiu-lhes o lumem da glória eterna). De outra maneira uma coisa é dita estar em algum lugar pela sua essência: e deste modo a alma de Cristo desceu somente ao lugar do inferno, no qual estavam detidos os justos, para que aos que Ele visitava segundo a divindade e interiormente pela graça, visitasse-os também segundo a alma e localmente. Desse modo estando em uma parte do inferno, estendeu o seu efeito a todas as partes do inferno, como tendo também sofrido em um só lugar da terra, libertou todo o mundo pela sua paixão” (III, 52, 2 c).
  3. 3. São Tomás cita neste local o texto latino da Vulgata (“erro mortua, o mors morsus tuus erro, inferne” — Os. 13, 14) e o traduzimos literalmente para dar sentido à explicação que o segue. Todavia a tradução literal do texto hebraico é a seguinte: “Onde estão, ó morte, as tuas epidemias? Onde está o teu contágio, ó abismo?”. São Paulo aplica este versículo de Oséias, cujo sentido original é a respeito da vitória do povo israelita, à vitória de Cristo. A citação de São Paulo (I Cor. 15, 55), é em sentido livre (ver, “La Sainte Bible, traduite em français sous la direction de l’École Biblique de Jérusalem”, pgs. 1221, 1525).
  4. 4. Sobre a morte das crianças não batizadas e o seu destino eterno, ver o excelente livro de Charles Journet — “La vonlonté divine salvifique sur les petits enfants” — Desclée de Brower, Friburgo, 1958. É sentença comum entre os teólogos que as almas das crianças mortas sem batismo, antes do uso da razão são privadas da visão de Deus, mas não sofrem nem por estarem privadas dessa visão, nem as penas dos sentidos. São Tomás sempre negou que as crianças mortas em estado de pecado original sofressem qualquer pena, bem que tivesse primeiro afirmado que elas conhecessem a privação da visão (Sent. 2, 33, 2 a 2) e, mais tarde, o tivesse negado (De malo, 5, 3) “estarem privadas de tal bem (visão beatífica) as almas das crianças não sabem, e por essa razão não sofrem, mas o que possuem pela natureza, possuem sem dor”. São Roberto Belarmino admite um certo sofrimento nessas crianças. (cfr. Catechismus Catholics, q. 359 págs. 197, 479).
  5. 5. O “Cathecismus Catholicus” elaborado pelo Cardeal Gaspani com a participação de respeitáveis teólogos, aprovado pela Santa Sé, assim define, em apêndice, a doutrina a respeito do inferno e do purgatório: “Com relação ao inferno deve-se crer com fé divina: 1° — Que existe o inferno constituído pelos demônios e pelos que morreram em pecado mortal, mesmo que fosse um só. 2° — Que no inferno os condenados são atormentados por dupla pena: a de dano e a pena dos sentidos, sendo esta principalmente de fogo. 3° — Que as penas que os condenados do inferno cumprem são eternas, e jamais terão fim, nem serão atenuadas. 4° — Que não são as mesmas penas para todos, mas diversa, conforme o número e a gravidade dos pecados, que mereceram a condenação eterna. É teologicamente certo, bem que não de fé, que o fogo, com o qual os condenados do inferno são atormentados é um fogo real ou corpóreo, não metafórico. (...). É disputado ainda livremente entre os teólogos: de que maneira o fogo real pode atormentar os espíritos puros, como o dos demônios, e as almas dos condenados antes da ressurreição dos corpos; qual a natureza do fogo do inferno; onde se encontra o inferno, se acima, ou abaixo da terra, se é um lugar, se é um estado... Com relação ao Purgatório, é de fé: 1°) Que existe o purgatório, onde são detidas as almas dos que morrem sem pecado mortal, mas que devem ainda cumprir por algum tempo algo devido às penas. 2°) Que no purgatório as almas são punidas pela pena de dano e pela pena dos sentidos, isto é, pela privação temporal da visão beatífica e por outras graves penas. 3°) Que as penas das almas no purgatório, quanto à duração e a dureza devida à pena de cada um, são dissemelhantes entre si. 4°) Que as penas dos que aí estão podem se tornar mais breves e mais leves pelos sufrágios realizados pelas suas almas. Não é de fé que as almas são atormentadas no Purgatório por fogo real ou corpóreo, não metafórico. (...). Livremente se disputa: se há o fogo do Purgatório e se a sua natureza é a mesma que a do fogo do inferno, bem que tenha menor força atormentadora; como esse fogo atinge as almas separadas dos corpos; em que lugar está o Purgatório; se é lugar, ou estado” (págs. 484 e 486).
  6. 6. São Tomás aplica a doutrina hilemórfica para explicar a reunião da alma ao corpo de Cristo na Ressurreição. O corpo de Cristo conservou, após a morte, a sua unidade devido à Pessoa do Verbo à qual estava unido, e, por isso não se corrompeu (cfr. S. T. III, 50, 5). Sendo a alma a sua forma substancial e princípio da vida humana, refez-se a natureza humana de Cristo pela re-união da alma com o corpo. Não havia uma forma intermediária entre o corpo e a alma de Cristo assumiu (informou, vivificou) o seu corpo. “O corpo de Cristo tombou pela morte, enquanto foi separado da alma, que era a sua perfeição formal. Para que houvesse verdadeira Ressurreição de Cristo, era conveniente que o mesmo corpo de Cristo pela segunda vez re-unisse à mesma alma. E porque a verdadeira natureza do corpo vem da forma, deve-se concluir que depois da Ressurreição o corpo de Cristo era o verdadeiro, e da mesma natureza do primeiro. Se o seu corpo fosse fantástico, não teria havido verdadeira Ressurreição, mas apenas aparente”. (S.T. III, 54, 1 c). “O corpo de Cristo na Ressurreição foi da mesma natureza, mas de diferente glória. Portanto tudo o que pertence à natureza do corpo humano estava totalmente no corpo de Cristo Ressuscitado. É evidente que pertencem à natureza do corpo humano, as carnes, os ossos, o sangue, etc. Por isso todas estas coisas estavam no corpo de Cristo Ressuscitado, integralmente e sem diminuição alguma. De outro modo, não haveria perfeita Ressurreição se não fosse reintegrado tudo o que se separou pela morte”. (S. T. III, 54, 2 c).
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