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Art. 2 — Se o ardor é, por excelência, efeito da ira.

O segundo discute-se assim. — Parece que o ardor não é, por excelência, efeito da ira.
 
1. — Pois, como já se disse1, o ardor é relativo ao amor. Ora este, como também já se disse2, é o princípio e a causa de todas as paixões. Ora, sendo a causa mais poderosa que o efeito, resulta que a ira não causa, por excelência, o ardor.
 
2. Demais — O que em si mesmo excita o ardor aumenta cada vez mais no decorrer do tempo; assim, o amor diuturno mais se fortifica. Ora, a ira diminui com o passar do tempo, pois, como diz o Filósofo, o tempo acalma a ira3. Logo, esta não causa, propriamente o ardor.
 
3. Demais — O ardor aumenta o ardor. Ora, uma ira maior, superveniente, faz diminuir a menor, como diz o Filósofo4. Logo, a ira não causa o ardor.
 
Mas, em contrário, diz Damasceno, que a ira é ardor do sangue no coração, proveniente da evaporação do fel5.
 
Solução. — Como já dissemos6, a transmutação corpórea provocada pelas paixões da alma é proporcionada ao movimento do apetite. Ora, é manifesto que qualquer apetite, ainda natural, tende mais fortemente ao que lhe é contrário, se este estiver presente; e por isso vemos a água aquecida congelar-se mais fortemente, quase por ação mais veemente do frio sobre o quente. Ora, o movimento apetitivo da ira é causado por alguma injúria que nos é feita, como pelo que é presentemente contrário. Por isso, o apetite tende principalmente, a repelir a injúria, pelo desejo da vindicta; donde uma grande veemência e impetuosidade no movimento da ira. E como este não se dá por retração, a que o frio é proporcionado, mas antes, pela prossecução, a que é proporcionado o calor, conseqüentemente o movimento da ira causa um certo ardor do sangue e dos espíritos no coração, que é o instrumento das paixões da alma. Donde vem que, por causa da intensa perturbação do coração, que acompanha a ira, sobretudo nos irados se manifestam certos indícios, nos membros exteriores. Pois, como diz Gregório, estimulado pela ira, o coração, incendiado, palpita, o corpo treme, a língua trava-se as faces afogueiam-se, excitam-se os olhos e já os conhecidos de nenhum modo se reconhecem; a boca do irado quer gritar mas ignora o sentido o que haja de dizer7.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O amor em si mesmo, como diz Agostinho, nós não o sentimos senão quando o perdemos8. Por onde, quanto mais sofremos, pela injúria que nos é feita, detrimento nalguma excelência amada, tanto mais sentimos o amor, e portanto mais ardorosamente o coração se nos altera, afim de remover o impedimento que nos separa do objeto amado; de modo que a ira aumenta e faz sentirmos mais o ardor amoroso. Contudo, o ardor resultante do calor pertence-lhe, por uma razão, e, por outra, à ira. Pois, o ardor amoroso é acompanhado de certa doçura e suavidade, por ter por objeto o bem amado; e daí vem o assemelhar-se ao calor do ar e do sangue; e isso explica que os sanguíneos são mais amorosos, e o dizer-se que o fígado provoca o amor, no qual se opera uma certa geração do sangue. O ardor da ira porém é acompanhado de amargura consumptiva, porque tende à punição do contrário; por isso é assimilado ao calor do fogo e da cólera; donde o dizer Damasceno, que a ira procede da evaporação do fel e é chamada félea9.
 
Resposta à segunda. — Aquilo cuja causa se enfraquece com o tempo necessariamente há-de ir-se debilitando. Ora, é manifesto, que a memória se enfraquece com o tempo, pois os fatos antigos facilmente lhe escapam. E sendo a ira causada pela memória da injúria feita, a sua causa há-de, por força, diminuir com o tempo, paulatinamente, até desaparecer. E isso explica que a injúria parece maior logo depois de sentida, diminuindo-se-lhe a importância que lhe damos quando mais ela se esbate no sentimento atual. O mesmo se dá com o amor, se a sua causa permanecer só na memória. Donde o dizer do Filósofo, que a ausência diuturna do amigo parece fazer esquecer a amizade10. Ao contrário, com a presença dele, sempre a causa da amizade se intensifica no tempo e, portanto, a amizade cresce. E o mesmo se daria com a ira se a sua causa se multiplicasse continuamente. Contudo, o fato mesmo de ela consumir-se rapidamente atesta-lhe o veemente ardor. Pois assim como um grande fogo logo se extingue, uma vez consumida a sua matéria, assim também a ira, pela sua veemência, logo se desvanece.
 
Resposta à terceira. — Toda virtude, dividida em muitas partes, logo diminui. Por isso, quando nos iramos contra uma pessoa e, logo a seguir, contra outra, por isso mesmo a primeira ira diminui, sobretudo se a segunda for maior. Pois, a injúria que provocou a ira contra a primeira, será considerada pequena ou nula comparada com a segunda, julgada maior.

  1. 1. Q. 37, a. 2.
  2. 2. Q. 27, a. 4.
  3. 3. II Rhetoric. (cap. III).
  4. 4. II Rhetoric. (ibid).
  5. 5. II Orthod. Fid., cap. XXI.
  6. 6. Q. 44, a. 1.
  7. 7. V Moral. (cap XLV).
  8. 8. X De Trinit. (cap. XII).
  9. 9. Lib. II Orthod. Fid., cap. XVI.
  10. 10. VIII Ethic. (lect. V).
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