Category: Santo Tomás de Aquino
(III Sent., dis. XXXIV, q. 1, a. 4).
O quarto discute-se assim. — Parece que os prêmios das bem-aventuranças estão inconvenientemente enumerados.
1. — Pois, o reino dos céus, que é a vida eterna, contém todos os bens. Logo, não era preciso estabelecer outros prêmios além deles.
2. Demais. — O reino dos céus é posto como prêmio pela primeira e pela oitava bem-aventuranças. Logo, por igual razão, devia sê-lo por todas.
3. Demais. — As bem-aventuranças procedem por ordem ascendente, como diz Agostinho. Ora, os prêmios procedem por ordem descendente; assim, a posse da terra é menos que o reino dos céus. Logo, esses prêmios são enumerados inconvenientemente.
Mas, em contrário, é a autoridade do Senhor mesmo, que é quem propõe esses prêmios.
Solução. — Os prêmios em questão estão convenientíssimamente assinalados, considerada a condição das bem-aventuranças relativamente às três supra-assinaladas.
Pois, as três primeiras bem-aventuranças se fundam no afastamento do em que consiste a felicidade voluptuosa, que nós desejamos naturalmente mas, colocando-a não em Deus, onde deveríamos colocá-la, senão nos bens temporais, e caducos. E por isso os prêmios das três primeiras bem-aventuranças são relativos ao que muitos buscam na felicidade terrena. — Demais disso, os homens também buscam a excelência e a abundância dos bens exteriores, i. é, das riquezas e das honras. Ora, tudo isso compreende o reino dos céus, onde o homem consegue a excelência e a abundância dos bens, em Deus. E por isso o reino dos céus o Senhor tornou a prometê-lo aos pobres de espírito. — Alem disso, os homens duros e cruéis buscam a segurança própria destruindo os inimigos pelas lutas e guerras. Por isso, o Senhor prometeu ainda aos pacíficos a segura e quieta posse da terra dos vivos, por onde se exprime a solidez dos bens eternos. — Por fim, os homens buscam, na concupiscência e nos prazeres do mundo, consolação aos trabalhos da vida presente. E por isso o Senhor prometeu ainda o consolo da vida aos que choram.
Em seguida, as duas outras bem-aventuranças concernem às obras da felicidade ativa, que são as das virtudes que nos põem em relação com o próximo, de cujas obras muitos se retraem pelo amor desordenado dos próprios bens. E por isso o Senhor atribui a essas bem-aventuranças aqueles prêmios (como bens) por causa dos quais os homens delas se afastam. — Também, muitos abandonam a prática da justiça, não só não pagando o devido, mas até apoderando-se do alheio, para se enriquecerem de bens temporais. Por isso, o Senhor prometeu a saciedade aos que têm fome de justiça. — Também muitos abandonam a prática das obras de misericórdia, para não se imiscuírem com as misérias alheias. Por isso, o Senhor prometeu misericórdia aos misericordiosos, que os livrará de toda miséria.
Por fim, as duas últimas bem-aventuranças concernem à felicidade ou beatitude contemplativa. E por isso os prêmios se conferem conforme a conveniência das disposições incluídas no mérito. — Assim, a pureza dos olhos dispõe à visão clara por onde, aos puros de coração é prometida a visão de Deus. — Por outro lado, constituir a paz, em si mesmo ou entre os outros, manifesta que o homem é imitador do Deus da união e da paz. E por isso, como prêmio, lhe é dada a glória da filiação divina, consistente na perfeita união com Deus, pela sabedoria consumada.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como Crisóstomo diz, todos os prêmios em questão constituem um só na realidade — a felicidade eterna, que a inteligência humana não pode compreender. E por isso era necessário, pelos diversos bens que conhecemos, se dissesse a quem se faria a distribuição dos prêmios; observada a relação com os méritos.
Resposta à segunda. — Assim como a oitava bem-aventurança é quase o fundamento de todas, assim, devidos lhe são os prêmios de todas. Por onde, ocupa o primeiro lugar e se deve entender, por conseqüência, que todos os prêmios lhe são atribuídos. Ou, segundo Ambrósio, o reino dos céus é prometido aos pobres de espírito, quanto à glória da alma; e aos que sofreram perseguição no corpo, quanto à glória deste.
Resposta à terceira. — Também os prêmios diferem entre si por mais ou menos ricos. Assim, possuir a terra do reino dos céus é mais do que simplesmente tê-la; pois temos muitas coisas que não possuímos firme e pacificamente. Consolar-se no reino é mais do que tê-lo e possuí-lo, pois muitas coisas nós as possuímos com dor. Ser saciado é mais que simplesmente consolar-se; pois a sociedade implica a abundância da consolação. Mas a misericórdia ainda excede à sociedade, porque recebemos, por ela, mais do que merecemos ou podemos desejar. E, mais ainda é ver a Deus, assim como maior é quem, na corte, além de sentar-se à mesa do rei, vê-lhe a face. Por isso, na casa real, a maior dignidade é a do filho do rei.
(III Sent., dist. XXXIV, q. 1. a. 4; in Matth., cap.V).
O terceiro discute-se assim. — Parece que as bem-aventuranças são enumeradas inconvenientemente.
1. — Pois, são atribuídas aos dons, como já se disse. Ora, destes, uns, como a sabedoria e o intelecto, pertencem à vida contemplativa. Ora, não se enumera nenhuma bem-aventurança consistente no ato da contemplação, mas todas as enumeradas consistem na vida ativa. Logo, são enumeradas insuficientemente.
2. Demais. — À vida ativa pertencem não somente os dons executivos, mas também certos diretivos, como a ciência e o conselho. Ora, nenhuma das bem-aventuranças enumeradas implica diretamente o ato de ciência ou de conselho. Logo, são enumeradas insuficientemente.
3. Demais. — Na vida ativa, entre os dons executivos, a enumeração considera o temor como pertencente à pobreza e a piedade, à bem-aventurança da misericórdia. E nada inclui que implique diretamente a fortaleza. Logo, as bem-aventuranças são enumeradas insuficientemente.
4. Demais. — A Sagrada Escritura se refere a muitas outras bem-aventuranças; assim, um lugar diz (Jó 5, 17): Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige, e ainda (Sl 1, 1): Bem-aventurado o varão que não se deixou ir após o conselho dos ímpios e, por fim (Pr 3, 13): Bem-aventurado o homem que achou a sabedoria. Logo, as bem-aventuranças são enumeradas insuficientemente.
5. Mas, em contrário. — Parece que a enumeração é supérflua. Pois, ao passo que são só sete os dons do Espírito Santo, enumeram-se oito bem-aventuranças.
6. Demais. — São Lucas (Lc 6) enumera só quatro bem-aventuranças. Logo, São Mateus (Mt 5) enumera sete ou oito superfluamente.
SOLUÇÃO. — As bem-aventuranças estão convenientíssimamente enumeradas.
Para cuja evidência devemos considerar uma tríplice opinião a respeito da bem-aventurança. Assim, uns a fizeram constituir na vida voluptuosa; outros, na ativa; outros por fim, na contemplativa. Ora, estas três espécies de bem-aventurança se relacionam diferentemente com a futura beatitude, cuja esperança já faz sejamos considerados felizes nesta vida. Pois, a beatitude voluptuosa, sendo falsa e contrária à razão, é obstáculo à futura beatitude. A consistente na vida ativa dispõe para a beatitude futura. E a contemplativa, quando perfeita, constitui essencialmente a própria felicidade futura; se imperfeita, é uma incoação desta.
E por isso o Senhor enunciou, primeiro, certas bem-aventuranças que são quase removentes do impedimento da felicidade voluptuosa. Ora, esta consiste em duas coisas. — Primeiro, na afluência dos bens exteriores, quer riquezas, quer honras. Delas o homem se retrai, pela virtude, usando-as moderadamente; pelo dom, de modo mais excelente, desprezando-as totalmente. Por isso, Mateus assim enuncia a primeira bem-aventurança (Mt 5, 3): Bem-aventurados os pobres de espírito, referente ao desprezo das riquezas ou das honras, por meio da humildade. — segundo, em seguir as paixões próprias, do irascível ou do concupiscível. No primeiro caso, a virtude impede ao homem exceder-se, fazendo-o obedecer à regra da razão; e o dom, de modo mais excelente, tornando-o totalmente livre delas, por vontade divina. E por isso, a segunda bem-aventurança anuncia (Mt 5, 4): Bem-aventurados os mansos. No segundo caso, a virtude faz-nos usar moderadamente das paixões do concupiscível; e o dom leva-nos a rejeitá-las totalmente se for necessário; e até mesmo sendo necessário, deixando-se voluntariamente romper em lágrimas. E por isso a terceira bem-aventurança proclama: Bem-aventurados os que choram.
Por seu lado, a vida ativa consiste precípuamente em darmos ao próximo o que lhe devemos ou o com que espontaneamente o beneficiamos. No primeiro caso pela virtude da justiça damos-lhe o devido; e, por seu lado, o dom nos leva também a fazê-lo com afeto mais abundante, praticando, levados por ardente desejo, os atos de justiça, assim como quem tem fome e sede deseja ardentemente, a comida e a bebida. E por isso a quarta bem-aventurança proclama: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Quanto aos dons espontâneos, a virtude da liberalidade nos aperfeiçoa para darmos a quem a razão nos manda fazê-la, p. ex., aos amigos ou a outros que nos são chegados; mas o dom, pela reverência para com Deus só considera a necessidade nos casos em que são preferíveis os benefícios gratuitos. Donde o dizer Lucas (14, 12): Quando deres algum jantar ou alguma ceia, não chames nem teus amigos, nem teus irmãos, etc.; mas convida os pobres, os aleijados etc.; o que é propriamente ter misericórdia. E por isso a quinta bem-aventurança proclama: Bem-aventurados os misericordiosos.
Por fim a vida contemplativa ou constitui a própria beatitude final ou é dela uma incoação; e por isso, na enumeração das bem-aventuranças, não é considerada como mérito, mas como prêmio. Mas são considerados méritos os efeitos da vida ativa, que dispõem bem o homem para a contemplativa. Ora, no atinente às virtudes e aos dons, que aperfeiçoam o homem em si mesmo, os efeitos da vida ativa consistem na pureza do coração, i. é, em o coração do homem não andar inquinado de paixões. E por isso a sexta beatitude proclama: Bem-aventurados os limpos de coração. No atinente porém às virtudes e aos dons, que aperfeiçoam o homem nas suas relações com o próximo, o efeito da vida ativa é a paz, conforme aquilo de Isaías (32, 17): E a paz será a obra da justiça. E por isso a sétima bem-aventurança promete: Bem-aventurados os pacíficos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Os atos dos dons pertencentes à vida ativa manifestam-se nos próprios méritos; e os dos dons pertinentes à vida contemplativa, nos prêmios, pela razão já dita. Ora, ver a Deus corresponde ao dom do intelecto; e conformar-se com Deus como por uma filiação adotiva, ao dom da sabedoria.
Resposta à segunda. — No concernente à vida ativa o conhecimento não é necessário, em si mesmo, mas em vista da ação, como também, diz o Filósofo. E como a beatitude implica o que é último, entre as bem-aventuranças não se contam os atos elícitos provenientes dos dons dirigentes à vida ativa; assim, aconselhar é ato de conselho e julgar, de ciência. Mas se lhes atribuem os atos operativos, que eles dirigem; assim, à ciência, o chorar, e ao conselho, o compadecer-se.
Resposta à terceira. — Duas coisas podem se considerar na atribuição das bem-aventuranças aos dons. — A primeira é a conformidade da matéria. E a esta luz, todas as cinco primeiras bem-aventuranças podem atribuir-se à ciência e ao conselho como dirigentes; mas se incluem entre os dons executivos. E assim, a fome e a sede da justiça, e mesmo a misericórdia, concernem à piedade, que aperfeiçoam o homem nas suas relações para com os outros; a mansidão, porém, à fortaleza, conforme Ambrósio, dizendo que é próprio da fortaleza vencer a ira e coibir a indignação, pois a fortaleza se exerce sobre as paixões do irascível. Por seu lado, a pobreza e as lágrimas concernem ao dom do temor, pelo qual o homem se afasta da concupiscência e dos prazeres do mundo. — A segunda coisa a considerar são os motivos das bem-aventuranças. E, a esta luz são diversas as atribuições que lhes devemos fazer. Assim, precipuamente, à mansidão move a reverência para com Deus, relativa à piedade. Às lágrimas, move principalmente a ciência, que leva o homem a conhecer os seus defeitos e os das coisas mundanas, conforme aquilo da Escritura (Ecle 1, 18): o que acrescenta a ciência também acrescenta o trabalho. A ter fome das obras da justiça move principalmente a fortaleza de alma; e por fim, a ter misericórdia, move precìpuamente o conselho de Deus, conforme aquilo da Escritura (Dn 4, 24): segue, ó rei, o conselho que te dou, e rime os teus pecados com esmolas, e as tuas iniqüidades com obras de misericórdia para os pobres. E este modo de atribuição segue Agostinho.
Resposta à quarta. — É necessário admitir que todas as bem-aventuranças constantes da Escritura se reduzem às da enumeração vertente, quanto aos méritos ou quanto aos prêmios; pois, necessariamente, todas hão-de pertencer, de algum modo, à vida ativa ou à contemplativa. Por onde o lugar — Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige — pertence a bem-aventurança das lágrimas; o outro — Bem-aventurado o homem que achou a sabedoria — ao prêmio da sétima bem-aventurança. E o mesmo se poderá dizer de outros que se possam aduzir.
Resposta à quinta. — A oitava bem-aventurança é uma confirmação e manifestação de todas as precedentes. Pois, quem está firmado na pobreza do espírito e na mansidão e nas demais bem-aventuranças, não se afasta, por isso mesmo, desses bens por nenhuma perseguição. Por outro, a oitava bem-aventurança concerne, de certo modo, às sete precedentes.
Resposta à sexta. — Lucas narra que o sermão do Senhor foi feito às turbas. Por isso enumera as bem-aventuranças conforme a capacidade delas, que só conheciam a felicidade voluptuosa, temporal e terrena. Por onde, pelas quatro bem-aventuranças, o Senhor exclui as quatro coisas incluídas na felicidade de que acabamos de falar. — E destas quatro, a primeira é a abundância dos bens exteriores excluída pelo dito: Bem-aventurados os pobres, etc. — A segunda é o bem estar corpóreo, no que respeita à comida, à bebida e coisas semelhantes. E isto fica excluído pela segunda bem-aventurança. Bem-aventurados os que tem fome. — A terceira é o bem estar do homem quanto aos prazeres do coração; o que fica excluído pela terceira bem-aventurança: Bem-aventurados os que choram. — A quarta é o favorecimento externo dos homens, excluído pela quarta bem-aventurança: Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem. E como diz Ambrósio, a pobreza pertence à temperança, que não busca as seduções; a fome, à justiça, porque quem tem fome se compadece e, compadecendo-se, torna-se liberal; as lagrimas, à prudência, da qual é próprio chorar as coisas perecíveis; sofrer o ódio dos homens, à fortaleza.
(In Matth., cap.V).
O segundo procede-se assim. — Parece que os prêmios atribuídos as bem-aventuranças não pertencem a esta vida.
1. — Pois, como já se disse, chama-se felizes os que têm a esperança dos prêmios. Ora, o objeto da esperança é a felicidade futura. Logo, esses prêmios pertencem à vida futura.
2. Demais. — O Evangelho comina certas penas opostas as bem-aventuranças, quando diz (Lc 6, 25): Ai de vós os que estais fartos, porque vireis a ter fome. Ai de vós os que agora rides, porque gemereis e chorais. Ora, tais penas não as abrange a vida presente, pois freqüentemente os homens durante ela não são punidos, conforme àquilo da Escritura (Jó 21, 13): Eles passam os seus dias em prazeres. Logo, também os prêmios das bem-aventuranças não pertencem a esta vida.
3. Demais. — O reino dos céus, posto como prêmio da pobreza, é a beatitude celeste, conforme Agostinho. Ora, a plena saciedade só existirá na vida futura, consoante àquilo da Escritura (Sl 16, 15): saciar-me-ei quando aparecer a tua glória. Ora, a visão de Deus e a manifestação da divina filiação pertencem à vida futura, como consta da Escritura (1 Jo 3, 2): Agora somos filhos de Deus, e não apareceu ainda o que havemos de ser. Sabemos que quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele; porquanto nos outros o veremos bem como ele é. Logo, os prêmios de que tratamos pertencem à vida futura.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Tais coisas podem por certo existir completamente nesta vida, como cremos terem existido nos Apóstolos. Pois, aquela omnímoda transformação em forma Angélica, prometida para depois desta vida, não pode ser explicada por nenhumas palavras.
SOLUÇÃO. — Sobre os prêmios em questão manifestam-se diversamente os expositores da Sagrada Escritura. Uns, como Ambrósio dizem pertencerem todos à futura beatitude. Agostinho, porém, considera-os pertencentes à vida presente. Crisóstomo, por seu lado, nas suas Homilias, diz pertencerem uns à vida futura, e outros, à presente.
Para evidenciá-lo, devemos considerar que a esperança da futura beatitude pode existir em nós por duas razões: primeiro, por uma certa preparação ou disposição à futura beatitude, e isso se dá pelo mérito; ou, segundo, por uma incoação imperfeita da futura beatitude, nos varões santos, já nesta vida. Pois, uma é a esperança na frutificação da árvore, quando rondeja viridente, e outra, quando começam a aparecer os primeiros frutos.
Por onde, o nas bem-aventuranças concernente ao mérito, são umas preparações ou disposições à beatitude, perfeita ou incoada. E o concernente nelas aos prêmios, pode consistir ou na beatitude perfeita em si mesma, e então respeitar à vida futura, ou numa incoação da beatitude, como se dá com os santos varões, e então dizem respeito à vida presente. Pois, quem começa por progredir nos atos das virtudes e dos dons pode ter esperança de chegar à perfeição da via e da pátria.
Donde a resposta à primeira objeção. — A esperança pode recair sobre a beatitude futura, como sobre o último fim; pode também ter por objeto o auxílio da graça, como os meios, conforme aquilo da Escritura (Sl 27, 7): Em Deus esperou o meu coração e eu fui ajudado.
Resposta à segunda. — Embora às vezes os maus não sofram nesta vida penas temporais, as sofrem contudo espirituais: Por isso, diz Agostinho: Conforme mandaste, Senhor, a alma desregrada é para si mesma o seu castigo. E o Filósofo, falando dos maus: na alma deles domina a discórdia, que os arrasta, ora para aqui e ora, para lá; e depois, conclui: Se a tal ponto é miserável o ser mau, havemos de fugir intensamente a malícia. E semelhante e inversamente, embora os bons não recebam às vezes prêmios materiais nesta vida, nunca lhes hão-de faltar contudo os espirituais, já nesta vida, conforme aquilo da Escritura (Mt 19, 29 e Mc. 10, 30): recebereis, já neste século, o cêntuplo.
Resposta à terceira. — Todos os prêmios, de que se trata, se consumarão por certo, na vida eterna; mas de certo modo, enquanto lá não chegamos, começam já nesta vida. Pois, o reino dos céus, no dizer de Agostinho, pode ser entendido como o início da sabedoria perfeita, por já começar a reinar neles o espírito. Quanto à posse da terra, ela significa o bom afeto da alma repousando pelo desejo na estabilidade da herança perpétua, que é o significado de terra. São consolados nesta vida, participando do Espírito Santo, denominado Paráclito, i. é, Consolador. Ficam saturados, já no estado atual, do alimento de que diz o Senhor (Jo 4, 34): A minha comida é fazer eu a vontade de meu Pai. Também nesta vida os homens alcançam a misericórdia de Deus. Nela, purificada a visão pelo dom da inteligência, Deus pode de certo modo ser visto. Mesmo nesta vida, também os que pacificam os seus movimentos tornando-se mais semelhantes a Deus, são chamados seus filhos. Mas, sê-lo-ão mais perfeitamente, na pátria.
(III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 4: In Isaiam, cap. XI; In Matth., cap. V).
O primeiro discute-se assim. — Parece que as bem-aventuranças não se distinguem das virtudes e dos dons.
1. — Pois, Agostinho atribui as bem-aventuranças enumeradas em Mat., V, aos dons do Espírito Santo; ao passo que Ambrósio as atribui às quatro virtudes cardeais. Logo, as bem-aventuranças não se distinguem das virtudes e dos dons.
2. Demais. — A vontade humana só tem duas regras: a razão e a lei eterna, como já se disse. Ora, as virtudes aperfeiçoam o homem na ordem da razão; e os dons, na da lei eterna e do Espírito Santo, como do sobredito resulta. Logo, além das virtudes e dos dons, não pode haver mais nada concernente à retidão da vontade humana. Logo, as bem-aventuranças não se distinguem deles.
3. Demais. — Na enumeração das bem-aventuranças inclui-se a mansidão, a justiça e a misericórdia, consideradas como sendo virtudes. Logo, as bem-aventuranças não se distinguem dos dons e das virtudes.
Mas, em contrário, algumas das consideradas bem-aventuranças não são virtudes nem dons; tais a pobreza, o pranto e a paz. Logo, as bem-aventuranças diferem das virtudes e dos dons.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos, a bem-aventurança é o fim último da vida humana. Ora, considera-se como já possuindo o fim quem tem a esperança de obtê-lo. Donde, diz o Filósofo que as crianças se consideram felizes por causa da esperança; e o Apóstolo (Rm 8, 24): na esperança é que temos sido feitos salvos. Ora, a esperança de conseguir o fim resulta de nos movermos convenientemente para ele e dele nos aproximarmos, e isso se faz pelo agir. Ora, nós nos movemos para a bem-aventurança final e dela nos aproximamos, pelos atos virtuosos, e principalmente pela influência dos dons, se nos referimos à eterna beatitude, para a qual não basta a razão, mas é necessário o auxílio do Espírito Santo, para obedecer e seguir ao qual nos tornam aptos os dons. Logo, as bem-aventuranças distinguem-se das virtudes e dos dons, não como hábitos deles distintos, mas como os atos se distinguem dos hábitos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Agostinho e Ambrósio atribuem as bem-aventuranças aos dons e às virtudes, assim como os atos são atribuídos aos hábitos. Os dons porém são mais eminentes que as virtudes cardeais, como já dissemos. E por isso Ambrósio, explicando as bem-aventuranças propostas à multidão, as atribui às virtudes cardeais; ao passo que Agostinho, expondo as propostas aos discípulos no monte, como a mais perfeitos, atribui-as aos dons do Espírito Santo.
Resposta à segunda. — A objeção prova não haver, além das virtudes e dos dons, outros hábitos retificadores da vida humana.
Resposta à terceira. — A humildade é tomada pelo ato de mansidão. E o mesmo se deve dizer da justiça e da misericórdia. E embora estas se considerem virtudes, atribuem-se contudo aos dons, pois também estes aperfeiçoam os homens em relação aos mesmos objetos que as virtudes, como se disse.
Em seguida devemos tratar das bem-aventuranças.
E sobre esta questão, quatro artigos se discutem:
(III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 1, ad 5; De Virtut., q. 2, a. 2, ad 17).
O oitavo discute-se assim. — Parece que as virtudes têm preeminência sobre os dons.
1. — Pois, diz Agostinho, falando da caridade: Nenhum dom de Deus é mais excelente que este. É o único que separa os filhos do reino eterno, dos da eterna perdição. Há ainda outros dons do Espírito Santo, mas de nada servem sem a caridade. Ora, a caridade é uma virtude. Logo, a virtude tem preeminência sobre os dons do Espírito Santo.
2. Demais. — O que tem naturalmente prioridade tem também preeminência, Ora, as virtudes têm prioridade sobre os dons do Espírito Santo. Pois, Gregório diz: Os dons formam, antes de tudo, na mente que lhes é dócil, a prudência, a temperança, a fortaleza, e a justiça. E assim equilibra, em pouco, a mesma mente com as sete virtudes, i. é, dons, opondo, à estultícia, a sabedoria; ao embotamento, o intelecto, à precipitação, o conselho; ao temor, a fortaleza; à ignorância, a ciência; à dureza, a piedade; à soberba, o temor. Logo, as virtudes têm preeminência sobre os dons.
3. Demais. — Ninguém pode usar mal da virtude, como diz Agostinho. Ora, é possível usar mal dos dons; pois, como diz Gregório, imolamos a hóstia da nossa prece para a sabedoria não ensoberbecer; para o intelecto, sutilmente discorrendo, não aberrar; para o conselho, multiplicando-se, não confundir; para não se precipitar à fortaleza, gerando a confiança; para a ciência não inchar, conhecendo sem amar; para a piedade não transviar, afastando do caminho reto; para o temor, amedrontando mais do que é justo, não imergir no abismo do desespero. Logo, as virtudes são mais dignas que os dons do Espírito Santo.
Mas, em contrário, os dons são conferidos para fortalecer as virtudes contra os defeitos, como é claro pela citação aduzida. E assim, parece que aperfeiçoam o que as virtudes não podem aperfeiçoar. Logo, têm preeminência sobre elas.
SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta, distinguem-se três gêneros de virtudes: umas teologais; outras, intelectuais; outras, morais. As teologais unem a Deus a mente humana; as intelectuais aperfeiçoam a razão; enfim, as morais tornam apta as potências apetitivas a obedecer à razão. Ora, pelos dons do Espírito Santo todas as potências da alma se dispõem a submeter-se à moção divina.
Por onde, os dons estão para as virtudes teologais, que unem o homem ao Espírito Santo, que o move, como as virtudes morais estão para as intelectuais, perfectivo da razão, motora das virtudes morais. Assim, pois, como as virtudes intelectuais têm preeminência sobre as morais e as regulam, assim as teologais a têm sobre os dons do Espírito Santo, e os regulam. Donde o dizer Gregório: os sete filhos, i. é, os sete dons, não chegam à perfeição da dezena, senão fizerem tudo com fé, esperança e caridade.
Comparados, porém, com as demais virtudes intelectuais ou morais, os dons têm preeminência sobre as virtudes. Pois, aperfeiçoam as potências da alma, relativamente ao Espírito Santo, que move; ao passo que as virtudes aperfeiçoam ou a razão mesma, ou as demais potencias, relativamente à razão. Ora, é manifesto que quanto maior o motor, tanto mais perfeitamente disposto deve ser o móvel. Logo, os dons são mais perfeitos que as virtudes.
Donde a resposta à primeira objeção. — A caridade é uma virtude teologal, e concedemos tenha preeminência sobre os dons.
Resposta à segunda. — De dois modos pode-se entender a prioridade. — Primeiro, na ordem da perfeição e da dignidade; assim, o amor de Deus tem prioridade sobre o do próximo. E deste modo, os dons têm prioridade sobre as virtudes intelectuais e morais; posterioridade, porém, relativamente às virtudes teologais. — De outro modo, na ordem da geração ou disposição; assim, o amor do próximo precede, quanto ao ato, o amor de Deus. E assim, as virtudes morais e intelectuais precedem os dons; pois, estando bem disposto no que respeita à sua razão própria, o homem fica bem disposto no concernente a suas relações com Deus.
Resposta à terceira. — A sabedoria, o intelecto, e dons semelhantes, provêm do Espírito Santo, enquanto informados pela caridade, que não obra temerariamente, como diz a Escritura (1 Cor 13, 4). E, portanto, da sabedoria, do intelecto e de dons semelhantes ninguém pode usar mal, enquanto dons do Espírito Santo. Mas para não se afastarem da perfeição da caridade, um é fortificado pelo outro. E é isto que Gregório quer dizer.
(In Isaiam. Cap. XI).
O sétimo discute-se assim. — Parece que a dignidade dos dons não se funda na enumeração de Isaias.
1. — Pois, o mais importante dos dons é o que Deus exige, principalmente, do homem. Ora, o que dele Deus exige sobretudo é o temor, conforme a Escritura (Dt 10, 12): Agora, pois, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus; e ainda (Ml 1, 6): se eu sou vosso Senhor onde está o temor que se me deve? Logo, o temor, enumerado (Isaías) em último lugar não é o ínfimo, mas o máximo dos dois.
2. Demais. — A piedade é considerada como bem universal, conforme diz o Apóstolo (1 Tm 4, 8): a piedade para tudo é útil. Ora, o bem universal tem preferência sobre os bens particulares. Logo, a piedade, enumerada em penúltimo lugar, é o mais importante dos dons.
3. Demais. — A ciência aperfeiçoa o juízo do homem, ao passo que o conselho é próprio à perquirição. Ora, o juízo é superior a esta. Logo, a ciência é dom mais importante que o conselho, embora venha depois dele na enumeração.
4. Demais. — A fortaleza reside na potência apetitiva, e a ciência, na razão. Ora, esta é mais eminente que a potência apetitiva. Logo, também a ciência é dom mais eminente que a fortaleza, enumerada contudo em primeiro lugar. Portanto, a dignidade dos dons não depende da ordem da sua enumeração.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Parece-me que a septiforme operação do Espírito Santo, de que fala Isaías, concorda com os graus e as sentenças, mencionados por Mateus, V; Mas, difere na ordem, porque, em Isaías, a enumeração começa pelos dons mais elevados, e em Mateus, pelos inferiores.
SOLUÇÃO. — A dignidade dos dons pode ser considerada de dois modos: absolutamente, i. é, quanto aos próprios atos, enquanto procedentes dos seus princípios, ou relativamente i. é, quanto à matéria.
Ora, considerando absolutamente a dignidade dos dons, com eles sucede o mesmo que com as virtudes, pois os dons aperfeiçoam o homem para todos os atos das potências da alma, para os quais também as virtudes os aperfeiçoam, como já dissemos. Por onde, assim como as virtudes intelectuais têm preeminência sobre as morais, e dentre as próprias virtudes intelectuais, as contemplativas, como a sabedoria, o intelecto e a ciência, são superiores às ativas, como a prudência e a arte, de modo que a sabedoria tem preeminência sobre o intelecto e este, sobre a ciência, bem como a prudência e a sínese sobre a eubulia; assim também, os dons da sabedoria e do intelecto, da ciência e do conselho têm preeminência sobre a piedade, a fortaleza e o temor, tendo a piedade preeminência sobre a fortaleza, e esta sobre o temor, como a justiça tem preeminência sobre a fortaleza e esta, sobre a temperança.
Mas, quanto à matéria, a fortaleza e o conselho têm preeminência sobre a ciência e a piedade, porque a fortaleza e o conselho supõem o que é árduo, ao passo que a ciência e a piedade se exercem nos casos comuns.
Assim pois, a dignidade dos dons corresponde à ordem da enumeração, parte, absolutamente, enquanto a sabedoria e o intelecto têm preeminência sobre todos; e parte, quanto à ordem da matéria, enquanto o conselho e a fortaleza têm preferência sobre a ciência e a piedade.
Donde a resposta à primeira objeção. — O temor é exigido, principalmente, como um quase primórdio à perfeição dos dons, porque o temor do Senhor é princípio da sabedoria; e não por ser mais digno que os outros dons; mas, na ordem da geração, antes de praticarmos o bem, por influência dos demais dons, fugimos do mal, por influência do temor, como diz a Escritura (Pr 16, 6).
Resposta à segunda. — A piedade não a comparam as palavras do Apóstolo a todos os dons de Deus, mas só ao exercício corporal, sobre o qual já havia dito, que para pouco é proveitoso.
Resposta à terceira. — Embora a ciência, por causa do juízo, tenha preferência sobre o conselho, contudo este a tem, quanto à matéria. Pois, o conselho só se exerce quando se trata de coisas árduas, como se disse; ao passo que o juízo da ciência, em todos os casos.
Resposta à quarta. — Os dons diretivos, pertinentes à razão, são mais dignos que os dons executivos, se forem considerados em relação aos atos, enquanto procedentes das potências; pois, a razão tem preeminência sobre a potência apetitiva, como o que regula a tem sobre o regulado. Mas, quanto à matéria, o conselho se anexa à fortaleza como o diretivo ao executivo e, semelhantemente, a ciência à piedade; pois, o conselho e a fortaleza se exercem nos casos árduos, a ciência e a piedade, nos comuns. E portanto, o conselho, simultaneamente com a fortaleza, é enumerado, em razão da matéria, antes da ciência e da piedade.
(III Sent., dist. XXXIV. a. 3).
O sexto discute-se assim. — Parece que os dons do Espírito Santo não permanecem na pátria.
1. — Pois como diz Gregório, o Espírito Santo inspira a mente com os sete dons, contra todas as tentações. Ora, na pátria não haverá tentações, conforme aquilo da Escritura (Is 11, 9): Eles não farão dano algum, nem matarão em todo o meu santo monte. Logo, na pátria não haverá dons do Espírito Santo.
2. Demais. — Os dons do Espírito Santo são hábitos, como já se disse. Ora, os hábitos seriam vãos sem a existência dos atos; pois, diz Gregório: o intelecto faz-nos penetrar o que ouvimos, o conselho impede a precipitação, a fortaleza faz-nos não temer a adversidade, e a piedade enche até as vísceras do coração com obras de misericórdia. Ora, tudo isto não convém ao estado da pátria. Logo, no estado da glória não existirão tais dons.
3. Demais. — Certos dons, como a sabedoria e o intelecto, aperfeiçoam o homem, na vida contemplativa; outros, como a piedade e a fortaleza, na vida ativa. Ora, esta última se nos acaba com esta vida, como diz Gregório. Logo, no estado da glória, não existirão todos os dons do Espírito Santo.
Mas, em contrário, diz Ambrósio: A cidade de Deus ou a Jerusalém celeste não será banhada pelo percurso de nenhum rio terrestre; mas, o Espírito Santo, procedente da fonte da vida, de que nós nos saciamos com um breve hausto, afluirá mais abundante aos espíritos celestes, com uma correnteza plena e intumescida pelas sete virtudes espirituais.
SOLUÇÃO. — Podemos considerar os dons à dupla luz. — Quanto à essência, e então existirão perfeitíssimamente na pátria, como está claro no lugar aduzido de Ambrósio. E a razão é que os dons do Espírito Santo aperfeiçoam a mente humana para lhe seguir a moção, o que se dará principalmente na pátria, quando Deus for tudo em todos, como diz a Escritura (1 Cor 15, 28), e quando o homem estiver totalmente sujeito a Deus. — De outro modo, quanto à matéria sobre a qual operam; e então, na vida atual, operam sobre uma matéria sobre a qual não operarão, no estado da glória. E portanto não permanecerão na pátria, como já dissemos a propósito das virtudes cardeais.
Donde a resposta à primeira objeção. — No lugar aduzido, Gregório se refere aos dons próprios do estado presente, que nos protegem contra o ataque dos males. Mas, no estado da glória, cessados os males, seremos aperfeiçoados no bem pelos dons do Espírito Santo.
Resposta à segunda. — Gregório atribui, a cada um dos dons algo que passa com o estado presente, e algo que permanece na vida futura. Pois, diz, que a sabedoria fortifica a mente na esperança e na certeza das coisas eternas, e desses dois, a esperança passa, mas a certeza permanece. Do intelecto diz que, penetrando as coisas ouvidas, e fortificando o coração ilumina-lhe as trevas; ora, o que é ouvido passa porque, no dizer da Escritura (Jr 31, 34), não ensinará varão ao seu irmão; mas, a iluminação da mente permanecerá. Do conselho diz, que impede a precipitação, o que é necessário à vida presente; e, demais, que faz a alma abundar na razão, o que é necessário também na vida futura. Da fortaleza, que não teme as adversidades, o que é necessário na vida presente; e, demais, que alimenta a confiança, que permanece na vida futura. Da ciência só diz que elimina o jejum da ignorância, o que pertence ao estado presente; mas, o que acrescenta — no ventre da mente — pode-se entender, figuradamente, da plenitude do conhecimento, pertencente também ao estado futuro. Da piedade, que enche as vísceras do coração com as obras de misericórdia, o que, literalmente entendido, pertence só ao estado da vida presente; mas o mesmo afeto íntimo dos próximos, designado pela expressão — vísceras, pertence também ao estado futuro, em que a piedade não exibirá as obras de misericórdia, mas o afeto congratulatório. Do temor, que reprime a mente para que não se ensoberbeça com as coisas presentes, o que pertence ao estado atual; e que conforta com o alimento da esperança, para as coisas futuras, o que pertence, quanto à esperança, ao estado presente; mas pode também pertencer ao estado futuro, quanto ao conforto relativo ao que aqui esperamos e lá obteremos.
Resposta à terceira. — A objeção colhe quanto à matéria dos dons. Pois as obras da vida ativa não constituirão a matéria deles. Mas os atos de todas versarão sobre a vida contemplativa, que é a vida feliz.
(III Sent., dist. XXXVI, a. 3).
O quinto discute-se assim. — Parece que os dons não são conexos.
1. — Pois, diz o Apóstolo (1 Cor 12, 8): Porque a um pelo Espírito é dada a palavra de sabedoria; a outra porém a palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito. Ora, a sabedoria e a ciência se incluem entre os dons do Espírito Santo. Logo, esses dons são atribuídos a diversos e não tem conexão mútua, num mesmo sujeito.
2. Demais. — Agostinho diz, que muitos fiéis, embora possuam a fé, não possuem a ciência. Ora, a fé é acompanhada por algum dom, ao menos pelo temor. Logo, os dons não estão necessariamente conexos num mesmo sujeito.
3. Demais. — Gregório diz: a sabedoria será menor se estiver privada do intelecto, e este será muito inútil, se não subsistir pela sabedoria; vil é o conselho a que falta a robustez da fortaleza; e esta será completamente destruída, se não se apoiar no conselho; a ciência será nula se não tiver a utilidade da piedade; e esta será de todo inútil, se carecer do discernimento da ciência; e também o próprio temor, sem as virtudes supra enumeradas, deixará de servir a realização de qualquer boa ação. Por onde, podemos ter um dom sem ter os outros, Logo, os dons do Espírito Santo não são conexos.
Mas, em contrário, o que antes já havia dito Gregório: Nesse convívio de filhos, devemos perscrutar como se nutrem mutuamente. Ora, por filhos de Jó, de que agora fala, entendem-se os dons do Espírito Santo. Logo, estes são conexos por se alimentarem uns dos outros.
SOLUÇÃO. — A verdade sobre esta questão pode facilmente presumir-se do já dito. Pois, como já dissemos, assim como as potências apetitivas se dispõem, pelas virtudes morais, dependentemente do regime da razão, assim, todas as virtudes da alma se dispõem pelos dons, dependentemente da moção do Espírito Santo. Ora, este habita em nós pela caridade, conforme aquilo da Escritura (Rm 5, 5): a caridade de Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado, assim como a nossa razão se aperfeiçoa pela prudência. Por onde, assim como as virtudes morais se ligam umas às outras por meio da prudência, assim os dons do Espírito Santo, pela caridade, de modo tal que, quem tiver tem todos os dons do Espírito, e ninguém os pode ter sem a caridade.
Donde a resposta à primeira objeção. — Num sentido, a sabedoria e a ciência podem ser consideradas graças dadas gratuitamente; i. é, de modo tal que tenhamos tanta abundância do conhecimento das coisas divinas e humanas, que possamos instruir os fiéis e refutar os adversários. E é nesse sentido que o Apóstolo, no passo aduzido, considera a sabedoria e a ciência; sendo, por isso que, assinaladamente, se refere à palavra da sabedoria e da ciência. — Noutro sentido, essas palavras podem ser tomadas como exprimindo dons do Espírito Santo. E então, não significam senão certas perfeições da mente humana que a dispõem bem para seguir o instinto do Espírito Santo, no conhecimento das causas divinas e humanas. Por onde é claro que tais dons existem em todos os que têm caridade.
Resposta à segunda. — No lugar citado, Agostinho se refere à ciência, expondo o passo aduzido do Apóstolo. E por isso, ele a toma no primeiro sentido exposto, i. é, como graça dada gratuitamente. E isso é claro pelo que acrescenta: Uma coisa é saber só o que o homem deve crer para alcançar a vida feliz, que não é senão a eterna; outra, como há de proporcioná-lo às piedosas e defendê-lo contra os ímpios, e isto é ao que o Apóstolo chama propriamente ciência.
Resposta à terceira. — Assim como, de um modo, a conexão das virtudes cardeais se prova por se aperfeiçoarem, de certo modo, umas às outras, como já dissemos, assim também Gregório pretende provar a conexão dos dons por não poder um ser perfeito sem o outro. E por isso dissera antes: Cada uma das virtudes desaparecerá de todo, se não se auxiliarem todas entre si: Donde não se conclui que um dom possa existir sem os outros, mas que o intelecto não seria dom, se existisse sem a sabedoria, assim como sem a justiça, a temperança não seria virtude.
(IIª – IIªe, q. 8, a, 6; III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 2; In Isaiam, cap. XI).
O quarto discute-se assim. — Parece que os sete dons do Espírito Santo são inconvenientemente enumerados.
1. — Pois, nessa enumeração se incluem quatro elementos pertencentes às virtudes intelectuais: a sabedoria, o intelecto, a ciência e o conselho, pertencentes à prudência; e nela não se inclui nada relativo à arte, a quinta virtude intelectual. Semelhantemente, essa enumeração inclui a piedade, pertinente à justiça; o dom da fortaleza, pertencente à fortaleza, e nada inclui pertinente à temperança. Logo, os dons estão insuficientemente enumerados.
2. Demais. — A piedade faz parte da justiça. Ora, a enumeração inclui a fortaleza e não qualquer parte da mesma. Logo, também não devia incluir a piedade, mas, a justiça.
3. Demais. — As virtudes teologais se ordenam principalmente para Deus. Ora, como os dons aperfeiçoam o homem para se mover para Deus, à enumeração devia incluir também certos dons pertinentes às virtudes teologais.
4. Demais. — Assim como tememos a Deus, também o amamos, nele esperamos, com ele nos comprazemos. Ora, o amor, a esperança e o prazer são paixões que entram na mesma divisão do temor. Logo, se este é considerado como um dom, também dons haveriam de ser as três paixões.
5. Demais. — Ao intelecto se acrescenta a sabedoria, que o rege; à fortaleza, o conselho; à piedade, a ciência. Logo, também ao temor devia ser acrescentado algum dom diretivo; e, portanto, são inconvenientemente enumerados os sete dons do Espírito Santo.
Mas, em contrário, é a autoridade da Escritura (Is 11, 2-3).
SOLUÇÃO. — Como já dissemos, os dons são uns hábitos que tornam o homem apto a seguir prontamente o instinto do Espírito Santo, assim como as virtudes morais aperfeiçoam as potências apetitivas para obedecerem à razão. Ora, assim como é natural a estas serem movidas pelo império da razão, assim é natural a todas as potências humanas serem movidas pelo instinto de Deus, como por um poder superior. Logo, todas as potências, que podem ser princípios de atos humanos, i. é, a razão e a potência apetitiva, são susceptíveis tanto de virtudes como de dons. Ora, a razão ou é especulativa ou prática, e ambas consideram a apreensão da verdade, conducente a um conhecimento ulterior, e o juízo sobre a verdade. — Ora, para apreender a verdade, a razão especulativa é aperfeiçoada pelo intelecto, e a prática, pelo conselho. — E para julgar retamente, a especulativa é aperfeiçoada pela sabedoria, e a prática, pela ciência.
Por seu lado, a potência apetitiva, em nossas relações com outrem, é aperfeiçoada pela piedade; no referente a nós mesmos, pela fortaleza, no concernente ao temor dos perigos; e pelo temor, no relativo ao desejo desordenado dos prazeres, conforme aquilo da Escritura (Pr 15, 27): todo o homem evita o mal por meio do temor do Senhor; e (Sl 118, 120): Transpassa com o seu temor as minhas carnes, porque tenho temido os teus juízos.
Por onde é claro que os dons em apreço têm a mesma extensão que as virtudes, tanto intelectuais como morais.
Donde a resposta à primeira objeção. — Os dons do Espírito Santo aperfeiçoam o homem no concernente ao bem viver, o que não faz a arte, que se ocupa com as produções externas, pois ela é a razão reta das coisas factíveis, e não das ações, como se disse. Pode-se contudo dizer que, quanto à infusão dos dons, a arte pertence ao Espírito Santo, principal motor; e não, aos homens, que lhe servem como de instrumentos, enquanto por ele movidos. A temperança, por seu lado, responde, de certo modo, ao temor. Pois, assim como é próprio à virtude da temperança, por essência, fazer-nos preferir o bem da razão aos maus prazeres, assim é próprio ao dom do temor fazer-nos preferir o temor de Deus a esses maus prazeres.
Resposta à segunda. — A palavra — justiça — deriva da retidão da razão; e portanto convém-lhe mais a denominação de virtude que de dom. Ao passo que a piedade implica a reverência para com os pais e a pátria. E como Deus é Pai de todos os seres, também ao seu culto se chama piedade, como diz Agostinho. E, portanto, chama-se convenientemente piedade ao dom pelo qual, reverenciando a Deus, fazemos o bem para com todos.
Resposta à terceira. — A nossa alma não é movida pelo Espírito Santo se não se lhe estiver unida, de cedo modo; assim como o instrumento não é movido pelo artífice, senão por contato ou por qualquer outra união. Ora, a primeira forma de união se dá pela fé, pela esperança e pela caridade. Por onde, estas virtudes se pressupõem aos dons, sendo-lhes, como as raízes. E portanto, todos os dons pertencem a essas três virtudes, como derivações delas.
Resposta à quarta. — O amor, a esperança e o prazer têm o bem como objeto. Ora, o sumo bem é Deus. Por onde, os nomes dessas três paixões se transferem às virtudes teologais, pelas quais o homem se une a Deus. Ao passo que o objeto do temor é o mal, que em Deus de nenhum modo existe. Logo, ele não implica união com Deus, mas antes, afastamento de certas causas, pela reverência para com Deus, E portanto, não denomina nenhuma virtude teologal, mas um dom que nos retrai do mal, de modo mais eminente que a virtude moral.
Resposta à quinta. — A sabedoria dirige tanto o intelecto como o afeto do homem. E por isso se põem dois dons diretivos, correspondentes à sabedoria: para a inteligência, o dom do intelecto; para o afeto, o do temor. Pois, a razão de temer a Deus se funda precìpuamente na consideração da excelência divina, que a sabedoria considera.