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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 3 ― Se o vício, i. é, o hábito mau, é pior que o pecado, i. é, o ato mau.

O terceiro discute-se assim. ― Parece que o vício, i. é, o hábito mau, é pior que o pecado, i. é, o ato mau.
 
1. ― Pois, assim como tanto melhor é o bem, quanto mais diuturno, assim, quanto mais diuturno, tanto pior é o mal. Ora, o hábito vicioso é mais diuturno que os atos viciosos, rapidamente transitórios. Logo, o hábito é pior que o ato vicioso.
 
2. Demais. ― Muitos males são mais para se fugirem, que um só mal. Ora, o hábito mau é causa virtual de muitos atos maus. Logo, o hábito vicioso é pior que o ato vicioso.
 
3. Demais. ― A causa tem preeminência sobre o efeito. Ora, o hábito aperfeiçoa o ato, tanto na sua bondade como na sua malícia. Logo, tanto em relação a esta como àquela, o hábito tem preeminência sobre o ato.
 
Mas, em contrário. ― Somos justamente punidos por um ato vicioso; não porém por um hábito vicioso não atualizado. Logo, o ato vicioso é pior que o hábito vicioso.
 
SOLUÇÃO. ― O hábito ocupa posição média entre a potência e o ato. Ora, é manifesto que, tanto em relação ao bem como ao mal, o ato tem preeminência sobre a potência, conforme diz Aristóteles1; pois, é melhor agir bem que poder fazê-lo; e semelhantemente, merece maior vitupério agir mal, que poder fazê-lo. Donde também se segue que, tanto em relação à bondade como à malícia, o hábito ocupa um grau médio entre a potência e o ato; e assim, de um lado, o hábito, bom ou mau, tem preeminência, pela sua bondade ou malícia, sobre a potência, e, de outro, é dependente do ato. E isto bem claramente resulta de não se chamar bom ou mau o hábito senão por inclinar a um ato bom ou mau. Por onde, por causa da bondade ou da malícia do ato, dizemos que um hábito é bom ou mau. E assim o ato, tanto na sua bondade como na sua malícia, tem preeminência sobre o hábito, pois o que dá a um ser a sua vitalidade a tem com maior razão.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Nada impede que uma coisa tenha, absolutamente, preeminência sobre outra a qual é, de certo modo, inferior. Pois, absolutamente falando, julgamos superior o que tem preeminência sobre outra coisa, levando em conta o que, numa e noutra, é essencial; e relativamente falando, a que tem preeminência quanto ao que é, em ambas, acidental. Ora, como já demonstramos, da noção mesma de ato e de hábito resulta que aquele, tanto na sua bondade como na sua malícia, tem preeminência sobre este. E o ser o hábito mais diuturno que o ato resulta, acidentalmente, de que um e outro existe numa natureza tal que não pode agir sempre, e cuja ação se opera por um movimento transitivo. Logo, absolutamente falando, o ato, tanto na bondade como na malícia, tem preeminência; mas, o hábito a tem, relativamente.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. ― Um hábito não é constituído, de modo absoluto, de muitos atos, senão só de modo relativo, i. é, virtualmente. E por isso não se pode concluir daqui, que ele tenha, absolutamente, quanto à bondade ou à malícia, preeminência sobre o ato.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. ― O hábito é causa do ato, no gênero da causa eficiente; mas, este é causa daquele no gênero da causa final, apoiados na qual distinguimos as noções de bem e de mal. Logo, quanto à bondade e à malícia, o ato tem preeminência sobre o hábito.

  1. 1. IX Metaph., lect. X.

Art. 2 ― Se o vício é contrário à natureza.

 (Ad Roman., cap. I, VIII ; Ad Galat., cap. V, lect. VI).
 
O segundo discute-se assim ― Parece que o vício não é contrário à natureza.
 
1. ― Pois, o vício é contrário à virtude, como já se disse1. Ora, as virtudes não nos procedem da natureza, mas nos são causadas por infusão ou pelo costume, segundo já ficou dito2. Logo, os vícios não são contrários à natureza.
 
2. Demais. ― O que vai contra a natureza não é susceptível de costume; assim, a pedra nunca se acostuma a ser dirigida para cima, como diz Aristóteles3. Ora, certos se acostumam com os vícios. Logo, estes não são contrários à natureza.
 
3. Demais. ― Nada de contrário à natureza se encontra freqüentemente nos que a têm. Ora, freqüentemente se encontram homens viciosos; pois, no dizer do Evangelho (Mt 7, 13), larga é a porta que guia para a perdição, e muitos são os que entram por ela. Logo, o vício não é contra a natureza.
 
4. Demais. ― O pecado está para o vício como o ato para o hábito, conforme do sobredito4 se colhe. Ora, o pecado é definido: o dito, feito ou desejado contra a lei de Deus, segundo se vê claramente em Agostinho5. Ora, a lei de Deus é superior à natureza. Logo, devemos considerar o vício contrário, antes à lei do que à natureza.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho. Todo vício por si mesmo é contrário à natureza6.
 
SOLUÇÃO. ― Como já se disse7, o vício é contrário à virtude. Ora, a virtude de um ser consiste em ter a boa disposição conveniente à sua natureza, como já ficou dito8. Por onde e necessariamente, há vício sempre que um ser qualquer tem disposição contrária ao que lhe convém à natureza. E isso é causa de ser susceptível de vitupério; pois, no dizer de Agostinho, tem-se o nome de vitupério como derivado do vício9.
 
É mister, porém, considerar que a forma, que especifica o ser, lhe constitui por excelência a natureza. Ora, o homem é constituído na sua espécie pela alma racional. Portanto, o contrário à ordem racional colide propriamente com a natureza do homem como tal; e o que é conforme à razão o é também à sua natureza, em si mesma considerada. Ora, como diz Dionísio10, o bem do homem é estar de acordo com a razão, e o mal, é estar contra ela. Por onde, a virtude humana, que torna o homem bom e boa a sua obra, é-lhe conforme à natureza na medida em que lhe convém à razão; e o vício vai-lhe contra a natureza na medida em que encontra a ordem racional.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Embora as virtudes, na perfeição do seu ser, não sejam causadas pela natureza, inclinam contudo ao que a esta é conforme, i. é, ao que é conforme à ordem racional. Pois, diz Túlio, que a virtude é um hábito conforme à natureza, consentâneo com a razão11. E deste modo dizemos, que a virtude é conforme à natureza; entendendo-se, ao contrário, que o vício vai contra ela.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. ― No lugar citado, o Filósofo se refere ao contrário à natureza, no sentido de esta expressão se opor ao que procede da natureza; e não, como oposta ao que lhe é conforme, ao modo pelo qual dizemos, serem as virtudes conformes à natureza, por inclinarem ao que a esta convém.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. ― Tem o homem dupla natureza: a racional e a sensitiva. E como pela operação dos sentidos ele exerce o ato racional, mais são os sequazes das inclinações da natureza sensitiva, que da ordem da razão. Pois são em maior número os que admitem o princípio de uma coisa, do que aqueles que lhe chegam ao fim consumado. Donde, os vícios e pecados dos homens provêm de seguirem a inclinação da natureza sensitiva, contra a ordem racional.
 
RESPOSTA À QUARTA. ― Tudo o contrário à natureza do artificiado vai também contra a da arte, por meio da qual ele é produzido. Ora, a lei eterna está para a ordem da razão humana, como a arte para o artificiado. Por onde, pela mesma razão, o vício e o pecado são contrários, tanto à ordem da razão humana como à da lei eterna. E por isso Agostinho diz, que de Deus procede todas as naturezas o serem o que são; e são viciosas na medida em que se afastam da arte daquele pelo qual foram feitas12.  

  1. 1. Q. 71, a. 1.
  2. 2. Q. 63, a. 1, 2, 3.
  3. 3. II Ethic. (lect. I).
  4. 4. Q. 71, a. 1.
  5. 5. XXII Contra Faustum (cap. XXVII).
  6. 6. III De lib. Arb. (cap. XIII).
  7. 7. Q. 71, a. 1.
  8. 8. Ibid.
  9. 9. III De lib. Arb. (cap. XIV).
  10. 10. IV cap. De div. nom. (lect. XXII).
  11. 11. Rhetorica (lib. II De invent., cap. LIII).
  12. 12. III De lib. Arb. (cap. XV).

Art. 1. ― Se o vício é contrário à virtude.

O primeiro discute-se assim. ― Parece que o vício não é contrário à virtude.
 
1. ― Pois, a unidade é contrária à unidade, como Aristóteles o prova1. Ora, à virtude é contrário o pecado e a malícia. Logo, não o vício, pois este nome também se dá à indébita disposição dos membros corpóreos ou à de quaisquer outras coisas.
 
2. Demais. ― Virtude designa uma certa perfeição da potência. Ora, o vício não designa nada de pertinente à potência. Logo, não é contrário à virtude.
 
3. Demais. ― Como diz Túlio, a virtude é uma como saúde da alma2. Ora, à saúde se opõe, mais que o vício, a doença ou moléstia. Logo, o vício não é contrário à virtude.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o vício é uma qualidade que torna má a alma; ao passo que a virtude é uma qualidade que torna bom quem a tem3, como do sobredito resulta4. Logo, o vício é contrário à virtude.
 
Solução. ― Duas coisas podemos considerar na virtude: a sua essência mesma e aquilo a que ela se ordena. À essência é susceptível o ser considerada diretamente e nas suas conseqüências. ― Diretamente considerada, implica uma certa disposição do sujeito que se comporta segundo a sua natureza. Donde o dito do Filósofo: a virtude é uma disposição do perfeito para o ótimo; e chamo perfeito ao que é disposto segundo a natureza5. ― Considerada nas suas conseqüências, a virtude é uma certa bondade, pois, a bondade de uma coisa consiste em comportar-se de modo conveniente à sua natureza.
 
E quanto àquilo a que ela se ordena, a virtude é um ato bom, como do sobredito6 claramente se colhe.
 
Por onde, segundo estas considerações, à virtude se contrapõe tríplice oposição. ― Uma é a do pecado, oposto àquilo a que a virtude ordena, pois, propriamente, ele implica um ato desordenado, assim como o ato da virtude é ordenado e devido. ― Em seguida, a malícia se opõe à virtude, que por essência, implica uma certa bondade. ― Ao passo que o vício se opõe à essência direta da virtude; pois, o vício de qualquer coisa consiste em ela não ter a disposição que lhe convém à natureza. Donde o dizer Agostinho: Chama vício ao que vires faltar à perfeição da natureza7.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― As três oposições referidas não contrariam a virtude, à mesma luz. Mas, o pecado lhe é contrário, enquanto ela obra o bem; a malícia, enquanto é uma certa bondade; e o vício, propriamente, enquanto virtude.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. ― A virtude implica não somente a perfeição da potência, que é o princípio da ação, mas também, a devida disposição do sujeito. E isto porque cada ser obra enquanto atual. Por onde, o que deve obrar o bem há-de por força ter em si mesmo boa disposição. E a esta luz o vício se opõe à virtude.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. ― Como diz Túlio, as doenças e as enfermidades são partes da natureza viciosa8. Assim, chama-se doença à corrupção de todo o corpo, como a febre ou coisa semelhante; ao passo que enfermidade é a doença acompanhada de fraqueza; e o vício supõe o dissídio entre as partes do corpo. A doença corpórea porém às vezes existe sem a enfermidade, como quando estamos interiormente mal dispostos, sem que se nos fique impedida a atividade habitual; ao passo que, na alma, conforme diz o mesmo autor, esses dois fenômenos não podem ser separados senão mentalmente. Pois necessariamente, sempre que estamos de interior mal disposto e nutrindo um afeto desordenado, tornamo-nos fracos para obrar como devemos, porque pelo fruto é que a árvore se conhece, i. é, pelas obras, o homem, como diz o Evangelho (Mt 12, 33). Ao passo que o vício da alma, conforme diz Túlio no mesmo lugar, é um hábito ou afeto da mesma, inconstante, durante toda a vida e dissentindo de si mesma. O que se dá ainda sem doença ou enfermidade, como quando, por ex., pecamos por fraqueza ou paixão. Por onde, vício diz mais que enfermidade ou doença, assim como também virtude diz mais que saúde, pois esta se inclui naquela9. Logo, mais convenientemente se opõe o vício à virtude que a enfermidade à doença.

  1. 1. X Metaph. (lect. V).
  2. 2. IV De Tuscul. Quaest. (cap. XIII).
  3. 3. De perfectione iustitiae (c. II).
  4. 4. Q. 55, a. 3, 4.
  5. 5. VII Physic. (lect. V).
  6. 6. Q. 56, a. 3.
  7. 7. III De lib. Arb. (cap. XIV).
  8. 8. IV De tuscul. Quaest. (loc. cit.).
  9. 9. VII Physic. (lect. V).

Questão 71: Dos vícios e dos pecados em si mesmos.

Em seguida devemos tratar dos vícios e dos pecados. E, sobre esta questão há seis pontos a considerar. Primeiro, dos vícios e dos pecados em si mesmos. Segundo, da distinção deles. Terceiro, da comparação deles entre si. Quarto, do sujeito do pecado. Quinto, da sua causa. Sexto, do seu efeito.
 
Sobre o primeiro ponto discutem-se seis artigos:

 

Art. 4 — Se os frutos do Espírito Santo contrariam as obras da carne, que o Apóstolo enumera.

(Ad. Galat., cap. V. Lect VI).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que os frutos do Espírito Santo não contrariam as obras da carne, que o Apóstolo enumera.
 
1. — Pois, os contrários pertencem ao mesmo gênero. Ora, as obras da carne não se chamam frutos. Logo, os frutos do Espírito Santo não as contrariam.
 
2. Demais. — A unidade é contrária à unidade. Ora, o Apóstolo enumera mais obras da carne que frutos do Espírito Santo. Logo, os frutos do Espírito e as obras da carne não se contrariam.
 
3. Demais. — Entre os frutos do Espírito Santo enumera-se em primeiro lugar a caridade, a alegria e a paz, a que não correspondem as obras da carne enumeradas em primeiro lugar, a saber, a fornicação, a imundícia e a impudicícia. Logo, os frutos do Espírito Santo não contrariam as obras da carne.
 
Mas, em contrário, o Apóstolo diz no mesmo lugar (Gl 5, 17): a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne.
 
SOLUÇÃO. — As obras da carne e os frutos do Espírito Santo podem ser considerados em dois sentidos. — Primeiro, de um modo geral, e então os frutos do Espírito Santo são contrários às obras da carne. Pois, o Espírito Santo move o coração humano ao que é racional, ou antes, supra-racional; ao passo que o apetite da carne que é sensitivo, arrasta para os bens sensíveis, inferiores ao homem. Por onde, assim como os movimentos para cima e para baixo são contrários, na ordem da natureza, assim, nas obras humanas, as obras da carne são contrárias aos frutos do Espírito.
 
De outro modo, podemos considerar os frutos enumerados e as obras da carne, em particular. E assim, não é necessário que cada um daqueles se contraponha a cada uma destas; pois, como já se disse1, o Apóstolo não pretende enumerar todas as obras espirituais nem todas as carnais. Contudo, fazendo uma certa adaptação, Agostinho contrapõe a cada obra, cada fruto. Assim, à fornicação, que é o amor pela satisfação da sensualidade fora do legítimo conúbio, opõe-se a caridade pela qual a alma se une com Deus, na qual também consiste a verdadeira castidade. As imundícias que são perturbações oriundas da fornicação, opõe-se a alegria da tranqüilidade. A servidão dos ídolos, que faz guerra contra o Evangelho de Deus, opõe-se à paz. Aos venefícios, inimizades e contenções, animosidades, emulações e dissenções opõem-se: a longanimidade, para suportar os males dos homens entre os quais vivemos; a benignidade, para curá-los; a bondade, para perdoá-los. Às heresias se opõe a fé; à inveja, a mansidão; à embriaguez e à intemperança no comer, a continência2.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O procedente da árvore, contra a natureza da mesma, não se lhe considera fruto, mas corrupção. Ora, como as obras virtuosas são conaturais, e as viciosas, contrárias à razão, as primeiras se chamam frutos, e não as segundas.
 
Resposta à terceira. — O bem só existe de um modo, e o mal de muitos, como diz Dionísio3. Por isso, a uma mesma virtude se opõem muitos vícios; não sendo pois, de admirar se se enumeram mais obras da carne do que frutos do Espírito Santo.
 
Resposta à quarta. — Resulta clara do que foi dito.

  1. 1. Q. 70, a. 3, ad 4.
  2. 2. Super. Epist. ad Galatas.
  3. 3. De divin. Nom. (lect. XXII).

Art. 3 — Se o Apóstolo enumera convenientemente os doze frutos.

(III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 5; Ad Galat., cap. V. Lect VI).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que o Apóstolo enumera inconvenientemente, os doze frutos.
 
1. — Pois, noutro lugar, diz que só há um fruto da vida presente (Rm 6, 22): tendes o vosso fruto em santificação. E noutra parte se diz (Is 27, 9): todo este fruto se reduz a que seja tirado o seu pecado. Logo, não se devem enumerar doze frutos.
 
2. Demais. — O fruto nasce da semente espiritual, como já se disse1. Ora, o Senhor enumera um tríplice fruto da terra boa nascido da semente espiritual: centésimo, sexagésimo e trigésimo. Logo, não se devem enumerar doze frutos.
 
3. Demais. — O fruto, por essência, vem por último e é deleitável. Ora, isto não se verifica em todos os frutos enumerados pelo Apóstolo; assim a paciência e a longanimidade supõem o que causa pena; e por outro lado, a fé não vem por último, mas antes é, por essência, o fundamento primeiro. Logo, a enumeração dos frutos, em questão peca por excesso.
 
Mas, em contrário. — Parece que a enumeração é insuficiente e deficiente. Pois, como já se disse, todas as bemaventuranças podem se chamar frutos. Ora, a enumeração não as abrange a todas, pois nada compreende pertinente ao ato da sabedoria e de muitas outras virtudes. Logo, essa enumeração dos frutos é insuficiente.
 
SOLUÇÃO. — A enumeração dos doze frutos feita pelo Apóstolo é correta e podem eles ser expressos pelos doze frutos de que fala a Escritura (Ap 22, 2): duma e de outra parte do rio, estava a árvore da vida, que dá doze frutos. Como porém se chama fruto ao procedente de algum princípio, como de princípio ou de raiz, a distinção dos frutos em questão deve-se fundar nos diversos modos por que procedem em nós os frutos do Espírito Santo. Ora, essa processão implica, primeiro, que o coração humano se ordene, em si mesmo; segundo, que se ordene para o que lhe está ao lado; terceiro, para o que lhe é inferior.
 
Ora, o coração do homem fica, em si mesmo, bem disposto quando se comporta como deve tanto em relação ao mal como ao bem. Ora, a primeira disposição da mente humana para o bem se opera pelo amor, a primeira e a raiz de todos os afetos, como já dissemos2. E por isso, o primeiro enumerado dos frutos do Espírito Santo é a caridade, pela qual ele se dá em própria semelhança, sendo Amor; donde o dizer o Apóstolo (Rm 5, 5): a caridade de Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado. Ora, do amor de caridade resulta necessariamente a alegria, pois todo amante se alegra estando unido ao amado. Ora, a caridade tem sempre presente a Deus, a quem ama, segundo aquilo da Escritura (1 Jo 4, 16): Aquele que permanece na caridade permanece em Deus e Deus, nele. Logo, a conseqüência da caridade é a alegria. Mas, a perfeição da alegria é a paz, de dois modos. Primeiro, quanto à tranqüila libertação das perturbações exteriores; pois não pode gozar perfeitamente do bem amado quem sofre perturbação exterior, no gozo do mesmo. E por isso o coração perfeitamente pacificado num gozo, por nada pode ser molestado, pois considera tudo o mais como quase não existente; por onde, diz a Escritura (Sl 118, 165): Gozam minha paz os que amam a tua lei, e não há para ele tropeço, i. é, por não serem perturbados pelas causas exteriores, a ponto de não gozarem de Deus. Segundo, quanto à satisfação do desejo volúvel, pois não gozamos suficientemente quando não nos satisfaz o objeto do nosso gozo. Ora, ambos esses casos implicam a paz, de modo que não sejamos perturbados pelas causas externas e descansemos os nossos desejos num só objeto. Por onde, em terceiro lugar é enumerada a paz, depois da caridade e da alegria. Por outro lado, o coração se comporta como deve em relação ao mal, de dois modos. Não se perturbando com os males eminentes, por meio da paciência. Segundo, não se perturbando com a dilação dos bens, por meio da longanimidade; pois o estar privado do bem implica o mal, como se disse3.
 
Em seguida, quanto ao que está ao nosso lado, i. é, quanto ao próximo, nosso coração se dispõe bem, pela bondade, no atinente à vontade de bem fazer. Segundo, pela benignidade, no que respeita à execução da beneficência; pois, chamam-se benignos aqueles que a bondade ígnea do amor faz arder no beneficiar ao próximo. Terceiro, quanto a tolerar com equanimidade os males que o atingem, por meio da mansidão, que coíbe a ira. Quarto, não só não fazendo mal ao próximo, pela ira, mas nem pela fraude ou pelo dolo. E isto o conseguimos pela , tomada em sentido de fidelidade; mas considerada como crença em Deus, ela nos ordena ao que nos é superior, fazendo-nos sujeitar o intelecto a Deus, e por conseqüência tudo o que possui.
 
Enfim, em relação ao que nos é inferior bem nos dispomos: primeiro, quanto aos atos externos, pela modéstia, observando o comedimento em tudo o que dizemos e fazemos. Quanto à concupiscência interna, pela continência e pela castidade, distinguindo-se uma da outra, porque esta nos priva do ilícito e aquela, do lícito; quer, porque o continente sofre a concupiscência sem ser por ela vencida, ao passo que o casto nem a sofre nem é por ela vencido.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A santificação se opera por todas as virtudes que também purificam os pecados. Por isso os lugares aduzidos nomeiam o fruto na sua unidade genérica; Mas ele se divide em muitas espécies, e isso faz considerarmos muitos frutos.
 
Resposta à segunda. — Os frutos centésimo, sexagésimo e trigésimo não se diversificam pelas diversas espécies de atos virtuosos, mas pelos diversos graus de perfeição, mesmo de uma virtude. Assim se diz que a continência conjugal está expressa no fruto trigésimo; a da viuvez, no sexagésimo; e a virginal, no centésimo. E ainda de outros modos, os Santos Doutores distinguem três frutos evangélicos relativos aos três graus das virtudes; sendo esses três graus relativos à perfeição de todas as coisas, que se funda no princípio, no meio e no fim.  
 
Reposta à terceira. O mesmo não se perturbar nas tristezas implica o prazer. E a fé, mesmo considerada como fundamento, é algo de último e deleitável, por incluir a certeza. Por isso a Glosa expõe: A fé, i. é, a certeza do invisível.
 
Resposta à quarta. — Como diz Agostinho, o Apóstolo, no lugar aduzido não quis, ensinar quais são as obras da carne ou os frutos do Espírito Santo, senão mostrar em que gênero aquelas devem ser evitadas e estes, buscados. Por onde mais ou menos frutos podiam ter sido enumerados. E contudo, todos os atos dos dons e das virtudes podem, com certa conveniência, ser reduzidos aos enumerados, enquanto todas as virtudes e dons hão de, necessariamente, ordenar o coração de algum dos modos preditos. Assim, os atos da sabedoria e de qualquer dos dons, que ordenam para o bem se reduzem à caridade, à alegria e à paz. Mas o Apóstolo preferiu esta enumeração à outra, por implicar o que ela abrange a fruição dos bens ou a quietação dos males, o que está incluído na essência do fruto.

  1. 1. Q. 70, a. 1.
  2. 2. Q. 27, a. 4.
  3. 3. V Ethic. (lect. V).

Art. 2 — Se os frutos diferem das bemaventuranças.

(Ad Galat., cap. V, lect. VI; In Isaiam, cap. XI).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que os frutos não diferem das bem-aventuranças.
 
1. — As bem-aventuranças se atribuem aos dons, como já se disse1. Ora, os dons aperfeiçoam o homem, movido pelo Espírito Santo. Logo, as próprias bem-aventuranças são frutos do Espírito Santo.
 
2. Demais. — O fruto da vida eterna está para a bem-aventurança futura, que é a da posse, assim como o da vida presente para as bem-aventuranças da vida atual, que são esperadas. Ora, o fruto da vida eterna é a mesma bem-aventurança futura. Logo, os da vida presente são as bem-aventuranças mesmas.
 
3. Demais. — É da essência do fruto ser algo de último e deleitável. Ora, isto é também da essência da bem-aventurança, como já se disse2. Logo, fruto e bem-aventurança têm a mesma essência, e portanto não devem ser distintos entre si.
 
Mas, em contrário. — Onde há espécies diversas há sujeitos diversos. Ora, os frutos e as bemaventuranças dividem-se em partes diversas, como a enumeração daqueles e destes claramente o mostra. Logo, os frutos diferem das bemaventuranças.
 
SOLUÇÃO. — A noção de bem-aventurança tem compreensão maior que a de fruto. Pois, para a deste basta que venha por último e seja deleitável; ao passo que aquela exige, ulteriormente, a perfeição e a excelência. Por onde, todas as bem-aventuranças podem ser consideradas frutos, mas não inversamente. Assim, são frutos todas as obras virtuosas com que nos deleitamos; ao passo que são bem-aventuranças só as obras perfeitas que também, em razão mesma da sua perfeição, se atribuem mais aos dons que às virtudes, como já se disse3.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção prova que as bem-aventuranças são frutos, não porém que todos os frutos sejam bem-aventuranças.
 
Resposta à segunda. — O fruto da vida eterna é último e perfeito, absolutamente, e portanto em nada se distingue da futura bem-aventurança. Os frutos da vida presente, porém, não são últimos e perfeitos, absolutamente; e portanto, nem todos os frutos são bem-aventuranças.
 
Resposta à terceira. — A bem-aventurança tem, por essência, algo mais que a essência do fruto, como se disse.

  1. 1. Q. 69, a. 3, ad 1.
  2. 2. Q. 3, a. 1; q. 4, a. 1.
  3. 3. Q. 69, a. 1 ad 1.

Art. 1 — Se os frutos do Espírito Santo, enumerados pelo Apóstolo em Galat. V, são atos.

(Ad Galat., cap. V, lect VI).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que os frutos do Espírito Santo, enumerados pelo Apóstolo, não são atos.
 
1. — Pois, o que produz fruto não deve ser considerado como tal, porque então iríamos ao infinito. Ora, há um fruto proveniente dos nossos atos, conforme aquilo da Escritura (Sb 3, 15): o fruto dos bons trabalhos é glorioso; e ainda (Jo 4, 36): o que sega recebe galardão e ajunta fruto para a vida eterna. Logo, os nossos atos não podem, em si mesmos ser considerados frutos.
 
2. Demais. — Como diz Agostinho, gozamos como os objetos conhecidos, como os quais a própria vontade se compraz e neles descansa1. Ora, a nossa vontade não deve descansar nos nossos atos em si mesmos considerados. Logo, estes não devem ser considerados frutos.
 
3. Demais. — Entre os frutos do Espírito Santo são enumeradas pelo Apóstolo certas virtudes, a saber, a caridade, a mansidão, a fé e a castidade. Ora, as virtudes não são atos, mas hábitos, como já dissemos2. Logo, os frutos não são atos.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Mt 12, 33): pelo fruto é que a árvore se conhece, i. é, o homem, pelas suas obras, como o expõem os Santos Doutores. Logo, os atos humanos em si mesmos chama-se frutos.
 
SOLUÇÃO. — O nome fruto foi transferido das coisas corpóreas para as espirituais. Ora, corporalmente falando, fruto é o produzido pela planta chegada ao seu pleno desenvolvimento, e traz em si uma certa suavidade. E fruto, neste sentido, mantém dupla relação: com a árvore produtora e com a pessoa que dela o colhe. Por onde, neste duplo sentido também esse nome pode ser espiritualmente considerado; primeiro, denominando fruto do homem o que ele produz como se fosse uma árvore; e depois, assim chamando o que o homem colhe.
 
Mas, nem tudo o que ele colhe pode ser considerado fruto, senão só o que é último e inclui em si a deleitação. Pois, pode o homem possuir um campo ou uma árvore, que não se consideram frutos, senão só o que ele entende colher deles, como resultado último. E neste sentido chama-se fruto do homem ao seu último fim, do qual ele deve fruir.
 
Se porém considerarmos fruto do homem o que ele produz, então frutos se consideram os seus atos, em si mesmos. Pois, a obra é um ato segundo de quem obra, e traz consigo o prazer, se mantiver conveniência com o seu autor. Se pois o ato proceder da faculdade racional do homem, será chamado fruto da razão. Se porém proceder do homem por uma virtude mais alta, a do Espírito Santo, então, chamar-se-á ao ato do homem fruto do Espírito Santo, procedente de uma quase semente divina, conforme àquilo da Escritura (1 Jo 3, 9): Todo o que é nascido de Deus não comete o pecado, porque a semente de Deus permanece nele.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Como o fruto é, de certo modo, o que vem em último lugar e é o fim, nada impede haver fruto de outro fruto, assim como um fim pode se ordenar a outro. Assim pois as nossas obras, enquanto certos efeitos do Espírito Santo, que obra em nós, podem ser consideradas frutos; mas enquanto ordenadas ao fim da vida eterna, são antes flores. Por isso, diz a Escritura (Ecle 24, 23): as minhas flores são frutos de honra e de honestidade.
 
Resposta à segunda. — De dois modos podemos entender que a vontade se deleita com um objeto, em si mesmo considerado. A expressão em si mesmo ou exprime a causa final, e então ninguém se deleita a não ser com o último fim; ou a causa formal, e então podemos nos deleitar em tudo o que é formalmente deleitável. Assim, um enfermo se compraz com a saúde em si mesma considerada, como fim; com um remédio suave, não como fim, mas como com o que tem sabor deleitável; e com um remédio desagradável só por causa de outro fim e, de nenhum modo em si mesmo. Por onde, devemos concluir que o homem deve se deleitar em Deus, em si mesmo, como último fim; e com os atos virtuosos, não como fins, mas por causa da honestidade que contém, agradável aos virtuosos. Por isso Ambrósio diz, que os atos virtuosos se chamam frutos, porque com santa e pura deleitação confortam os que os praticam3.
 
Resposta à terceira. — Os nomes das virtudes são às vezes tomados, pelos atos das mesmas; assim, como diz Agostinho, a fé consiste em crer o que não vês4; e a caridade é o movimento da alma para amar a Deus e ao próximo5. E deste modo são aplicados os nomes das virtudes, na enumeração dos frutos.

  1. 1. X De trinit., cap. X.
  2. 2. Q. 55, a. 1.
  3. 3. lib. De Paradisco, cap. XIII.
  4. 4. Tract. XL in Ioan.
  5. 5. Lib. III De doct. Christ., cap. X.

Questão 70: Dos frutos do Espírito Santo.

Em seguida devemos tratar dos frutos.
 
E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Creio na Vida eterna

167 — É muito conveniente que a declaração das verdades que devemos crer termine por este artigo — “Creio na Vida eterna” — porque a vida eterna é também a meta final de todos os nossos desejos.
 
Opõe-se essa verdade àqueles que afirmam que a alma morre com o corpo. Se esta afirmação fosse verdadeira o homem teria a mesma condição dos animais, e aos que a fazem, aplica-se isto escrito nos Salmos: “O homem posto em honrarias, não compreende as coisas. Pode ser comparado aos animais estúpidos, e a eles se assemelha” (Sl 48, 21).
 
A alma humana pela imortalidade, assemelha-se a Deus; pela sensualidade, assemelha-se aos animais. Por conseguinte, quem pensa que a alma morre com o corpo perde a semelhança de Deus e nivela-se aos animais. Tem ainda contra essas palavras o Livro da Sabedoria: “Não esperaram da justiça divina o prêmio de recompensa, nem consideraram a glória dada às almas Santas; porque Deus criou o homem para a imortalidade, e o criou segundo a imagem da própria natureza” (Sb 2, 22-23).
 
168 — Vamos agora considerar em que consiste a Vida eterna, (e, após, no que consiste a morte eterna).
 
Convém saber, em primeiro lugar, que na Vida eterna o homem se une a Deus, já que é próprio de Deus o prêmio e a finalidade de todos os nossos trabalhos aqui na terra. Lê-se: “Eu sou o teu protetor e a tua recompensa será grande” (Gn 15, 1). Esta comunhão consiste na perfeita visão1. Lê-se: “Agora nós vemos como que por um espelho, mas lá, face a face” (1 Cor 13, 12). Consiste ela também no supremo louvor, como diz Santo Agostinho: “Veremos, amaremos e louvaremos” (De Civ. Dei, 22). Lê-se ainda na Escritura: “Haverá gozo e alegria, ação de graças e vozes de louvor” (Is 51, 3).
 
169 — Sabemos que na Vida eterna, em segundo lugar, há a perfeita saciedade dos desejos. A razão disto é que ninguém pode, nesta vida, ter os seus desejos satisfeitos, e nunca um bem criado sacia o desejo humano de felicidade. Somente Deus o pode saciar, e o faz excedendo infinitamente. Por isso esse desejo não é satisfeito senão em Deus, conforme escreve Santo Agostinho: “Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto até que repouse em Vós” (Conf. I). Como os santos na pátria possuirão perfeitamente a Deus, evidentemente o seu desejo será saciado e ainda ultrapassado em glória. Eis porque se lê no Evangelho: “Entra no gozo do teu Senhor” (Mt 25, 21). Santo Agostinho acrescenta ainda: “Não é o gozo pleno que penetrará nos que o irão desfrutar, mas estes é que entrarão plenamente no gozo”. Lê-se também na Escritura: “Serei saciado quando entrar na vossa glória” (Sl 16, 15); e: “Aquele que enche de bens o teu desejo” (Sl 102, 5).
 
170 — Tudo o que há de deleitável, haverá aí plena e superabundantemente. Se os deleites é que foram desejados, aí haverá o sumo e perfeito deleite, porque é o deleite proveniente da posse do sumo bem, de Deus. Lê-se: “Então colocarás as tuas delícias no Onipotente” (Jó 22, 26).
 
Se as honras é que foram desejadas, aí haverá todas elas.
 
O leigo deseja acima de tudo ser Rei; o clérigo, Bispo.
 
Ambas as honras aí estarão. Lê-se: “Fizestes de nós reis e sacerdotes para o nosso Deus” (Ap 15, 10). Lê-se também no Livro da Sabedoria, a respeito da vida dos justos após a morte: “Ei-los considerados filhos de Deus” (Sb 5, 5).
 
Se a ciência é que foi desejada, haverá aí a ciência perfeita, porque conheceremos a natureza de todas as coisas e toda a verdade., bem como tudo que desejávamos saber. Mais. Tudo o que desejávamos possuir, o possuiremos na Vida eterna. Lê-se: “Com ela, todos os bens vieram igualmente a mim” (Sb 7, 11); e: “Aos justos será dado o que desejaram” (Pr 1, 33).
 
171 — A Vida eterna consiste, em terceiro lugar, na perfeita segurança. Neste mundo não há segurança perfeita, por que, quanto mais se possuem muitos bens e quanto mais alguém se eleva, tanto mais se enche de temor e necessita de mais coisas. Não haverá, porém, na Vida eterna, nem tristeza, nem trabalhos, nem temor. Lê-se: “Afastado o temor dos males, gozarão da abundância” (Pr 1, 33).
 
172 — Consiste a Vida eterna, em quarto lugar, na sociedade alegre de todos os bem-aventurados, na mais deleitável das sociedades, porque cada qual possuirá todos os bens em comunhão com os outros. Cada um amará o outro como a si mesmo; por isso, alegrar-se-á com o bem alheio, como se fosse o seu. Desse modo, quanto mais crescerem o gozo e a alegria de um, tanto mais aumentará o gozo de todos, conforme está escrito: “É na grande alegria para todos habitar em Vós” (Sl 86, 7).
 
173 — Tudo o que aqui foi descrito, os justos terão na pátria, e, além disso, muitos outros bens inefáveis.
 
Quanto aos maus, isto é, os que irão para a morte eterna, as suas dores e castigos não serão em menores proporções que o gozo e a alegria dos bons2.
 
174 — É excessiva a pena dos maus, em primeiro lugar, pela separação de Deus e pela privação de Deus e pela privação de todos os bens. Esta é a pena do dano, que corresponde a aversão à Deus, maior que a pena dos sentidos3. Lê-se: “Lançai o servo inútil nas trevas exteriores” (Mt 15, 30). Os maus, nesta vida, possuem as trevas interiores, isto é, pecado; no inferno, estarão nas trevas exteriores.
 
É excessiva a pena dos maus, em segundo lugar, pelo remorso da consciência. Lê-se: “Repreender-te-ei e colocar-te-ei diante de ti mesmo” (Sl 49, 21); e: “Gemendo estão sob a pressão do próprio espírito” (Sb 49, 21). Todavia tais sofrimentos e gemidos serão inúteis, porque não provêm do ódio do mal, mas da dor do castigo.
 
É acrescida ainda mais, em terceiro lugar, a pena dos maus, pela fortíssima pena dos sentidos, que atormentará a alma e o corpo. É um castigo dolorosissimo, conforme relatam os santos. Os condenados estarão sempre como que morrendo, mas jamais morrerão, e até sem a possibilidade de morrerem. Por isso a condenação é chamada de morte eterna. Estarão os condenados sofrendo sempre no inferno dores terríveis como as que envolvem os moribundos. Lê-se: “Como ovelhas foram colocados no inferno, e a morte os devorará” (Sl 48, 15).
 
Aumenta ainda mais a pena, em quarto lugar, com o desespero da salvação. Se a elas fosse dada, esperança de libertação da pena, a pena ficaria, por certo, mitigada.
 
Mas como toda esperança lhes foi tirada, a pena torna-se pesadíssima. Lê-se: “O verme que os corrói não morrerá, e o fogo que os queima não se extinguirá” (Is 66, 24).
 
175 — Evidencia-se, desse modo, a diferença entre fazer o bem e fazer o mal: as boas obras conduzem à vida, as más, porém, arrastam para a morte.
 
Deveríamos sempre revocar no espírito todas essas verdades, porque, o fazendo, seríamos estimulados para fazer o bem, e para repelir o mal.
 
De modo concludente e muito significativo colocou-se no término do Credo a Vida eterna, para que ela fique cada vez mais gravada em nosso espírito, para a qual nos conduza Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus bendito pelos séculos dos séculos.
 
AMÉM.

  1. 1. É verdade de fé que os justos no céu verão a Deus na sua própria natureza, conforme está revelado na Sagrada Escritura: “Ve-lO-emos como Ele é” (1 Jo 3, 2). A felicidade da Vida eterna consiste essencialmente nesta visão da essência divina, direta (“face a face” — 1 Cor 13, 12), imediata, intuitiva. Todas as outras recompensas e alegrias do céu derivam desta. As explicações teológicas a respeito da visão beatífica, apresenta-os o Doutor Angélico na Suma Teológica, I parte, questão XII. A afirmação do dogma da visão beatifica, a inteligência humana por si mesma não poderia chegar, pois se trata de uma verdade sobrenatural. S. Tomás começa mostrando a possibilidade da visão beatifica, devendo a felicidade do homem consistir na atividade de sua suprema perfeição, que é a atividade da inteligência, que encontra a sua máxima plenitude só na visão de Deus. Em seguida, afirma que esta visão não pode ser tida mediante alguma criatura semelhança de Deus, mas que “à essência divina se une ao intelecto criado como objeto atualmente conhecido que por si mesmo faz que a inteligência esteja em ato” (I. 12, 2 ad 3). Como a inteligência humana por si mesma não pode ver a Deus, necessita de uma força especial que a eleve, uma graça criada que a disponha para a visão eterna que é denominada “lumen gloriae”. Não o meio “in quo” Deus é visto, mas o meio “quo” (I.c. 5 ad 2). A visão da essência divina não é compreensiva, mas apreensiva, isto é, apesar de haver intuição, a inteligência humana não esgota toda a realidade cognoscível de Deus. Com muita precisão exprime isso S. Tomás: “quem vê a Deus por essência vê que Ele possui uma maneira infinita de ser e que é infinitamente cognoscível; mas este modo infinito de conhecer não lhe compete, isto é, que o conheça infinitamente” (I. c. 7 ad 3).
  2. 2. Como a glória eterna consiste na visão de Deus e no pleno amor de Deus, a condenação no inferno consiste na ausência desta visão de Deus e no ódio a Ele. À “perfectissima charitas” do céu, corresponde o “perfectissimo odium” do inferno (Sup. 98, 4 c.). Como não poderão pensar em Deus como princípio do bem, mas apenas como princípio da própria punição (I. c. art. 8c), os condenados às penas eternas odiarão a Deus, como odeiam à própria punição (I c. art. 5c). Toda a vontade dos condenados está dirigida para o mal, de modo que nada querem do bem como bem, e, “mesmo que algum bem queiram, contudo não o querem bem” (I. c. 1c). Nos condenados também não pode haver esperança, isto é, nada de bom podem esperar, nem sair do estado de condenação, nem esperar felicidade (cf. II. II. 18, 3c). contudo, neles pode haver fé informe, que se torna um hábito ineficaz e corrompido (cf. I. c. ad. 2)
  3. 3. Ver nota 34.
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