Category: Santo Tomás de Aquino
(II Sent., dist. XXIV, q. 3 a. 3).
O quinto discute-se assim. ― Parece que o pecado não pode existir na razão.
1. ― Pois, o pecado de uma potência é um defeito da mesma. Ora, o defeito na razão não é pecado, mas antes, excusa dele; assim, a ignorância nos desculpa do pecado. Logo, na razão não pode haver pecado.
2. Demais. ― O sujeito primeiro do pecado é a vontade, como já se disse (a. 1). Ora, a razão, sendo a que dirige a vontade, tem precedência sobre ela. Logo, não pode haver pecado na razão.
3. Demais. ― Não pode haver pecado senão relativamente ao que existe em nós. Ora, a perfeição e a deficiência da razão não são coisas que estejam em nós; assim, certos têm a razão deficiente ou solerte. Logo, não há pecado na razão.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o pecado reside na razão inferior e na superior.
SOLUÇÃO. ― O pecado de uma potência consiste no ato da mesma, como do sobredito resulta (a. 1, 2, 3). Ora, a razão é suscetível de duplo ato. Um lhe pertence por si mesma e é relativo ao seu objeto próprio, que é conhecer a verdade. O outro lhe pertence enquanto diretiva das outras potências. ― Ora, de um e de outro modo pode haver pecado na razão. Do primeiro, quando ela erra no conhecimento da verdade; em cujo caso o pecado lhe é imputado, se nutria ignorância ou erro no tocante ao que podia ou devia saber. Do segundo, quando impera, ou também não reprime, após a deliberação, os atos desordenados das potências inferiores.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― A objeção procede, relativamente ao defeito da razão, pertinente ao seu ato próprio, que lhe respeita o objeto próprio. E então, quando há defeito do conhecimento daquilo que não podemos saber, esse defeito não é pecado, mas antes, o excusa; e tal é o caso dos atos cometidos pelos loucos. Se porém o defeito da razão disser respeito ao que podemos e devemos saber, então não ficamos totalmente isentos de pecado, mas esse defeito mesmo nos é imputado como pecado. O defeito porém, que só está em dirigir as outras potências, sempre nos é imputado como pecado, porque pelo próprio ato podíamos obviar a ele.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― Como já dissemos (q. 17, a. 1), quando tratamos dos atos da vontade e da razão, a vontade, de certo modo, move a razão e a precede; mas também esta, de certo modo, precede àquela. Por onde, o movimento da vontade pode ser chamado racional, e o ato racional, voluntário. E a esta luz, a razão é suscetível de pecado, quer por ser o seu defeito voluntário, quer por ser ela princípio do ato da vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― Resulta clara do que ficou dito.
(II Sent., dist. XXIV; q. 3, a. 2, ad 3; De Verit., q. 25, a. 5; De Malo, q. 7, a. 6; Quodl. IV, q. 11, a. 1)
O quarto discute-se assim. ― Parece que na sensualidade pode haver pecado mortal.
1. ― Pois, o ato é conhecido pelo seu objeto. Ora, podemos pecar mortalmente em relação aos objetos da sensualidade; assim, relativamente aos prazeres da carne. Logo, um ato da sensualidade pode ser pecado mortal, que portanto, pode existir na sensualidade.
2. Demais. ― O pecado mortal é contrário à virtude. Ora, esta pode existir na sensualidade; pois, a temperança e a fortaleza são virtudes das partes irracionais, como diz o Filósofo. Logo, na sensualidade pode haver pecado mortal, pois é natural dos contrários coexistirem no mesmo sujeito.
3. Demais. ― O pecado venial é uma disposição para o mortal. Ora, a disposição e o hábito coexistem no mesmo sujeito. Mas, existindo o pecado venial na sensualidade, como já se disse, nela também pode existir o mortal.
Mas, em contrário, diz Agostinho, e está na Glosa da Escritura, o movimento desordenado da concupiscência, i. é, o pecado da sensualidade, pode existir também nos que estão em graça, nos quais, entretanto, não existe pecado mortal. Logo, o movimento desordenado da sensualidade não é pecado mortal.
SOLUÇÃO. ― Assim como a desordem corruptora do princípio da vida corpórea causa a morte do corpo, assim a que corrompe o princípio da vida espiritual, que é o fim último, causa a morte espiritual do pecado mortal, como já dissemos (q. 72, a. 5). Ora, ordenar alguma coisa para o fim não pertence à sensualidade, mas só à razão. Por outro lado, o afastar-se do fim também só pertence a quem pode ordenar para ele. Logo, o pecado mortal não pode existir na sensualidade, mas, só na razão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― O ato da sensualidade pode concorrer para o pecado mortal; mas o ato deste não é mortal pelo que há nele de sensualidade, senão pelo que tem de racional, pois, à razão compete ordenar para o fim. Por onde, o pecado mortal não se atribui à sensualidade mas à razão.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― O ato virtuoso não o é completamente só pelo que há nele de sensualidade; mas antes, pelo que contém de razão e de virtude, à qual é próprio o escolher; pois, o ato da virtude moral não vai sem a eleição. Por onde e sempre, esse ato, moralmente virtuoso, que aperfeiçoa a potência apetitiva, é acompanhado do ato da prudência, que aperfeiçoa a potência racional. E o mesmo se dá também com o pecado mortal, como já dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A disposição mantém tríplice relação com o sujeito disposto. Às vezes, ambos se identificam e coexistem no mesmo sujeito; assim, dizemos que a ciência incoada é a disposição para a ciência perfeita. Outras vezes, coexistem no mesmo sujeito, mas não se identificam; assim, o calor é a disposição para a forma ígnea. Outras vezes enfim nem se identificam, nem coexistem no mesmo sujeito, como se dá com coisas que se ordenam umas para as outras, de modo a ser um meio para se chegar à outra; assim, a bondade da imaginação é uma disposição para a ciência, existente no intelecto. Ora, deste modo, o pecado venial, existente na sensualidade, pode ser uma disposição para o pecado mortal, residente na razão.
(II Sent., dist. XXIV, q. 3, a. 2; De Verit., q. 25, a. 5; De Malo q. 7, a. 6; Quodl. IV q. 11, a. 1)
O terceiro discute-se assim. ― Parece que na sensualidade não pode haver pecado.
1. ― Pois, o pecado é próprio do homem, louvado ou vituperado, conforme os seus atos. Ora, a sensualidade nos é comum com os brutos. Logo, não pode nela haver pecado.
2. Demais. ― Ninguém peca pelo que não pode evitar, como diz Agostinho. Ora, o homem não pode evitar o desordenado do ato da sensualidade; pois esta se funda numa radical corrupção, enquanto vivemos esta vida mortal; e por isso, ela é representada pela serpente, no dizer de Agostinho. Logo, a desordem do movimento sensual não é pecado.
3. Demais. ― O que não fazemos não se nos pode imputar como pecado. Ora, considera-se como feito por nós mesmos o que fazemos com deliberação racional, conforme diz o Filósofo. Logo, o movimento da sensualidade, onde não há deliberação racional, não se nos pode imputar como pecado.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 7, 19): Porque eu não faço o bem que quero; mas faço o mal, que não quero, o que Agostinho refere ao mal da concupiscência, que sabemos ser um movimento da sensualidade. Logo, esta é suscetível de pecado.
SOLUÇÃO. ― Como já dissemos (a. 2), pode haver pecado em qualquer potência, cujo ato pode ser voluntário e desordenado; e nisso consiste a essência do pecado. Ora, é manifesto, que o ato da sensualidade pode ser voluntário, na medida em que a ela, i. é, ao apetite sensitivo, lhe é natural ser movido pela vontade. Donde se conclui que na sensualidade pode haver pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Certas virtudes da parte sensitiva, embora nos sejam comuns com os brutos, têm contudo em nós, alguma excelência, por coexistirem com a razão. Assim, superiores a eles, temos, na parte sensitiva, a cogitativa e a reminiscência, como dissemos na Primeira Parte (q. 78, a. 4). E deste modo também o nosso apetite sensitivo, superior ao dos brutos, tem certa excelência, a saber, o lhe ser natural obedecer à razão. E a esta luz, pode ser princípio do ato voluntário e, por conseqüência, sujeito do pecado.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― A radical corrupção da sensualidade deve ser entendida quanto ao aguilhão do pecado, que nunca se embota totalmente nesta vida; pois, passado quanto ao reato, o pecado original permanece atual. Mas essa corrupção, do atrativo pelo pecado, não impede possamos, com vontade racional, reprimir todos movimentos desordenados da sensualidade, quando pressentidos; por exemplo, desviando o pensamento para outros objetos. Mas, enquanto o fazemos, pode surgir em nós algum movimento desordenado, no tocante ao primeiro objeto. Assim, quando, querendo evitar o movimento da concupiscência, transferimos o pensamento, dos prazeres carnais, para a especulação científica, pode surgir, às vezes em nós algum movimento de vã glória não premeditado. Por onde, não podemos evitar todos esses movimentos, por causa da referida corrupção. Mas já basta, só por si, para a essência do pecado voluntário, que possamos evitar cada um desses movimentos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― O que fazemos sem deliberação racional não o fazemos perfeitamente; porque nisso não atua nada do que em nós é principal. Por onde, o nosso ato não é um ato humano perfeito. E por conseqüência, não pode haver, no caso, um ato perfeito mais só imperfeito, de virtude ou pecado. Por isso o movimento da sensualidade, que surpreende a razão, é pecado venial, algo de imperfeito no gênero pecado.
(IIa IIae, q. 10, a. 2; II Sent., dist. XLI, q. 2, a. 2; De Malo q. 7, a. 6)
O segundo discute-se assim. ― Parece que só a vontade é sujeito do pecado.
1. ― Pois, como diz Agostinho, só pela vontade é que pecamos. Ora, o pecado está, como no sujeito, na potência pela qual pecamos. Logo, só a vontade é sujeito do pecado.
2. Demais. ― O pecado é um mal contrário à razão. Ora o bem e o mal da razão constituem o objeto só da vontade. Logo, só esta é o sujeito do pecado.
3. Demais. ― Todo pecado é um ato voluntário; pois, como diz Agostinho, o pecado é voluntário a ponto tal que, se não o for, não será pecado. Ora, os atos das outras potências não são voluntários senão na medida em que são movidas pela vontade. Mas isto não basta para serem sujeitos do pecado; porque, do contrário, sujeitos do pecado também seriam os membros corpóreos, que são movidos pela vontade; o que é manifestamente falso. Logo, só a vontade é sujeito do pecado.
Mas, em contrário. ― O pecado é contrário à virtude. Ora, os contrários não podem coexistir no mesmo sujeito. Mas, as outras potências da alma, além da vontade, também são sujeitos das virtudes, conforme já se estabeleceu (q. 66, a. 3, 4). Logo, nem só a vontade é sujeito do pecado.
SOLUÇÃO. ― Como do sobredito claramente se colhe (a. 1), tudo o que é princípio do ato voluntário é sujeito do pecado. Ora, consideram-se atos voluntários não só os elícitos da vontade, mas também os imperados por ela, como já dissemos (q. 6, a. 4), quando tratamos do voluntário. Por onde, não só a vontade pode ser sujeito do pecado, mas também todas as potências que, por ela, podem ser levadas para os seus atos, ou, por ela mesma, afastadas deles. E também essas potências são sujeitos dos hábitos morais bons ou maus, pois atos e hábitos têm o mesmo sujeito.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Não pecamos senão pela vontade, considerada esta como primeiro motor; mas pecamos também pelas outras potências, como por ela movidas.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― O bem e o mal residem na vontade como sendo por si mesmos objetos dela. Mas as outras potências são suscetíveis de algum bem e algum mal determinado; em virtude disso, pode nelas existir virtude, vício e pecado, na medida em que participem da vontade e da razão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― Os membros do corpo não são princípios dos atos mas somente órgãos; por isso são o como escravo da alma motora, que é mandado e não manda. Ao passo que as potências apetitivas interiores se relacionam com a razão, como livres, por mandarem, de certo modo, e serem mandadas, como claramente resulta do que diz Aristóteles. E além disso, os atos dos membros corpóreos são ações transeuntes para a matéria exterior; como bem claramente o mostra o ferimento mortal, no pecado de homicídio. Por isso o símile não colhe.
O primeiro discute-se assim. ― Parece que a vontade não pode ser sujeito do pecado.
1. ― Pois, como diz Dionísio, o mal é contrário à vontade e à intenção. Ora, o pecado constitui um mal. Logo, não pode existir na vontade.
2. Demais. ― A vontade busca o bem ou a aparência dele. Ora, querendo o bem, não peca; e o querer o bem aparente, que não é verdadeiramente bem, pertence a uma deficiência, antes, da virtude apreensiva, que da vontade. Logo, nesta o pecado de nenhum modo existe.
3. Demais. ― Não se pode identificar o sujeito e a causa eficiente do pecado; porque a causa eficiente e a material não têm a mesma incidência, como diz Aristóteles. Ora, a vontade é causa eficiente do pecado; pois, no dizer de Agostinho, a primeira causa do pecado é a vontade. Logo, esta não é sujeito do mesmo.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que, pela vontade, pecamos e vivemos retamente.
SOLUÇÃO. ― Como já dissemos (q. 21, a. 1; q. 71, a. 1, 6), o pecado é um ato. Ora, há atos transitivos para a matéria exterior, como queimar e cortar. E a matéria e o sujeito desses é aquilo sobre o que lhes recai a ação; assim, o Filósofo diz, que o movimento é o ato do móvel, procedente do motor. Outros atos porém não são transeuntes para a matéria exterior, mas permanecem no agente, como desejar e conhecer; e esses são todos atos morais, quer sejam de virtudes, quer de pecados. Por onde e necessariamente, o sujeito próprio do ato pecaminoso é a potência, que é princípio do mesmo. Ora, como é próprio dos atos morais o serem voluntários, segundo já estabelecemos (q. 1, a. 1; q. 18, a. 6, 9), resulta que a vontade, princípio dos atos voluntários, bons ou maus, que são os pecados, é princípio destes. Donde se conclui, que o pecado está na vontade como no sujeito.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Diz-se que o mal é contrário à vontade, porque esta não tende para ele, como tal. Mas como há males que são bens aparentes, a vontade deseja às vezes algum mal; e deste modo há nela mal.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― Se a deficiência da faculdade apreensiva de nenhum modo dependesse da vontade, seguir-se-ia a não existência do pecado, nem nesta nem naquela, como é o caso dos que laboram em ignorância invencível. Donde se conclui que também a deficiência da faculdade apreensiva, dependente da vontade, contribui para o pecado.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A objeção colhe no atinente às causas eficientes, cujas ações, transitivas para a matéria exterior, não se movem a si mesmas, mas a outros móveis. Ora, o contrário se dá com a vontade. Logo, a objeção não procede.
Em seguida devemos tratar do sujeito dos vícios ou dos pecados. E sobre esta questão discutem-se dez artigos:
(Infra, q. 89, a. 3; De Malo, q. 7, a. 10, a. 5; Ad Hebr., cap. X, lect. III)
O décimo discute-se assim. ― Parece que a grandeza da pessoa que peca não agrava o pecado.
1. ― Pois, o que sobretudo nos engrandece é a nossa união com Deus, conforme aquilo da Escritura (Ecle 15, 13): Que grande é aquele que acha a sabedoria e a ciência! Porém com tudo isso não tem vantagem sobre aquele que teme o Senhor. Ora, quanto mais nos unimos a Deus tanto menos se nos imputa um ato como pecado; pois, diz ainda a Escritura (2 Pr 30, 18): O Senhor que é bom será propício para todos os que buscam de todo o seu coração o Senhor Deus de seus pais, e ele lhes não imputará nenhuma falta de não estarem bem purificados. Logo, o pecado não é agravado pela grandeza da pessoa do pecador.
2. Demais. ― Não há para com Deus acepção de pessoas, como diz o Apóstolo (Rm 2, 11). Logo, por um mesmo pecado, não pune mais um, que outro. Logo, não se agrava o pecado pela grandeza da pessoa do pecador.
3. Demais. ― Ninguém deve sofrer incômodo pelo bem que possui. Ora, sofrê-lo-ia se, por isso, mais se lhe imputasse em ato culposo. Logo, pela grandeza da pessoa que peca não se agrava o pecado.
Mas, em contrário, diz Isidoro: Conhecemos que o pecado é tanto maior quanto maior é considerada a pessoa que peca.
SOLUÇÃO. ― Há dupla espécie de pecados. ― Uns nascem em nós sub-repticiamente, assim os radicados na debilidade da nossa natureza. E estes menos se imputam a quem tem maior virtude, porque se descuida menos de os reprimir, embora livrar-se deles completamente não o permita a nossa natureza enferma. Outros porém procedem da deliberação anterior. E estes tanto mais são imputáveis a uma pessoa quanto maior lhe for a grandeza. E isto pode dar-se por quatro razões. Primeira, porque os maiores, como os mais eminentes pela ciência e pela virtude, podem resistir mais facilmente ao pecado. E por isso o Senhor diz (Lc 13, 47): àquele servo que soube a vontade de seu senhor, e não se apercebeu, dar-se-lhe-ão muitos açoites. ―A segunda é a ingratidão; porque todo bem que nos engrandece é benefício de Deus, a quem somos ingratos, pecando. E a esta luz qualquer grandeza, mesmo de bens temporais, agrava o pecado, conforme aquilo da Escritura (Sb 6, 7): os poderosos serão poderosamente atormentados. ―A terceira se funda na repugnância entre o ato do pecado e a grandeza da pessoa; assim, se violar a justiça o príncipe, que dela deve ser o guarda; e se fornicar o sacerdote, votado à castidade. ― A quarta, no exemplo ou escândalo; pois, como diz Gregório, o exemplo aumenta veementemente a culpa, quando o pecador é honrado por causa da reverência ao seu grau. E também os pecados dos grandes chegam ao conhecimento de muitos, que os suportam com maior indignação.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― A autoridade aduzida se refere ao que praticamos com negligência, pela sub-reptícia debilidade da nossa natureza.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― Deus não faz acepção de pessoas se pune mais as maiores; pois, a grandeza delas aumenta a gravidade dos pecados, como já dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― O homem de grande posição não sofre pelo bem que tem, mas, pelo mau uso do mesmo.
(IIa IIae, q. 65, a. 4; III, q. 80, a. 5; 1 Cor., cap. XI, lect. VII)
O nono discute-se assim. ― Parece que o pecado não se agrava conforme a condição da pessoa contra quem pecamos.
1. ― Pois, se assim fosse, ele se agravaria sobretudo quando pecamos contra uma pessoa justa e santa. Ora, tal não se dá, pois, é menos atingido pela injúria o virtuoso, que a tolera com equanimidade, do que outros que, feridos, escandalizam-se interiormente. Logo, a condição da pessoa contra quem pecamos não agrava o pecado.
2. Demais. ― Se a condição da pessoa agravasse o pecado, este tanto mais se agravaria quanto mais próxima nos fosse ela. Pois, como diz Túlio, pecamos uma vez, matando um escravo, mas muitas, quando atentamos contra a vida paterna. Ora, parece, a proximidade da pessoa contra quem pecamos não agrava o pecado; pois ninguém nos é mais próximo que nós mesmos, e contudo pecamos menos danificando-nos a nós que a outrem. Assim, se matássemos o nosso cavalo do que se matássemos o de outrem, como o diz claramente o Filósofo. Logo, a proximidade da pessoa não agrava o pecado.
3. Demais. ― A condição do pecador agrava o pecado, sobretudo em razão da dignidade ou da ciência, conforme aquilo da Escritura (Sb 6, 7): os poderosos serão poderosamente atormentados; e (Lc 12, 47) àquele servo que soube a vontade de seu senhor, e não se apercebeu, dar-se-lhe-ão muitos açoites. Logo, pela mesma razão, a dignidade ou a ciência da pessoa contra quem pecamos agrava mais o pecado. Ora, não peca mais gravemente quem injuria uma pessoa mais rica ou poderosa do que quem o faz a um pobre, porque não há acepção de pessoas em Deus (Cl 3, 25), cujo juízo regula a gravidade do pecado. Logo, a condição da pessoa contra quem pecamos não agrava o pecado.
Mas, em contrário, a Sagrada Escritura vitupera especialmente os pecados cometidos contra os servos de Deus (3 Rs 19, 14): destruíram os teus altares, mataram os teus profetas à espada. Sobretudo vitupera também o pecado cometido contra as pessoas próximas (Mq 7, 6): o filho faz afronta ao pai, e a filha se levanta contra sua mãe. E ainda vitupera especialmente o pecado cometido contra as pessoas constituídas em dignidade (Jó 34, 18). O que diz ao rei “apóstata”, e chama ímpio aos grandes. Logo, a condição da pessoa contra quem pecamos agrava o pecado.
SOLUÇÃO. ― A pessoa contra quem pecamos é, de certo modo, objeto do pecado. Ora, como já dissemos (a. 3), a gravidade do pecado depende primeiramente do objeto; e portanto, ela é tanto maior quanto mais esse objeto constitui um fim principal. Ora, os fins principais dos atos humanos são Deus, nós mesmos e o próximo; pois, todos os nossos atos visam um desses três fins, embora cada qual deles se ordene a outro. Logo, em relação aos três, podemos considerar a maior ou menor gravidade do pecado, quanto à condição da pessoa contra quem pecamos.
Assim, quanto a Deus, primeiramente, com quem a pessoa é tanto mais unida quanto mais virtuosa ou mais consagrada lhe for. Por onde, a injúria assacada contra ela, redunda, principalmente, para Deus, conforme aquilo da Escritura (Zc 2, 8): aquele que tocar em vós toca na menina dos meus olhos. Por isso, tanto mais grave será o pecado quanto mais a pessoa contra quem pecamos estiver unida com Deus, pela virtude ou pelo estado.
Quanto a nós mesmos, é manifesto que tanto mais gravemente pecaremos, quanto mais a pessoa contra quem o fizermos nos for mais próxima, seja pelos laços naturais, seja pelos benefícios ou por qualquer outra união; pois então, mais pecaremos contra nós mesmos e, portanto, mais gravemente, conforme aquilo da Escritura (Ecle 14, 5): Para que pessoa será bom aquele que é mau para si?
E por fim, quanto ao próximo, tanto mais gravemente pecaremos quanto mais pessoas atingirmos. E por isso o pecado contra uma pessoa pública, como o rei ou o chefe, que governa a causa pública em nome do povo, é mais grave do que cometido contra uma pessoa privada. Donde o dizer a Escritura especialmente (Ex 22, 28): não amaldiçoarás o principal do teu povo. E semelhantemente, a injúria contra uma pessoa famosa é considerada mais grave porque redunda em escândalo e perturbação de muitos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Quem assaca uma injúria contra uma pessoa virtuosa, a ofende, na medida em que pode, tanto interior como exteriormente. Mas, o não se ofender ela interiormente depende da sua bondade, e em nada diminui o pecado de quem a injuria.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― O dano que causamos a nós mesmos, no atinente ao dependente do domínio da nossa própria vontade, como, por exemplo, o que possuímos, é menos pecaminoso, por isso mesmo que agimos por vontade própria, do que o dano causado a outrem. Mas, quanto ao independente do domínio da nossa vontade, com os bens materiais e espirituais, é maior pecado danificarmo-nos a nós mesmos. Assim, pecamos mais gravemente matando-nos a nós mesmos do que a outrem. Ora, como os bens dos nossos próximos não estão sujeitos ao domínio da nossa vontade, a objeção não colhe, dizendo que, quanto aos danos que lhes causamos, pecamos menos; a menos que eles não o queiram ou o ratifiquem.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― Não há acepção de pessoas, se Deus pune mais gravemente quem peca contra pessoas mais excelentes; e isso é assim porque tal pecado redunda em dano de muitos.
(Supra q. 20, a. 5)
O oitavo discute-se assim. ― Parece que a gravidade do pecado não cresce com o aumento do dano causado.
1. ― Pois, o dano é conseqüência eventual do ato pecaminoso. Ora, uma conseqüência eventual não aumenta a bondade ou a malícia do ato, como já dissemos (q. 20, a. 5). Logo, o pecado não se agrava com o aumento do dano causado.
2. Demais. ― O dano causado provém, principalmente, dos pecados contra o próximo, porque a nós mesmos não queremos, e a Deus não podemos fazer mal, conforme aquilo da Escritura (Jô 35, 6): se as tuas iniqüidades se multiplicarem, que farás tu contra ele? A tua impiedade poderá fazer mal a um homem que é teu semelhante. Ora, se o pecado se agravasse em relação ao dano causado, resultaria que, pecando contra o próximo, pecaríamos mais gravemente que quando contra Deus ou contra nós mesmos.
3. Demais. ― Causamos maior dano a outrem, privando-o da graça do que da vida natural; pois, devemos desprezar a vida natural para não perder a da graça. Ora, quem induz uma mulher a pecar, priva-a, o quanto pode, da vida da graça, levando-a a cometer pecado mortal. Se portanto, a gravidade do pecado dependesse do dano que causa, resultaria pecar o simples fornicário mais gravemente que o homicida, e isso é manifestamente falso. Logo, a gravidade do pecado não depende do dano que causa.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Como o vício se opõe à natureza, a malícia dele aumenta na mesma razão em que diminui a integridade da natureza. Ora, esta diminuição é um mal. Logo, tanto mais grave é o pecado quanto maior é o dano causado.
SOLUÇÃO. ― O dano causado pode manter tríplice relação com o pecado. ― Assim, às vezes o dano proveniente do pecado é previsto e intencionado; tal o caso de quem, como o homicida ou o ladrão, age com o ânimo de danificar a outrem. E nesse caso o vulto do dano causado aumenta diretamente a gravidade do pecado, porque então esse dano é, em si, o objeto do pecado. ― Outras vezes porém o dano é previsto, mas não intencionado. Tal o caso de quem, atravessando um campo para poder mais expedito cometer a fornicação danifica cientemente as sementeiras, embora sem a intenção de o fazer. E neste caso a grandeza do dano agrava o pecado, mas indiretamente, porque, da vontade fortemente inclinada ao pecado procede o não nos importarmos de causar dano a nós mesmos ou a outrem, o que entretanto, absolutamente falando, não quereríamos. ― Outras vezes ainda, não é o dano previsto nem intencionado. E então, se se relacionar com o pecado acidentalmente, não o agrava, de modo direto. Mas, pela negligência em considerar os danos que poderiam resultar, são-nos imputados, para o efeito da pena, os danos causados contra a nossa intenção, se praticávamos um ato ilícito. Se porém o dano, em si mesmo, resultar do ato pecaminoso, agrava, embora não intencionado nem previsto, diretamente o pecado. Porque todas as conseqüências resultantes, em si mesmas, do pecado, pertencem-lhe, de certo modo, à espécie. Assim, quem fornicar publicamente escandaliza a muitos; o que, embora não seja intencionado, nem talvez previsto, agrava contudo diretamente o pecado.
Diferem porém as relações com o dano da pena em que incorre quem peca. Assim, se esse dano tiver relação acidental com o ato pecaminoso, mas não for previsto nem intencionado, não agrava tal ato nem é conseqüente à maior gravidade deste. Tal o caso de quem, correndo para matar, dê um encontrão e se fira no pé. Se porém esse dano resultar, em si mesmo, embora talvez não previsto nem intencionado, do ato pecaminoso, então o dano maior não torna mais grave o pecado, mas inversamente, o pecado mais grave é o que causa mais grave dano. Assim, o infiel, que nunca ouviu falar das penas do inferno, lá sofrerá mais grave pena pelo pecado de homicídio, do que pelo de furto; e o não ter intencionalmente desprezado o inferno nem o previsto, não lhe agrava o pecado. O contrário se dá com o fiel, que peca mais gravemente, por isso mesmo que despreza maiores penas para satisfazer à vontade de pecar. Mas a gravidade deste dano só é causada pela gravidade do pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Como já dissemos (q. 20, a. 5), quando tratamos da bondade e da malícia dos atos exteriores, a conseqüência eventual, sendo prevista e intencionada, aumenta a bondade ou a malícia do ato.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― De agravar o dano o pecado não se segue que só ele é que o faz. Antes, o pecado, em si mesmo, é mais grave, por força da inclinação, como já dissemos (a. 2, 3). Por onde, o dano, por si, agrava o pecado, tornando o ato mais desordenado. Donde não resulta, se há dano, sobretudo nos pecados contra o próximo, que esses pecados sejam gravíssimos. Pois, há muito maior desordem em certos pecados contra Deus e contra nós mesmos. Porquanto, podemos dizê-lo, embora ninguém possa fazer mal a Deus, na sua substância, é possível entretanto atingi-lo naquilo que lhe pertence; p. ex., extirpando a fé, violando o sagrado, que constituem pecados gravíssimos. E também, às vezes, podemos, ciente e voluntariamente, causar dano a nós mesmos, como se dá com os suicidas, embora o façam, finalmente, por causa de algum bem aparente, como seja livrarem-se do sofrimento.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A objeção não colhe, por duas razões. Primeiro, porque o homicida intenciona diretamente danificar o próximo, ao passo que o fornicador, sedutor de uma mulher, não lhe intenciona o dano, mas o prazer dele próprio. Segundo, porque o homicida é causa em si e suficiente da morte corpórea; mas, da morte espiritual de outrem, ninguém pode ser por si mesmo causa suficiente, porque ninguém morre espiritualmente senão por própria vontade, pecando.
(IV Sent., dist. XVI, q. 3, a. 2, qa. 1; De Malo, q. 2, a. 7)
O sétimo discute-se assim. ― Parece que a circunstância não agrava o pecado.
1. ― Pois, a gravidade do pecado lhe provém da espécie. Ora, a circunstância, sendo acidente dele, não o especifica. Logo, a gravidade do pecado não depende da circunstância.
2. Demais. ― A circunstância ou é má ou não. Se má, causa por si mesma uma espécie de mal; se não for má, não pode aumentar o mal. Logo, de nenhum modo aumenta o pecado.
3. Demais. ― A malícia do pecado procede da sua aversão. Ora, pela conversão do mesmo é que as circunstâncias lhe são conseqüentes. Logo, não lhe aumentam a malícia.
Mas, em contrário, a ignorância da circunstância diminui o pecado; pois, quem peca, ignorando-a, merece perdão, como diz Aristóteles. Ora, isto não se daria se ela não agravasse o pecado. Logo, agrava.
SOLUÇÃO. ― A cada ser é natural o crescer pela mesma causa que o gerou, como diz o Filósofo, tratando do hábito da virtude. Ora, é manifesto, que o pecado é causado pela ausência de alguma circunstância; pois, é por não observarmos as devidas circunstâncias, que em nossos atos nos afastamos da ordem da razão. Por onde é manifesto, que é natural ao pecado aumentar com circunstância.
O que se dá de tríplice modo. ― Primeiro, porque a circunstância muda o gênero do pecado. Assim, o pecado de fornicação consiste na relação com mulher ilegítima. A circunstância porém, de ser casada, muda o gênero do pecado, que vem a ser o de injustiça, consistente em usurpar o alheio. Por isso o adultério é mais grave pecado que a fornicação. ― Às vezes contudo, a circunstância agrava o pecado, não pelo mudar de gênero, mas só, pelo multiplicar. Assim o pródigo, dando quando não deve e a quem não deve, peca mais vezes, no mesmo gênero de pecado, do que se desse só a quem não deve. Ora, por isto mesmo torna-se mais grave, assim como o é a doença que ataca mais partes do corpo. E por isso, diz Túlio: quem viola a vida do próprio pai peca multiplicadamente, pois fere quem o procriou, nutriu, educou, deu-lhe habitação, casa e o estabeleceu na república. ―Em terceiro lugar, a circunstância agrava o pecado, aumentando a deformidade proveniente de outra circunstância. Assim, tomar o alheio constitui pecado de furto. Porém a circunstância de tomá-lo em grande quantidade tornará o pecado mais grave, embora, tomar muito ou pouco, em si mesmo, não implique bondade nem malícia.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Há circunstâncias especificadoras do ato moral, como já dissemos (q. 18, a. 10). Mesmo porém uma circunstância que não o especifique pode agravar o pecado. Pois, como a bondade de uma coisa é pesada não só pela espécie, mas também pelo acidente, assim também, a malícia de um ato não é pesada só pela espécie, mas também pela circunstância dele.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― De um e outro modo a circunstância pode agravar o pecado. Sendo má, nem por isso há-de constituir necessariamente uma espécie de pecado; pois, pode aumentar a malícia, numa mesma espécie, como se disse. Não o sendo, pode agravar o pecado, relativamente à malícia de outra circunstância.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A razão deve ordenar o ato, não só quanto ao objeto, mas também quanto a todas as circunstâncias. Portanto, qualquer aversão da regra racional se funda na corrupção de alguma circunstância; assim, por exemplo, se agirmos quando ou onde não devemos. E tal aversão basta para fundar a malícia. Pois, de tal aversão à regra racional resulta o afastamento de Deus, a quem devemos nos unir, pela retitude da razão.