Category: Santo Tomás de Aquino
18 de janeiro
I. — À vida contemplativa importa sumamente a solidão. « Por isso eu atrairei docemente a mim, e a conduzirei à soledade, e lhe falarei ao coração », diz o profeta Oséias (2,14). Em princípio, a vida contemplativa é melhor do que a vida ativa, que se ocupa de ações corporais. Por outro lado, a vida ativa, pela qual se transmite aos outros, pela pregação e o ensino, o que se contemplou, é mais perfeita do que a vida que apenas contempla, pois supõe uma abundância de contemplação. Por isso, Cristo escolheu a vida ativa.
II. — Ora, algumas vezes Cristo procurava os lugares solitários, afastando-se das aglomerações. S. Remígio assim comenta o Evangelho de Mateus: « Lê-se que o Senhor tinha três refúgios: a barca, o monte e o deserto. Para um deles se dirigia quando era oprimido pela multidão. »
Ora, a ação de Cristo é nossa instrução. Por isso, para dar exemplo aos pregadores de que nem sempre devem procurar estar em público, o próprio Senhor se afastou às vezes da multidão.
E o fez por três razões:
a) Às vezes, para descanso corporal. No Evangelho de Marcos se lê que o Senhor disse aos discípulos: « Vinde à parte, a algum lugar solitário, e descansai um pouco. Porque eram muitos os que iam e vinham ; e nem tinham tempo para comer.» (Mc 6, 31)
b) Às vezes, por causa da oração. Lê-se no Evangelho de Lucas: « E aconteceu naqueles dias que se retirou para o monte a orar, e estava passando toda a noite em oração a Deus » (Lc 6, 12), Ambrósio acrescenta que « por seu exemplo Cristo nos forma para as exigências da virtude ».
c) Às vezes, finalmente, para nos ensinar a evitar o favor humano. Sobre o que diz o Evangelho de Mateus: « Vendo Jesus aquela multidão, subiu a um monte », afirma Crisóstomo: « Permanecendo não na cidade e na praça, mas na montanha e na solidão, Cristo nos ensinou a não fazer nada por orientação e a evitar o tumulto, especialmente quando é necessário refletir sobre assuntos importantes. »
(III q. XL, a. 1, 2 et 3um)
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae.)
17 de janeiro
« Depois de tais coisas, foi visto sobre a terra, e conversou com os homens » (Br 3, 38)
O modo de viver de Cristo devia ser conveniente ao fim da encarnação, pela qual ele veio ao mundo.
1º. Ora, Cristo veio ao mundo em primeiro lugar para manifestar a verdade, como diz no Evangelho de João:« Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade » (Jo 18, 37). Portanto, ele não devia ocultar-se, levando uma vida solitária, mas agir em público, pregando publicamente. Por isso diz aos que o queriam deter: « É necessário que eu anuncie também às outras cidades o reino de Deus, pois para isso é que fui enviado. » (Lc 4, 42-43).
2º Em segundo lugar, Cristo veio ao mundo para livrar os homens do pecado: « Jesus Cristo, escreve São Paulo à Timóteo (1 Tm 1, 15), veio a este mundo salvar os pecadores ». Diz Crisóstomo: « Embora Cristo pudesse atrair todos a si para ouvir sua pregação permanecendo ele no mesmo lugar, não o fez, dando o exemplo para que andemos de um lugar para o outro e procuremos os que estão em perigo, assim como o pastor procura a ovelha perdida e o médico vai até o enfermo. »
3º Em terceiro lugar, Cristo veio ao mundo para que « por ele tenhamos acesso a Deus », como diz a Carta aos Romanos (5, 2). Deste modo, vivendo familiarmente entre as pessoas, era conveniente que infundisse em todos confiança para dele se aproximarem. Assim se lê: « E aconteceu que, estando Jesus sentado à mesa em casa de Mateus, eis que, vindo muitos publicanos e pecadores, se sentaram à mesa com Jesus e com os seus discípulos. » (Mt 9, 10). E Jerônimo explica: « Vendo que o publicano, convertido de seus pecados, alcançou a penitência, eles também não perderam a esperança da salvação »
Portanto, deve-se dizer que Cristo, por sua humanidade, quis manifestar sua divindade. Por isso, convivendo com os homens, o que é próprio de um homem, manifestou a todos sua divindade, pregando e fazendo milagres, vivendo entre os homens inocente e justamente.
(III, q. XL, a. 1)
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae.)
16 de janeiro
« Não tem vinho » (Jo 2, 3)
Antes da Encarnação de Cristo, três vinhos faltavam aos homens: o vinho da justiça, o da sabedoria e o da caridade ou graça.
1. — O vinho mordica o paladar e, por causa disso, diz-se que a justiça é um vinho. O Samaritano lançou azeite e vinho nas feridas do homem que jazia no caminho (Lc 10, 34), isto é, a severidade da justiça com a doçura da misericórdia. « deste-nos a beber o vinho da compunção » (Sl 59, 5).
O vinho também alegra o coração, conforme diz o salmista, « o vinho alegra o coração do homem » (Sl 103, 15). Por causa disso, diz-se que a sabedoria é um vinho, pois a meditação da sabedoria alegra imensamente. « sua conversação não tem nada de desagradável » (Sb 8, 16).
O vinho também inebria. « bebei, amigos, e embriagai-vos, caríssimos » (Ct 5, 1). Por isso diz-se que a caridade é um vinho. « Bebi o meu vinho com o meu leite » (Ct 5, 1). E também se diz que a caridade é um vinho por causa do seu fervor. « o vinho que gera virgens » (Zc 9, 17)
2. — O vinho da justiça certamente faltava na velha lei, na qual a justiça era imperfeita. Mas Cristo tornou-a perfeita. « Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos céus » (Mt 5, 20).
Também faltava o vinho da sabedoria, que estava oculta e em figura. « todas estas coisas lhes aconteciam em figura » (1 Cor 10, 11). Mas Cristo a manifestou. « porque os ensinava, como quem tinha autoridade » (Mt 7, 29).
Mas também faltava o vinho da caridade, pois apenas receberam o espírito da servidão no temor. Mas Cristo transformou a água do temor no vinho da caridade quando deu o « espírito de adoção de filhos, mercê do qual clamamos, dizendo: Abba pai » (Rm 8, 15) e quando « a caridade de Deus foi derramada em nossos corações » (Rm 5, 5)
In Joan., II
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae. Tradução: Permanência)
15 de janeiro
1. O nome de Deus é antes de tudo, admirável, porque em todas as criaturas opera obras maravilhosas. O Senhor declara no Evangelho: "Em meu nome, expulsarão os demônios, falarão novas línguas, e se beberem algum veneno mortal, este não lhes fará mal algum." (Mc 16,17).
2. O nome de Deus é amável. « Não existe debaixo do céu, diz São Pedro (At 4, 12) nenhum outro nome, entre os que foram dados aos homens, que possa salvar-nos ». E a salvação deve ser buscada por todos. Santo Inácio dá-nos o exemplo do quanto devemos amar o nome de Cristo. Quando o imperador Trajano exigiu que ele negasse o nome de Cristo, Santo Inácio respondeu: « Não podereis arrancá-lo de minha boca ». O tirano ameaçou cortar-lhe a cabeça e assim tirar o nome de Cristo de seus lábios; replicou o bem-aventurado: « Não o arrancarás jamais de meu coração, pois é lá que está gravado, por isto não posso deixar de invocá-lo ». Ouvindo estas palavras, Trajano, desejoso de verificar-lhes a exatidão, mandou cortar a cabeça do servidor de Deus e extrair-lhe o coração. E no coração encontrou gravado, com letras de ouro, o nome de Cristo. O santo possuía este nome como um selo em seu coração.
3. Em terceiro lugar, o nome de Deus é venerável. O Apóstolo afirma (Fp 2, 10): « Que ao nome de Jesus se dobrem todo joelho no céu, na terra e nos infernos »; no céu, no mundo dos anjos e bem-aventurados; na terra, tanto os homens, que querem a glória celeste, como os que, por temerem o castigo, buscam evitá-lo; nos infernos, no mundo dos danados, que estes se prostrem com temor diante de Jesus Cristo.
4. Em quarto lugar, o nome de Deus é inexprimível, no sentido de que nenhuma língua é capaz de exprimir toda a sua riqueza. Tenta-se, no entanto, explicá-la pelas criaturas. Assim, dá-se a Deus o nome de rochedo, por causa de sua firmeza. E notemos que se o Senhor deu a Simão, futuro fundamento da Igreja, o nome de Pedra (Mc 3, 16) foi precisamente porque sua fé, na divindade de Jesus, (cf. Mt 16, 18) devia fazê-lo participar de sua firmeza divina. Designa-se Deus também pelo nome de fogo, em razão de sua virtude purificadora. Assim como o fogo purifica os metais, Deus purifica o coração dos pecadores. Assim está no Deuteronômio (4, 24): « Vosso Deus é um fogo que consome ». Deus é também chamado luz, por causa de sua capacidade de iluminar. Como a luz ilumina as trevas, Deus ilumina as trevas do espírito. O Salmista, em sua oração, diz ao Senhor (17, 29): « Meu Deus, iluminai as minhas trevas. »
Orat. Dominic.
É preciso saber que em nome de Deus deve-se andar, rezar, falar, agir e esperar. « Estes nas suas carroças, e aqueles nos seus cavalos; nós, porém, somos fortes no nome do Senhor, nosso Deus » (Sl 19, 8); « se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, ele vô-la dará » (Jo 16, 23); « Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, fazei em nome do Senhor Jesus Cristo » (Cl 3, 17); « Bem-aventurado o homem que pôs a sua esperança no Senhor » (Sl 39)
Considera que o nome de Jesus se deve guardar no coração, pois é alegria; tê-lo na boca, pois é um cântico; escutá-lo com os ouvidos, pois é melodioso; levá-lo nas mãos, pois é força; e escrevê-lo na teste, pois é honra.
Considera também que o nome de Deus é nome de muitas virtudes. Nele, todas as coisas são criadas; os demônios, afugentados; as enfermidades, curadas; os pecadores, justificados; os tristes, alegrados; os atormentados, auxiliados; nele, a graça dos justos é aumentada e todos eleitos se salvam.
De Humanitate Jesu.[*]
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae. Tradução: Permanência)
14 de janeiro
« Todo o homem põe primeiro o bom vinho... tu, ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora ». (Jo 2, 10)
São João Crisóstomo observa que todos os milagres de Jesus Cristo foram perfeitos. Assim, o paralítico foi tão perfeitamente curado, que se levantou, tomou o seu leito e retornou para sua casa. O mesmo ocorre aqui: não é um vinho qualquer que surge da água, mas o melhor vinho possível. Daí, o que ao esposo disse ao mordomo.
Ora, isto comporta um mistério.
I. — Em sentido místico, diz-se que serve antes o bom vinho quem, desejando enganar os outros, não propõe imediatamente o mal que pretende, mas algo que seduza seus ouvintes, até que, após os ter embriagado e convencido a seguir-lhe, manifeste a perfídia. É assim que faz o tentador. E, deste vinho, está escrito: « ele entra suave, mas no fim morde como uma serpente » (Pr 23, 31)
Diz-se também que põe antes o bom vinho quem, logo após sua conversão, começa a viver santa e espiritualmente e, depois, degenera na vida carnal. « Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne? » (Gl 3, 3)
II. — Cristo, porém, não põe antes o bom vinho, pois, desde o princípio, propõe coisas amargas e duras. « Que estreita é a porta, e que apertado o caminho que conduz à vida » (Mt 7, 14). Porém, quanto mais o homem progride na fé e doutrina, mais doce e suave torna-se o caminho. « guiar-te-ei pelas veredas da equidade. Depois que tiverdes entrado nelas, os teus passos não terão dificuldades » (Pr 4, 11)
Do mesmo modo, todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrem, neste mundo, muitas amarguras e tribulações. « Em verdade, em verdade, vos digo que vós haveis de chorar e gemer » (Jo 16, 20). Mas, no futuro, terão alegrias e deleites; por isso, acrescenta: « mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria ». E o Apóstolo diz: « Porque eu tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não tem proporção com a glória vindoura, que se manifestará em nós » (Rm 8, 18).
In Joan., cap.II
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae. Tradução: Permanência)
(Ad Coloss., cap. II, lect. IV; Ad Hebr., cap. IX,lect. I).
O quarto discute-se assim. — Parece que das cerimônias da lei antiga, relativas às coisas sagradas, não se pode dar razão suficiente.
1. — Pois, diz Paulo (At 17, 24): Deus, que fez o mundo, e tudo o que nele há, sendo ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens. Logo, a lei antiga institui inconvenientemente, para o culto de Deus, o tabernáculo ou templo.
2. Demais. — A estrutura da lei antiga não foi mudada senão por Cristo. — Ora, o tabernáculo designava a estrutura dessa lei. Logo, não devia ser mudado pela edificação de nenhum templo.
3. Demais. — A lei divina deve sobretudo induzir os homens ao culto divino. Ora, para o desenvolver-se do culto divino é necessário fazerem-se muitos altares e templos, como claramente se vê na lei nova. Logo, mesmo no regime da lei antiga, não devia haver só um templo ou tabernáculo, mas muitos.
4. Demais. — O tabernáculo ou templo ordenava-se ao culto de Deus. Ora, em Deus devemos venerar sobretudo a unidade e a simplicidade. Logo, não era conveniente que o tabernáculo ou templo se distinguisse por certos véus.
5. Demais. — A virtude do primeiro motor, que é Deus, se manifesta primeiro na parte do Oriente, onde começa o primeiro movimento. Ora, o tabernáculo foi instituído para a adoração de Deus. Logo, devia estar voltado mais para o Oriente que para o Ocidente.
6. Demais. — O Senhor mandou (Ex 20, 4) não se fizesse imagem de escultura, nem figura alguma. Logo, inconvenientemente se esculpiram, no tabernáculo ou templo, imagens de querubins. Semelhantemente, aí se viam, sem causa racional, a arca, o propiciatório, o candelabro, a mesa e o altar duplo.
7. Demais. — O Senhor mandou (Ex 20, 24): Far-me-eis um altar de terra. — E ainda (Ex 20, 26): Não subirás por degraus ao meu altar. Logo, inconvenientemente se mandou, depois, fazer um altar de madeira, ouro ou cobre, e de tanta altura, que só por degraus se podia subir a ele. Pois, diz a Escritura (Ex 27, 1-2): Farás também um altar de pau setim, o qual terá cinco côvados ao cumprimento e outros tantos de largura, e terá três côvados de alto, e o cobrirás de cobre. E (Ex 30, 1-3): Farás um altar de madeira de setim para queimar os perfumes. E o cobrirás de puríssimo ouro.
8. Demais. — Nas obras de Deus nada deve ser supérfluo, porque nem nas da natureza isso se dá. Ora, a um tabernáculo ou casa basta uma coberta. Logo, era inconveniente se lhe sobre-porem muitas cobertas, a saber: cortinas, cobertas de pele de cabra, peles de carneiro tintas de vermelho e peles tintas de roxo.
9. Demais. — A consagração exterior significava a interior, cujo sujeito é a alma. Logo, inconvenientemente era consagrado o tabernáculo e os seus vasos, que eram corpos inanimados.
10. Demais. — A Escritura diz (Sl 33, 2): Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor será semprena minha boca. Ora, as solenidades são instituídas para louvar a Deus. Logo, não era conveniente se estatuírem certos dias para realizar as solenidades. — De tudo isso resulta, que as cerimônias das coisas sagradas não tinham causas convenientes.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 8, 4): os que oferecem os dons segundo a lei servem de modelo e sombra das coisas celestiais; como foi respondido a Moisés quando estava para acabar o tabernáculo: Olha, disse, faze todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado no monte. Ora, é muito racional o que representa a imagem das coisas celestes. Logo, as cerimônias das coisas sagradas tinham causa racional.
Solução. — Todo o culto externo de Deus se ordena principalmente a os homens o reverenciarem. Ora, é próprio do afeto humano reverenciar menos o que é comum e sem distinção particular; e prestar mais reverência e admiração ao que tem alguma excelência e se distingue do comum. E daí vem ter o costume humano estabelecido, que os reis e os príncipes, que devem ser reverenciados pelos súbditos, sejam ornados de vestes mais preciosas e também possuam habitações mais amplas e mais belas. E por isso, era necessário fossem ordenados ao culto de Deus, certos tempos especiais, um tabernáculo especial, vasos especiais e ministros especiais, para assim provocarem o espírito dos homens à maior reverência d'Ele. — Semelhantemente, como já dissemos (a. 2; q. 100, a. 12; q. 101, a. 2), a estrutura da lei antiga tinha por fim figurar o mistério de Cristo. Ora, é forçoso seja algo de determinado aquilo que deve figurar alguma coisa; de modo que representa uma semelhança dela. Por onde, também era necessário se observassem certas disposições especiais concernentes ao culto de Deus.
Donde a resposta à primeira objeção. — O culto de Deus implica duas condições: o Deus adorado e os homens que o adoram. Ora, Deus, que é adorado, não se encerra em nenhum lugar material e por isso, não era preciso se lhe construísse um tabernáculo especial ou um templo. Ao contrário, os homens que o adoram, são seres corpóreos; e, por causa deles, era necessário se construísse um tabernáculo especial ou um templo, para o culto de Deus. E isto por duas razões. — A primeira, que os homens, reunidos nesse lugar, com o pensamento de serem destinados a adorar a Deus, o fizessem com maior reverência. — A segunda, que a disposição desse templo ou do tabernáculo significasse algo de condescende com a excelência da divindade ou humanidade de Cristo. E é o que diz Salomão (1 Rs 8, 27): se o céu e céu dos céus te não podem compreender, quanto menos esta casa que eu edifiquei? E, em seguida acrescenta (1 Rs 8, 29-30): os teus olhos estejam abertos de noite e de dia sobre esta casa da qual disseste: O meu nome estará nela; para ouvires a oração do teu servo e do teu povo de Israel. Por onde é claro, que a casa do santuário não foi instituída para compreender a Deus, como se nela habitasse localmente;mas para que aí habitasse o nome de Deus. Isto é, para que o conhecimento de Deus se manifestasse pelo que se aí fazia e dizia; e para, pela reverência ao lugar, as orações se tornarem mais dignas de serem ouvidas, pela devoção dos que oravam.
Resposta à segunda. — A estrutura da lei antiga, quanto ao seu cumprimento, não foi mudada antes de Cristo; mas só por Cristo isso se fez. Foi mudada, porém, quanto à condição do povo que ela regia. Pois, primeiro, esteve no deserto, sem morada certa; depois, teve várias guerras com as nações vizinhas; ultimamente, no tempo de Davi e de Salomão, viveu tempos tranqüilos. E então foi, pela primeira vez, edificado o templo no lugar designado por Abraão, por indicação divina, para se aí fazerem as imolações. Pois, como diz a Escritura (Gn 22, 2), o Senhor mandou a Abraão oferecesse o seu filho em holocausto sobre um dos montes que eu te mostrar; e depois disse (Gn 22, 14), que pôs por nome aquele lugar: O Senhor vê, quase, por previsão de Deus, fosse aquele lugar escolhido para o culto divino. Pelo que diz a Escritura (Dt 12, 5-6): Vireis ao lugar que o Senhor vosso Deus escolher e oferecereis os vossos holocaustos e vítimas. Ora, esse lugar, para a edificação do templo, não devia ser designado antes do tempo predito, por duas razões dadas pelo Rabbi Moisés. A primeira, para que os gentios se não apropriassem desse lugar. A segunda, para que não o destruíssem. A terceira enfim, para que qualquer das tribos não pretendesse tê-lo como seu lote, donde nascessem demandas e litígios. Por isso, não se devia edificar o templo enquanto não houvesse um rei, capaz de impedir esses litígios. E, antes dessa edificação, ordenava-se ao culto de Deus um tabernáculo portátil por diversos lugares, quase ainda não existente um lugar determinado para o culto divino. E esta é a razão literal da diversidade do tabernáculo e do templo. — A razão figurada pode ser que essas duas coisas significavam um duplo estado. O tabernáculo, que era mutável, significa o regime da vida presente também mutável. O templo, por seu lado, fixo e permanente, o regime da vida futura, absolutamente invariável. E por isto, na edificação do templo, diz a Escritura, que não se ouvia o som de martelo nem machado, para significar que toda atividade perturbadora era estranha ao estado futuro. Ou, o tabernáculo significava o regime da lei antiga; e o templo, construído por Salomão, o da lei nova. Por onde, na construção do tabernáculo, só os judeus trabalharam; ao passo que, na do templo, cooperavam também os tírios e sidónios, que eram gentios.
Resposta à terceira. — A razão da unidade do templo ou do tabernáculo pode ser literal e figurada. — A literal era a exclusão da idolatria; porque os gentios atribuíam templos diversos aos diversos deuses. Por onde, para que se radicasse no espírito dos homens a fé na unidade divina, quis Deus se lhe oferecesse sacrifício só num lugar. Ademais disso, para assim mostrar que o culto material não lhe é em si mesmo aceito. Pelo que, impedia se oferecessem sacrifícios a cada passo e em toda parte. Ao contrário, o culto da lei nova, em cujo sacrifício está contida a graça espiritual, é, em si mesmo, aceito de Deus. Por isso, a lei nova admite a multiplicação dos altares e dos templos. Quanto ao pertencente ao culto espiritual de Deus, que consistia na doutrina da lei e dos profetas, havia ainda, na lei antiga, diversos lugares determinados, chamados sinagogas, em que o povo se reunia para louvar a Deus. Assim, chamam-se também agora igrejas os lugares em que para louvá-Lo, se congrega o povo cristão. Por onde, a nossa Igreja tomou o lugar do templo e da sinagoga; porque, sendo o seu sacrifício espiritual, não distinguimos agora o lugar do sacrifício do lugar da doutrina. — A razão figurada pode ser, que o templo e o tabernáculo significam a unidade da Igreja, militante, ou triunfante.
Resposta à quarta. — Assim como a unidade do templo ou do tabernáculo representam a de Deus ou da Igreja, assim também, a distinção entre um e outro representa a distinção entre as coisas sujeitas a Deus, e que nos elevam a venerá-Lo. Pois, distinguiam-se no tabernáculo duas partes: a ocidental chamada o Santo dos Santos; e a oriental, chamada Santo. E, enfim, ante ele, havia o átrio.
Ora, esta distinção se fundava em dupla razão. — Uma, pela qual o tabernáculo se ordenava ao culto de Deus. E assim, as diversas partes do mundo estavam figuradas nas duas partes do tabernáculo. Pois, a chamada Santo dos Santos simbolizava o mundo superior, que é o das substâncias espirituais; e a chamada Santo, o mundo corpóreo. Por onde, o Santo se separava do Santo dos Santos por um véu, pintado de quatro cores, símbolos dos quatro elementos. Essas eram: o bisso, símbolo da terra, porque o bisso, i. é, o linho nasce da terra; a púrpura, símbolo da água, porque a cor purpúrea era feita de certas conchas que se encontram no mar; o jacinto, que significava o ar, que tem cor de ouro; e a escarlata duas vezes tinta, que designava o fogo. E isto era assim porque a matéria dos quatro elementos é um impedimento que nos vela as substâncias incorpóreas. Por onde, no tabernáculo interior, i. é, no Santo dos Santos, só o sumo sacerdote entrava, e uma só vez no ano, para significar que a perfeição final do homem é a entrada no mundo espiritual. No tabernáculo exterior, i. é, no Santo, o sacerdote entrava todos os dias, não porém o povo, que tinha acesso só ao átrio. Porque as coisas corpóreas o povo pode percebê-las, mas as razões internas delas só os sapientes, refletindo, podem atingi-las. Quanto à razão figurada, o tabernáculo exterior, chamado Santo simboliza o regime da lei antiga, como diz o Apóstolo (Heb 9, 6 ss). Porque nele sempre entravam os sacerdotes para cumprirem o ofício de sacrificar. Enquanto o tabernáculo interior, chamado Santo dos Santos significa a glória celeste, ou também o regime espiritual da lei nova, que é um quase começo da glória futura, estado, em que Cristo nos introduziu. E era figurado pela entrada só do sumo sacerdote, uma vez no ano, no Santo dos Santos. — O véu, por seu lado, significava a ocultação dos sacrifícios antigos; e era ornado de quatro cores significativas. O bisso, símbolo da pureza da carne; a púrpura, dos sofrimentos que os santos padeceram por Deus; a escarlata duas vezes tinta, da dupla caridade para com Deus e o próximo; o jacinto, da meditação celeste. — Mas o povo e os sacerdotes tinham relações diferentes com a lei antiga. Pois, aquele assistia aos sacrifícios corporais que se ofereciam no átrio; ao passo que os sacerdotes meditavam na essência deles, com fé mais explícita nos mistérios de Cristo. Por isso entravam no tabernáculo exterior, que também estava separado do átrio por um véu, porque certas coisas, sobre o mistério de Cristo eram veladas ao povo e conhecidas dos sacerdotes. Mas não lhes eram plenamente reveladas, como depois, no Novo Testamento, conforme a Escritura (Ef 3, 5).
Resposta à quinta. — Os judeus adoravam com a cara voltada para o ocidente; o que foi introduzido na lei para excluir a idolatria, pois, todos os gentios, em reverência ao sol, adoravam voltados para o oriente. Donde o dizer a Escritura (Ez 8, 16), que certos tinham as costas voltadas para o templo do Senhor e as caras viradas para o oriente, e adoravam o sol nascendo. E era para excluir isso, que o tabernáculo tinha o Santo dos Santos voltado para o ocidente, para o adorarem voltados para esse ponto. — Quanto à razão figurada, pode ser que a estrutura do antigo tabernáculo se ordenava a significar a morte de Cristo, figurada pelo ocaso, conforme a Escritura (Sl 67, 5): Aquele que sobe sobre o ocidente, o Senhor é o seu nome.
Resposta à sexta. — Pode-se dar uma razão literal e, outra, figurada do que se continha no tabernáculo. — A literal é relativa ao culto divino. Ora, como já dissemos (ad 4), o tabernáculo interior, chamado Santo dos Santos, significa o mundo superior das substâncias espirituais. Por isso, três coisas continha esse tabernáculo: a arca do testamento, na qual havia uma urna de ouro, que continha o maná, e a vara de Aarão, que tinha florescido, e as tábuas do testamento, nas quais estavam escritos os dez preceitos do decálogo. — E essa arca estava situada entre dois querubins, olhando um para outro. — Sobre a arca havia uma tábua, chamada propiciatório, apoiada nas azas dos querubins, como se fosse levada por eles, e levando a imaginar que essa tábua fosse o assento de Deus. E se chamava propiciatório, querendo significar que Deus, daí, se tornava propício ao povo, pelas preces do sumo sacerdote. E era conduzido pelos querubins, como sendo os que seguem a Deus. Quanto à arca do testamento, era um como escabelo de quem estava sentado no propiciatório.
Ora, essas três coisas simbolizam três outras existentes no referido mundo superior. — Deus, que está acima de todas as coisas e é incompreensível a todas as criaturas. E por isso, não punham nenhuma figura que lhe representasse a invisibilidade, mas sim, a do seu assento, porque concebemos criatura enquanto sujeita a Deus, como o assento a quem se assenta. — Há também, nesse mundo superior, substâncias espirituais chamadas anjos. E estes eram simbolizados pelos dois querubins, olhando um para o outro, para designar a concórdia dos anjos entre si, conforme àquilo da Escritura (Jó 25, 2): aquele que mantém a concórdia nas alturas. Também não havia um só querubim, para que se designasse a multidão dos espíritos celestes, e se impedisse o culto deles aqueles a quem foi ordenado adorassem um só Deus. — Demais, nesse mundo inteligível, estão de certo modo, encerradas as razões eternas do que neste mundo fazemos, assim como as razões dos efeitos estão encerradas nas suas causas, e, no artífice, as das coisas artificiadas. O que é simbolizado pela arca, que continha três coisas representativas das três coisas humanas de maior valor, a saber: a sabedoria, simbolizada nas tábuas do testamento; o poder governamental, na vara de Aarão; e a vida, representada pelo maná, que foi o sustento dela. Ou ainda, essas três coisas significam os três atributos de Deus: as tábuas, a sabedoria; a vara, o poder; o maná, a bondade, quer pela sua doçura, quer porque Deus o deu ao seu povo, por misericórdia, sendo, por isso, conservado, em memória dessa misericórdia.
Essas três coisas também estão figuradas na visão de Isaías. Viu ele ao Senhor sentado num sólio excelso e elevado, assistido de Serafins, e o templo cheio da glória de Deus. Por isso, clamavam os Serafins: Cheia está toda a terra da sua glória (Is 6, 1-3). E assim, as imagens dos Serafins não foram aí postas para receberem culto, o que era proibido pelo primeiro preceito da lei, mas como sinal de ministério, conforme dissemos.
Por seu lado, o tabernáculo exterior, significativo do século presente, também continha três coisas: o altar do timiama, posto diretamente contra a arca; a mesa da proposição, na qual se punham os doze pães, colocada na parte norte; e o candelabro, na parte sul.
E essas três coisas são consideradas como correspondentes às três encerradas na arca, representando, mas mais manifestamente, o mesmo que elas. Pois é necessário seja, das razões eternas das coisas, dada mais clara manifestação da existência que têm na mente divina e dos anjos, para poderem os sábios conhecê-las, sábios simbolizados nos sacerdotes que entram no tabernáculo. — Por isso, o candelabro designa como em sinal sensível, a sabedoria, expressa nas tábuas por palavras inteligíveis. — O altar do timiama, o ofício dos sacerdotes, a quem pertence trazer o povo para Deus; o que também é significado pela vara. Pois, nesse altar se queimava o timiama do bom odor, que significa a santidade do povo, agradável a Deus; porque, como diz a Escritura (Ap 8, 3), o fumo dos aromas exprime as justificações dos santos. A dignidade sacerdotal é significada, na arca, pela vara, e no tabernáculo exterior, pelo altar do timiama. Porque o sacerdote é o mediador entre Deus e o povo, que governa por poder divino, simbolizado pela vara; e oferecia a Deus, quase no altar do timiama, o fruto do seu governo, i. é, a santidade do povo. — A mesa, bem como o maná, significam o sustento temporal da vida; mas o que estava naquela era um alimento mais comum e grosseiro, ao passo que o maná era mais suave e delicado. O candelabro estava convenientemente colocado na parte austral, e a mesa, na aquilonar; porque aquela é a parte direita do mundo, ao passo que esta é a esquerda, como diz Aristóteles. A sabedoria pertencia à parte direita, assim como os outros bens espirituais; enquanto que a nutrição temporal, à esquerda, conforme a Escritura (Pr 3, 16): Na sua esquerda, as riquezas e a glória. Enfim, o poder sacerdotal é um meio termo entre as coisas temporais e a sabedoria espiritual, pois por ela é dispensada a sabedoria espiritual e as coisas temporais.
Mas também se pode dar dessas coisas outra razão, mais literal. — Na arca estavam contidas as tábuas da lei, para impedir o esquecimento dela; donde o dizer a Escritura (Ex 24, 12): dar-te-ei duas tábuas de pedra e a lei e os mandamentos, que eu escrevi para ensinares os filhos de Israel. — A vara de Aarão estava aí colocada para reprimir a dissensão entre o povo e o sacerdócio do mesmo, conforme a Escritura (Nm 17, 10): Torna a levar a vara de Aarão para o tabernáculo do testemunho, para se guardar ali em memória dos rebeldes filhos de Israel. — O maná era conservado na arca, para comemorar o benefício que Deus fez aos filhos de Israel no deserto, e por isso, diz a Escritura (Ex 16, 32): Enche um gomor dele e guarde-se para todas as gerações futuras, para que saibam qual foi o manjar com que eu vos sustentei no deserto. — O candelabro foi instituído para a honorificência do tabernáculo; pois importa à magnificência da casa o ser bem iluminada. Tinha sete ramos, como diz Josefo, para significar os sete planetas, que iluminam todo o mundo. E foi colocado na parte austral, porque dela é que se movem os planetas, em relação a nós. — O altar, do timiama foi instituído para que sempre houvesse no tabernáculo o fumo do bom odor, quer para veneração do tabernáculo, quer também para remédio contra o mau cheiro, que necessariamente resultava do sangue derramado e da imolação dos animais. Pois, o fétido é desprezado como vil; ao passo que todos apreciam muito o que tem bom odor. — A mesa foi posta para significar que os sacerdotes, servidores do templo, deviam nele se alimentar. Por isso, só eles podiam comer dos doze pães superpostos na mesa, em memória das doze tribos, conforme se lê na Escritura (Mt 12, 4). E não estava colocada diretamente no meio, diante do propiciatório, para excluir o rito da idolatria. Porque os gentios, nos sacrifícios à lua, colocavam a mesa em frente do ídolo da lua; donde o dizer a Escritura (Jr 7, 18): as mulheres misturam a manteiga para fazerem tortas à rainha do céu. — O átrio, fora do tabernáculo, continha o altar dos holocaustos, onde se ofereciam a Deus, em sacrifício, das coisas pertencentes ao povo. E por isso, este podia ficar no átrio, e oferecia os seus bens a Deus, por mãos dos sacerdotes. Mas só os sacerdotes, a quem competia oferecer o povo a Deus, é que podiam ter acesso ao altar interior, no qual era oferecida a devoção e a santidade do povo. E esse altar estava colocado no átrio, fora do tabernáculo, para impedir o culto da idolatria; pois os gentios levantavam altares, dentro dos templos, para imolar aos ídolos. Quanto à razão figurada de todas essas coisas, pode ser descoberta na relação do tabernáculo com Cristo, a quem figura. Por onde, devemos considerar que, para designar a imperfeição das figuras legais, instituíram-se, no templo, diversas figuras significativas de Cristo. — Assim, é significado pelo propiciatório, porque ele é a propiciação pelos nossos pecados, como diz a Escritura (1 Jo 2, 2). E era conveniente fosse o propiciatório levado pelos Querubins, porque de Cristo foi escrito (Heb 1, 6): E todos os anjos de Deus o adorem. — Também a arca significa a Cristo, porque, assim como era construída de pau setim, assim, o corpo de Cristo é composto de membros puríssimos. Era dourada, porque Cristo é cheio de sabedoria e caridade, simbolizadas pelo ouro. Dentro da arca havia uma urna de ouro, isto é, a alma santa, que encerra o maná, i. é, toda a plenitude da divindade. E ainda nela estava a vara, i. é, o poder sacerdotal, porque Cristo foi constituído pontífice eterno. Também nelas estavam as tábuas do testamento, para significar que Cristo mesmo é legislador. — Demais, Cristo é simbolizado pelo candelabro, porque, ele próprio o disse (Jo 8, 12): Eu sou a luz do mundo. As sete lâmpadas significam os sete dons do Espírito Santo. — É também simbolizado pela mesa, porque Ele é o alimento espiritual, conforme a Escritura (Jo 6, 41-51): Eu sou o pão vivo; os doze pães significam os doze apóstolos ou a doutrina deles. Ou então, o candelabro e a mesa podem significar a doutrina e a fé da Igreja, que ilumina e refaz ao mesmo tempo. Também Cristo é simbolizado no duplo altar, o das holocaustos e o do timiama. Porque, por Ele, devemos oferecer a Deus todas as obras virtuosas, tanto aquelas pelas quais mortificamos a carne, como que oferecidas no altar dos holocaustos; como as que, com maior perfeição da mente, pelos desejos espirituais dos perfeitos, oferecemos a Deus em Cristo, como que no altar do timiama, conforme a Escritura (Heb 13, 15): Ofereçamos, pois, por ele a Deus sem cessar sacrifício de louvor.
Resposta à sétima. — O Senhor mandou se construísse um altar onde se deviam oferecer os sacrifícios e os dons, em honra de Deus e para sustento dos ministros, que serviam no tabernáculo. E sobre a construção desse altar, o Senhor deu duplo preceito.
Um, no princípio da lei, quando mandou que fizessem um altar de terra, ou ao menos, de pedras não lavradas; e demais, que não fizessem um altar elevado onde devessem subir por degraus. E isto para detestarem o culto da idolatria. Pois os gentios construíam aos ídolos altares ornados e altos, onde acreditavam haver algo da santidade e da divindade. Razão pela qual também o Senhor mandou (Ex 20, 24 ss): Não plantarás bosque nem árvore alguma ao pé do altar do Senhor teu Deus; porque os idólatras costumavam sacrificar debaixo das árvores, por causa da amenidade do lugar e da sombra. — E destes preceitos também há uma razão figurada. Pois, em Cristo, que é o nosso altar, devemos admitir a verdadeira natureza da carne, quanto à sua humanidade — e isso significa o construir um altar de terra; e também, quanto à divindade, devemos admitir nele a igualdade com o Pai — e isso significa o não subir por degraus ao altar. E nem devemos, ao lado de Cristo, admitir a doutrina dos gentios, que provoca a lascívia.
Feito porém o tabernáculo em honra de Deus, não eram para temer tais ocasiões de idolatria. Por isso, o Senhor mandou se fizesse, para os holocaustos, um altar de bronze, que estivesse patente a todo o povo; e de ouro, o altar do timiama, que só os sacerdotes viam. Assim, não era tanta a preciosidade do bronze, que provocasse o povo a alguma idolatria.
Mas, a Escritura dá como razão do preceito (Ex 20, 26) — não subirás por degraus ao meu altar — o que logo acrescenta: para que se não descubra a tua torpeza. Por onde, devemos considerar que também isso foi instituído para excluir a idolatria; pois, nos sacrifícios a Priapo, os gentios descobriam as partes pudendas. Mas depois, foi ordenado aos sacerdotes usassem calções que lhes cobrissem essas partes. E, assim, sem perigo, podia ser determinada uma altura tal do altar que, para oferecer os sacrifícios, a ele subissem por uns degraus de madeira, não permanentes, mas trazidos na hora do sacrifício.
Resposta à oitava. — O corpo do tabernáculo constava de umas tábuas eretas no sentido do comprimento, cobertas por dentro de umas cortinas de quatro cores variadas, o saber, de bisso retorcido, de cor de jacinto, de púrpura e de escarlata tinta duas vezes. Mas, essas cortinas cobriam só os lados do tabernáculo. No teto do mesmo havia uma coberta de peles tintas de roxo; e, sobre esta, outra de peles de carneiro tintas de vermelho; e por cima uma terceira, de umas peles de cabra, que cobriam, não só o teto do tabernáculo, mas desciam até a terra e cobriam, exteriormente, as tábuas do mesmo.
Ora, desta coberta, a razão literal, em comum, era servir de ornato e proteção do tabernáculo, de modo que este fosse reverenciado. Em especial, porém, segundo alguns, as cortinas designam o céu sidéreo, cheio de diversas e variegadas estrelas. As peles de cabra, as águas que estão sobre o firmamento; as tintas de vermelho, o céu empíreo, em que estão os anjos; as tintas de roxo, o céu da santa Trindade.
A razão figurada dessas coisas é a seguinte. As tábuas, de que o tabernáculo era construído, significavam os fiéis de Cristo, de que é a Igreja construída. O tabernáculo era coberto por dentro de tábuas de quatro cores, porque os fiéis são ornados interiormente de quatro virtudes. Pois, como diz a Glosa, o bisso retorcido significa a carne resplendente pela castidade; o jacinto, a mente desejosa das coisas celestes; a púrpura, a carne sujeita ao sofrimento; a escarlata tinta duas vezes, a mente refulgente entre os sofrimentos por amor de Deus e o amor do próximo. As cobertas do teto designam os prelados e os doutores, que devem brilhar pela vida repassada das coisas celestes, o que é simbolizado pelas peles de cor de jacinto; pela prontidão para o martírio, simbolizado pelas de escarlata tintas duas vezes; pela austeridade de vida e a paciência nas adversidades, simbolizado pelas de cabra, que estavam expostas aos ventos e às chuvas, como diz a Glosa.
Resposta à nona. — A santificação do tabernáculo e dos seus vasos tem uma causa literal, que era fazer com que fossem tidos na maior reverência, como destinados que eram ao culto divino por essa consagração. — A razão figurada é que essa santificação significa a espiritual, do tabernáculo vivo, i. é, dos fiéis, que constituem a Igreja de Cristo.
Resposta à décima. — Na lei antiga havia sete solenidades temporais e uma contínua, como se pode coligir da Escritura (Nm 28; 29). — Havia uma festividade quase contínua, porque todos os dias, de manhã e de tarde, era imolado o cordeiro. E essa contínua festividade de um sacrifício perene representa a perpetuidade da beatitude divina.
Das festas temporais, a primeira era a que se renovava em cada semana. E essa era a solenidade do Sábado, celebrada em memória da criação das coisas, como já se disse. — Outra a que se repetia cada mês, era a da Neomenia, celebrada para comemorar a obra do governo divino. Pois, as coisas do nosso mundo inferior variam principalmente conforme o movimento da lua. Por isso, celebrava-se essa festa na lua nova; e não no plenilúnio, para evitar o culto dos idólatras, que, nesse tempo, prestavam à lua. — E como esses dois referidos benefícios são comuns a todo o gênero humano, essas festas se repetiam mais freqüentemente.
As outras cinco festas celebravam-se uma vez por ano, e nelas se rememoravam os benefícios especialmente feitos ao povo judeu. — Assim, celebrava-se a festa da Fase, no primeiro mês, para comemorar o benefício da libertação do Egito. — A de Pentecostes, depois de cinqüenta dias, para rememorar o benefício da lei que lhes foi dada.
As outras três festas eram celebradas no sétimo mês, que, como o sétimo dia, era quase inteiramente solene, para os judeus. — Assim, no primeiro dia do sétimo mês, havia a festa das Trombetas, em memória da liberação de Isaac, quando Abraão encontrou o carneiro preso pelos chifres, o qual representavam pelas cornetas em que buzinavam. — E era a festa das Trombetas um quase convite para se prepararem para a festa seguinte, celebrada no décimo dia. Era essa a da Expiação, em memória do benefício de ter-se Deus tornado propício ao povo, a pedido de Moisés, depois do pecado da adoração do bezerro. — A seguir, celebravam a da Scenopegia, i. é, dos Tabernáculos, durante sete dias, para comemorar o benefício da divina proteção, guiando-os pelo deserto, onde habitaram em tabernáculos. Por isso, nesse dia, deviam tomar o fruto da árvore mais formosa, i. é, do limoeiro; e uma árvore de densas folhas, i. é, a murta, cujas folhas são odoríferas; e folhas de palmeira; e salgueiros da torrente, que conservam por muito tempo o verdor. Tudo isso se encontra na terra da promissão, e era para significar que Deus os conduziu através da terra árida do deserto, para uma terra deliciosa. — No oitavo dia celebrava-se outra festa, a da Congregação e do Ajuntamento, em que se recebia do povo o necessário para as despesas com o culto divino. E significava a união do povo e a paz concedida na terra da promissão.
As razões figuradas dessas festas são as seguintes. O sacrifício perene do cordeiro figura a perpetuidade de Cristo, que é o Cordeiro de Deus, conforme a Escritura (Heb 13, 8): Jesus Cristo era ontem e é hoje; o mesmo será também por todos os séculos. — O Sábado designa a réquie espiritual, que Cristo nos deu, como se lê na Escritura (Heb 4). — A Neomênia, começo da lua nova, significa a iluminação da primitiva Igreja por Cristo, quando pregava e fazia milagres. — A festa de Pentecostes simboliza a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos. — A das Trombetas, a pregação dos Apóstolos. — A da Expiação, a purificação dos pecados do povo cristão. — A dos Tabernáculos, a peregrinação dos cristãos neste mundo, onde passam progredindo nas virtudes. — A da Congregação e do Ajuntamento, a congregação dos fiéis no reino celeste; e por isso essa festa era considerada santíssima. E essas três festas eram contínuas, umas em relação às outras; porque é necessário progridam na virtude os que expiaram os vícios, até chegarem à visão de Deus, como diz a Escritura (Sl 83, 8).
(In Psalm. XXXIX; In Isaiam., cap. I; In Ioann., cap. I, lect. XIV).
O terceiro discute-se assim. — Parece que não se pode assinalar razão conveniente das cerimônias relativas aos sacrifícios.
1. — Pois, no sacrifício se oferecia o necessário ao sustento da vida humana, como certos animais e certos pães. Ora, Deus não precisa de tal sustento, conforme a Escritura (Sl 49, 13): Porventura comerei carnes de touros? Ou beberei sangue de cabrito? Logo, inconveniente era oferecer tais sacrifícios a Deus.
2. Demais. — No sacrifício divino não se ofereciam senão animais quadrúpedes dos três gêneros seguintes: bois, ovelhas e cabras. E quanto às aves, em geral, a rôla e a pomba; e em especial, para a cura dos leprosos, fazia-se o sacrifício de pardais. Ora, muitos animais há mais nobres que esses. E como devemos oferecer a Deus tudo o que é ótimo, resulta que se lhe deviam oferecer sacrifícios não só dos animais supra-referidos.
3. Demais. — Assim como o homem recebeu de Deus o domínio sobre as aves e os animais, assim também sobre os peixes. Logo, inconveniente era excluir a estes do sacrifício divino.
4. Demais. — Ordenava-se oferecem-se indiferentemente rôlas e pombas. Por onde, assim como mandavam oferecer os filhotes dos pombos, assim também deviam mandar se oferecessem os das rôlas.
5. Demais. — Deus é o autor da vida, não só dos homens, mas também dos animais, como é claro pelo que diz a Escritura (Gn 1, 20). Ora, a morte se opõe à vida. Logo, não deviam oferecer a Deus animais mortos, mas ao contrário vivos, e tanto mais quanto também o Apóstolo adverte (Rm 12, 1): ofereçamos os nossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus.
6. Demais. — Se a Deus não se deviam oferecer em sacrifícios senão animais mortos, parece que não se devia fazer nenhuma diferença entre os modos por que o era. Logo, inconveniente era determinar o modo da imolação, sobretudo no que respeita às aves, como se vê na Escritura (Lv 1, 15 ss).
7. Demais. — Toda imperfeição do animal é via para a corrupção e a morte. Se pois se ofereciam a Deus animais mortos, era inconveniente proibir a oferta de qualquer animal imperfeito, p. ex., manco, cego ou com algum outro defeito.
8. Demais. — Os que oferecem vítimas a Deus devem participar delas, conforme aquilo do Apóstolo (1 Cor 10, 18): os que comem as vítimas por ventura não tem parte com o olhar? Logo, era inconveniente subtrair aos oferentes certas partes das vítimas, como o sangue e a gordura, o peitinho e a espádua direita.
9. Demais. — Assim como os holocaustos eram oferecidos em honra de Deus, assim também o eram as hóstias pacíficas e as pelo pecado. Ora, nenhum animal do sexo feminino era oferecido a Deus como vítima; faziam-se entretanto holocaustos tanto de quadrúpedes, como de aves. Logo, era inconveniente oferecer animais do sexo feminino, como hóstias pacíficas e pelo pecado, sem entretanto, se oferecerem aves para esse mesmo fim.
10. Demais. — Todas as hóstias pacíficas se consideravam como de um só gênero. Logo, não se devia fazer diferença entre as hóstias, cuja carne não se podia, e outros, de que se podia comer no dia seguinte, como se lê na Escritura (Lv 7, 15 ss).
11. Demais. — Todos os pecados tem isto de comum o afastarem de Deus. Logo, devia se oferecer um só gênero de sacrifícios, por todos os pecados, para reconciliar com Deus.
12. Demais. — Todos os animais oferecidos em sacrifícios, o eram de um mesmo modo, i. é, mortos. Logo, não parece conveniente se fizessem oblações de diversos modos de todos os produtos da terra; pois, ora, eram oferecidas espigas, ora, flor de farinha, ora, pão cozido, umas vezes, no forno, outras, em frigideira, outras, em grelhas.
13. Demais. — Devemos reconhecer como provindo de Deus tudo o que temos para o nosso uso. Logo, era inconveniente, além dos animais, oferecer a Deus só pão, vinho, azeite, incenso e sal.
14. Demais. — Os sacrifícios de corpos exprimem o sacrifício interno do coração, pelo qual o homem oferece o seu espírito a Deus. Ora, nesse sacrifício interior há mais da doçura, representada pelo mel, do que do picante, representado pelo sal, conforme o dito da Escritura (Sr 24, 27): o meu espírito é mais doce que o mel. Logo, inconvenientemente se proibia trazer, para o sacrifício, mel e fermento, que também dá sabor ao pão; e se mandava oferecer sal, que é picante, e incenso, que é amargo de sabor. — Logo, as coisas pertencentes às cerimônias dos sacrifícios não tinham causa racional.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Lv 1, 13): o sacerdote queimará tudo sobre o altar em holocausto e suave cheiro para o Senhor. Ora, como se diz noutro lugar (Sb 7, 28), Deus a ninguém ama senão ao que habita com a sabedoria. Donde se pode concluir que tudo o que é recebido por Deus o é com sabedoria. Logo, aquelas cerimônias dos sacrifícios se fundavam em sabedoria, tendo, como tinham, causas racionais.
Solução. — Como já se disse (a. 2), as cerimônias da lei antiga tinham dupla causa: uma literal, pela qual se ordenavam ao culto de Deus; outra, figurada ou mística, enquanto ordenadas a figurar Cristo. E, num e noutro caso, podemos convenientemente assinalar a causa das cerimônias relativas aos sacrifícios.
Assim, enquanto se ordenavam ao culto de Deus, de dois modos podemos compreender a causa dos sacrifícios. — De um modo, enquanto representavam a ordenação da mente para Deus, para quem se elevava o que oferecia o sacrifício. Ora, a ordenação reta da mente para Deus consiste em o homem considerar como procedente dele, como do primeiro princípio, todas as coisas que tem; e para ele as ordenar, como para o último fim. E isto era expresso pelas oblações e sacrifícios, pelos quais o homem oferecia das suas coisas em honra de Deus, como em reconhecimento de as ter recebido d'Êle, conforme o que disse Davi (1 Cr 29, 14): Tudo é teu; e o que recebemos da tua mão, nós isso mesmo te oferecemos. Por onde, na oblação dos sacrifícios o homem proclamava que Deus é o princípio primeiro da criação das coisas, e o fim último a que tudo se deve referir. — E como a ordenação reta da mente para Deus consiste em a mente humana não reconhecer nenhum outro princípio, autor das coisas, senão só Deus, nem constituir o seu fim em nenhuma outra coisa, por isso a lei proibia oferecer sacrifício a quem quer que fosse, exceto Deus, conforme àquilo (Ex 22, 20): aquele que sacrificar aos deuses, à exceção só do Senhor, morrerá. Por onde e de outro modo, podemos dar a razão da causa das cerimônias relativas ao sacrifício, dizendo, que por elas os homens deixavam de fazer sacrifícios aos ídolos. Por isso, também os preceitos sobre os sacrifícios não foram dados ao povo judeu, senão depois que caiu na idolatria, adorando um bezerro de metal fundido. Sendo assim, esses sacrifícios foram instituídos, para que o povo, pronto a sacrificar, os oferecesse antes a Deus que aos ídolos. Donde o dizer Jeremias (Jr 7, 22) — Eu não falei com vossos pais, nem lhes mandei, no dia em que os tirei da terra do Egito, coisa alguma acerca dos holocaustos e das vítimas.
Dentre todos os dons, porém, que Deus fez ao gênero humano, já caído no pecado, o principal foi o de seu Filho. Donde o dizer a Escritura (Jo 3, 16): assim amou Deus ao mundo, que lhe deu o seu Filho unigênito, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Por isso, o maior dos sacrifícios foi o de Cristo, que se entregou a si mesmo, em odor de suavidade, no dizer da Escritura (Ef 5, 2). E, todos os outros sacrifícios da lei antiga eram oferecidos para figurarem esse sacrifício singular e precípuo, como o perfeito é figurado pelo imperfeito. Donde o dito do Apóstolo (Heb 10, 11), que o sacerdote da lei antiga oferecia muitas vezes as mesmas hóstias, que nunca podem tirar os pecados; mas, Cristo, ofereceu uma só hóstia pelos pecados, sempiternamente. E como do figurado se deduz a razão de ser da figura, as razões dos sacrifícios figurativos da lei antiga devem-se deduzir do verdadeiro sacrifício de Cristo.
Donde a resposta à primeira objeção. — Deus não queria que tais sacrifícios lhe fossem oferecidos, por causa das coisas mesmas oferecidas, como se delas precisasse; donde o dizer a Escritura (Is 1, 11): não quero mais holocaustos de carneiro, nem gordura d'animais médios, nem sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Mas, queria que lh'os oferecessem como já se disse, quer para excluir a idolatria, quer para fazer sentir a ordem devida da mente humana para Deus; quer também para figurar o mistério da redenção humana operado por Cristo.
Resposta à segunda. — Havia uma razão conveniente para que fossem oferecidos a Deus em sacrifício todos esses animais referidos e não, outros. — A primeira era para excluir a idolatria. Porque todos os outros animais os idólatras os ofereciam aos seus deuses, ou deles usavam para malefícios. Ao passo que era abominável imolar os animais referidos, entre os egípcios, com quem conviviam os judeus; e por isso aqueles não os ofereciam aos seus deuses, em sacrifício. Por isso, diz a Escritura (Ex 8, 26): Viremos a fazer sacrifícios ao Senhor nosso Deus, o que os Egípcios têm por uma abominação. Pois, prestavam culto às ovelhas; veneravam os bodes, porque na figura deles os demônios apareciam; e enfim, usavam dos bois para a agricultura, que tinham como parte das coisas sagradas. — A segunda razão era por serem os sacrifícios desses animais convenientes para a referida ordenação da mente para Deus. E isto de dois modos. Primeiro, porque com esses animais é que sobretudo se sustenta a vida humana; e sendo eles os mais puros, dão a mais pura nutrição. Ao passo que, dos outros animais, uns são silvestres e não apropriados comumente ao uso dos homens; ou, se domésticos, proporcionam nutrição imunda, como o porco e a galinha. Ora, só o que é puro devemos oferecer a Deus. Quanto às aves referidas, eram as especialmente sacrificadas, por existirem copiosamente na terra da promissão. Segundo, porque a imolação desses animais designava a pureza da mente. Pois, diz a Glosa: oferecemos o bezerro, quando vencemos a soberba da carne; o cordeiro, quando corrigimos os movimentos irracionais; o bode, quando superamos a lascívia; a pomba, quando somos simples; a rola, quando guardamos a castidade; os pães ázimos, quando nos nutrimos do ázimo da sinceridade.Pois, é manifesto, que a pomba exprime a caridade e a simplicidade do coração. — Em terceiro lugar, era conveniente serem oferecidos tais animais, como figurando a Cristo. Pois, diz a mesma Glosa: Cristo era oferecido no bezerro, por causa da virtude da cruz; no cordeiro, por causa da inocência; no carneiro, por causa do principado; no bode, por causa da semelhança com a carne do pecado; na rôla e na pomba, mostrava-se a união das duas naturezas; ou a rola significava a castidade, e a pomba, a caridade. Com flor de farinha, figurava-se a aspersão dos crentes pela água do batismo.
Resposta à terceira. — Os peixes, que vivem na água, são mais alheios ao homem que os outros animais, que vivem no ar, como ele próprio. E além disso, tirados dela logo morrem; por isso não podiam, como os outros animais, ser oferecidos no templo.
Resposta à quarta. — As rolas já crescidas são melhores que os filhotes; com as pombas, porém, dá-se o contrário. Por isso, como diz Rabbi Moisés, mandavam se oferecer rolas e filhotes de pombas; porque devemos oferecer a Deus tudo o que é ótimo.
Resposta à quinta. — Os animais oferecidos em sacrifício eram mortos, para assim, serem consumidos pelos homens; pois Deus lhos deu como alimento. E também eram queimados no fogo, porque, cozidos nele, se tornam apropriados à alimentação humana. — Semelhantemente, a imolação dos animais significava a destruição dos pecados; e que os homens eram dignos de morte, pelos seus pecados, isso significando esses animais sacrificados em lugar deles, para a expiação de tais pecados. — E também a imolação desses animais significava a imolação de Cristo.
Resposta à sexta. — A lei determinava um modo especial de imolar os animais, para excluir outros modos pelos quais os idólatras os imolavam aos ídolos. Ou também, como diz Rabbi Moisés, a lei escolhia o gênero de morte que menos fizesse sofrer os animais imolados, pelo que também se excluía a falta de misericórdia dos oferentes, e a deterioração dos animais mortos.
Resposta à sétima. — Os animais defeituosos são de ordinário desprezados, mesmo pelos homens; por isso era proibido oferecê-los em sacrifício a Deus. Pela mesma razão era proibido oferecer na casa de Deus o ganho da prostituta ou o preço do cão. E por isso também não ofereciam animais antes do sétimo dia de terem nascido; por serem quase abortivos e não ainda plenamente constituídos, pela sua tenra idade.
Resposta à oitava. — Havia três gêneros de sacrifícios. — Um era aquele em que se consumiam totalmente as vítimas; e por isso se chamava holocausto, que significa queimado totalmente. E esse sacrifício era oferecido a Deus especialmente para Lhe reverenciar a majestade e o amor da sua bondade; e convém ao estado de perfeição, no implemento dos conselhos. Por isso tudo se queimava para significar que, assim como o animal todo, resolvido em vapor, sobe aos ares, assim também o homem todo, com tudo o que lhe pertence, está sujeito ao domínio de Deus, a quem deve oferecer-se.
Outro era o sacrifício pelos pecados, oferecido a Deus, pela necessidade de os remir; e convém ao estado dos penitentes para a satisfação dos pecados. Continha duas partes, das quais, uma se queimava e cedia-se a outra para ser consumida pelos sacerdotes, para significar que a expiação dos pecados sefaz por Deus, pelo ministério dos sacerdotes. Salvo, quando o sacrifício era oferecido pelo pecado de todo o povo, ou especialmente, pelo do sacerdote; pois então as vítimas eram totalmente queimadas. Porque não devia destinar-se a alimento dos sacerdotes o que era oferecido pelo pecado deles, para que neles não ficasse nada de pecaminoso. E porque, em tal caso, não haveria satisfação pelo pecado; pois, se as vítimas devessem ser comidas por aqueles por cujos pecados eram oferecidas, seria o mesmo que não o terem sido.
O terceiro sacrifício era o chamado hóstia pacífica, oferecido a Deus, ou em ação de graças, ou pela saúde e prosperidade dos oferentes, como dívida do benefício a receber ou já recebido. E convém ao estado dos que progridem, no cumprir os mandamentos. E estes sacrifícios continham três partes, das quais, uma era queimada em honra de Deus; a outra cedia-se para ser comida pelos sacerdotes; a terceira, enfim, para ser comida pelos oferentes. Isto tudo para significar que a salvação do homem vem de Deus, sob a direção dos seus ministros, e com a cooperação dos próprios homens que são salvos.
Além disso, era geralmente observado, que o sangue e a gordura não deviam ser comidos pelos sacerdotes nem pelos oferentes. Sendo o sangue derramado na base do altar, em honra de Deus; e a gordura, consumida no fogo. — E uma razão disso era excluir a idolatria; pois, os idólatras bebiam o sangue das vítimas e comiam as gorduras, conforme a Escritura (Dt 32, 38): De cujas vítimas comiam as banhas e bebiam o vinho das libações. — A segunda razão era a direção da vida humana. Pois, proibia-se o uso do sangue para causar horror da efusão do sangue humano; donde o dizer a Escritura (Gn 9, 4-5): Não comereis carne com sangue; porque eu requererei o sangue das vossas almas. E comer as gorduras, para evitar a lascívia; donde a Escritura (Ez 34, 3): matáveis o que era mais gordo. — A terceira razão se fundava na reverência divina. Pois, o sangue é o que há de mais necessário à vida, vindo de aí o dizer-se, que a alma está no sangue; ao passo que a gordura indica a abundância da nutrição. Por onde, para se mostrar que de Deus nos vem a vida e a abundância de todos os bens, em honra d'Êle se derramava o sangue e queimava a gordura. — A quarta razão era que a efusão do sangue significava a do sangue de Cristo; e a gordura, a abundância da sua caridade, pela qual se ofereceu a Deus por nós.
Das hóstias pacíficas cediam-se para serem comidos pelos sacerdotes, o peitinho e a espádua direita, para excluir uma certa espécie de adivinhação, chamada espatulamância. Pois faziam-se adivinhações com as espáduas dos animais imolados e, semelhantemente, com os ossos do peito; razão pela qual dessas partes eram privados os oferentes. — Mas isso também significava que ao sacerdote era necessária a sabedoria do coração, para instruir o povo, significada pelo peito, que cobre o coração; e também a fortaleza, para suportar os defeitos, significada pela espádua direita.
Resposta à nona. — Como o holocausto era o perfeitíssimo dos sacrifícios, só o macho era desse modo oferecido, porque a fêmea é um animal imperfeito. Por outro lado, a oblação das rolas e das pombas era por causa da pobreza dos oferentes, que não podiam oferecer animais maiores. E como as hóstias pacíficas eram oferecidas gratuitamente, e ninguém as oferecia obrigado, senão espontaneamente, as aves referidas não eram oferecidas como hóstias dessa espécie, mas como holocaustos e vítimas pelo pecado, que às vezes era necessário oferecer. E demais, essas aves, por causa da altura do seu vôo, convinham à perfeição dos holocaustos; e também a serem vítimas pelo pecado, por terem, como canto, o gemido.
Resposta à décima. — O holocausto era o principal dentre todos os sacrifícios; porque a vítima toda era queimada em honra de Deus e nada dela se comia. — O segundo lugar, na santidade, tinha-o a vítima pelo pecado, comida só no átrio, pelos sacerdotes, no dia mesmo do sacrifício. — O terceiro, era o da vítima pacífica, em ação de graças, comida no mesmo dia, mas em todos os lugares de Jerusalém. — O quarto, o da hóstia pacífica, em virtude de voto, cujas carnes podiam ser comidas no dia seguinte. — E a razão desta ordem é que o homem tem obrigações, para com Deus, sobretudo, por causa da sua majestade; em segundo lugar, por causa da ofensa cometida; em terceiro, pelos benefícios já recebidos; em quarto, pelos benefícios esperados.
Resposta à undécima. — Os pecados se agravam pelo estado do pecador, como dissemos (q. 73, a. 10). Por isso, mandavam-se oferecer as outras vítimas pelo pecado do sacerdote e do príncipe, ou de alguma pessoa privada. Pois, deve-se atender, como diz Rabbi Moisés, a que, quanto mais grave era o pecado, tanto mais vil era a espécie do animal por ele oferecida. Por isso, a cabra, o mais vil de todos, era oferecida pela idolatria, o gravíssimo dos pecados; ao passo que, pela ignorância do sacerdote, era oferecido um bezerro; e pela negligência do príncipe, um bode.
Resposta à duodécima. — A lei, nos sacrifícios, quis prover à pobreza dos oferentes. De modo que, quem não pudesse ter um quadrúpede, oferecesse pelo menos uma ave; o que não a pudesse ter, oferecesse ao menos um pão; e quem ainda esse não o pudesse ter, oferecesse ao menos farinha ou espigas. — E a causa figurada disso era que o pão significava Cristo, pão vivo, como diz a Escritura (Jo 6, 41-51). E Cristo, na fé dos patriarcas, existia como espiga, no estado da lei da natureza; como flor de farinha, na doutrina da lei e dos profetas; como pão formado, depois que assumiu a humanidade; como pão cozido, i. é, formado pelo Espírito Santo, no forno do útero virginal;que também foi cozido em frigideira, por causa dos trabalhos que sofreu no mundo; e enfim, na cruz, como que queimado em grelhas.
Resposta à décima terceira. — Os produtos da terra, de que o homem lança mão, ou lhe servem de comida, e desses se oferecia o pão; ou de bebida, dos quais se oferecia o vinho; ou de condimento, e dentre esses se oferecia o azeite e o sal; ou de remédios, e dentre esses se oferecia incenso, que é aromático e fortificante. — Ora, o pão figurava a carne de Cristo; o vinho, o seu sangue, que nos remiu; o azeite, a graça de Cristo; o sal a ciência; o incenso, a oração.
Resposta à décima quarta. — O mel não era oferecido em sacrifício a Deus, quer por costumarem oferecê-lo em sacrifício aos ídolos; quer, também para excluir toda doçura carnal e todo prazer dos que pretendiam sacrificar a Deus. O fermento não era oferecido, para excluir a corrupção; e talvez também era costume oferecê-lo nos sacrifícios aos ídolos. O sal o era, por impedir a corrupção pútrida, pois os sacrifícios a Deus deviam ser puros; etambém porque o sal significava a discreção da sabedoria, ou ainda, a mortificação da carne. O incenso era oferecido a Deus, para significar a devoção do coração, necessária aos oferentes; e também o odor da boa fama, pois o incenso é resinoso e odorífero. E como o sacrifício da inveja não procedia da devoção, mas antes, da suspeição, nele não se oferecia incenso.
(Ad Rom., cap. IV, lect. II).
O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos cerimoniais não tinham causa literal, mas só figurada.
1. — Pois, dentre os preceitos cerimoniais, os principais eram a circuncisão e a imolação do cordeiro pascal. Ora, uma e outra tinham só causa figurada, porque só como sinais foram estabelecidos, conforme a Escritura (Gn 17, 11): Circuncidareis a carne do vosso prepúcio, para que seja o sinal do concerto que há entre mim e vós. E da celebração da Páscoa diz (Ex 13, 9): Será como um sinal na tua mão, e como um memorial diante de teus olhos. Logo, com maior razão, os outros preceitos cerimoniais só tinham causa figurada.
2. Demais. — O efeito se proporciona à sua causa. Ora, todos os preceitos cerimoniais eram figurados, como se disse (q. 101, a. 2). Logo, não tinham causa senão figurada.
3. Demais. — O que é indiferente a ser cumprido de um ou de outro modo não pode ter causa literal. Ora, certos preceitos cerimoniais eram indiferentes a serem cumpridos de um modo ou de outro, como, p. ex., os que se referiam ao número dos animais a serem oferecidos, e em outras semelhantes circunstâncias particulares. Logo, os preceitos da lei antiga não tinham razão literal.
Mas, em contrário. — Assim como os preceitos cerimoniais figuravam a Cristo, assim também as histórias do Velho Testamento; pois, diz a Escritura (1 Cor 10, 11): todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Ora, nas histórias do Velho Testamento, além do sentido místico ou figurado, há também um sentido literal. Logo, também os preceitos cerimoniais além das causas figuradas, tinham causas literais.
Solução. — Como já se disse (a. 1), a razão dos meios há de ser deduzida da do fim. Ora, duplo era o fim dos preceitos cerimoniais, pois ordenavam-se ao culto de Deus, naquele tempo, e a figurar a Cristo; assim como também as palavras dos profetas diziam respeito ao tempo presente, mas também representavam figuradamente o futuro, como diz Jerônimo.
Por onde, as razões dos preceitos cerimoniais da lei antiga são susceptíveis de dupla consideração. Primeiro, em razão do culto divino, que naquele tempo devia ser observado. E essas razões eram literais, quer dissessem respeito a evitar o culto da idolatria, quer a rememorar certos benefícios de Deus, quer a insinuar a excelência divina, quer ainda à por à mostra a disposição da mente então exigida dos que cultuavam a Deus. — Em segundo lugar, as razões desses preceitos podem ser fundadas em se ordenarem a figurar a Cristo. E assim tinham razões figuradas e místicas, quer deduzidas de Cristo mesmo e da Igreja, o que pertence à alegoria; quer por serem relativas aos costumes do povo cristão, o que pertence à moralidade; quer ao estado da glória futura, enquanto somos nela introduzidas por Cristo, o que pertence à analogia.
Donde a resposta à primeira objeção. — Assim como o sentido da locução metafórica, na Escritura, é literal, porque as palavras foram expressas para terem tal significação; assim também as significações das cerimônias da lei — comemorativas dos benefícios de Deus, por causa dos quais foram instituídas, — ou de instituições semelhantes, que diziam respeito a esse estado, não transcendem a ordem das causas literais. Por onde, por uma causa literal é que se determinou a celebração da Páscoa, porque era o sinal da libertação do cativeiro do Egito; e a circuncisão, que era sinal do pacto feito entre Deus e Abraão.
Resposta à segunda. — A objeção procederia se os preceitos cerimoniais tivessem sido dados só para figurar o futuro, e não para nesse tempo cultuar a Deus.
Resposta à terceira. — Assim como, conforme já dissemos (q. 96, a. 1) as leis humanas se fundam na razão universal, e não em condições particulares dependentes do arbítrio dos que as instituem, assim também, muitas determinações particulares das cerimônias da lei antiga, não tinham nenhuma causa literal, senão só figurada; mas, em comum, também tinham causa literal.
O primeiro discute-se assim. — Parece que os preceitos cerimoniais não tem causa.
1. — Pois, aquilo da Escritura (Ef 2, 15) — Abolindo com os seus decretos a lei dos preceitos — diz a Glosa: Isto é, abolindo a lei antiga, quanto às observâncias carnais, com decretos, i. é, com os preceitos evangélicos, fundados na razão. Ora, se as observâncias da lei antiga eram fundadas na razão, seriam abolidas em vão pelos decretos racionais da lei nova. Logo, as observâncias cerimoniais da lei não se fundavam em nenhuma razão.
2. Demais. — A lei antiga sucedeu à lei da natureza. Ora, nesta havia um preceito, que não tinha nenhuma razão de ser, senão provar a obediência do homem, como diz Agostinho, sobre a proibição da árvore da vida. Logo, também a lei antiga devia estabelecer certos preceitos, que provassem a obediência do homem, e que, em si mesmos, nenhuma razão de ser tivessem.
3. Demais. — Chamam-se morais as obras do homem procedentes da razão. Se pois os preceitos cerimoniais se fundassem nalguma razão, não haviam de diferir do morais. Logo, parece que aqueles não tem nenhuma causa; pois, a razão de um preceito é deduzida de alguma causa.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 18, 9): o preceito do Senhor é claro, que esclarece os olhos. Ora, os preceitos cerimoniais são de Deus. Logo, são claros; o que não seriam se não tivessem uma causa racional.
Solução. — Sendo próprio do sapiente ordenar, segundo o Filósofo, o procedente da sabedoria divina há de ser ordenado, como diz o Apóstolo (Rm 13, 1). Ora, para haver ordem duas condições se requerem. — A primeira, que ela tenha um fim devido, que é o princípio de toda a ordem dos nossos atos; pois, do que acontece por acaso, fora de uma intenção final, bem como do que se não faz seriamente, mas, por diversão, dizemos que é desordenado. — Em segundo lugar, é necessário seja o meio proporcionado ao fim; donde se segue que a razão dos meios se deduz do fim, assim como a razão da disposição da serra se tira do seu fim, que é cortar, como diz Aristóteles.
Ora, é manifesto, que os preceitos cerimoniais, bem como todos os outros preceitos da lei foram instituídos pela sabedoria divina; donde o dizer a Escritura (Dt 4, 6): esta é a vossa sabedoria e inteligência em face do povo. Por onde, é necessário concluir, que os preceitos cerimoniais eram ordenados a algum fim, donde se lhes possam assinalar as causas racionais.
Donde a resposta à primeira objeção. — As observâncias da lei antiga podem considerar-se sem razão por não terem razão, em si mesmas e por natureza, as coisas que se faziam; p. ex., que as vestes não fossem feitas de lã e de linho. Mas podiam ter razão relativamente à outra coisa, quer por a figurarem, quer por a excluírem. — Ao passo que os decretos da lei nova, principalmente consistentes na fé e no amor de Deus, pela própria natureza do ato são racionais.
Resposta à segunda. — A proibição da árvore da ciência do bem e do mal não se fundava em ser essa árvore naturalmente má; mas essa proibição, em si mesma, tinha a sua razão de ser em se ordenar a outra coisa, que figurava. E assim também os preceitos cerimoniais da lei antiga tinham a sua razão de ser no se ordenarem a outra coisa.
Resposta à terceira. — Os preceitos morais, como estes — não matarás, não furtarás — tem por natureza causas racionais. Ao passo que os cerimoniais tiram as suas causas racionais de se ordenarem para outro fim, como se disse.
Em seguida devemos tratar das causas dos preceitos cerimoniais.
E nesta questão discutem-se seis artigos: