Category: Santo Tomás de Aquino
Em seguida devemos tratar dos preceitos judiciais. E primeiro, devemos considerá-los em comum. Segundo, as suas razões.
Na primeira questão discutem-se quatro artigos:
(Infra, q. 104, a. 3; q. 107, a. 2 ad 1; Iª-IIªª, q. 93, a. 7; IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5; qª 3,4; Ad Rom., cap. XIV, lect. I; Ad Galad., cap. II, lect. III; cap. 5, lect. I; Ad Coloss., cap. II, lect. IV).
O quarto discute-se assim. — Parece que depois da paixão de Cristo, podem-se observar as cerimônias legais, sem pecado mortal.
1. — Pois, não se pode crer que os Apóstolos, depois de terem recebido o Espírito Santo, pecassem mortalmente; pois, pela plenitude do Espírito, foram revestidos da virtude do alto, conforme a Escritura (Lc 24, 49). Ora, os Apóstolos, depois do advento do Espírito Santo, observaram a lei. Assim, a Escritura diz (At 16, 3), que Paulo circuncidou a Timóteo. E, noutro lugar (At 21, 26), que Paulo, por conselho de Tiago, depois de tomar consigo aqueles varões, purificado com eles, no seguinte dia entrou no templo, fazendo saber o cumprimento dos dias da purificação, até que se fizesse a oferenda por cada um deles. Logo, as cerimônias legais podem ser observadas, depois da paixão de Cristo, sem pecado mortal.
2. Demais. — Pertencia às cerimônias da lei evitar a convivência com os gentios. Ora, isto foi observado pelo primeiro pastor da Igreja, conforme aEscritura (Gl 2, 12): quando chegaram os que vieram a Antioquia, Pedro subtraía-se e separava-se dos gentios. Logo, sem pecado, depois da paixão de Cristo, podem observar-se as cerimônias da lei.
3. Demais. — Os preceitos dos Apóstolos não podiam induzir os homens ao pecado. Ora, por decisão dos Apóstolos, foi estabelecido, que os gentios observassem algumas das disposições da lei, como se lê na Escritura (At 15, 28-29): Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargos do que os necessários, que são estes: a saber, que vos abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos, e do sangue e das carnes sufocadas e da fornicação. Logo, sem pecado, as cerimônias legais podem ser observadas, depois da paixão de Cristo.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 5, 2): se vos fazeis circuncidar, Cristo não vos aproveitará nada. Ora, só o pecado mortal faz perder o fruto da paixão de Cristo. Logo, observar a circuncisão e as outras cerimônias da lei, depois dessa paixão, é pecado mortal.
Solução. — Todas as cerimônias da lei eram uma afirmação de fé, na qual consiste o culto interno de Deus. Ora, a fé interior o homem pode manifestá-la por atos e por palavras; e, em ambos os casos, quem afirmar alguma coisa falsamente comete pecado mortal. Pois, embora seja a fé que temos em Cristo a mesma que tiveram os antigos Patriarcas, contudo, como eles o precederam e nós viemos depois, a mesma fé é expressa por nós e por eles por palavras diferentes. Assim, a eles se lhes disse: Eis que uma virgem conceberá no seu ventre e dará à luz um filho, sendo o verbo empregado no futuro; ao contrário, nós o afirmamos com o verbo no passado: concebeu no seu ventre e deu à Luz. Semelhantemente, as cerimônias da lei antiga significavam que Cristo havia de nascer e sofrer; ao passo que os nossos sacramentos significam que nasceu e sofreu.
Por onde, assim como pecaria mortalmente quem, afirmando a sua fé, dissesse, como os antigos pia e verdadeiramente faziam, que Cristo havia de nascer, assim também pecaria mortalmente quem agora observasse as cerimônias da lei, que os antigos observavam pia e fielmente. E é isto o que diz Agostinho: Já não é prometido como havendo de nascer, de sofrer, de ressurgir, conforme o significavam os sacramentos antigos; mas se anuncia que nasceu, sofreu, ressurgiu, conforme o significavam os sacramentos recebidos pelos Cristãos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Neste ponto diferem as opiniões de Jerônimo e de Agostinho. — Aquele distingue dois tempos. Um anterior à paixão de Cristo, em que as cerimônias legais não eram peremptas, como se não tivessem, a seu modo, força obrigatória ou expiatória; nem mortíferas, porque não pecava quem as observasse. Mas logo depois da paixão de Cristo começaram, não só a ser letra morta, i. é, sem força e obrigatoriedade, mas também mortíferas, e assim pecava mortalmente quem quer que as observasse. Por isso dizia que os Apóstolos nunca mais observaram essas cerimônias, depois da paixão verdadeira, mas só por uma como pia simulação, para os judeus não se escandalizarem e ficar-lhes impedida a conversão. Essa simulação deve ser entendida, não como querendo dizer, que não praticassem os referidos atos, na verdade das coisas, mas que não os praticavam como observantes das cerimônias da lei. Seria esse o caso daquele que cortasse o prepúcio do membro viril, por motivo de saúde, e não para observar a circuncisão legal.
Mas era inconveniente que os Apóstolos ocultassem, por causa do escândalo, o que pertence à verdade da vida e da doutrina, e usassem de simulação no atinente à salvação dos fiéis. Por isso e mais apropriadamente, Agostinho distingue três tempos. Um, anterior à paixão de Cristo, em que as cerimônias legais nem eram letra morta, nem mortíferas. Outro, posterior à divulgação do Evangelho, em que são letra morta e mortíferas. Um terceiro tempo é médio, isto é, compreendido entre a paixão de Cristo e a divulgação do Evangelho, em que eram, certo, letra morta, porque já não tinham nenhuma força nem estava ninguém obrigado a observá-las. Contudo não eram mortíferas, porque os judeus, que se converteram a Cristo, podiam observá-las licitamente; contanto que nelas não pusessem toda a esperança, de modo a reputarem-nas necessárias à salvação, como se, sem elas, a fé em Cristo não pudesse justificar. Os gentios porém, que se convertiam a Cristo, nenhuma razão tinham para observar tais cerimônias. Por isso Paulo circuncidou Timóteo, que era nascido de mãe judia; ao contrário, não quis circuncidar Tito, que nasceu gentio.
Por onde, o Espírito Santo não quis que se proibisse imediatamente aos judeus convertidos a observância dessas cerimônias, como o eram aos gentios convertidos os ritos da gentilidade. Isto para estabelecer uma diferença entre esses dois ritos. Pois, o da gentilidade era repudiado como absolutamente ilícito e sempre proibido por Deus; ao passo que o rito da lei cessava, como tendo a sua plenitude na paixão de Cristo e como instituído que fora por Deus para figurar Cristo.
Resposta à segunda. — Segundo Jerônimo, Pedro subtraía-se simuladamente aos gentios, para evitar o escândalo dos judeus, dos quais era o Apóstolo. Por isso, assim agindo, de nenhum modo pecou. Ao passo que Paulo repreendeu-o também simuladamente, para evitar o escândalo dos gentios, de quem era o Apóstolo.
Mas, Agostinho refuta essa opinião. Porque Paulo, na Escritura canônica, na qual não se pode crer que haja nada de falso, diz que Pedro era repreensível. Logo, é verdade que Pedro pecou e Paulo o repreendeu verdadeira e não, simuladamente. Ora, Pedro não pecou por ter observado, fora do tempo, as cerimônias da lei; pois, isso lhe era lícito, como judeu convertido. Mas pecou por ter posto demasiada diligência em observar tais cerimônias, para não escandalizar os judeus; de modo porém que daí resultava escândalo para os gentios.
Resposta à terceira. — Certos disseram, que a referida proibição dos Apóstolos não deve ser entendida em sentido literal, mas espiritual. De modo que, pela proibição do sangue se entenda a do homicídio; pela das carnes sufocadas, a da violência e da rapina; pela das vítimas imoladas, a da idolatria; a fornicação, enfim, era proibida por ser má em si mesma. E deduzem esta opinião de certas glosas, que expõem esses preceitos misticamente. — Mas como o homicídio e a rapina eram reputados ilícitos,mesmo entre os gentios, não era preciso, nesse ponto, fazer um mandamento especial aos que, da gentilidade se convertiam a Cristo.
Por isso outros dizem, que era proibido comer de tais causas, literalmente, não por causa da observância das cerimônias legais, mas para reprimir a gula. Por onde, Jerônimo, comentando aquilo da Escritura — Tudo o que por si mesmo haja morrido, etc. — diz: Condena os sacerdotes que, a propósito dos tordos e de aves semelhantes, não guardam tais mandamentos, por avidez da gula. — Mas como há certas comidas mais delicadas e provocadoras da gula, não havia razão para essas de que trata, serem, mais que outras, proibidas.
E portanto, devemos dizer, de conformidade com a terceira opinião, que essas comidas foram literalmente proibidas, não para se observarem as cerimônias da lei, mas para poder consolidar-se a união dos gentios e dos judeus, habitando em comum. Pois, aos judeus, por costume antigo, era abominável o sangue e as carnes sufocadas; e o comer do que fora imolado aos ídolos podia despertar-lhes, em relação aos gentios, a suspeita de que retornavam à idolatria. Por isso fizeram-se as referidas proibições, em tempo ainda recente, quando gentios e judeus deviam viver juntos. Mas, com o correr dos anos, cessando a causa, cessou o efeito, uma vez manifestada a verdade da doutrina evangélica, em que o Senhor ensina (Mt 15, 11), que não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem; e que (1 Tm 4, 4) não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Quanto à fornicação, foi especialmente proibida, pela não considerarem os gentios como pecado.
(IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5, qª 1, 2).
O terceiro discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei antiga não cessaram com o advento de Cristo.
1. — Pois, diz a Escritura (Br 4, 1): Este é o livro dos mandamentos de Deus, e a lei que subsiste eternamente. Ora, as cerimônias da lei a ela pertenciam. Logo, haviam de durar eternamente.
2. Demais. — A oblação do leproso purificado pertencia às cerimônias da lei. Ora, também o Evangelho preceitua ao leproso purificado fazer essas oblações. Logo, com a vinda de Cristo não cessaram as cerimônias da lei antiga.
3. Demais. — Permanecendo a causa, permanece o efeito. Ora, as cerimônias da lei antiga tinham certas causas racionais, enquanto ordenadas ao culto divino, além de se ordenarem a figurar a Cristo. Logo, as cerimônias da lei antiga não deviam cessar.
4. Demais. — A circuncisão foi instituída em sinal da fé de Abraão; a observação do sábado, para rememorar o benefício da criação; e as demais solenidades da lei, para lembrarem os outros benefícios de Deus, como já dissemos (q. 102, a. 4 ad 10; a. 5 ad 1). Ora, ainda nós devemos imitar a fé de Abraão; e devemos sempre rememorar o benefício da criação e os outros benefícios de Deus. Logo, pelo menos a circuncisão e as solenidades da lei não deviam cessar.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Cl 2, 16-17): Ninguém vos julgue pelo comer nem pelo beber, nem por causa dos dias de festa, ou das luas novas, ou dos sábados, que são sombras das coisas vindouras. E (Heb 8, 13): chamando-lhe novo testamento deu por antiquado o primeiro; e o que se dá por antiquado e envelhece perto está de perecer.
Solução. — Todos os preceitos cerimoniais da lei antiga ordenavam-se ao culto de Deus, como já dissemos (q. 101, a. 1, a. 2). Ora, o culto externo deve proporcionar-se ao interno, por consistir na fé, na esperança e na caridade. Por onde, à diversidade do culto externo devia corresponder a do interno. Ora, podemos distinguir três estados no culto interno. — Um, no qual se tem fé e esperança nos bens celestes e no que nos leva a esses bens; tudo porém considerado como coisas futuras. E tal foi o estado da fé e da esperança, na lei antiga. — Outro é o estado do culto interno, no qual se tem fé e esperança nos bens celestes, como em bens futuros; e nos meios que nos levam a esses bens, mas como meios presentes ou pretéritos. E este é o estado da lei nova. — O terceiro estado é o em que ambas essas coisas se crêem como presentes, e não se espera nada de futuro. E este é o dos bem-aventurados.
Ora, nesse estado da bem-aventurança, nada há de figurado no atinente ao culto divino senão só a ação de graças e louvor. E por isso diz a Escritura (Ap 21, 22): E não vi templo nela; porque o Senhor Deus todo poderoso e o cordeiro é o seu templo. Logo e pela mesma razão, as cerimônias do primeiro estado, que figuravam o segundo e o terceiro, deveram cessar, com o advento do segundo. E deviam ser estabelecidas outras cerimônias, convenientes ao estado do culto divino, para o tempo em que, sendo futuros os bens celestes, os benefícios de Deus, que nos levam aqueles bens, são presentes.
Donde a resposta à primeira objeção. — Diz-se que a lei antiga deve existir eternamente, absolutamente falando, quanto aos seus preceitos morais; e, quanto aos cerimoniais, no concernente à verdade por eles figurada.
Resposta à segunda. — O mistério da redenção do gênero humano ficou completo com a paixão de Cristo. Por isso então o Senhor exclamou (Jo 19, 30): Tudo está cumprido, como se lê na Escritura. E portanto, nesse momento teve de cessar todo o regime da lei antiga, cumprido por assim dizer na sua verdade. E em sinal disso, como se lê na Escritura, na paixão de Cristo o véu do templo rasgou-se (Mt 27, 51). Por onde, antes da paixão de Cristo, enquanto pregava e fazia milagres, vigoravam ao mesmo tempo a lei e o Evangelho, porque o seu mistério estava começado, mas ainda não cumprido. Pelo que, N. S. Jesus Cristo mandou, antes da sua paixão, o leproso observar as cerimônias legais.
Resposta à terceira. — As razões literais das cerimônias supra-referidas respeitam o culto divino, baseado na fé do que deveria vir. Por onde, com o advento do que devia vir, cessou esse culto, e com ele todas as razões que o justificavam.
Resposta à quarta. — A fé de Abraão se fundava na sua crença na promessa divina, relativa à descendência futura, e que seriam abençoados todos os povos. Por isso, enquanto isso era futuro, era necessário afirmar a fé de Abraão pela circuncisão. Mas depois da promessa realizada, deve ela manifestar-se por outro sinal, a saber, o batismo, que, assim, substitui a circuncisão, conforme aquilo do Apóstolo (Cl 2, 11-12): Vós estais circuncidados de circuncisão não feita por mão de homem no despojo do corpo da carne, mas sim na circuncisão de N. S. J. Cristo, estando sepultado juntamente com ele no batismo. Por isso o sábado, que significava a criação inicial, foi mudado no domingo, em que se comemora a nova criação, começada com a ressurreição de Cristo. E semelhantemente, às outras solenidades da lei antiga sucederam-se novas, pois, os benefícios feitos ao povo judeu significam os que Cristo nos concedeu. Assim, à festa da Fase sucedeu a da Paixão e da Ressurreição de Cristo; à de Pentecostes, em que foi dada a lei antiga, a de Pentecostes, em que foi dada a do Espírito da vida; à da Neomênia, a da beata Virgem, com a qual primeiro apareceu a luz do sol; i. é, de Cristo, pela abundância da graça; à das Trombetas, a dos Apóstolos; à da Expiação, a dos Mártires e Confessores; à dos Tabernáculos, a da Consagração da Igreja; à da Congregação e do Ajuntamento, a dos Anjos, ou ainda, a de Todos os Santos.
(Supra, q. 100, a. 12; q. 102, a. 5, ad 4; III, q. 62, a. 6; IV Sent., dist. I, q. 1, a. 5, qª 1, 3; Ad Gatal., cap. II, lect. IV; cap. III, lect. IV; Ad Hebr., cap. IX, lect, II).
O segundo discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de justificar, no tempo dessa lei.
1. — Pois, a expiação do pecado e a consagração do homem pertencem à justificação. Ora, a Escritura diz (Ex 39, 21) que pela aspersão do sangue e unção com o óleo eram consagrados os sacerdotes e as suas vestes. E noutro lugar diz (Lv 16, 16), que o sacerdote, pela aspersão do sangue do bezerro, expiava o santuário das impuridades dos filhos de Israel e das suas prevaricações e dos seus pecados. Logo, as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de justificar.
2. Demais. — Aquilo pelo que o homem agrada a Deus pertence à justificação, conforme a Escritura (Sl 10, 8): O Senhor é justo e amou a justiça. Ora, pelas cerimônias certos agradavam a Deus, conforme ainda a Escritura (Lv 10, 19): Como poderia eu agradar ao Senhor nas cerimônias, achando-me com o coração tão penalizado? Logo, as cerimônias da lei antiga tinha o poder de justificar.
3. Demais. — O que é do culto divino mais pertence à alma que ao corpo, conforme a Escritura (Sl 18, 8): A lei do Senhor, que é imaculada, converte as almas. Ora, pelas cerimônias da lei antiga, purificavam-se os leprosos. Logo, com maior razão, essas cerimônias podiam purificar a alma, justificando.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 2): Se tivesse sido dada uma lei que pudesse justificar, Cristo morreu em vão, i. é, sem causa. Ora, isto é inadmissível. Logo, as cerimônias da lei antiga não justificavam.
Solução. — Como já dissemos (q. 102, a. 5 ad 4), a lei antiga estabelecia uma dupla imundice: a espiritual, i. é, a da culpa; e a corporal, que privava da idoneidade para o culto divino. Assim como era considerado imundo o leproso, ou aquele que tocava algum cadáver: Por onde, a imundice não era senão uma certa irregularidade.
Ora, as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de purificar dela. Pois, eram uns remédios determinados por ordenação da lei, para purificar da referida imundice, estatuída pela própria lei. Por isso, o Apóstolo diz (Heb 9, 13): o sangue dos bodes e dos touros, e a cinza espalhada duma novilha, santifica aos imundos para purificação da carne. E assim como a imundice de que se era purificado, por essas cerimônias, era mais da carne que da mente, assim também as cerimônias mesmas da justiça da carne o Apóstolo as considera como justiças da carne postas até ao tempo da correção.
Elas porém não tinham a virtude de expiar a imundice da mente, que é imundice da culpa. E isto porque a expiação dos pecados só pode ser feita por Cristo, que tira os pecados do mundo, como diz o Evangelho (Jo 1, 29). E como o mistério da encarnação e da paixão de Cristo ainda não estava totalmente consumado, as cerimônias da lei antiga não podiam conter realmente em si uma virtude profluente dessa encarnação e dessa paixão, como a contêm os sacramentos da lei nova. E por isso não podiam purificar do pecado, como diz o Apóstolo (Heb 10, 4): é impossível que com sangue de touros e de bodes se tirem os pecados. E a isto o Apóstolo chama elementos fracos e pobres; fracos, porque não podem purificar dos pecados; fraqueza essa proveniente de serem pobres, i. é, de não conterem em si a graça.
A mente dos fiéis contudo podia, na vigência da lei, unir-se a Cristo, que se encarnou e sofreu a paixão, e assim justificar-se pela fé em Cristo. Da qual era uma afirmação a observância dessas cerimônias, enquanto figura de Cristo. Por isso, no regime da lei antiga ofereciam-se certos sacrifícios pelos pecados; não que por si mesmos eles purificassem do pecado, mas por serem uma afirmação de fé, que dele purificava. E isso mesmo a lei o indica pelo modo de exprimir-se. Pois, determina que, na oblação das hóstias pelo pecado, o sacerdote rogará por ele (pelo príncipe) e o seu pecado lhe será perdoado; como se o pecado fosse perdoado, não por força dos sacrifícios, mas pela fé e devoção dos oferentes.
Deve-se contudo saber, que a expiação, pela cerimônia da lei antiga, das imundices corpóreas, era figura da expiação dos pecados operada por Cristo.
Por onde é claro, que as cerimônias, no regime da lei antiga; não tinham a virtude de justificar.
Donde a resposta à primeira objeção. — Essa santificação do sacerdote, dos seus filhos, das suas vestes e de tudo o mais, pela aspersão do sangue, não passava de uma preparação ao culto divino e remoção dos impedimentos, para a purificação da carne, como diz o Apóstolo (Heb 9, 13). E prefigurava a outra purificação, pela qual Jesus, pelo seu sangue, santificou o povo. Ora, a expiação deve referir-se à remoção dessas imundices corpóreas, e não à da culpa. Donde a referência à expiação do santuário, que entretanto não podia ser sujeito de culpa.
Resposta à segunda. — Os sacerdotes agradavam a Deus, nas cerimônias, pela obediência, devoção e fé no que prefiguravam; não porém por elas, em si mesmas consideradas.
Resposta à terceira. — As cerimônias instituídas para a purificação dos leprosos não se ordenavam a tirar a imundice da enfermidade da lepra; o que se patenteia por se aplicarem só ao que já estava limpo. Por isso, diz a Escritura (Lv 14, 3-4): o sacerdote, saindo fora do arraial, vendo que a lepra está curada, mandará ao que se purifica, que ofereça, etc. Por onde é claro que era constituído juiz da lepra já curada e não, da que devia selo. E as cerimônias de que se trata foram estabelecidas para tirar a imundice da irregularidade. Diz-se contudo que às vezes se acontecesse o sacerdote errar no juízo, o leproso era limpo miraculosamente por Deus, por virtude divina e não por virtude dos sacrifícios. Assim também, milagrosamente, apodrecia a coxa de uma mulher adúltera, depois de ter bebido a água que o sacerdote carregou de maldições, como está na Escritura (Nm 5, 19-27).
(III, q. 60, a. 5, ad3; q. 61, a. 3 ad2; q. 70, a. 2, ad 1; IV Sent., dist. 1, q. 1, a. 2, qª 3, ad2; q. 2, a 6, qª 3; Ad Hebr., cap. VII, lect I).
O primeiro discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei existiram antes dela.
1. — Pois, os sacrifícios e os holocaustos pertenciam às cerimônias da lei antiga, como já se disse (q. 101, a. 4). Ora, uns e outros existiram antes dela. Assim, diz a Escritura (Gn 4, 3-40, que Caim ofereceu ao Senhor os seus dons dos frutos da terra; Abel também ofereceu das primícias do seu rebanho e das suas gorduras. Noé também ofereceu holocaustos ao Senhor (Gn 18, 20). Abraão, do mesmo modo (Gn 22, 13). Logo, as cerimônias da lei antiga existiram antes dela.
2. Demais. — Entre as cerimônias concernentes às coisas sagradas estava construir e untar o altar. Ora, isto se fazia antes da lei, como se lê na Escritura (Gn 13, 18): Abraão edificou um altar ao Senhor; e diz de Jacó (Gn 28, 18): tirou a pedra e a erigiu em padrão, derramando óleo sobre ela. Logo, as cerimônias legais existiram antes da lei.
3. Demais. — Entre os sacramentos legais era considerado como o primeiro a circuncisão. Ora, esta existia antes da lei, como se lê na Escritura (Gn 17). Também o sacerdócio existia antes da lei; pois, diz a Escritura (Gn 14, 18), que Melquisedeque era Sacerdote do Deus altíssimo. Logo, as cerimônias dos sacramentos existiram antes da lei.
4. Demais. — A discriminação entre animais limpos e imundos pertencia às cerimônias das observâncias, como se disse (q. 100, a. 2, a. 6 ad 1). Ora, essa discriminação já existia antes da lei, como se vê na Escritura (Gn 7, 2-3): Toma de todos os animais limpos sete machos e sete fêmeas; e dos animais imundos dois machos e duas fêmeas. Logo, as cerimônias legais existiram antes da lei.
Mas, em contrário, a Escritura (Dt 6, 1): Estes são os preceitos e as cerimônias que o Senhor nosso Deus me mandou que vos ensinasse. Ora, os judeus não precisavam ser ensinados sobre elas, se tais cerimônias já tivessem existido antes. Logo, as cerimônias da lei não existiram antes dela.
Solução. — Como já dissemos (q. 101, a. 2; q. 102, a. 2), as cerimônias da lei se ordenavam a dois fins: o culto de Deus e a figuração de Cristo. Ora, quem adora a Deus há de necessariamente fazê-lo por determinados meios, constitutivos do culto externo. E determinar o culto divino pertencia às cerimônias; assim como pertence aos preceitos judiciais determinar as disposições que nos ordenam ao próximo, como já dissemos (q. 99, a. 4). Por onde, assim como entre os homens havia geralmente certos preceitos judiciais, sem contudo serem instituídos por autoridade da lei divina, mas ordenados pela razão deles, assim também havia certas cerimônias, não certo, determinadas pela autoridade de alguma lei, mas só pela vontade e devoção dos que adoravam a Deus. — Ora, ainda antes da lei, existiram certos homens notáveis, dotados de espírito profético. Por onde é de crer que, por instinto divino e como por uma lei privada, fossem levados a algum modo certo de adorar a Deus, conveniente ao culto interior e também próprio a significar os mistérios de Cristo, que também eram figurados por outros atos deles, conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. — Existiram, logo, antes da lei, certas cerimônias; não porém as da lei, porque não eram instituídas por nenhuma disposição legal.
Donde a resposta à primeira objeção. — Essas oblações e sacrifícios e holocaustos os antigos os ofereciam por uma certa devoção da vontade própria, por lhes parecer conveniente. Para que, pelas coisas recebidas de Deus e pelas que ofereciam em reverência divina, se afirmassem como adoradores de Deus, princípio e fim de todas as coisas.
Resposta à segunda. — E também instituíram certas coisas como sagradas; pois lhes parecia conveniente, em reverência de Deus haverem certos lugares, distintos dos outros, destinados ao culto divino.
Resposta à terceira. — O sacramento da circuncisão foi estabelecido por preceito divino, antes da lei. Por isso não se pode chamar sacramento da lei, como se fosse por ela instituído, mas só como observado no seu regime. E foi isto o que disse o Senhor (Jo 7, 20): a circuncisão não vem do Senhor, mas dos patriarcas. Também o sacerdócio existia antes da lei, entre os que adoravam a Deus, por determinação humana, e que atribuíam essa dignidade aos primogênitos.
Resposta à quarta. — A discriminação entre animais limpos e imundos, para o efeito de serem comidos, não era anterior à lei, pois a Escritura diz (Gn 9, 3): Tudo o que se move e vive vos poderá servir de sustento. Mas só para o efeito da oblação dos sacrifícios, porque os ofereciam de certos determinados animais. Se porém havia certas discriminações de animais, para o fim da alimentação, isto não era por se reputar ilícito o comê-los, pois nenhuma lei o proibia; mas por causa da abominação ou do costume. Assim como ainda agora vemos serem certos alimentos abomináveis em certas terras, comidos em outras.
Em seguida devemos tratar da duração dos preceitos cerimoniais.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
(IIª-IIªª, q. 86., a. 3, ad 1, 2, 3; Ad Rom., cap. XIV, lect. I, III; I Tim., cap. IV, lect. I; Ad Tit., cap. I, lect. IV).
O sexto discute-se assim. — Parece que as observâncias cerimoniais não tinham nenhuma causa racional.
1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Tm 4, 4) toda criatura de Deus é boa e não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Logo, proibia-se inconvenientemente o uso de certos alimentos, por imundos (Lv 11).
2. Demais. — Como os animais eram dados em alimento ao homem, assim também as ervas; donde o dizer a Escritura (Gn 9, 3): eu vos entreguei toda carne, como as viçosas hortaliças. Ora, a lei não distinguia ervas imundas, apesar de algumas delas serem venenosas e muito nocivas. Logo, também não devia proibir certos animais, por imundos.
3. Demais. — Se a matéria de que alguma coisa provém é imunda, pela mesma razão há de sê-lo o dela gerado. Ora, a carne é gerada do sangue. E como nem todas as carnes eram proibidas, como imundas, pela mesma razão não devia sê-lo, como tal, o sangue, nem a gordura dele gerada.
4. Demais. — O Senhor diz (Mt 10, 28), que não são para temer os que matam o corpo, porque depois dessa morte, nada mais podem fazer. Ora, tal não seria verdade se se convertesse em mal do homem o que se lhe viesse a fazer ao cadáver. Logo, com maior razão, não importava o modo por que se viessem a cozer as carnes do animal já morto. E portanto, parece irracional o que diz a Escritura (Ex 23, 19): Não cozerás o cabrito no leite da sua mãe.
5. Demais. — Era de preceito oferecer ao Senhor, por mais perfeitas, as primícias dos homens e dos animais. Logo, era inconveniente o seguinte preceito (Lv 19, 23): Quando entrares na terra e plantares nela árvores frutíferas, cortar-lhes-ei os seus prepúcios, i. é, os primeiros germens, e serão imundos para vós e não comereis deles.
6. Demais. — As vestes são exteriores ao corpo do homem. Logo, não se deviam proibir aos judeus certas vestes especiais, p. ex., como as referidas nos lugares da Escritura (Lv 19, 19): Não usarás de vestido que seja tecido de fios diferentes; (Dt 22, 5) a mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher; e ainda (Dt 22, 11): Não te vestirás de coisa que seja tecida de lã e de linho.
7. Demais. — A memória dos mandamentos de Deus não respeita ao corpo, mas ao coração. Logo, era inconveniente o ordenar a Escritura (Dt 6, 8 ss), que os preceitos de Deus ligavam como um sinal na sua mão; e que se deviam escrever no limiar das portas; e que fizessem umas guarnições nos remates das capas, pondo nelas fitas de cor de jacinto, para que se recordem dos mandamentos do Senhor.
8. Demais. — O Apóstolo diz (1 Cor 9, 9), que Deus não tem cuidado dos bois; e, por conseqüência, nem dos outros animais irracionais. Logo, eram inconvenientes os preceitos (Dt 22, 6): Se, indo por um caminho, achares o ninho duma ave, não apanharás a mãe com os filhinhos; e (Dt 25, 4): Não atarás a boca ao boi que trilha na eira; e (Lv 19, 19): Não lançarás a tua besta a ter cópula com animais doutra espécie.
9. Demais. — Não se fazia nenhuma separação entre plantas mundas e imundas. Logo, com maior razão, não se devia fazer qualquer distinção relativamente à cultura delas. Portanto eram inconvenientes os preceitos (Lv 19, 19): Não semearás o teu campo com diversa semente; e (Dt 22, 9 ss): Não semearás a tua vinha de outra semente; e: Não lavrarás com boi e asno juntamente.
10. Demais. — Os seres inanimados, sobretudo, estão sujeitos ao poder do homem. Logo, era inconveniente o preceito da lei, que privava o homem do uso da prata e do ouro, de que se fabricavam os ídolos, e do mais que se encontrava no templo destes. E também era ridículo o outro preceito, que se lê (Dt 7, 25): tendo satisfeito à tua necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste.
11. Demais. — Sobretudo dos sacerdotes se exige a piedade. Ora, esta manda assistirmos aos funerais dos amigos; e por isso Tobias foi louvado (Tb 1, 20 ss). Também algumas vezes, por piedade, pode alguém receber uma meretriz como esposa, pela livrar assim do pecado e da infâmia. Logo, tais coisas se proibiam inconvenientemente aos sacerdotes (Lv 21).
Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 18, 14): tu, porém, foste instruído de outra sorte pelo Senhor teu Deus. Donde se pode coligir, que as observâncias de que se trata foram instituídas por Deus por uma certa prerrogativa especial do povo judeu. Logo, não eram irracionais ou sem causa.
Solução. — O povo judeu, como já dissemos (a. 5), foi especialmente destinado ao culto divino; e dele, em especial, os sacerdotes. E assim como as coisas aplicadas a esse culto deviam ter algo de particular, exigido pela honorificência do mesmo; assim, o gênero de vida do povo judeu e, sobretudo, dos sacerdotes, devia especialmente ter uma certa congruência, espiritual ou corporal com tal culto. Ora, o culto da lei figura o mistério de Cristo. Por isso, todas as suas observâncias figuram o concernente a Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Por isso, duas razões se podem assinalar a essas observâncias: a congruência com o culto divino, e o figurarem o que respeita à vida dos Cristãos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como já dissemos (a. 5 ad 4, 5), a lei estabelecia dupla corrupção ou imundice. Uma, da culpa, que mancha a alma; a outra, a de qualquer corrupção que de certo modo contamina o corpo. — Quanto, pois, à primeira imundice, não havia nenhum gênero de comida por natureza imundo ou susceptível de contaminar o homem; donde o dizer a Escritura (Mt 15, 11): Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem; mas o que sai da boca, isso é o que faz imundo o homem; o que é aplicado aos pecados. Contudo certas comidas podiam acidentalmente manchar a alma, por serem tomadas contra a obediência, o voto, ou por nímia concupiscência; ou enquanto constituíam fomento à luxúria, razão pela qual certos se abstinham do vinho e da carne.
Quanto à imundice corpórea, a proveniente de alguma corrupção, certas carnes dos animais a tinham. Ou porque estes se nutrem de coisas imundas, como o porco. Ou vivem imundamente, como alguns, que habitam debaixo da terra, p. ex., as toupeiras, os ratos e semelhantes, que contraem também por isso mau cheiro. Ou porque a carne deles, por causa da demasiada umidade ou secura, geram humores corruptos no corpo humano. Por isso, eram proibidas aos judeus as carnes dos animais que têm sola, i. é, unha inteira, não fendida por causa da sua terreneidade. Semelhantemente, era-lhes proibida a carne dos animais que têm muitas fendas nos pés, como a do leão e outros semelhantes porque são muito coléricos e ardentes. Pela mesma razão, certas aves de rapina, demasiado secas; e certas aves aquáticas, pelo excesso de umidade. Também certos peixes sem barbatanas e escamas, como as enguias e outros, por causa do excesso de umidade. Era-lhes permitido comer os animais ruminantes, de unha fendida, porque tem humores bem digeridos e de compleição média; e porque nem são demasiado úmidos, como as unhas o significam; nem demasiado terrenos, por não terem a unha inteira, mas fendida. Dos peixes eram-lhes permitido os mais secos, como o davam a entender as escamas e as barbatanas, que tornam temperada a compleição úmida deles. Das aves, as melhor constituídas, como a galinha, a perdiz e outras. — A outra razão era fazer detestar a idolatria. Pois, os gentios e principalmente os egípcios, entre os quais os judeus viviam, imolavam aos ídolos esses animais proibidos ou os empregavam para feitiçarias. Ao passo que não comiam aqueles que era permitido aos judeus comerem; mas os adoravam como deuses. Ou por alguma outra causa se abstinham deles, como já dissemos (a. 3, ad 2). — A terceira razão era para impedir a diligência demasiada em relação à comida. Por onde, concediam-lhes os animais susceptíveis de serem conseguidos fácil e prontamente.
Contudo geralmente era-lhes proibido comerem o sangue e a gordura de qualquer animal. — O sangue, quer para evitarem a crueldade e detestarem derramar sangue humano, como já dissemos (a. 3, ad 8). Quer também para fazer evitar o rito da idolatria; porque era costume dos idólatras reunirem-se ao redor do sangue recolhido, para comerem em honra dos ídolos, a quem o consideravam muitíssimo agradável. Por isso o Senhor mandou, que o sangue fosse derramado e coberto com terra. E também lhes era proibido comer animais sufocados ou estrangulados, porque o sangue deles não se separa da carne; ou porque tais gêneros de morte fazem os animais sofrer muito, e o Senhor queria afastá-los da crueldade, mesmo para com os brutos, para que, habituando-se a tratá-los, mesmo a estes, com comiseração, mais se afastassem da crueldade para com os homens. — Também era-lhes proibida a gordura, quer porque os idólatras a comiam em honra dos seus deuses;quer também porque era queimada em honra de Deus; quer enfim porque o sangue e a gordura não fazem boa nutrição, causa essa dada pelo Rabbi Moisés. A causa de ser proibido comer os nervos está na Escritura (Gn 32, 32): os filhos de Israel não comem nervo, porque o anjo tocou o nervo da coxa de Jacó, e ficou entorpecido.
A razão figurada dessas observâncias é que todos esses animais eram proibidos por serem figuras de certos pecados. Donde o dizer Agostinho: A quem indagar se o porco e o cordeiro são limpos por natureza, por ser boa toda criatura de Deus, respondemos que, em certo sentido, o cordeiro é limpo e o porco é imundo. Mas, perguntar isto seria o mesmo que perguntar, considerando a natureza da expressão, e as letras e sílabas, de que constam, se as palavras — estulto e sábio — são puras. Pois, uma é pura e a outra, imunda. Assim, o animal ruminante e de casco fendido era puro porsignificação. Porque a fenda das unhas significa a distinção entre os dois Testamentos; ou a do Padre e do Filho; ou a das duas naturezas de Cristo; ou a separação entre o bem e o mal. A ruminação significa a meditação das Escrituras e a sã inteligência das mesmas. Ora, quem não é capaz de compreender alguma destas coisas é imundo.
Semelhantemente, os peixes, que têm escamas e barbatanas eram puros, por significação. Pois, as barbatanas significam a vida sublime ou a contemplação; e as escamas, a vida áspera. Sendo ambas elas necessárias à pureza espiritual.
Das aves eram proibidos certos gêneros especiais. Na águia, de vôo alto, proíbe-se a soberba. No grifo, nocivo aos cavalos e aos homens, a crueldade dos poderosos. O halieto, que se nutre de pequenas aves, significa os molestos aos pobres. O milhano, muito dado a preparar insídias, os fraudulentos. O abutre, que acompanha os exércitos, no fito de comer os cadáveres dos mortos — os que provocam mortes e sedições entre os homens, para daí tirarem lucro. Os animais do gênero dos corvos significam os difamados pelos prazeres; ou os desprovidos de bons afetos, pois o corvo, uma vez mandado fora da arca, não voltou. O avestruz, apesar de ave, incapaz de voar e sempre apegado à terra, os que militando por Deus vivem, contudo, implicados em negócios seculares. O bufo, de visão noturna aguda, mas que não vê de dia, os astutos nas coisas temporais, mas botos nas espirituais. A gaivota, que voa no ar e nada na água, os que veneram a circuncisão a par do batismo; ou, ainda, os que querem alçar o vôo da contemplação, mas vivem nas águas dos prazeres. O açor, empregado para caçar, os que servem aos poderosos para depredarem os pobres. O mocho, que busca alimento de noite e se esconde de dia, os luxuriosos que buscam ocultar o que fazem, agindo de noite. O mergulo, capaz de ficar muito tempo debaixo da água, os gulosos que se atacam nas águas dos prazeres. O íbis, ave da África, de bico comprido, e que se nutre de serpentes e é talvez o mesmo que a cegonha, os invejosos que se nutrem, como de serpentes, dos males dos outros. O cisne, de cor branca e de pescoço comprido, com o qual tira o alimento do fundo da terra ou da água, pode significar os homens que, sob candor da justiça externa buscam lucros terrenos. O onocrótalo, ave dos países orientais, de bico comprido, com umas bolsinhas na garganta onde repõe, primeiro, o alimento que, depois de uma hora, manda ao ventre, significa os avarentos que, com cuidados imoderados, acumulam o necessário à vida. O porfirião, diferente das outras aves, tem um pé espalmado para nadar e outro fendido para andar, pois nada na água como os adens e anda na terra como as perdizes; e só bebe, ao comer, molhando na água a comida. Significa os que nada querem fazer por vontade de outrem, senão só o que for banhado na água da vontade própria. A cegonha, vulgarmente chamada falcão, significa aqueles cujos pés são ligeiros para derramar sangue. O carádrio, ave gárrula, os loquazes. A poupa, que nidifica no estrume e nutre-se de excrementos fétidos, e simulando no canto um gemido, significa a tristeza do século geradora de morte, nos homens imundos. O morcego, que voa achegado à terra, aqueles a quem, ornados da ciência profana, só sabem as coisas terrenas.
Além disso, das aves e dos quadrúpedes só lhes eram permitidos os de pernas posteriores mais longas, para poderem saltar. Eram porém proibidos os que vivem mais apegados à terra, por serem considerados imundos os que abusam da doutrina dos quatro Evangelistas, afim de não serem por ela elevados para o alto.
No sangue enfim, na gordura e no nervo entendiam-se proibidas a crueldade, a volúpia e a contumácia no pecado.
Resposta à segunda. — Já antes do dilúvio os homens nutriam-se de plantas e mais ervas da terra. Mas parece que o uso da carne foi introduzido depois, conforme a Escritura (Gn 9, 3): eu vos dei toda carne como viçosas hortaliças. E isto porque alimentar-se dos frutos da terra é mais próprio da simplicidade da vida; ao passo que comer carne revela antes o prazer e o apego ao viver. Pois naturalmente a terra germina em ervas, ou, com pequeno esforço, obtém-se em grande cópia esses, produtos; ao contrário, só com grande diligência podem-se nutrir ou apanhar os animais. Por onde, querendo o Senhor reduzir o seu povo a uma vida mais simples, proibiu-lhes muitos gêneros de animais, e não dos produtos da terra. Ou também porque aqueles eram imolados aos ídolos e não, estes.
À terceira objeção é clara a resposta, pelo já dito.
Resposta à quarta. — Embora o bode imolado não sinta como, lhe sejam as carnes cozidas, contudo, ao espírito de quem o coze parece implicar uma certa crueldade, empregar, para lhes consumir o leite materno, que lhe foi dado como nutrição. Ou pode-se dizer, que os gentios, na solenidade dos ídolos, coziam totalmente as carnes do bode, para imolá-las ou comê-las. E por isso, a Escritura, depois de ter tratado das solenidades que se deviam, pela lei, celebrar, acrescenta (Ex 23): Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe.
A razão simbólica dessa proibição é figurar que Cristo, comparado com o bode, por causa da semelhança da carne do pecado, não devia ser cozido, i. é, morto, pelos judeus, no leite materno i. é, no tempo da infância. Ou significa que o bode, i. é, o pecador, não deve ser cozido no leite materno, i. é, corrompido pelas lisonjas.
Resposta à quinta. — Os gentios ofereciam aos seus deuses as primícias dos frutos, que julgavam afortunadas; ou então os queimavam para fazer certas magias. Por isso, foi preceituado aos judeus considerassem imundos os frutos dos três primeiros anos. Pois, em três anos, quase todas as árvores da terra deles, cultivadas de semente, pela enxertia ou pela plantação, produziam fruto. E raramente acontecia que os caroços dos frutos da árvore, ou as sementes latentes fossem semeados, por produzirem frutos mais retardados. Ora, a lei diz respeito ao que mais freqüentemente se faz. Por onde, os pomos do quarto ano, como sendo as primícias dos frutos puros, eram oferecidos a Deus; os do quinto, porém e seguintes, comidos.
A razão figurada desses preceitos é simbolizar que, depois dos três estados da lei — o primeiro, de Abraão até Davi; o segundo, até a transmigração de Babilônia; o terceiro, até Cristo — Cristo, que, é o fruto dela, devia ser oferecido a Deus. Ou que as primícias das nossas obras nos devem ser suspeitas, por causa da sua imperfeição.
Resposta à sexta. — Como diz a Escritura (Sr 19, 27), o vestido do corpo dá a conhecer qual o homem é. Por onde, o Senhor quis que o seu povo se distinguisse dos outros, não só pelo sinal carnal da circuncisão, mas também: por uma diferença no vestir. E por isso, foi-lhe proibido vestir-se de roupa tecida de lã e de linho; e que as mulheres usassem trajes masculinos e inversamente, por duas razões. — A primeira fazer evitar a idolatria. Pois, os gentios, no culto dos seus deuses, usavam de várias vestes de diversas contexturas. E também, no culto de Marte, as mulheres usavam das armas dos homens; no de Vênus, ao inverso, os homens usavam trajes femininos. A outra razão era fazer evitar a luxúria. Pois, pela exclusão de várias misturas nos tecidos das vestes, excluía-se toda união em coitos desordenados. Porque é um incentivo à concupiscência e dá ocasião à libidinagem o vestir a mulher trajes masculinos.
A razão figurada de proibir nas vestes, tecidas de lã e de linho, é evitar a união da inocência e da simplicidade, representadas pela lã, como a sutileza e a malícia, figuradas pelo linho. Também proibia a mulher usurpar para si a doutrina ou os ofícios dos homens; ou ao homem o pendor para a efeminação.
Resposta à sétima. — Diz Jerônimo: O Senhor mandou que se fizesse umas guarnições de jacinto nas quatro pontas das capas, para distinguir o povo de Israel dos outros povos. Pois, assim, mostravam ser judeus e, à vista desse sinal, despertavam a memória da sua lei. E o que diz a Escritura — E as atarás com um sinal na tua mão, e estarão sempre diante dos teus olhos — os Fariseus interpretavam mal, escrevendo em pergaminho o decálogo de Moisés, e prendendo-o na fronte, como coroa, para que se movesse diante dos olhos. Entretanto a intenção do Senhor, mandando assim fazer, era que fossem ligadas na mão, i. é, nas obras, e estivessem diante dos olhos, i. é, na meditação. As fitas cor de jacinto, entremeadas nas capas significam a intenção celeste, inspiradora de todas as nossas obras. E também pode-se dizer que, como o povo judeu era carnal e de cerviz dura, era necessário excitá-los à observância da lei por esses sinais sensíveis.
Resposta à oitava. — Há no homem duplo afeto: o racional e o passional. — Ao primeiro não importa como se tratem os brutos, porque Deus lhe sujeitou todas as coisas ao poder, conforme a Escritura (Sl 8, 8): Todas as coisas sujeitastes debaixo de seus pés. E neste sentido o Apóstolo diz que Deus não cuida dos bois, por não exigir lhe dê o homem contas de como trata os bois ou os outros animais. — Mas, pelo afeto da paixão o homem é movido em relação aos brutos. Pois, como a paixão da misericórdia nasce dos sofrimentos alheios, e sofrer também podem os brutos, no homem pode nascer o afeto da misericórdia mesmo para com os sofrimentos deles. Ora, quem com os animais exerce o afeto da misericórdia está mais próximo a tê-lo para com os homens. Donde o dizer a Escritura (Pr 11, 10): O justo atende pela vida dos seus animais; mas as entranhas dos ímpios são cruéis. E por isso o Senhor, para provocar a misericórdia no povo judaico, inclinado à crueldade, quis exercê-lo na misericórdia, mesmo para com os brutos, proibindo-lhe tratá-los com qualquer crueldade. Por onde, era proibido aos judeus cozer o bode no leite da mãe, prender a boca do boi que trilhava, matar a mãe com os filhos.Embora também se possa dizer, que isso lhes era proibido para levá-los a detestar a idolatria. Pois, os egípcios reputavam por nefário os bois comerem dos grãos que trilhavam. E alguns feiticeiros também empregavam a ovelha, enquanto amamentava os filhos, e estes, apanhados simultaneamente com ela, para conseguir a fecundidade e a boa fortuna em a nutrição dos filhos. E também porque nos augúrios tinha-se como boa fortuna encontrar a mãe criando os filhos.
Do cruzamento entre animais de espécies diversas pode-se assinalar tríplice razão literal. — Uma, fazer detestar a idolatria dos egípcios, que provocavam esses cruzamentos diversos, para cultuar aos planetas que, conforme as suas diversas conjunções, produzem efeitos vários e sobre diversas espécies de coisas. — Outra razão era excluir o coito contra a natureza. — A terceira, tolher universalmente, toda ocasião de concupiscência. Pois, animais de espécies diversas não se cruzam facilmente, se não forem provocados pelo homem; e a vista do coito provoca no homem movimentos de concupiscência. Por isso, ainda mesmo nas tradições dos judeus, preceitua-se, como refere Rabbi Moisés, que os homens desviem os olhos de animais em cópula.
A razão figurada é que o boi que trilha; i. é, o pregador, que distribui as sementes da doutrina, não deve ser privado da subsistência necessária à vida, como diz o Apóstolo (1 Cor 9, 4 ss). — Também não devemos tomar a mãe juntamente com os filhos; porque em certos casos devemos seguir o sentido espiritual, como filho; e abandonar como nas cerimônias da lei a observância literal, como mãe. — Também era proibido fazer os jumentos, i. é, os homens do povo cristão, ter cópula, i. é, ter sociedade, com animais de outra espécie, i. é, com os gentios ou judeus.
Resposta à nona. — Todos os cruzamentos a que se alude, eram proibidos na agricultura, literalmente, para fazer detestar a idolatria. Porque os egípcios, em veneração das estrelas, faziam diversas misturas de sementes, animais e roupas, representativas das diversas conjunções delas. — Ou, todas essas várias mesclas eram proibidas para fazer detestar o coito contra a natureza.
Mas também têm uma razão figurada. Pois, o preceito — Não semearás a tua vinha doutra semente — deve ser entendido, espiritualmente, da Igreja, que, sendo a vinha espiritual, não deve ser semeada com doutrina estranha. — E semelhantemente, o campo, i. é, a Igreja, não o semearás com diversa semente, i. e, com a doutrina católica e a herética. — Não lavrarás com boi e asno juntamente, porque o fátuo, na predicação, não se deve unir com o sábio, porque um é empecilho ao outro.
Resposta à décima. — Com razão a Escritura (Dt 7) proibia a prata e o ouro, não por não estarem sujeitos ao poder dos homens, mas porque tanto os ídolos, como tudo aquilo de que eram fundidos, estavam sujeitos à maldição, como soberanamente abomináveis a Deus. E isso está claro no seguinte passo do referido capítulo (Dt 7, 26): Nem em tua casa meterás coisa alguma que seja de ídolo, por não vires a ser anátema, como ele o é também. Ou ainda para que, recebendo cobiçosamente o ouro e a prata, não viessem com facilidade a cair na idolatria, à qual eram os judeus inclinados. — O segundo preceito, de cobrir as dejeções com terra, era justo e honesto, quer por limpeza corporal;quer para conservar a salubridade do ar; quer pela reverência devida ao tabernáculo da aliança, colocá-lo no arraial, onde se dizia habitar o Senhor. E isto está claramente dito no lugar em que, depois de se estabelecer esse preceito, dele se dá a razão: O Senhor teu Deus anda no meio do campo para te livrar de todo o perigo etc.; e para que o teu campo seja santo, i. é, limpo, e não apareça nele coisa de fealdade.
A razão figurada desse preceito, segundo Gregório, é significar que os pecados oriundos do instinto da nossa mente, como excrementos fétidos, devem ser cobertos pela penitência, para sermos aceitos a Deus, conforme aquilo da Escritura (Sl 31, 1): Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoados, e cujos pecados são cobertos. Ou, conforme a Glosa: Para que, conhecida a miséria da condição humana, a surdisse da mente enaltecida e soberba fosse coberta e purgada pela humildade, na fossa da profunda meditação.
Resposta à undécima. — Os feiticeiros e os sacerdotes dos ídolos empregavam, nos seus ritos, os ossos ou as carnes dos mortos. E por isso, para extirpar o culto da idolatria, o Senhor mandou os sacerdotes menores, que ministravam no santuário em tempos determinados, não se contaminarem nas mortes, senão só dos parentes muito próximos, como o pai e a mãe, e outras pessoas assim chegadas. Porém, o pontífice devia estar sempre preparado para o ministério do santuário; e por isso lhe era totalmente proibido achegar-se aos mortos, embora lhe tivessem sido próximos. — Também lhes era proibido tomar mulher meretriz ou repudiada; mas que a tomassem virgem. Quer pela reverência para com eles, cuja dignidade pareceria, de certo modo, diminuída com uma tal união; quer também por causa dos filhos, por quem seria uma ignomínia a torpeza da mãe. O que era sobretudo para evitar, quando a dignidade do sacerdócio era conferida conforme à sucessão na família. — Também lhes era preceituado não raspassem a cabeça nem a barba, nem fizessem incisão no corpo; para remover o rito da idolatria. Pois, os sacerdotes aos gentios raspavam a cabeça e a barba; por isso, diz a Escritura (Br 6, 30): Estão assentados os sacerdotes tendo as túnicas rasgadas e as cabeças e a barba rapada. E também, no culto dos ídolos, eles se retalhavam com canivetes e lancetas, como se diz em outro lugar (1 Rs 18, 28). Por onde, mandou-se o contrário aos sacerdotes da lei antiga.
A razão espiritual desses preceitos é deverem os sacerdotes ser absolutamente imunes de obras mortas, que são as do pecado. E também não devem raspar a cabeça, i. é, perder a sabedoria; nem a barba, i. é, perder a perfeição da sabedoria; nem ainda cindir as vestes ou fazer incisão no corpo, isto é, não incorrer no vício do cisma.
(III, q. 70, a. 1, 3; Ad Bom., cap. IV, lect. II; I Cor., cap. V, lect. II).
O quinto discute-se assim. — Parece que não se podem dar causas convenientes aos sacramentos da lei antiga.
1. — Pois, o que se fazia para o culto divino não devia ser semelhante ao que observavam os idólatras. Donde o dizer a Escritura (Dt 12, 31): Não farás assim com o Senhor teu Deus; porque eles fizeram pelos seus deuses todas as abominações, que o Senhor aborrece. Ora, os adoradores dos ídolos, ao adorá-los, cortavam-se com canivetes até a efusão do sangue, como refere a Escritura (1 Rs 18, 28), que se retalhavam, segundo o seu costume, com canivetes e lancetas, até se cobrirem de sangue. Pelo que o Senhor mandou (Dt 14, 1): Não fareis incisões, nem vos fareis abrir calva para chorardes algum morto; porque és um povo santo para com o Senhor teu Deus, e ele te escolheu, dentre todas as nações que há na terra para serdes particularmente o seu povo. Logo, a circuncisão era inconvenientemente instituída pela lei.
2. Demais. — O que se faz para o culto divino deve ter dignidade e gravidade, conforme a Escritura (Sl 34, 18): No meio do povo numeroso te louvarei. Ora, implicauma certa leviandade o comer-se apressadamente. Logo, é um preceito inconveniente o de comer apressadamente o cordeiro pascal. E também se fizeram certas instituições sobre o modo de comer esse cordeiro, que parecem totalmente irracionais.
3. Demais. — Os sacramentos da lei antiga são figuras dos da nova. Ora, o cordeiro pascal significa o sacramento da Eucaristia, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado. Logo, também a lei devia ter alguns sacramentos que prefigurassem outros da lei nova, como, a confirmação, a extrema-unção, o matrimônio e os outros sacramentos.
4. Demais. — Só se pode fazer purificação do que constitui imundície. Ora, para Deus, nada é imundo, porque todo corpo é criatura sua; e toda a criatura de Deus é boa, e não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças, como diz a Escritura (1 Tm 4, 4). Logo, era inconveniente que se purificassem, por causa do contato com um homem morto, ou com qualquer infecção corporal semelhante.
5. Demais. — A Escritura diz (Sr 34, 4): Que coisa será alimpada por um imundo? Ora, a cinza da vaca vermelha queimada era imunda, porque tornava imundo. Pois, como diz a Escritura (Nm 19, 7 ss), o sacerdote que a imolava ficava imundo até a tarde. Do mesmo modo, o que a queimava e quem lhe ajuntava as cinzas. Logo, era um preceito inconveniente que, com essa cinza aspergida, os imundos se purificassem.
6. Demais. — O pecado não é nada de material, que possa ser levado de um lugar para outro; nem pode o homem purificar-se dele por meio do que é imundo. Logo, era inconveniente, para a expiação dos pecados do povo, que o sacerdote confessasse sobre um bode os pecados dos filhos de Israel, para que os levasse para o deserto. E por outro bode, que os sacerdotes imolavam, para as purificações, e era queimado juntamente com um novilho, fora do arraial se tornassem imundos, de modo que precisassem lavar as vestes e o corpo com água.
7. Demais. — O que já está limpo não precisa ser de novo purificado. Logo, era inconveniente que ao homem ou a casa, purificados da lepra, se impusesse outra purificação.
8. Demais. — A imundícia espiritual não podia ser limpa pela água material ou pela raspagem dos pelos. Logo, era irracional o Senhor ter ordenado se fizesse uma bacia de bronze com sua base, para lavatório das mãos e dos pés dos sacerdotes, que houvessem de entrar no tabernáculo. Bem como também o era, que se mandasse aos levitas lavarem-se com a água da expiação, e rasparem todos os pelos do corpo.
9. Demais. — O mais não pode santificar-se pelo menos. Logo, era inconveniente que, na lei, se fizesse a consagração dos sacerdotes maiores e menores, e dos levitas por unção, sacrifícios e oblações corpóreas.
10. Demais. — Como diz a Escritura (1 Sm 16, 7) o homem vê o que está patente, mas o Senhor olha para o coração. Ora, o que é exteriormente patente, no homem, é a disposição corpórea e também as vestes. Logo, era inconveniente se destinassem aos sacerdotes, maiores e menores, certas vestes especiais, que refere a Escritura (Ex 28). E parece sem razão que alguém fosse impedido de ser sacerdote, por causa de defeitos corpóreos, conforme se diz (Lv 21, 17): O homem de qualquer das famílias da tua linhagem que tiver deformidade não oferecerá pães ao seu Deus; nem se for cego, se coxo, etc. Por onde se conclui, que os sacramentos da lei antiga eram irracionais.
Mas, em contrario, diz a Escritura (Lv 20, 8): Eu sou o Senhor que vos santifico. Ora, Deus não faz nada sem razão, conforme o salmo (Sl 103, 24): Todas as coisas fizeste com sabedoria. Logo, nos sacramentos da lei antiga, que se ordenavam à santificação dos homens, nada havia sem causa racional.
Solução. — Como já dissemos (q. 101, a. 4), sacramentos propriamente se chamavam às coisas atribuídas aos sacerdotes de Deus para alguma consagração, por meio de quem, elas, de certo modo, se destinavam ao culto divino. Ora, o culto de Deus, de maneira geral, pertencia a todo o povo; mas, de modo especial, aos sacerdotes e levitas, que eram os seus ministros. Por isso, nos sacramentos da lei antiga, certas disposições pertenciam comumente a todo o povo; e certas outras, especialmente, aos ministros. E em relação a ambos, três coisas eram necessárias. — A primeira, que cada um fosse posto em estado de adorar a Deus, o que em geral todos faziam pela circuncisão, sem a qual ninguém era admitido a nenhuma das cerimônias legais; e quanto aos sacerdotes, pela consagração. — Em segundo lugar, era exigido o uso daquilo que pertencia ao culto divino. Por isso o povo fazia o banquete pascal, ao qual não era admitido nenhum incircunciso, como se vê na Escritura (Ex 12, 43 ss). E os sacerdotes faziam a oblação das vítimas, comiam o pão da proposição, e o mais para o que eram destinados. — Por fim, exigia-se a remoção do que impedia o culto divino, i. é, das imundícias. E assim, para o povo, instituíram-se certas purificações de determinadas imundícias exteriores, e também expiações dos pecados. Para os sacerdotes e levitas instituiu-se a oblação das mãos, dos pés e a raspagem dos pêlos. — E tudo isto tinha causas racionais literais, porque se ordenava ao culto de Deus, naquele tempo; e figuradas, porque se ordena a figurar Cristo, como ficará claro por um exame minucioso.
Donde a resposta à primeira objeção. — A razão literal da circuncisão, e a principal, era ser um protesto de fé na unidade de Deus. E como Abraão foi o primeiro, que se separou dos infiéis, saindo da sua casa e da sua parentela, foi o primeiro a receber a circuncisão. E nessa causa toca o Apóstolo (Rm 4, 9 ss): Recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que está no prepúcio; porque, como nesse mesmo lugar se lê, pela fé de Abraão foi-lhe imputada a justiça, porque creu em esperança contra a esperança, i. é, contra a esperança da natureza, na esperança da graça, para que se tornasse pai de muitas gentes; pois era velho e velha também e estéril a sua esposa. E para que esse protesto e imitação da fé de Abraão se firmasse nos corações dos judeus, recebiam na carne um sinal que não pudessem esquecer. Donde a Escritura (Gn 17, 13): Este meu pacto será na vossa carne para concerto eterno. E, por isso fazia-se no oitavo dia, porque, antes, a criança é muito tenra e podia causar-lhe mal grave, por ser considerada como algo de ainda não consolidado. Razão por que nem os animais eram oferecidos antes do oitavo dia. E não se deixava a circuncisão para mais tarde, afim de que, por causa da dor, não se lhe quisesse fugir ao sinal; e também afim de que os pais, cujo amor para com os filhos vai aumentando com a convivência continuada e com o crescimento deles, não quisessem subtraí-los a ela. — A segunda razão podia ser o enfraquecimento da concupiscência no membro circunciso. — A terceira o escárnio dos sacrifícios a Venus e a Priapo, nos quais era honrada essa parte do corpo. — Mas o Senhor não proibiu senão a incisão, que se fazia no culto dos ídolos, ao que não se assemelhava a circuncisão de que se trata.
A razão figurada da circuncisão é simbolizar que Cristo poria termo à corrupção; o que faria completa e perfeitamente na oitava idade, que é a dos ressurretos. E como toda corrupção da culpa e da pena tem em nós origem carnal, proveniente do pecado do primeiro pai, a circuncisão fazia-se no membro da geração. Donde o dizer o Apóstolo (Cl 2, 11): Estais circuncidados em Cristo de circuncisão não feita por mão de homem no despojo do corpo da carne, mais sim na circuncisão de Cristo.
Resposta à segunda. — A razão literal do banquete pascal era a comemoração do benefício, de Deus ter tirado os judeus do Egito; por isso, com a celebração desse banquete, confessavam constituir o povo que Deus para si tirara do Egito. Mas, quando foram libertados, foi-lhes dado como preceito untarem a padieira nas casas, significando isso um como protesto que não aceitavam os ritos dos egípcios, que adoravam um carneiro. Por isso ficaram livres, pela aspersão do sangue do cordeiro, ou por untarem os limiares das casas, do perigo de extermínio, iminente para os egípcios. Ora, a saída dos judeus do Egito se realizou com as duas circunstâncias seguintes. Com pressa no andar, porque os egípcios os apertavam a saírem velozmente, como se lê na Escritura (Ex 12, 33); e era iminente o perigo a quem não se apressasse em sair com o povo, pois ficando, seria morto pelos egípcios. Essa pressa era significada, de dois modos. Pelo que comiam; pois tinham como preceito comerem pães ázimos, em sinal de que os egípcios lhes tinham dado tanta pressa a partir que não puderam meter-lhes o fermento. E também por comerem o cordeiro assado ao fogo, porque assim era preparado mais rapidamente; e por não o despedaçarem, porque na pressa, não havia tempo de quebrar os ossos. De outro modo, quanto à maneira de comer. Assim, diz a Escritura: cingireis os vossos rins, e tereis sapatos nos pés e bordões nas mãos, e comereis à pressa, o que manifestamente designa homens que faziam caminho rápido. E o mesmo fim visava o outro preceito: Há de comer-se em cada casa, nem das suas carnes tirareis nada para fora; porque, pela pressa, não havia tempo de fazer brindes uns aos outros. Quanto às amarguras, que sofreram no Egito, eram simbolizadas pelas alfaces agrestes. As razões figuradas são claras. A imolação do cordeiro pascal significa a de Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado. O sangue do cordeiro, que livrava do extermínio, untado nas padieiras das casas, significa a fé na paixão de Cristo, no coração e na boca dos fiéis. Por ela nos libertamos do pecado e da morte, conforme a Escritura (1 Pd 1, 18): Fostes redimidos pelo precioso sangue do cordeiro imaculado. Comiam-lhe a carne para significar que comemos a carne do corpo de Cristo no sacramento.Eram assadas ao fogo para significar a paixão ou a caridade de Cristo. Comiam-nas com pães ázimos para significar a pureza do banquete dos fiéis, que comem o corpo de Cristo, segundo a Escritura (1 Cor 5, 8): Solenizemos o nosso convite, com os ázimos da sinceridade e da verdade. Acrescentavam asalfaces agrestes; em sinal da penitência dos pecadores, necessária aos que recebem o corpo de Cristo. Os rins devem ser cingidos com o cinto da castidade. Os sapatos dos pés são a imagem dos patriarcas mortos. O báculo, que deviam ter nas mãos, significa a custódia pastoral. Também se mandava comessem numa casa o cordeiro pascal, i. é, na Igreja dos Católicos e não, nos conventículos dos heréticos.
Resposta à terceira. — Certos sacramentos da lei nova correspondem, figuradamente, a outros da lei antiga. Assim, à circuncisão corresponde o batismo, que é o sacramento da fé. Por isso, diz a Escritura (Cl 2, 11-12): Vós estais circuncidados na circuncisão de N. S. Jesus Cristo, estando sepultados juntamente com ele no batismo. Ao banquete do cordeiro pascal corresponde, na lei nova, o sacramento da Eucaristia. A todas as purificações da lei antiga, o sacramento da penitência. A consagração do pontífice e dos sacerdotes, ao sacramento da ordem. Ao sacramento da confirmação, que implica a plenitude da graça, nenhum sacramento da lei antiga podia corresponder, pois, ainda não chegara o tempo da plenitude, porque, a lei ninguém levou à perfeição. O mesmo se dá com o da extrema unção, que é uma preparação imediata para a entrada na glória, cujo adito ainda não fora franqueado na lei antiga, porque o resgate ainda não tinha sido pago. O matrimônio estava, certo, compreendido na lei antiga, enquanto pertencente à lei da natureza; mas não, enquanto sacramento significativo da união de Cristo e da Igreja, ainda não realizada. Por isso, na lei antiga, dava-se libelo de repúdio, que encontra a essência desse sacramento.
Resposta à quarta. — Como já se disse, as purificações da lei antiga ordenavam-se a remover os impedimentos do culto divino. Este era duplo: o espiritual, que consistia na elevação da mente para Deus; e o corpóreo, consistente nos sacrifícios, nas oblações e coisas semelhantes. — Ora, do culto espiritual, os homens ficavam privados pelo pecado, que, como se pensava, os poluía; assim, pela idolatria e pelo homicídio, pelos adultérios e incestos. E dessas manchas se purificavam por certos sacrifícios, ou oferecidos, em geral, por todo o povo, ou mesmo pelos pecados de cada um. Não que esses sacrifícios carnais tivessem por si mesmos a virtude de expiar o pecado. Mas porque significam a futura expiação dos pecados por Cristo, de que os antigos eram participantes, protestando a fé no Redentor, em figuras de sacrifícios.
Do culto externo os homens ficavam privados por certas imundícias corpóreas. Estas eram, primeiro, consideradas em relação a eles próprios, e, conseqüentemente, em relação às vestes, às casas e aos vasos. Essas imundices provinham, em parte, dos homens mesmos; em parte, do contato com coisas imundas. Quanto às primeiras, era considerado imundo o que já tinha alguma corrupção ou a alguma estava exposto. Por isso, sendo a morte uma corrupção, o cadáver de um homem era considerado imundo. Do mesmo modo, como a lepra provém da corrupção dos humores, que também irrompem para fora e contaminam os outros, os leprosos eram considerados imundos. Semelhantemente, as mulheres que sofriam de fluxo de sangue, por doença, ou também por natureza, ou no tempo do mênstruo, ou, ainda, no da concepção. E pela mesma razão os homens eram considerados imundos, que sofriam de fluxo seminal, quer por doença, quer por polução noturna, ou ainda, pelo coito. Pois, toda a umidade saída do homem, desses modos sobreditos, implicavam infecção imunda. Também eles contraíam uma certa imundícia pelo contacto com determinadas coisas imundas.
Ora, d' essas imundices podem-se assinalar razão literal e figurada. — A literal era a reverência ao que pertencia ao culto divino; quer porque os homens não costumavam tocar nas coisas preciosas, quando imundos, quer porque o raro acesso às coisas sagradas as tornava mais veneradas. Pois, como ninguém podia, senão raramente, acautelar-se contra todas essas imundices, acontecia que só raramente podiam tocar nas coisas pertencentes ao culto divino; e assim, quando se lhes achegavam, faziam-no com maior reverência e humildade da mente. — Certas dessas imundices também tinham, como razão literal, fazer com que os homens não temessem chegar-se ao culto divino, fugindo à sociedade dos leprosos e semelhantes enfermos, cuja doença era abominável e contagiosa. — De certas outras a razão era fazer evitar o culto da idolatria; porque os gentios, no rito dos seus sacrifícios, empregavam às vezes o sangue e o sêmen humanos. — Mas, todas essas imundices corpóreas se purificavam, ou só pela aspersão da água, ou, quando eram maiores, por algum sacrifício para expiar o pecado, donde provinham as tais enfermidades.
A razão figurada é que, dessas imundícias as externas figuram diversos pecados. Assim, a de um cadáver, significa a do pecado, que é a morte da alma. A da lepra, a da doutrina herética, quer porque esta é contagiosa como aquela; quer porque não há nenhuma falsa doutrina que não vá mesclada com alguma verdade; assim como também, na superfície do corpo do leproso, aparece uma certa distinção entre as manchas e a carne sã. A imundice da mulher que sofre fluxo de sangue significa a da idolatria, por causa do cruor da imolação. A do homem com fluxo seminal, a do vanilóquio, porque sêmen é a palavra de Deus. A do coito e a da mulher que deu à luz, a do pecado original. A da mulher menstruada, a da mente embotada pelos prazeres. E em geral, a imundice do contacto com coisa imunda designa a do consentimento no pecado de outrem, conforme a Escritura (2 Cor 6, 17): Saí do meio deles, e separai-vos dos tais e não toqueis o que é imundo.
E essa imundícia do contado atingia também as coisas inanimadas; pois, tudo o que, de qualquer modo, o imundo tocava, ficava imundo. No que a lei atenuou a superstição dos gentios, que consideravam contraída a imundice, não só pelo contado com o imundo, mas também pelo colóquio ou pela vista, como refere Rabbi Moisés, sobre a mulher menstruada. E isto misticamente significava o que diz a Escritura (Sb 14, 9): Deus igualmente aborrece ao ímpio e à sua impiedade.
Havia também uma certa imundice das coisas inanimadas em si mesmas, como era a da lepra, na casa e nas vestes. Pois, assim como a doença da lepra procede, no homem, do humor corrupto, que putrefaz e corrompe a carne, assim também, por uma certa corrupção e excesso de umidade ou de secura, opera-se uma certa corrupção nas pedras da casa, ou ainda nas vestes. Por isso a lei chama lepra a essa corrupção, que fazia considerar imunda uma casa ou a roupa. Quer, porque toda corrupção implica imundice, como se disse; quer também porque, para evitar tais corrupções, os gentios prestavam culto aos deuses Penates. Por isso a lei mandava destruir a casa em que tal corrupção perseverasse, e que as vestes fossem queimadas, para evitar a ocasião da idolatria. Havia também uma imundice própria dos vasos, da qual diz a Escritura (Nm 19, 15): O vaso que não tiver tapadura nem atadura sobre si, será imundo. E a causa dessa imundice era que, em tais vasos, podia facilmente cair algo de imundo que os contaminasse. Também tinha esse preceito por fim evitar a idolatria. Pois, os idólatras acreditavam, que se ratos, lagartos ou outros animais semelhantes, que imolavam aos deuses, caíssem nos vasos ou nas águas, estes lhes seriam gratos. E também certas mulheres do povo deixavam os vasos descobertos em obséquio às divindades a que chamavam Ianas.
A razão figurada dessas imundices é a seguinte. A lepra na casa significa a imundice da reunião dos heréticos; a no vestido de linho, a perversidade dos costumes, pela amargura da mente; a na roupa de lã, a perversidade dos aduladores; a na urdidura, os vícios da alma; a na trama, os pecados carnais, pois, assim como a urdidura está na trama, assim, a alma, no corpo. O vaso sem tapadura nem atadura, o homem sem qualquer velame de taciturnidade, ou o que não é constrangido por nenhuma correção da disciplina.
Resposta à quinta. — Como já se disse (a. 4), a lei considerava dupla imundice. Uma, proveniente de corrupção da mente ou do corpo, e esta era a maior. A outra, do só contato com o imundo, e era a menor e expiável com rito mais fácil. Pois, a primeira era expiada por meio dos sacrifícios pelo pecado; porque toda corrupção procede deste e o significa. Ao passo que a segunda o era só pela aspersão de uma certa água de expiação, de que fala a Escritura (Nm 19).
Pois, nesse lugar, o Senhor manda que tomassem uma vaca vermelha, em memória do pecado, que cometeram quando adoraram o bezerro. E diz uma vaca, e não um bezerro, porque, assim costumava chamar à sinagoga, conforme àquilo (Os 4, 16): Israel se desencaminhou como uma vaca que não pode sofrer o jugo. E isto talvez porque adoravam as vacas, seguido o costume do Egito, conforme o lugar da Escritura (Os 10, 5): Adoravam as vacas de Bethaven. — E para fazer detestar o pecado da idolatria, era imolada fora do arraial. E onde quer que se fizesse o sacrifício expiatório da multidão dos pecados, toda ela era queimada fora do arraial. — E como se quisesse significar, por esse sacrifício, que o povo ficava limpo da totalidade dos pecados, o sacerdote molhava o dedo no sangue dela e fazia com ele sete aspersões, voltado para a porta do tabernáculo. E essa aspersão mesma do sangue era para fazer detestar a idolatria, na qual o sangue da imolação não era espalhado, mas reunido, e em redor dele, os homens comiam em honra dos ídolos. — A vaca era, ademais disso, queimada no fogo, quer porque Deus, no fogo, apareceu a Moisés, e no mesmo foi dada a lei; quer para significar que se devia extirpar totalmente a idolatria e tudo o que a ela pertencia; assim como da vaca eram consumidos na chama tanto a pele e as carnes como o sangue e o excremento. — E acrescentava-se, na combustão, pau de cedro, hissopo, escarlata duas vezes tinta, para significar que, como o pau de cedro não apodrece facilmente, e a escarlata duas vezes tinta não perde a cor, e o hissopo conserva o cheiro, ainda depois de estar dessecado; assim também esse sacrifício era pela conservação do povo, e da sua honestidade e devoção. Por isso, diz a Escritura, das cinzas da vaca: Para que as guarde a multidão dos filhos de Israel. Ou, segundo Josefo, nesse sacrifício simbolizavam-se os quatro elementos. Punha-se o cedro no fogo para significar a terra, por causa da sua fixidez no solo; o hissopo, pelo seu cheiro, significava o ar; a escarlata duas vezes tinta, a água, pela mesma razão por que também a significava a púrpura, por causa da tinta, que se faz com água. De modo que tudo isto significava, que se oferecia ao Criador o sacrifício dos quatro elementos. E como esse sacrifício era oferecido para fazer detestar o pecado da idolatria, eram considerados imundos tanto o que queimou, como o que recolheu as cinzas e o que fazia a aspersão da água misturada com a cinza. Isto porque tudo o atinente, de certo modo, à idolatria devia ser rejeitado como imundo. E dessa imundice se purificavam pela só ablução das vestes. Nem era necessário fizessem aspersão da água, porque então o processo iria ao infinito. Pois, o que aspergia a água tornava-se imundo e então, aspergindo-se a si mesmo, continuaria imundo; mas quem o aspergisse também ficaria imundo; e semelhantemente, quem a este aspergisse, e assim ao infinito.
A razão figurada desse sacrifício é que a vaca vermelha significa a Cristo, por causa da natureza humana enferma, de que se revestiu, designada pelo sexo feminino da vaca. A cor desta designa o sangue da paixão. A vaca vermelha estava na força da idade, porque toda obra de Cristo é perfeita. Não tinha nenhum defeito e não tinha ainda levado o jugo, porque Cristo é inocente, nem levou o jugo do pecado. Devia ser levada a Moisés, porque lhe imputavam a transgressão da lei mosaica quanto à violação do sábado. Devia ser entregue ao sacerdote Eleazar, porque Cristo, condenado à morte, foi entregue nas mãos dos sacerdotes. Era imolada fora do arraial porque Cristo padeceu fora da porta. O sacerdote tingia o dedo no sangue dela, porque o mistério da paixão de Cristo deve ser meditado e imitado com sabedoria, significada pelos dedos. O sacerdote fazia aspersão voltado para o tabernáculo, para significar a sinagoga, quer para a condenação dos judeus incrédulos, quer para a purificação dos crentes. E isto sete vezes, por causa dos sete dons do Espírito Santo, ou dos sete dias, que simbolizam todos os tempos. Também tudo o que aludia à encarnação de Cristo devia ser queimado no fogo, i. é, espiritualmente entendido. Assim, a pele e a carne significam as obras externas de Cristo; o sangue, a virtude sutil e interior, vivificante das obras externas; o excremento, a lassidão, a sede e tudo o mais próprio à fraqueza. Acrescentavam-se ainda três coisas, a saber: o cedro, para significar a sublimidade da esperança, ou da contemplação; o hissopo, símbolo da humildade ou da fé; a escarlata duas vezes tinta, da dupla caridade. Pois, por essas virtudes devemos nos unir com a paixão de Cristo. A cinza da combustão era recolhida por um homem limpo, porque os resultados da paixão aproveitaram aos gentios, que não foram culpados da morte de Cristo. Era posta na água da expiação, porque pela paixão de Cristo o batismo produz o efeito de purificar dos pecados. O sacerdote, que imolava e queimava a vaca, e aquele que a queimava, e o que lhe recolhia as cinzas, ficavam imundos, bem como o que fazia aspersão da água. Isso, quer porque os judeus ficaram imundos por terem morto a Cristo, que expiou os nossos pecados; e até a tarde, i. é, até o fim do mundo, quando o que restar de Israel se converterá. Ou porque os que tratam as coisas santas, procurando a purificação dos outros, eles próprios também contraem certas imundices, como diz Gregório; e isto até a tarde, i. é, até o fim da vida presente.
Resposta à sexta. — Como já se disse, a imundice proveniente da corrupção da mente ou do corpo era expiada pelos sacrifícios pelo pecado. E ofereciam-se sacrifícios especiais pelos pecados de cada um. Ora, certos eram negligentes em expiar tais pecados e imundices; ou deixavam de o fazer por ignorância. Por isso, foi instituído que, uma vez por ano, no dia dez do sétimo mês, se fizesse um sacrifício expiatório por todo o povo. E porque, no dizer do Apóstolo (Heb 7, 28), a lei constitui sacerdotes a homens que têm enfermidade, era necessário que o sacerdote oferecesse primeiro por si mesmo o bezerro, pelo pecado, em lembrança do que Aarão cometeu ao fundir o bezerro de ouro. E um carneiro em holocausto, para significar que a escolha do sacerdote, significado pelo carneiro, chefe do rebanho, devia ordenar-se à honra de Deus. — Em seguida o sacerdote oferecia, pelo povo, dois bodes. Um era imolado para expiar o pecado do povo. Porque o bode é um animal fétido e, da sua pele, fazem-se vestes que picam o corpo; o que significa o mau cheiro, a imundice e o aguilhão dos pecados. O sangue do bode imolado era conduzido, junto com o do bezerro, ao Santo dos Santos, e com ele se aspergia todo o santuário, para significar que o tabernáculo era purificado das imundices dos filhos de Israel. O corpo do bode e o do bezerro, imolados pelo pecado, deviam ser queimados, para significar a consumpção dos pecados. Não porém no altar, onde só se queimavam totalmente os holocaustos. Por isso, era ordenado que fossem queimados fora do arraial, em detestação dos pecados; e isto se fazia sempre que era imolada a vítima do sacrifício por algum pecado grave, ou pela multidão deles. — O outro bode era mandado para o deserto, não, certo, para ser oferecido aos demônios, que aí os gentios adoravam, porque nada era lícito lhes imolar; mas, para significar o efeito da imolação da vítima desse sacrifício. Por isso, o sacerdote impunha-lhe a mão sobre a cabeça, confessando os pecados dos filhos de Israel; e então o bode era mandado para o deserto, para ser comida das feras, como sofrendo a pena pelos pecados do povo. E consideravam-no como carregando esses pecados, quer porque o ser ele mandado para o deserto significasse a remissão de tais pecados; quer porque se lhe ligava à cabeça algum bilhete, onde estes estavam escritos.
A razão figurada desses sacrifícios é significar a Cristo. O bezerro significa-lhe a virtude; o carneiro, que é chefe dos fiéis; o bode, a sua semelhança da carne do pecado. E o próprio Cristo foi imolado pelo pecado dos sacerdotes e do povo, porque, pela sua paixão, tanto os grandes como os pequenos são limpos do pecado. O sangue do bezerro e do bode era introduzido no Santo pelo pontífice, porque o sangue da paixão de Cristo nos abriu a porta do reino dos céus. Os corpos desses animais eram queimados fora do arraial, porque Cristo padeceu fora da porta; como diz o Apóstolo (Heb 13, 12). Quanto ao bode emissário, podia significar a divindade mesma de Cristo, que foi para a solidão, no sofrimento da sua humanidade, não, certo, por mutação de lugar, mas por coibição da virtude. Ou significava a má concupiscência, que devemos expulsar de nós, e os movimentos virtuosos, que devemos imolar ao Senhor. — A imundice dos que queimavam essas vítimas no sacrifício tinha a mesma razão já assinalada no sacrifício da vaca vermelha (ad 5).
Resposta à sétima. — Pelo rito da lei, o leproso não era limpo da mácula da lepra, mas, era encontrado já limpo. Isso significa o lugar da Escritura, que diz (Lv 14, 3 ss): mandará ao que se purifica, vendo que a lepra está curada. Logo, já estava purificado da lepra; mas era considerado como se purificando ao ser restituído, pela decisão do sacerdote, ao convívio social e ao culto divino. Acontecia porém às vezes que, por milagre divino, fosse purificado da lepra, segundo o rito da lei material, quando o sacerdote se enganava no julgar. — Essa purificação do leproso fazia-se de dois modos. Pois, primeiro, era julgado como estando limpo; depois, como tal, era restituído ao convívio social e ao culto divino, i. é, depois de sete dias. — Na primeira purificação o leproso, que devia purificar-se, oferecia por si duas avezinhas vivas, pau de cedro, escarlata e hissopo, de modo que com um fio escarlate fosse ligada a avezinha junto com o hissopo e o pau de cedro. E de maneira que este servisse de cabo ao aspersório; ao passo que o hissopo e a avezinha eram as partes do aspersório que eram molhadas no sangue da outra avezinha imolada em águas vivas. E essas quatro coisas eram oferecidas contra os quatro defeitos da lepra. Pois, contra a putrefação era oferecido o cedro, árvore incorruptível; contra a fetidez, o hissopo, que é uma erva odorífera; contra a insensibilidade, a avezinha viva; contra a fealdade da cor, a escarlata, que tem cor viva. Deixava-se a avezinha viva voar para o campo, porque o leproso era restituído à liberdade antiga. — No oitavo dia, era o purificado admitido ao culto divino e restituído ao convívio social. Porém, depois de ter rapado todo os pêlos do corpo, lavado os vestidos, porque a lepra corroe aqueles e contamina estes e os torna fétidos. Depois oferecia um sacrifício pelo seu pecado, porque a lepra era, quase sempre, apanhada, por causa dele. Com o sangue do sacrifício o sacerdote molhava a extremidade da orelha do que devia purificar-se, e os polegares da mão e pé direitos; pois é nesses lugares que primeiro se distingue e sente a lepra. Acrescentavam ainda a esse rito três líquidos: o sangue contra a corrupção do mesmo; o azeite, para designar a cura da doença; a água viva, para limpar a espurcícia.A razão figurada é, que as duas avezinhas significam a divindade e a humanidade de Cristo. Uma delas, símbolo da humanidade, era imolada num vaso de barro sobre águas vivas, porque a paixão de Cristo consagrou as águas do batismo, a outra, símbolo da impassibilidade divina, ficava viva, porque a divindade não pode morrer. Por isso voava, por não poder a divindade ser atingida pelo sofrimento, A avezinha viva era posta na água, para ser aspergida, simultaneamente com o pau de cedro, a escarlata, o carmesim e o hissopo, i. é, com a fé, a esperança e a caridade, como dissemos, porque somos batizados na fé em Deus e no homem. O homem lava, na água do batismo e das lágrimas, as suas vestes, i. é, as suas obras, e todos os pêlos, i. é, os pensamentos. A extremidade da orelha direita daquele que se purificava era molhada no sangue e no azeite, para precaver o ouvido contra as palavras corruptoras. Os polegares da mão direita e do pé eram molhados, para as suas ações serem santas. O mais, que diz respeito a esta purificação, ou a das outras imundices, nada tem de especial que não esteja compreendido nos outros sacrifícios pelos pecados ou pelos delitos.
Resposta à oitava e à nona. — Assim como o povo judeu foi instituído para o culto de Deus, pela circuncisão, assim o ministro, por alguma especial purificação ou consagração. Por isso foi-lhe ordenado que se separasse dos outros povos, como destinado especialmente ao ministério do culto divino, o que com esses se não dava. E tudo o que era feito com respeito à consagração ou instituição deles, visava mostrar que tinham uma prerrogativa de pureza, virtude e dignidade. Por isso, três coisas se faziam na instituição dos ministros. Primeiro, eram purificados; segundo, ordenados e consagrados; terceiro, aplicados ao uso do ministério.
Comumente todos se purificavam pela ablução com água e por certos sacrifícios; em especial, porém, os levitas raspavam todos os pêlos do corpo, como se lê na Escritura (Lv 8).
A consagração dos pontífices e dos sacerdotes fazia-se na ordem seguinte. Primeiro, depois de terem feito a ablução, revestiam-se de certas vestes especiais próprias a designar-lhes a dignidade. Especialmente porém o pontífice era ungido na cabeça com o óleo da unção, para significar que dele promanava para outrem o poder de consagrar, assim como o óleo, da cabeça, escorre para os membros inferiores, conforme se lê na Escritura (Sl 132, 2): Como o perfume derramado na cabeça, que desceu sobre toda a barba de Aarão. Os levitas não tinham outra consagração senão o serem oferecidos ao Senhor pelos filhos de Israel, por meio das mãos do pontífice, que orava por eles. Os sacerdotes menores eram consagrados só nas mãos, que deviam aplicar-se aos sacrifícios; e com o sangue do animal imolado era molhada a extremidade da orelha direita deles, e os polegares do pé e da mão direita. Isso para que fossem obedientes a Deus, no oferecer os sacrifícios, o que era significado pelo umedecimento da orelha direita; e para que fossem solícitos e prontos na execução deles, o que era significado pelo umedecimento do pé e da mão direita. Aspergiam-lhes também as vestes com o sangue do animal imolado, em memória do sangue do cordeiro por quem foram libertos do Egito. Ofereciam-se também na consagração deles os seguintes sacrifícios. Um bezerro, pelo pecado, em memória da remissão do pecado de Aarão, quando fundiu o bezerro de bronze. Um carneiro em holocausto, em memória da oblação de Abraão, cuja obediência o pontífice devia imitar. O carneiro da consagração, que era uma como hóstia pacífica, em memória da libertação do Egito pelo sangue do cordeiro. E um canistrel de pães, em memória do maná dado ao povo.
Também concernia à aplicação do ministério o se lhes impor sobre as mãos a gordura do carneiro, a torta de um pão, e a espádua direita, para mostrar que recebiam o poder de fazertais oferendas ao Senhor. Os levitas enfim se aplicavam ao ministério por serem introduzidos no tabernáculo da aliança, como que para ministrarem nos vasos do santuário.
A razão figurada disso tudo é a seguinte. Os que vão ser consagrados ao ministério espiritual de Cristo devem, primeiro, purificar-se pela água do batismo e das lágrimas, em fé da paixão de Cristo; é um sacrifício expiatório e purgativo. E devem raspar todos os pêlos do corpo, i. é. todos os pensamentos maus. Também devem ornar-se de virtudes e se consagrar com o óleo do Espírito Santo e com a aspersão do sangue de Cristo. E assim, devem estar preparados para desempenhar os ministérios espirituais.
Resposta à décima. — Como já dissemos, a intenção da lei era despertar a reverência do culto divino. Isto de dois modos: excluindo do culto o que podia ser desprezível; e aplicando-lhe tudo o que fosse considerado como honorificente. E se isto se observava em relação ao tabernáculo, aos seus vasos e aos animais que iam ser imolados, com maioria de razão devia ser observado em relação aos ministros. — Por onde, para remover deles o que quer que fosse de desprezível, foi ordenado que não tivessem deformidade ou defeito corpóreo, porque homens que o têm costumam ser tomados pelos outros em má conta. Pelo que também foi instituído que não fossem escolhidos para o ministério de Deus, a esmo e de qualquer família; mas os de uma certa prosápia, e conforme à sucessão da família, para assim se conseguirem ministros mais ilustres e nobres.
E para que fossem tidos em reverência, acrescentavam -lhes vestes de ornato especial, e uma especial consagração. E esta é em geral a causa desses ornatos. — Em especial porém importa saber-se que o pontífice tinha oito ornamentos. — Primeiro, vestes de linho. Segundo, uma túnica de jacinto, em cujas extremidades, aos pés e ao redor, punham-se umas campainhas e umas como romãs de jacinto, de púrpura e de escarlata tinta duas vezes. — Terceiro, o efod, que cobria os ombros e a parte anterior até a cintura, e que era de ouro, de jacinto, de púrpura, de escarlata tinta duas vezes, e de linho fino retorcido. E nos ombros tinha duas pedras cornalinas, onde estavam gravados os nomes dos filhos de Israel. — Quarto, o racional, feito da mesma matéria; que era quadrado, colocado no peito e ligado ao efad. E nesse racional havia doze pedras preciosas separadas em quatro fileiras, nas quais também estavam escritos os nomes dos filhos de Israel. Isso como para significar que o pontífice carregava com o peso de todo o povo, por lhe ter os nomes nos ombros; e que, por trazê-las no peito, i. é, guardando-os quase no coração, devia perenemente pensar na salvação dele. No racional também o Senhor mandou escrever: Doutrina e Verdade, porque nele estavam escritas certas determinações relativas à verdade da justiça e da doutrina. Os judeus porém fabulavam, que no racional havia uma pedra capaz de revestir-se de cores diversas conforme aos diversos sucessos por que deviam passar os filhos de Israel, e lhe chamavam — Doutrina e Verdade. — Quinto, o cíngulo, i. é, uma cinta feita das quatro cores já referidas — Sexto, a tiara, i. é, uma mitra de bisso — Sétimo, a lâmina de ouro, pendente da cabeça, na qual estava escrito o nome do Senhor. — Oitavo, calções de linho, para lhes cobrirem as partes, quando subissem ao santuário ou ao altar. Destes oito ornatos menores os sacerdotes tinham quatro, a saber, a túnica, os calções, o cíngulo e a tiara.
Desses ornamentos a razão literal era, segundo alguns, significar a disposição do orbe terrestre, como se o pontífice se considerasse ministro do Criador do mundo. Donde o dizer a Escritura (Sb 18, 24): Na vestidura de Aarão estava descrito o orbe da terra. Assim, os calções de linho figuravam a terra, donde ele nasce. A circunvolução do cíngulo, o oceano, que circunda a terra. A túnica de jacinto, com a sua cor, significava o ar; as suas campainhas, o trovão; as romãs, os relâmpagos. O efod significava, na sua variedade, o céu sidéreo; as duas cornalinas, os dois hemisférios, ou o sol e a lua. As doze pedras preciosas no peito, os doze signos do zodíaco; estavam postas no racional, porque, nos fenômenos celestes estão as razões essenciais dos terrestres, conforme a Escritura (Jó 18, 33): Acaso entendes a ordem do céu e darás disso a razão estando na terra? A mitra ou tiara significava o céu empíreo. A lâmina de ouro, Deus, que tudo governa.
A razão figurada é manifesta. Pois, as deformidades ou defeitos corpóreos, de que os sacerdotes deviam estar imunes, significam os diversos vícios e pecados que não deviam ter. Não deviam ser cegos, i. é, ignorantes. Nem coxos, i. é, instáveis e sujeitos a inclinações diversas. Nem de nariz pequeno, grande ou torcido; i. é, não deviam por falta de discreção, cair em exageros por excesso ou defeito; ou ainda, não praticar atos maus; pois, o nariz designa o discernimento, capaz de distinguir os odores. Não deviam ter quebrado o pé ou a mão, i. é, perder a virtude de agir ou proceder virtuosamente. Seria também rejeitado o corcovado, anterior ou posteriormente; o que significa o amor supérfluo das coisas terrenas. O remeloso, i. é, entenebrecido de engenho pelo afeto carnal, pois a remelosidade provém do fluxo dos humores. O de belide no olho, i. é, o que no pensamento nutrisse a presunção de ser puro na justificação. Também quem tivesse sarna pertinaz, i. é, a petulância da carne. Quem tivesse impigem, pois esta sem dor se dissemina pelo corpo e ofende a beleza dos membros; e isso designa a avareza, E também quem tivesse quebradura ou fosse obeso; i. é, trouxesse a carga da torpeza no coração, embora não a realizasse por obras.
Os ornamentos designam as virtudes dos ministros de Deus. Pois, as quatro seguintes lhe são necessárias a todos. A castidade, significada pelos calções; a pureza da vida, pela túnica de linho; o moderado discernimento, pelo cíngulo; a retitude de intenção, pela tiara protetora da cabeça. — Mas, além destas, os pontífices devem ter quatro outras. Primeiro, lembrarem-se de Deus, pela contemplação, isto simbolizado na lâmina de ouro com o nome de Deus na fronte. Segundo, deviam suportar as fraquezas do povo, o que era simbolizado pelo efod. Terceiro, trazer o povo no coração e no íntimo, pela solicitude da caridade; e isso significa o racional. Quarto, viver um gênero de vida celeste, pelas obras de perfeição, o que é significado pela túnica de jacinto. Essa túnica tinha, na extremidade, campainhas de ouro, símbolo da doutrina das coisas divinas que deve ir de par com o gênero de vida celeste do pontífice. Acrescentavam-se ainda umas romãs, símbolo da unidade da fé e da concórdia nos bons costumes, porque a sua doutrina deve ser conexa, de modo a não romper a unidade da fé e da paz.
20 de janeiro
Diz o Evangelista: « O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça » (Mt 8, 20); como se dissesse, nota Jerônimo: « Por que me queres seguir por causa das riquezas e do lucro mundano: Não vês que eu vivo em tanta pobreza que não tenho sequer um turgúrio onde me abrigar e me sirvo de teto alheio? » O mesmo Jerônimo assim comenta o texto de Mateus: « Para não os escandalizarmos, vai até a praia... » (17, 26) Esta afirmação, « entendida simplesmente, edifica o que ouve, pois este percebe que o Senhor vivia em tanta pobreza que nem tinha como pagar o tributo por si e pelos Apóstolos ».
I. — Cristo devia levar neste mundo uma vida pobre.
1o. Primeiro, porque tal convinha ao ofício da pregação, pela qual ele dizia ter vindo ao mundo. Assim no Evangelho de Marcos: « Vamos para as aldeias e cidades vizinhas, a fim de que eu também lá pregue, pois para isso é que vim » (1, 38). É preciso que os pregadores da palavra de Deus, para se darem inteiramente à pregação, estejam absolutamente livres de cuidados seculares. Ora, isso não é possível aos que possuem riquezas. Por isso, o próprio Senhor, enviando os Apóstolos a pregar, diz-lhes: « Não tenhais ouro, nem prata » (Mt 10, 9). E os Apóstolos no livro dos Atos dizem: « Não é conveniente que nós deixemos a palavra de Deus para servir às mesas » (6, 2).
2o. Em segundo lugar, porque Cristo, assim como assumiu a morte corporal para nos conceder a vida espiritual, assim suportou a pobreza corporal para nos conceder as riquezas espirituais, como se diz na segunda Carta aos Coríntios: « Porque é conhecida de vós a liberalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por vós, a fim de que nós fôsseis ricos pela pobreza » (8, 9).
3o. Em terceiro lugar, se Cristo tivesse riquezas, sua pregação poderia ser atribuída à ambição. Jerônimo, no comentário ao Evangelho de Mateus, diz que, se os discípulos tivessem riquezas, « poderia parecer que pregavam, não por causa da salvação dos homens, mas por causa do lucro ». O mesmo valeria para Cristo.
4o. Em quarto lugar, para que tanto maior se mostrasse o esplendor de sua divindade, quanto mais vil parecesse por causa da pobreza. Lê-se num discurso no Concílio de Éfeso: « Cristo escolheu as coisas pobres e vis, as de menor valor e obscuras para que se visse que sua divindade transformou o orbe da terra. Escolheu sua mãe pobrezinha, uma pátria mais pobre ainda. Ele mesmo foi pobre. Não é isto que nos diz o presépio? »
(III q. XL, a. 3)
II. — Também não teria benefício que Deus encarnado vivesse neste mundo uma vida opulenta e enriquecida de honras e dignidade.
1o. Primeiro, porque veio para tirar o homem das coisas terrenas, e elevar às divinas as mentes humanas entregues às coisas terrenas. Por isso, foi conveniente que vivesse pobre e necessitado neste mundo, para pelo seu exemplo levar os homens ao desprezo das riquezas e das coisas mundanas que desejavam.
2o. Segundo, se tivesse vivido na abundância das riquezas e na suprema dignidade, aquilo que fez como Deus teria sido atribuído mais ao poder secular do que à virtude divina. Por isso, foi eficacíssimo argumento para a divindade o fato de ter melhorado todo o mundo, sem auxilio do poder secular.
(Contr., 4, 55)
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae.)
19 de janeiro
« Veio o Filho do homem, que come e bebe » (Mt 9, 19)
Convinha ao fim da encarnação que Cristo não levasse uma vida solitária, mas que convivesse com os outros. Ora, é de toda a conveniência que aquele que convive com outros a eles se conforme em seu modo de viver, como diz o Apóstolo: « Fiz-me tudo para todos » (1 Cor 9, 22). Portanto, foi de toda a conveniência que, no comer e beber, Cristo agisse como os demais.
Ora, deve-se dizer que, em seu modo de viver, o Senhor deu exemplo de perfeição em tudo o que propriamente diz respeito à salvação. Ora, a abstinência de alimento e bebida não diz respeito propriamente à salvação, como diz a Carta aos Romanos: « Porque o reino de Deus não é comida nem bebida » (14, 17).
Explicando o Evangelho de Mateus « A Sabedoria revelou-se justa pelos seus filhos » (11, 18), Agostinho diz que os santos Apóstolos « entenderam que o reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas em levar as situações com igualdade de ânimo, sem se exaltar na abundância, nem abater na indigência.» E na Doutrina Cristã, diz Agostinho que a culpa está não no uso das coisas, mas na ganância da pessoa. tanto a vida solitária, como a comum são lícitas e louváveis; tanto o guardar a abstinência longe do convívio das pessoas, como levar uma vida comum entre os demais. Portanto, o Senhor quis dar à todos o exemplo dos dois modos de viver.
Deve-se dizer, como Crisóstomo comentando o Evangelho de Mateus: « Para que saibas quão grande bem é o jejum e quão bom escudo é contra o diabo, e para que aprendas que, depois do batismo, é preciso dedicar-se não à lascívia, mas ao jejum, Cristo jejuou, não porque precisasse, mas para nos instruir. Porém não prolongou o jejum mais do que Moisés e Elias para não desacreditar a sua encarnação ».
Não foi, porém, inadequado que Cristo, após o jejum e o deserto, voltasse a uma vida comum. De fato, convém à vida que alguém transmita aos outros o que contemplou, e esta dizemos que Cristo assumiu, de modo que primeiro se dê à contemplação e depois venha a público convivendo com os demais. Por isso diz Beda, comentando o Evangelho de Marcos: « Cristo jejuou para que não te esquivasses ao preceito e comeu com os pecadores para que, percebendo a graça, reconhecesses o poder».
(III q. XL, a. 2)
(P. D. Mézard, O. P., Meditationes ex Operibus S. Thomae.)