O segundo discute-se assim. – Parece que os nossos defeitos não são a razão pela qual temos misericórdia.
1. – Pois, é próprio de Deus ter misericórdia, donde o dizer a Escritura As suas misericórdias são sobre todas as suas obras, Ora, Deus não tem nenhum defeito. Logo, os nossos defeitos não podem ser a razão de termos misericórdia.
2. Demais. – Se os nossos defeitos fossem a razão de termos misericórdia, necessariamente os que mais defeitos tivessem teriam também mais misericórdia. Ora, isto é falso, pois, como diz o Filósofo, os que se perderam totalmente não tem misericórdia. Logo, parece que os nossos defeitos não são a razão de termos misericórdia.
3. Demais. – É por termos defeitos que suportamos as injúrias. Ora, como diz o Filósofo no mesmo lugar os que tem disposição a injuriar não tem misericórdia. Logo, o ter defeitos não é a razão de termos misericórdia.
Mas, em contrário, a misericórdia é uma espécie de tristeza. Ora, dos nossos defeitos vem o padecermos tristeza, e por isso os fracos se contristam mais facilmente. Logo, a razão de termos misericórdia são os nossos defeitos.
SOLUÇÃO. – Sendo a misericórdia compaixão pela miséria alheia, como dissemos daí resulta que nos compadecemos quando nos condoemos com tais misérias. Ora, como a tristeza ou a dor tem por objeto o nosso mal próprio, nós nos entristecemos ou condoemos, quando consideramos nossa a miséria alheia, o que pode dar-se de dois modos. - De um modo, pela união do afeto, operada pelo amor. Pois, é porque o amante considera o amigo como outro eu, que reputa o mal dele por seu próprio, e portanto, sofre com esse mal como sofreria com o seu. E por isso, o Filósofo entre as outras condições da amizade, põe a de nos condoermos com o amigo. E o Apóstolo diz: Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram. - De outro modo, pela união real, quando o mal de certos nos esta tão próximo que nos pode atingir. E por isso o Filósofo diz que nós nos compadecemos com os que nos são chegados e semelhantes, porque estes nos levam a pensar que também poderíamos vir a sofrer idênticos males. E daí também procede serem os velhos e os sábios, os fracos e os medrosos, que se consideram como podendo vir a sofrer males, mais misericordiosos. Pelo contrário, os que se tem por felizes, e a tal ponto poderosos, que se julgam livres de sofrer qualquer mal, não se compadecem do mesmo modo. - Assim, pois, sempre o defeito é a razão da misericórdia: quer por considerarmos o defeito de outrem, como nosso, por causa da união do amor; quer pela possibilidade de virmos a padecer sofrimentos semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus só se compadece por amor, por nos amar como criaturas suas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os que já estão imersos em males infinitos, não temem sofrer mais nada, e por isso não se comiseram. Nem, semelhantemente, os que muito temem, porque estão a tal ponto entregues à paixão própria, que não se importam com a miséria alheia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os que tem disposição injuriosa, quer por terem sofrido injúrias, quer por quererem assacá-las, são incitados à ira, e à audácia, paixões que implicam virilidade, exaltando o ânimo do homem para coisas árduas e, por isso, privando-o de ponderarem do que hão de sofrer no futuro. E por isso esses tais, quando nessa disposição, não se comiseram, conforme aquilo da Escritura. A ira não tem misericórdia, nem o furor que rompe. E pela mesma razão, os soberbos não tem comiseração, por desprezarem os outros e os considerarem maus, reputando-os assim dignos de padecerem o que sofrem. Donde o dizer Gregório: falsa justiça, isto é, a dos soberbos, não tem compaixão, mas desprezo.