Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. ─ Parece que o poder das chaves não é o poder de ligar e de desatar, pelo qual o juiz eclesiástico deve receber no Reino os dignos e dele excluir os indignos.
1. ─ Pois, o poder espiritual conferido no sacramento é o mesmo que o caráter. Ora, o poder das chaves e o caráter não são o mesmo, porque pelo caráter o homem é comparável a Deus; mas pelo poder das chaves, aos súbditos. Logo, não é um poder.
2. Demais. ─ Juiz eclesiástico só é considerado aquele que tem jurisdição, e esta não é dada simultaneamente com a ordem. Ora, o poder das chaves é conferido quando o é a ordem. Logo, não se devia fazer menção do juiz eclesiástico na definição do poder das chaves.
3. Demais. ─ Ao que temos por nós mesmos não havemos necessidade de nenhum poder ativo para nos mover ao ato. Ora, só pelo fato de sermos dignos, já somos admitidos no Reino. Logo, não pertence ao poder das chaves admitir no Reino os dignos dele.
4. Demais. ─ Os pecadores são indignos do Reino. Ora, a Igreja ora pelos pecadores, a fim de alcançarem o Reino. Logo, longe de excluir os indignos, os admite, na medida do possível.
5. Demais. ─ Em todos os agentes ordenados, o último fim é o do agente principal, não o do agente instrumental. Ora, o agente principal na salvação do homem é Deus. Logo, a ele pertence admitir no Reino, que é o fim último: e não a quem tem o poder das chaves, que é como o instrumento ou ministro.
SOLUÇÃO. ─ Segundo o Filósofo, as potências se definem pelos atos. Ora, sendo o poder das chaves uma potência, há de definir-se pelo seu uso ou ato; e há de pelo ato ser expresso o seu objeto, pelo qual o ato se especifica, e o modo de agir, donde resulta a potência ordenada. Ora, o ato da potência espiritual não é abrir o céu, absolutamente falando, que já está aberto, como dissemos; mas abri-lo a uma determinada pessoa. E isso não pode fazer-se ordenadamente, senão depois de pesada a Idoneidade daquele a quem o céu deva ser aberto. Por isso, na referida definição do poder das chaves, se põe o gênero, isto é, o poder; e o sujeito do poder, isto é, o juiz eclesiástico; e o ato, isto é, excluir e receber, segundo os dois atos materiais da chave ─ abrir e fechar; e a definição toca no objeto quando diz ─ do Reino; e enfim no modo, quando se refere à ponderação de dignidade e indignidade, daqueles sobre quem se exerce o ato.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. ─ Uma potência se ordena a dois fins, dos quais um é a causa do outro; assim o calor do fogo se ordena a aquecer e a dissolver. E como toda graça e todo perdão, num corpo místico, vêm da sua cabeça, pelo mesmo poder essencial o sacerdote pode consagrar, absolver e ligar, desde que tenha jurisdição; e esses poderes não diferem entre si senão racionalmente, enquanto comparados aos seus diversos efeitos; assim também o fogo, num ponto de vista, aquece e, em outro, liquefaz. E como o caráter da ordem sacerdotal não é senão o poder de exercer aquilo que constitui a principal finalidade dessa ordem, sustentando-se que ela é idêntica ao poder espiritual, por isso o caráter e o poder de consagrar e o poder das chaves são um mesmo poder essencialmente, mas diferem racionalmente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Todo poder espiritual é dado junto com alguma consagração. Por isso o poder das chaves é dado em conjunto com a ordem. Mas a execução do poder das chaves precisa da matéria devida, que é o povo sujeito à jurisdição. Por isso, antes de ter a jurisdição, sacerdote tem o poder das chaves, embora não tenha em ato. E como esse poder se define pelo seu ato, por isso na definição dele se introduz um elemento pertinente à jurisdição.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Podemos ser dignos de alguma coisa de dois modos. Ou por termos o direito de a possuir: e assim, quem é digno já tem o céu aberto. Ou porque essa coisa nos é devida, por uma certa congruência. E assim, o poder das chaves concerne aos dignos de entrarem no céu, mas aos quais ele ainda não foi aberto.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Assim como Deus não endurece o pecador infundindo-lhe a malícia, mas, não lhe conferindo a graça, assim também dizemos que o sacerdote exclui do reino dos céus, não por causar impedimento à entrada nele mas porque não remove o impedimento posto, pelo não poder remover antes de o remover Deus. Por isso pede a Deus que absolva o pecador, de modo que assim possa produzir efeito a sua absolvição.
RESPOSTA À QUINTA. ─ O ato do sacerdote não tem o Reino por objeto imediato; mas os sacramentos, pelos quais chegamos ao Reino.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que não deve ter a Igreja o poder das chaves.
1. ─ Pois, não se precisam chaves para entrar numa casa cuja porta está aberta. Ora, a Escritura diz: Olhei e vi uma porta aberta no céu, que é Cristo, o qual falando de si mesmo, disse: Eu sou a porta. Logo, para a entrada no céu não é necessário ter a Igreja o poder das chaves.
2. Demais. ─ Uma chave serve para abrir e fechar. Ora, isto só Cristo o pode fazer, que abre e ninguém fecha, fecha e ninguém abre. Logo, a Igreja não tem, pelos seus ministros o poder das chaves.
3. Demais. ─ A quem quer que seja fechado o céu, a esse se lhe abre o inferno; e ao contrário. Logo, quem tiver as chaves do céu terá também as do inferno. Ora, não se diz que a Igreja tem as chaves do inferno. Logo, nem as do céu.
Mas, em contrário, o Evangelho: Dar-te-ei as chaves do reino dos céus.
2. Demais. ─ Todo dispensador deve ter as chaves daquilo que dispensa. Ora, os ministros da Igreja são os dispensa dores dos divinos mistérios, conforme o Apóstolo. Logo, devem ter as chaves.
SOLUÇÃO. ─ Na ordem material chamamos chave ao instrumento com que abrimos uma porta. Ora, o reino dos céus nos foi fechado pelo pecado, tanto quanto à mácula como quanto ao reato da pena. Por isso, o poder que remove esse obstáculo se chama poder das chaves. Ora, esse poder o tem, pela sua autoridade, a Divina Trindade; donde o dizerem certos, que tem a chave da autoridade. Mas, Cristo homem, teve o poder de remover o referido obstáculo pelo mérito da paixão, poder também chamado o de abrir a porta. Por isso certos dizem que êle tem as chaves da excelência. E como dos lados de Cristo morto na cruz manaram os sacramentos, pelos quais foi a Igreja instituída, por isso nos sacramentos da Igreja permanece a eficácia da paixão. Por onde, foi conferido também aos ministros da foi a Igreja instituída, por isso nos sacramentos um certo poder de remover o referido obstáculo, não por virtude própria, mas por virtude divina e da paixão de Cristo. E esse poder se chama metaforicamente poder das chaves da Igreja, que é o do ministério das chaves.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ A porta do céu está, em si mesma, sempre aberta; mas dizemos estar fechada a quem está impedido de nele entrar. Ora, o impedimento universal da natureza humana, consequente ao pecado do primeiro homem, foi removido pela paixão de Cristo. Por isso João, depois da paixão, viu aberta a porta do céu. Mas ainda até agora essa porta nos permanece fechada, por causa do pecado original contraído, ou do atual, que cometemos. Eis porque precisamos dos sacramentos e do poder das chaves da Igreja.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O lugar citado se entende da clausura do limbo, para ninguém mais descer a ele; e da abertura do paraíso, removido o impedimento da natureza, pela sua paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As chaves do inferno, que o abrem e fecham, é o poder de conferir a graça, pela qual se nos abre o inferno, para sermos tirados do pecado, que é a porta dele; e o fecha, para não cairmos mais no pecado sustentados pela graça. Ora, o poder de conferir a graça só Deus o tem. Por isso, reservou só para si a chave do inferno. Mas, a chave do Reino é o poder de perdoar também o reato da pena, que nos impede de ai entrar. Por isso, ao homem podia ser dado, antes, a chave do Reino que a do inferno; pois não são as mesmas, como do sobredito se colhe. Pode porém um ser tirado do inferno, pela remissão da pena eterna, que nem por isso é logo introduzido no Reino, por causa do reato da pena temporal, que permanece. ─ Ou devemos responder, como certos, que também se chama chave do inferno e do céu, porque o fato mesmo de ser uma aberta a alguém implica em ser fechada a outra; mas a denominação se tira da mais digna.
Em seguida devemos tratar do poder dos ministros deste sacramento, concernente às chaves. Sobre o que, primeiro devemos tratar do poder das chaves. Segundo, da excomunhão. Terceiro, da indulgência. Pois, essas duas coisas estão anexas ao poder das chaves.
No primeiro ponto há quatro questões a se considerarem. Primeiro, da entidade e da quididade do poder das chaves. Segundo, do seu efeito. Terceiro, dos ministros das chaves. Quarto, daqueles sobre os quais pode exercer-se o uso das chaves.
Na primeira questão discutem-se três artigos:
O quarto discute-se assim. — Parece que não se coloca convenientemente a produção da luz no primeiro dia.
1. — Pois, sendo a luz uma qualidade, como já se disse, e sendo a qualidade um acidente, esta não é, por natureza, um ser primeiro, mas segundo. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz.
2. Demais. — Pela luz se distingue a noite, do dia; e esta é a função do sol, que se considera como feito no quarto dia. Logo, não se deve colocar a produção da luz no primeiro dia.
3. Demais. — A noite e o dia resultam do movimento circular do corpo lúcido. Ora, o movimento circular é próprio do firmamento, do qual se lê que foi feito no segundo dia. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz, que distingue as noites e os dias.
4. Demais. — Se se disser que se trata da luz espiritual, responde-se, em contrário, que a luz da qual se lê ter sido criada no primeiro dia, distingue-se das trevas. Ora, não havia, no princípio, trevas espirituais, pois, mesmo os demônios eram, então, bons, como antes se disse. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz.
Mas, em contrário. Era necessário fosse criado no primeiro dia aquilo sem o que não pode existir o dia. Ora, este não pode existir sem a luz. Loo, era necessário se fizesse a luz no primeiro dia.
Solução. — Há duas opiniões sobre a produção da luz. — Agostinho opina que não pareceu conveniente a Moisés ter calado a produção da criatura espiritual. Assim, quando diz: No princípio criou Deus o céu e a terra, por céu — explica Agostinho — se entende a criatura espiritual ainda informe; por terra, porém, a matéria informe da criatura corporal. E por ser mais digna que a corporal, a natureza espiritual foi formada antes. Por isso, a formação da natureza espiritual foi significada pela produção da luz, entendendo-se esta como espiritual. Pois, a formação da natureza espiritual está em ser iluminada, para aderir ao Verbo de Deus.
Outros porém são de opinião que Moisés omitiu a produção da criatura espiritual; mas aduzem razões diferentes. — Assim, Basílio diz que Moisés começou a sua narração, desde o princípio temporal das coisas sensíveis; mas a natureza espiritual i. é, angélica, a omitiu, porque foi criada antes. — Crisóstomo, porém, dá outra razão. Moisés falava a um povo rude, capaz de apreender só o corporal, e queria fazê-lo abandonar a idolatria. Ora, dar-lhes-ia ocasião à ela, se lhes falasse em quaisquer substâncias superiores a todas as criaturas corpóreas; pois as tomariam como deuses, inclinados que já eram a adorar, desse modo, o sol, a luz e as estrelas, o que lhes proíbe a Escritura.
Porém, Moisés já tinha-se referido a criatura corporal como constituída em multíplice informidade. Uma a exprimiu dizendo: A terra, porém, estava informe e vazia; outra: E as trevas cobriam a face do abismo. — Ora, era necessário que, primeiramente, fosse removida a informidade das trevas, pela produção da luz, por duas razões. — Primeira, porque sendo a luz, como já se disse, uma qualidade do primeiro corpo, por ela devia começar o mundo a ser formado. Segunda, porque, pela sua comunidade, a luz faz com que possam os corpos inferiores comunicar com os superiores Pois, assim como no conhecimento partimos dos seres mais comuns, assim também na operação; por isso o ser vivo é gerado antes do animal, que o é antes do homem, como diz Aristóteles. Por onde, a ordem da divina sabedoria devia manifestar-se de modo a, entre as obras da distinção, ser produzida a luz como forma do primeiro corpo, e como a mais comum. — Basílio acrescentou, contudo, terceira razão, convém saber que, por meio da luz, se manifestam todos os demais seres. — Mas ainda pode-se acrescentar uma quarta, que já se referiu numa das objeções, convém saber: não podendo haver dia sem luz, era necessário fosse essa feita no primeiro dia.
Donde a resposta à primeira objeção. — Segundo a opinião que ensina ter a informidade da matéria precedido, na duração, à formação, necessário é dizer-se que a matéria foi, no princípio, criada em união com as formas substanciais; sendo depois formada segundo algumas condições acidentais, entre as quais tem a luz o primeiro lugar.
Resposta à segunda. — Alguns dizem que essa luz era uma nuvem lúcida, que, após a criação do sol, voltou à matéria preexistente. Mas isto não é admissível, porque a Escritura, no princípio do Gênesis, comemora a instituição da natureza, que a seguir perseverou. Por onde, não se pode dizer que foi então produzida alguma coisa, que depois deixou de ser. — Por isso, outros dizem que essa nuvem lúcida ainda subsiste unida com o sol, de modo a não poder ser separada dele. Mas nesta suposição tal nuvem seria supérflua; ora, nada é vão nas obras de Deus. — Por onde, outros dizem que dessa nuvem se formou o corpo do sol. Mas ainda isto não se pode admitir, se se admite que o corpo do sol não é da natureza dos quatro elementos, mas é incorruptível por natureza; pois então, a sua matéria não pode se unir a outra forma.
A verdade, portanto, é, como pensa Dionísio, que tal luz era a do sol, embora ainda informe, por já ser ela da substância do mesmo e ter a virtude iluminativa, em comum; mas em seguida foi-lhe dada, a essa luz, uma especial e determinada virtude para um efeito particular. Assim que, conforme esta opinião, houve na criação de tal luz uma tríplice distinção entre a luz e as trevas. Primeiro, quanto à causa, estando a da luz na substância do sol, e a das trevas, na opacidade da terra. Segundo, quanto ao lugar, estando a luz em um hemisfério e as trevas, no outro. Terceiro, quanto ao tempo, estando, no mesmo hemisfério, a luz, numa parte do tempo, e as trevas, em outra. E é isto que significa o dito: Chamou à luz dia, e às trevas noite.
Resposta à terceira. — Basílio diz que a luz e as trevas existiram, então, pela emissão e contração da luz, e não pelo movimento. — Mas Agostinho objeta, em contrário, que nenhuma razão havia para essa vicissitude de emitir-se e retrair-se a luz, por não existirem homens e animais, a cujos usos isso serviria. E demais, não pode a natureza do corpo lúcido retrair a luz, enquanto presente, senão miraculosamente. Ora, na instituição primeira da natureza, não se busca o milagre, senão o que está em a natureza das coisas, como diz Agostinho.
Por onde, deve-se dizer que é duplo o movimento, no céu: um, comum a todo céu, causa do dia e da noite, e esse foi instituído no primeiro dia; outro, porém, diversificado pelos diferentes corpos, e causa das diversidades dos dias, entre si, dos meses e dos anos. E por isso, no primeiro dia, menciona-se só a distinção da noite e do dia, causada pelo movimento comum; porém, no quarto, menciona-se a diversidade dos dias, dos tempos e dos anos, quando se diz: Para os tempos, os dias e os anos; e essa diversidade se opera pelos movimentos próprios.
Resposta à quarta. — Segundo Agostinho, a informidade não precedeu à formação, quanto à duração. Por onde, é necessário dizer-se que, pela produção da luz se entende a da criatura espiritual; não a criatura espiritual perfeita pela glória, pois, com esta não foi criada a luz, mas a perfeita pela graça, com a qual, como já se disse, foi a luz criada. — Assim, por tal luz se operou a separação das trevas, isto é, da informidade da outra criatura não formada. — Ou, se todas as criaturas foram criadas simultaneamente, distinguia-se a luz das trevas espirituais, ainda não existentes, porque o diabo não foi criado mau; mas Deus as previa como futuras.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que também o anjo, bom ou mal, é susceptível da penitência.
1. ─ Pois, o temor é o início da penitência. Ora, neles há temor, conforme aquilo da Escritura: os demônios crêem e temem. Logo, são susceptíveis de penitência.
2. Demais. ─ O Filósofo diz que os maus estão cheios de arrependimento, e essa lhes é a pena máxima. Ora, os demônios são os maus por excelência, nem lhes falta nenhuma pena. Logo, podem fazer penitência.
3. Demais. ─ Um ser se move mais facilmente para o que lhe é natural que para o que lhe contraria a natureza; assim, a água, aquecida, por violência, também por si mesmo volta à sua propriedade natural. Ora, os anjos podem cair em pecado, o que lhes contraria a natureza comum. Logo, com maior razão, podem voltar ao que lhes é natural. E isso o fazem pela penitência. Logo, são susceptíveis de penitência.
4. Demais. ─ Segundo Damasceno, o que dizemos dos anjos podemos também dizer das almas separadas. Ora, como certos dizem, as almas separadas ─ tais as almas bem aventuradas que estão na pátria ─ podem fazer penitência. Logo, também o podem os anjos.
Mas, em contrário. ─ A penitência nos restitui a vida, provado o pecado. Ora; isto é impossível aos anjos. Logo, não são susceptíveis de penitência.
2. Demais. ─ Damasceno diz, que se fazemos penitência é por causa da fraqueza do nosso corpo. Ora, os anjos são incorpóreos. Logo, não são susceptíveis de penitência.
SOLUÇÃO. - A nossa penitência pode ser apreciada a dupla luz. - Enquanto paixão, e como tal não é senão a dor ou a tristeza pelo mal cometido. E embora como paixão exista apenas no concupiscível, contudo a um ato de vontade chamamos, por semelhança, penitência, pelo qual detestamos o que fizemos; assim também dizemos mos que o amor e as outras paixões existem no apetite intelectivo. ─ A outra luz, a prudência é considerada virtude. E, neste sentido, o seu ato é detestar o mal cometido com o propósito de emenda e a intenção de expiar ou aplacar a Deus pela ofensa cometida.
Ora, a detestação do mal devemo-la ter enquanto ordenada a um bem natural. E como em nenhuma criatura essa ordenação ou inclinação pode desaparecer totalmente, por isso permanece, mesmo nos condenados; e por conseqüência também neles permanece a paixão da penitência ou algo de semelhante, como diz a Escritura: Dentro de si tocados do arrependimento. Mas esta penitência, não sendo um hábito, mas paixão ou ato, de nenhum modo pode existir nos santos anjos, que não tiveram antes cometido pecados; existe porém nos maus anjos, pois com eles se dá o mesmo que com as almas condenadas, porque, segundo Damasceno, a morte, para os homens, corresponde à queda, para os anjos. Mas o pecado deles é irremissível. E como o pecado, enquanto remissível ou expiável, é a matéria mesma da virtude chamada penitência, por isso não podendo eles ter matéria, não têm a penitência de sair à prática do ato. Por onde, também não pode existir neles o hábito. Portanto, os anjos não são susceptíveis da virtude de penitência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O temor neles gera um certo movimento para a penitência: mas não tal que seja uma virtude.
E o mesmo devemos responder, à segunda objeção.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─Tudo o que neles é natural é totalmente bom e inclina para o bem; mas o livre arbítrio lhes está obstinado no mal. E como o movimento da virtude e do vício não segue à inclinação da natureza, mas antes ao movimento do livre arbítrio, por isso não há de necessariamente neles existir ou poder existir o movimento da virtude, embora se inclinem naturalmente para o bem.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Não se dá o mesmo com os santos anjos e as almas bem aventuradas; pois, nesta precedeu ou podia ter precedido o pecado remissível, mas não nos anjos. E assim, embora semelhantes quanto ao estado presente, não o são pelo estado passado, a que diretamente concerne a penitência.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que os santos que estão na glória não são susceptíveis de penitência.
1. ─ Pois, diz Gregório: Os bem aventurados recordam-se dos pecados, assim como quando estamos sãos e sem dores nos recordamos das dores. Ora, a penitência é a dor do coração. Logo, os bem aventurados na pátria não são susceptíveis de penitência.
2. Demais. ─ Os santos na pátria se conformam com Cristo. Ora, Cristo não era susceptível de penitência, por que não o era da fé que é o princípio da penitência. Logo, os santos na pátria também não são susceptíveis de penitência.
3. Demais. ─ Vão é o hábito que não se reduz ao ato. Ora, os santos na pátria não farão penitência de nenhum ato, porque então teriam algum desejo contrariado. Logo, não haverá neles o hábito da penitência. Mas, em contrário. ─ A penitência faz parte da justiça. Ora, a justiça é perpétua e imortal e permanecerá na pátria. Logo, também a penitência.
4. Demais. ─ Nas Vidas dos Padres se lê ter dito um deles, que o próprio Abraão se penitenciara por não ter feito mais bem. Ora devemos nos penitenciar, antes, do mal cometido que do bem omitido, ao qual não estávamos obrigados - pois, desse bem é que se trata. Logo haverá no céu penitência pelos males cometidos.
SOLUÇÃO. ─ As virtudes cardeais continuarão a existir na pátria, mas como atos cujo fim já foi atingido. Por onde, sendo a virtude da penitência parte da justiça, que é uma virtude cardeal, quem quer que tenha o hábito da penitência nesta vida te-lo-á também na futura; mas não praticará o mesmo ato que então praticava, senão outro, isto é, o de dar graças a Deus pela misericórdia com que perdoou os pecados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A autoridade citada prova que não praticam o mesmo ato que é, nesta vida, o da penitência. E isso o concedemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Cristo não podia pecar. Por isso não lhe cabia a matéria desta virtude, nem em ato nem em potência. E por isso não há semelhança entre ele e os demais.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Fazer penitência, propriamente falando, enquanto significa o ato da penitência como nesta vida o praticamos, tal não haverá na pátria. Nem por isso contudo o hábito dela terá sido vão, porque lhe corresponderá outro ato.
A quarta concedemos.
Mas, como a quinta objeção diz, que na pátria o ato de penitência será o mesmo desta vida, por isso respondamos à quinta. ─ A nossa vontade na pátria será absolutamente conforme com a vontade de Deus. Por onde, como Deus, por uma vontade antecedente, quer que todas as coisas sejam boas, e por consequência não quer nenhum mal, não o querendo porém por uma vontade consequente, o mesmo se dá com os bem aventurados. E essa vontade é impropriamente chamada penitência pelo referido santo Padre.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que não pode haver penitência para os inocentes.
1. ─ Pois, a penitência consiste em chorar os pecados cometidos. Ora, os inocentes não cometeram nenhum pecado. Logo, não devem fazer penitência.
2. Demais. ─ A penitência, como o próprio nome o indica, implica a pena. Ora, os inocentes não merecem nenhuma pena. Logo, não deve haver penitência para eles.
3. Demais. ─ A penitência significa o mesmo que a justiça vindicativa. Ora, se todos fossem inocentes, não haveria lugar para a justiça vindicativa. Logo, nem a penitência. E portanto não a devem fazer os inocentes.
Mas, em contrário. ─ Todas as virtudes são infundidas simultaneamente. Ora, a penitência é uma virtude. Logo, como pelo batismo se infundem nos inocentes as outras virtudes, infunde-se-lhes também a da penitência.
2. Demais. ─ Todo homem que nunca esteve doente é, não obstante, susceptível de ser curado. Logo, por semelhança, também aquele que nunca esteve doente espiritualmente. Ora, a cura atual das chagas do pecado não é possível senão pelo ato da penitência; e portanto, também a susceptibilidade de o ser só é possível pelo hábito. Logo, quem nunca contraiu a enfermidade do pecado tem o hábito de penitência.
SOLUÇÃO. ─ O hábito é uma mediedade entre a potência e o ato. Mas, como removido o anterior removido também fica o posterior, não porém inversamente, por isso, removida a potência para o ato, removido fica o hábito, mas não se for removido o ato. E como a disparição da matéria faz desaparecer o ato, porque o ato não pode existir sem a matéria sobre a qual recai, por isso o hábito de uma virtude pode existir em a matéria, mas pode atualizar-se desde que a matéria exista. Assim, um pobre pode praticar a magnificência habitual, mas não atualmente, por não ter a abundância das riquezas, que são a matéria da magnificência; mas pode tê-la. Por onde, os inocentes no estado de inocência não tendo cometido pecados, que são a matéria da penitência, mas podendo cometê-los, não podem praticar a penitência atualmente, mas só habitualmente. E isso se tiverem a graça com a qual se infundem todas as virtudes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora os inocentes não tenham cometido o pecado poderão contudo cometê-lo. Por isso lhes cabe o hábito da penitência. Mas esse hábito não poderá nunca atualizar-se senão talvez em relação aos pecados veniais, porque os mortais o destroem. Mas nem por isso é vão, pois é a perfeição de uma potência natural.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora aos inocentes não seja devida uma pena atual, pode contudo neles haver qualquer causa pela qual mereçam uma pena.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Enquanto existir o poder de pecar, ainda haverá lugar para a Justiça vindicativa quanto ao hábito; embora não quanto ao ato, se não havendo pecados atuais.
Em seguida devemos tratar dos que recebem o sacramento da penitência.
E nesta questão discutem-se três artigos:
O terceiro discute-se assim. — Parece que a luz não é uma qualidade.
1. — Pois, toda qualidade permanece no sujeito, mesmo depois de ter o agente desaparecido; p. ex., o calor conserva-se na água ainda depois de afastado o fogo. Ora, retirado o foco luminoso, a luz não permanece no ar. Logo, não é uma qualidade.
2. Demais. — Toda qualidade sensível tem o seu contrário; assim o quente e o frio, o branco e o preto. Mas à luz nada é contrário, pois as trevas são a privação dela. Logo, a luz não é uma qualidade sensível.
3. Demais. — A causa é mais poderosa que o efeito. Ora, a luz dos corpos celestes causa as formas substanciais nos seres inferiores terrestres, pois é a que dá o ser espiritual às cores, tornando-as atualmente visíveis. Logo, a luz não é uma qualidade sensível, mas antes, uma forma substancial ou espiritual.
Mas, em contrário, Damasceno diz que a luz é uma qualidade.
Solução. — alguns disseram que a luz, no ar, não tem o ser natural, como, p. ex., a cor não o tem na parede; mas o ser intencional, como p. ex., a semelhança da cor, no ar. — Mas isto não pode ser, por duas razões. Primeiro, porque a luz qualifica o ar, tornando-o atualmente luminoso. Porém a cor não o qualifica, pois não se diz que o ar é colorido. Segundo, porque a luz produz um efeito natural, pois, com os raios do sol aquecem-se os corpos; ao passo que as intenções não produzem transmutações naturais.
Outros, porém, disseram que a luz é a forma substancial do sol. — Mas também essa opinião é inadmissível, por duas razões. Primeiro, porque nenhuma forma substancial é, por si mesma, sensível; pois, a quididade é o objeto do intelecto, como diz Aristóteles, e a luz é, em si, visível. Segundo, porque é impossível seja a forma substancial, em um ser, acidental em outro; pois, sendo próprio da forma substancial, por si mesma, constituir a espécie, sempre e em todos os seres ela vai junto com esta. Ora, a luz não é a forma substancial do ar, pois do contrário este se corromperia com a ausência daquela. Logo, não pode ser a forma substancial do sol.
Deve-se, portanto, dizer que, assim como o calor é uma qualidade ativa, resultante da forma substancial do fogo; assim a luz é uma qualidade ativa resultante da forma substancial do sol ou de qualquer outro corpo por si lúcido, se porventura existe. E a prova é que os raios das diversas estrelas têm diversos efeitos segundo as naturezas diversas dos corpos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Resultando a qualidade da forma substancial, conforme o sujeito se comporta no receber a qualidade, assim mesmo se comportará no receber a forma. Quando, pois, a matéria já recebeu a forma, perfeitamente, também firmemente fica estabelecida a qualidade resultante da forma; assim, p. ex., se a água se convertesse em fogo. Porém, se a forma substancial foi recebida imperfeita e como incoativa, a qualidade resultante permanece, por certo, por algum tempo, mas não sempre; como bem se vê na água aquecida, que torna à sua natureza. Ora, a iluminação não se opera por nenhuma transmutação da matéria, para receber a forma substancial, como se se operasse alguma incoação desta; por onde, a luz não permanece senão enquanto permanece o agente.
Resposta à segunda. — É acidentalmente que a luz não tem contrário, como qualidade natural que é do primeiro corpo alterante, que escapa à contrariedade.
Resposta à terceira. — Assim como o calor produz a forma do fogo, quase instrumentalmente, em virtude da forma substancial; assim a luz age, quase instrumentalmente, em virtude dos corpos celestes, para produzir as formas substanciais e para tornar as cores atualmente visíveis, enquanto qualidade que é do primeiro corpo sensível.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que não se enumeram convenientemente as obras satisfatórias, quando se diz que são três: a esmola, o jejum e a oração.
1 ─ Pois, uma obra satisfatória deve ser penal. Ora, nenhuma oração supõe qualquer pena pois é remédio contra a tristeza da pena ─ mas sim o prazer. Por isso diz a Escritura: Está triste algum de vós? Ore. Esta alegre? Cante Louvores a Deus. Logo não deve a oração ser computada entre as obras satisfatórias.
2. Demais. ─ Todo pecado ou é carnal ou espiritual. Ora, como diz Jerônimo, o jejum cura as doenças do corpo; a oração, os da alma. Logo, não há necessidade de nenhuma outra obra satisfatória.
3. Demais. ─ A satisfação é necessária para a purificação dos pecados. Ora, a esmola purifica de todos os pecados, na expressão do Evangelho: Dai esmola e eis aí que todas as coisas vos ficam limpas. Logo, as outras duas obras são supérfluas.
Mas, em contrário. ─ Parece que devem ser várias.
1. ─ Pois, os contrários se curam. Ora, muito mais que três são os gêneros dos pecados. Logo devem-se contar várias obras satisfatórias.
2. Demais. ─ Também se impõem, como satisfação as peregrinações e as disciplinas ou flagelações, que não estão na enumeração supra. Logo, essa enumeração é incompleta.
SOLUÇÃO. ─ A satisfação deve ser tal que nos prive de alguma causa, para glória de Deus. Ora, nós não temos senão três espécies de bens: os do corpo, os da alma e os da fortuna ou externos. Da parte dos bens da fortuna nos privamos pela esmola; e da parte dos bens do corpo, pelo jejum. Quanto aos bens da alma, não é necessário que essencialmente nos privemos deles em nada, ou que soframos qualquer diminuição dos mesmos, pois, por eles tornamo-nos aceitos de Deus; mas basta que os subordinemos totalmente a Deus. E isto fazemos pela oração. Também a enumeração referida se funda em que a satisfação extirpa as causas dos pecados. Pois, as raízes dos pecados são três, conforme o Evangelho: concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida. Contra a concupiscência da carne se ordena o jejum; contra a dos olhos, a esmola; contra a soberba da vida, a oração, como ensina Agostinho.
Também é boa a enumeração supra quanto a consistir a satisfação em não permitir a entrada à sugestão dos pecados. Porque todo pecado ou o cometemos contra Deus, e a isso se ordena a oração; ou contra o próximo, e contra ele se ordena a esmola; ou contra nós mesmos ao que se ordena o jejum.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Segundo certos há duas espécies de oração. Uma, dos contemplativos, cuja conversação está nos céus; e essa, totalmente deleitável, não é satisfatória. Outra, a que derrama gemidos pelos pecados, e essa implica uma pena e faz parte da satisfação. ─ Ou diremos e melhor, que qualquer oração constitui obra satisfatória porque, embora tenha a suavidade do espírito, tem contudo a mortificação da carne. Pois, como diz Gregório, à medida que se fortifica em nós o amor íntimo, enfraquece sem dúvida o poder da carne. Por isso, também, como lemos na Escritura, o nervo da coxa de Jacob secou na luta com o Anjo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O pecado carnal é susceptível de duplo sentido. Num, é o que se consuma na deleitação mesma da carne, como a gula e a luxúria. Noutro, o que se perfaz no que se ordena para a carne, embora não consista no prazer carnal, mas no da alma, como a avareza. Por isso tais pecados são como o meio termo entre os espirituais e os carnais. Por onde, há de corresponder-lhes alguma satisfação própria, a saber, a esmola.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora cada uma das três obras enumeradas se aproprie, por uma certa conveniência, a cada pecado, por ser congruente que pelas coisas em que alguém peca, por essas seja também atormentado, e que pela satisfação seja arrancada a raiz do pecado cometido, contudo qualquer das obras enumeradas pode satisfazer por qualquer pecado. Por isso, quem não puder praticar uma dessas obras, se lhe imponha outra e sobretudo a esmola, que pode fazer às vezes das outras, enquanto as outras obras satisfatórias de certo modo as compramos com a esmola, nas pessoas a quem as damos. Mas não é por a esmola purificar de todos os pecados que serão supérfluas as outras satisfações.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Embora haja especificamente muitos pecados, contudo vêm a se reduzir todos a essas três raízes ou a esses três gêneros deles, aos quais dissemos corresponderem as referidas satisfações.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Tudo o que mortifica o corpo vem a cair no jejum; e tudo o que aplicamos a utilidade do próximo, se inclui na esmola; e semelhantemente, todo culto de latria prestado a Deus assume a natureza da oração. Por onde, também uma mesma obra pode ser satisfatória por várias razões.