Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. ─ Parece que um não pode cumprir por outro uma pena satisfatória.
1. ─ Pois, a satisfação exige o mérito. Ora, ninguém pode merecer ou desmerecer por outrem, conforme está escrito: Tu retribuirás a cada um segundo as suas obras. Logo, não pode um satisfazer por outro.
2. Demais. ─ A satisfação se separa, por oposição, da contrição e da confissão. Ora, um não pode ter contrição e confessar por outro. Logo, nem satisfazer.
3. Demais. ─ Quem ora por outrem também para si merece. Se, pois, pudesse um satisfazer por outro, satisfazendo por este por si satisfaria. E assim, de quem satisfaz por outrem não lhe é exigida nenhuma outra satisfação pelos seus pecados próprios.
4. Demais. ─ Se um pode satisfazer por outro, por isso desde que um tomou sobre si o débito da pena, o outro fica imediatamente livre do pecado. Portanto, morrendo depois de toda a pena que devia ter sido cumprida pelo outro, entrará imediatamente no céu. Ou se ainda fosse punido, dupla seria a pena por um mesmo pecado ─ a daquele que começou a satisfazer e a do punido no purgatório.
Mas, em contrário. ─ O Apóstolo diz: Levai as cargas uns dos outros. Logo, pode um levar por outro a carga da penitência a este imposta.
2. Demais. ─ A caridade vale mais perante Deus que perante os homens. Ora, um pode, perante os homens e por amor de outrem, pagar-lhe o débito. Logo, com muito maior razão pode isso fazer-se no tribunal divino.
SOLUÇÃO. ─ A pena satisfatória foi ordenada para dois fins: pagar o devido e como remédio para nos fazer evitar o pecado. — Enquanto, pois, é remédio ao pecado futuro, a satisfação de um não pode aproveitar a outro; pois, o jejum deste não pode sujeitar a carne de aquele; nem pelos atos de um acostumou-se o outro a proceder bem, senão acidentalmente, isto é, enquanto pelas nossas boas obras podemos merecer a outrem o aumento da graça, remédio eficasíssimo para evitar o pecado. Mas isto é a modo de mérito, mais que de satisfação. ─ Quanto porém à solução do débito, um pode satisfazer por outro, contanto que tenha a caridade, que lhe torne as obras satisfatórias. ─ Nem é necessário seja imposta a quem satisfaz por outrem pena maior que a que o seria ao agente principal, como dizem certos, levados da razão que a pena própria satisfaz melhor que a alheia. Pois, a pena tira o seu poder máximo de satisfazer, da caridade, que no-la induz a sofrer. E como manifestamos caridade maior satisfazendo por outro em lugar de o fazermos por nós, por isso requer-se em quem satisfaz por outro menor pena do que este sofreria. Por onde, como se diz nas Vidas dos Padres, a caridade que leva um a fazer penitência pelo pecado de seu irmão, que não cometeu, o pecado por esse cometido lhe fica perdoado. ─ Nem ainda é necessário, quanto à solução do débito, que aquele por quem satisfazemos seja incapaz de o fazer, pois, mesmo sendo capaz, fica desonerado do débito se por ele satisfazemos. É porém necessário quando a pena satisfatória é um remédio. Por isso não se deve permitir faça um penitência por outro, senão por incapacidade do penitente mesmo que o que sofremos como retribuição, conforme o diziam os Pitagóricos. Ora, podemos sofrer uma pena igual ao gozo que tivemos com o pecado. Logo, podemos satisfazer a Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O prêmio essencial é dado segundo a capacidade de cada um; pois, segundo a capacidade dos que gozam da visão divina assim será ela. E portanto, assim como a disposição de um não lhe advém do ato de outro, assim não pode um merecer por outro o prêmio essencial; salvo se o seu mérito tiver uma eficácia infinita, como o de Cristo, por cujo mérito unicamente as crianças alcançam a vida eterna. Mas a pena temporal devida ao pecado não é determinada, depois da remissão da culpa, pela disposição de quem a mereceu; e assim às vezes, ao melhor, é maior o reato da pena. Por onde, quanto à remissão da pena, pode um merecer por outro; e o ato de um vem a se tornar do outro, mediante a caridade, pela qual todos somos um em Cristo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A contrição é ordenada contra a culpa, relativa à nossa boa ou má disposição. Por isso a contrição de um não libera da culpa ao outro. ─ Semelhantemente, pela confissão sujeitamo-nos aos sacramentos da Igreja. Mas não pode um receber o sacramento por outro, porque no sacramento a graça é dada A quem a recebe e não ao outro. ─ Por onde, não se dá o mesmo com a satisfação, a contrição e a confissão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Na solução do débito se leva em conta a intensidade da pena; ao passo que no mérito se considera a raiz da caridade. Por onde, quem pela caridade merece por outrem, ao menos pelo mérito de congruência, ainda mais merece por si. Mas quem satisfaz por outrem não satisfaz ao mesmo tempo por si, porque a intensidade da pena sofrida não basta ao pecado de ambos. Contudo para si merece a vida eterna, que é mais que o perdão da pena.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Se nós mesmos nos sujeitássemos a uma pena, não ficaríamos livres do débito antes de havê-la sofrido. Por consequência, o outro deverá sofrer no purgatório enquanto não tivermos dado satisfação por ele. E se não o fizermos, seremos ambos devedores da mesma pena ─ um pelo cometido, o outro pelo omitido. Donde porém se não segue, que o pecado de um seja punido duas vezes.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que o homem não pode satisfazer a Deus.
1. ─ Pois, a satisfação deve ser igual à ofensa, como do sobre dito resulta. Ora, a ofensa cometida contra Deus é infinita, porque esta se quantifica pela pessoa contra quem é cometida ofendendo mais quem ataca o chefe que qualquer outro. Logo, não podendo a ação humana ser infinita, resulta que o homem não pode satisfazer.
2. Demais. ─ O servo, tendo do senhor tudo o que tem, nenhuma compensação lhe pode dar. Ora, nós somos servos de Deus e todo o bem que temos dele o recebemos. Logo, sendo a satisfação uma compensação pela ofensa passada, parece que não podemos satisfazer a Deus.
3. Demais. ─ Quem tendo o que tem não basta para pagar o que deve não pode satisfazer por nenhuma outra dívida. Ora, tudo o que somos, podemos e temos, não basta a pagar o débito do benefício da nossa condição; por isso diz a Escritura ─ Não bastarão as árvores do Líbano para um holocausto. Logo, de nenhum modo podemos satisfazer pelo débito da ofensa cometida.
4. Demais. — O homem deve empregar todo o seu tempo em servir. Ora, o tempo perdido não pode ser recuperado; por isso grave coisa é desperdiçar o tempo, como diz Sêneca. Logo, não podemos dar a Deus nenhuma compensação. Donde se conclui o mesmo que antes.
5. Demais. ─ O pecado mortal atual é mais grave que o original. Ora, pelo original ninguém pode satisfazer, salvo o homem Deus. Logo, nem pelo atual.
Mas, em contrário. ─ Jerônimo diz: Quem disser que Deus mandou ao homem algo de impossível seja anátema. Ora, a satisfação é de preceito: Fazei frutos dignos de penitência. Logo, é possível satisfazer a Deus.
2. Demais. ─ Deus é mais misericordioso que qualquer homem. Ora, ao homem é possível satisfazer. Logo, também a Deus.
3. Demais. ─ A devida satisfação é a que iguala a pena com a culpa; porque a justiça é o mesmo que o que sofremos como retribuição, conforme o diziam os Pitagóricos. Ora, podemos sofrer uma pena igual ao gozo que tivemos com o pecado. Logo, podemos satisfazer a Deus.
SOLUÇÃO. ─ De dois modos podemos ser devedores a Deus ─ em razão do benefício recebido e em razão do pecado cometido. E assim como a ação de graças ou latria, ou qualquer ato semelhante, respeita o débito do benefício recebido, assim também a satisfação respeita o do pecado cometido. ─ Mas quanto à honra devida a Deus e aos pais, também segundo o Filósofo, é impossível restituir em quantidade idêntica, bastando dar o que pudermos; pois, a amizade não exige o equivalente, senão só o possível. O que de certo modo também é o igual, isto é, segundo uma proporcionalidade; pois, assim como o devido a Deus está para Deus, assim o que podemos restituir, para nós. E eis como de certo modo se salva a forma da justiça. ─ O mesmo se dá relativamente à satisfação. Por onde, não podemos satisfazer a Deus, se satis implica uma igualdade quantitativa; podemo-la porém se importa numa igualdade de proporção, como dissemos. E isto, como basta à realização da justiça, também basta à da satisfação.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Assim como a ofensa terá uma certa infinidade da infinidade da majestade divina, assim também certa infinidade terá a satisfação da infinidade da divina misericórdia, enquanto informada pela graça, pela qual é recebido o que o homem pode dar. ─ Certos porém dizem que ela tira a sua infinidade da a versão e assim é perdoada gratuitamente; é finita porém da parte da conversão, e assim podemos satisfazer por ela. ─ Mas isto não é verdade, pois a satisfação não responde ao pecado senão como ofensa de Deus; e isso não lhe advém da conversão, mas só da aversão. ─ Outros porém dizem que, mesmo quanto à aversão, podemos satisfazer pelo pecado em virtude dos méritos de Cristo, que de certo modo foram infinitos. O que vem a dar no mesmo que já foi dito; pois, pela fé do mediador a graça foi dada aos crentes. Se porém tivesse dado a graça de outro modo, bastaria a satisfação da maneira referida.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O homem, feito à imagem de Deus, participa algo da liberdade, enquanto senhor dos seus atos pelo livre arbítrio. Portanto, agindo com o seu livre arbítrio, pode satisfazer a Deus; pois, embora o livre arbítrio pertença a Deus, que lh'o outorgou, deu-Ih'o porém livremente para que dele fosse senhor. O que não cabe ao servo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção conclui que não podemos dar uma satisfação digna de Deus; mas não que lh'a não possamos dar suficiente. Pois, embora todo o seu poder o homem o deva a Deus, não lhe é porém necessariamente exigido que faça tudo quanto pode. Porque lhe seria impossível, no estado da vida presente, concentrar todo o seu poder num só objeto, ele que deve aplicar a sua solicitude a muitos. Mas uma certa medida lhe é prescrita e dele exigida, a saber, cumprir os mandamentos de Deus; e nessa medida o homem pode dar do que lhe pertence, de modo a satisfazer.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Embora não possamos recuperar o tempo passado, podemos porém dar uma compensação no futuro daquilo que no passado devêramos ter feito; pois, não devíamos, por uma obrigação de preceito, tudo o que podíamos, como dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ O pecado original, embora tenha menos da natureza do pecado que o atual, contudo é mais grave mal, pois, contaminou a própria natureza humana. Por isso não podia ser expiado pela satisfação de um puro homem, como o pode o atual.
Em seguida devemos tratar da possibilidade da satisfação.
Sobre o que dois artigos se discutem:
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que não é boa a definição da satisfação dada por Agostínho, e reproduzi da pelo Mestre das Sentenças, e que reza: a satisfação consiste em eliminar as causas dos pecados e não lhes permitir a entrada às sugestões.
1. ─ Pois, a causa atual do pecado é a concupiscência. Ora, nesta vida não podemos eliminar a concupiscência. Logo, a satisfação não consiste em eliminar as causas dos pecados.
2. Demais. ─ A causa do pecado é mais forte que ele. Ora, por nossas próprias forças não podemos eliminar o pecado. Logo e com maior razão, as causas do pecado. Donde, a mesma conclusão anterior.
3. Demais. ─ A satisfação, sendo parte da penitência, diz respeito ao passado e não ao futuro. Ora, não permitir a entrada às sugestões dos pecados diz respeito ao futuro. Logo, não deve entrar na definição da satisfação.
4. Demais. ─ A satisfação diz respeito à ofensa passada. Ora, da ofensa passada nenhuma menção se faz. Logo, está mal formulada a definição da satisfação.
5. Demais. ─ Anselmo dá outra definição: A satisfação consiste em dar a honra devida a Deus. Onde não faz nenhuma menção do que Agostinho põe na sua. Logo, uma delas há de ser errada.
6. Demais. ─ A honra devida a Deus também um inocente pode dá-la. Ora, satisfazer não cabe ao inocente. Logo, a definição de Anselmo é mal formulada.
SOLUÇÃO. ─ A justiça não visa somente fazer desaparecer a desigualdade precedente, punindo a culpa passada; mas também há de guardar a igualdade no futuro; porque, segundo o Filósofo, as penas são remédios. Por onde, também a satisfação, ato de justiça causador da pena, é um remédio curativo dos pecados passados e preservativo dos futuros. Por onde, quando satisfazemos a outrem, compensamos o passado e acautelamos o futuro. Sendo assim, podemos definir de dois modos a satisfação. ─ Primeiro, em relação à culpa passada, que ela elimina por uma compensação. Por isso se diz que a satisfação é um restabelecimento da igualdade da justiça violada pela injúria feita. E nisso vem dar também a definição de Anselmo, dizendo que satisfazer é dar a honra devida a Deus, considerando-se o débito em razão da culpa cometida. ─ De outro modo podemos defini-la como preservativa da culpa futura: e assim a define Agostinho. Ora, a preservação de uma doença do corpo se faz pela eliminação das suas causas produtoras. O mesmo porém não se dá com a doença espiritual, pois, o livre arbítrio não pode sofrer coação; por isso, pode evitar as causas precedentes do mal, embora dificilmente; e pode incorrer neste, mesmo removidas essas causas. Por isso, introduz na definição da satisfação duas coisas: a eliminação das causas, quanto às causas precedentes; e a relutância do livre arbítrio contra o pecado, quanto ao incorrer no pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÁO. ─ Devemos entender aqui, por causa do pecado atual, as suas duas causas próximas: a concupiscência, resultante do hábito ou do ato do pecado, e outras consequências do pecado passado; e as ocasiões externas de pecar, como o lugar, a má companhia e semelhantes. Essas causas ficam eliminadas nesta vida pela satisfação, embora a concupiscência, causa remota do pecado atual, não fique totalmente eliminada nesta vida pela satisfação, embora fique debilitada.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A causa do mal ou da privação, no sentido em que a tem, não é senão a falha do bem, e o bem mais facilmente se perde que se constitui. Por isso é mais fácil cortar as causas da privação e do mal do que remover a este, o qual não se remove senão sendo substituído pelo bem, como se dá com a cegueira e as suas causas. ─ E contudo as referidas causas do pecado não são causas suficientes, pois delas não resulta necessàriamente o pecado; são apenas umas ocasiões. ─ Além disso, a satisfação não é possível sem o auxílio de Deus, e este não vem sem a caridade, conforme o dizemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora a penitência, pelo que propriamente é, diga respeito ao passado, contudo, mesmo por consequência, diz respeito ao futuro, enquanto remédio preservativo. E assim também a satisfação.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Agostinho define a satisfação enquanto dada a Deus, a quem verdadeiramente falando, nada pode ser tirado, embora o pecador faça o que em si está para o privar de alguma coisa. Por isso a referida satisfação mais principalmente exige a emenda no futuro, que a compensação pelos atos passados. Donde vem definir Agostinho a satisfação neste ponto de vista. ─ Mas nem por isso podemos menos conhecer, pelo acautelamento do futuro, a compensação do passado, pois, tanto esta como aquele recaem sobre as mesmas coisas, de modo inverso. Pois, no passado, considerando as causas dos pecados as detestamos por causa dos pecados, começando o movimento da detestação pelos pecados; mas na cautela começamos pelas causas de modo que, eliminadas estas, mais facilmente evitemos os pecados.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Nenhum inconveniente há em darmos diversas definições do mesmo objeto, segundo os aspectos diversos que nele distinguirmos. E tal se dá no caso vertente, como do sobre dito se colhe.
RESPOSTA À SEXTA. ─ Por débito se entende o que devemos a Deus em razão da culpa cometida; pois, a penitência diz respeito ao débito, como dissemos.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que a satisfação não é um ato de justiça.
1. ─ Pois, o fim da satisfação é nos reconciliar com quem ofendemos. Ora, a reconciliação, implicando o amor, supõe a caridade. Logo, a satisfação é ato de caridade e não de justiça.
2. Demais. ─ As causas dos pecados em nós são as paixões da alma, pelas quais somos incitados ao mal. Ora, a justiça, segundo o Filósofo, não tem por objeto as paixões, mas os atos. Logo, sendo próprio da satisfação eliminar as causas dos pecados, como diz a letra do Mestre, conclui-se que não é um ato de justiça.
3. Demais. ─ Acautelar para o futuro não é ato de justiça, mas antes, de prudência, de que a cautela faz parte. Ora, isto implica a satisfação, pois a ela pertence não permitir a entrada às sugestões dos pecados. Logo, a satisfação não é um ato de justiça.
Mas, em contrário. ─ Nenhuma virtude leva em conta a noção de débito, senão a justiça. Ora, a satisfação dá a honra devida a Deus, como diz Anselmo. Logo, a satisfação é um ato de justiça.
2. Demais. ─ Nenhuma virtude, a não ser a justiça, realiza a igualdade entre as coisas exteriores. Ora, isso o faz a satisfação, que estabelece a igualdade entre a reparação e a ofensa. Logo, a satisfação é um ato de justiça.
SOLUÇÃO. — Segundo o Filósofo, a mediedade da justiça se funda na igualdade entre duas coisas, segundo uma certa proporcionalidade. Por onde, como essa igualdade implica a denominação mesma de satisfação, pois o advérbio latino satis designa uma igualdade de proporção, conclui-se ser a satisfação formalmente um ato de justiça. Ora, o ato de justiça, segundo o Filósofo, ou é de nos para com outrem, como quando lhe pagamos o devido; ou de outrem para com outrem, como quando o juiz estabelece a justiça entre duas partes. ─ Ora, quando é um ato de justiça de nós para com outrem, a igualdade se constitui em nós mesmos: quando de outrem para com outrem, a igualdade se constitui pelo ato de justiça recebido. E como a satisfação exprime a igualdade no agente, significa o ato de justiça nosso para com outrem, propriamente falando. ─ No outro lado, um ato nosso para com outrem pode realizar a justiça, no atinente às ações e às paixões, ou às coisas externas; assim como co mete uma injustiça para com outrem quem lhe subtrai o que lhe pertence ou o lesa por qualquer ato. E sendo o dar o uso dos bens externos, por isso o ato de justiça, enquanto restabelece a igualdade nas causas externas, significa propriamente restituir, ao passo que satisfazer exprime manifestamente a igualdade nas ações, embora às vezes isto se tome por aquilo. ─ Mas, igualdade não pode haver senão entre causas desiguais. Por isso a satisfação pressupõe a desigualdade entre as ações, desigualdade que constitui a ofensa; por onde, diz respeito a uma ofensa precedente senão a justiça vindicativa. E esta restabelece a igualdade no que recebe o ato justo; e é indiferente seja o paciente o mesmo que o agente ─ como quando nos impomos uma pena a nós mesmos; ou que o seja ─ como quando o juiz pune alguém; pois, em ambos os casos se exerce a justiça vindicativa. Semelhantemente, a penitência, que restabelece a igualdade só no agente, pois, é o penitente mesmo que se dá a si a pena; e assim a penitência faz de certo modo parte da justiça vindicativa. Donde se conclui, que a satisfação, que restabelece no agente a igualdade relativamente à ofensa precedente, é um ato de justiça, no atinente à parte chamada penitência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. ─ A satisfação, cama do sobredito se colhe, é uma certa compensação pela injustiça feita. Por onde, assim como a injustiça praticada causava imediatamente a desigualdade da justiça e, por consequência, a desigualdade oposta à amizade, assim também a satisfação conduz diretamente à igualdade da justiça e, por consequência, à igualdade da amizade. E como um ato procede, como elícito, do hábito a cujo fim imediatamente se ordena; e como imperado, daquele a cujo fim ultimamente tende, por isso a satisfação é um
ato elícito da justiça, mas imperado pela caridade.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a justiça respeite principalmente os atos, contudo, por consequência, respeita as paixões, enquanto causas dos atos. Mas, assim como a justiça coíbe à ira, impedindo-nos de causar injúria a outrem; e a conscupiscência, impedindo-nos de violar o leito alheio; assim também a satisfação pode eliminar as causas dos pecados.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Qualquer virtude moral participa do ato da prudência, porque ela realiza formalmente em cada uma a idéia da virtude; pois, é a que estabelece a mediedade em cada uma das virtudes morais, como o demonstra a definição de virtude dada por Aristóteles.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a satisfação não é uma virtude nem um ato de virtude.
1. ─ Pois, todo ato virtuoso é meritório. Ora, segundo parece, a satisfação não é meritória; porque, sendo o mérito gratuito, a satisfação supre um débito. Logo, a satisfação não é um ato de virtude.
2. Demais. ─ Todo ato de virtude é voluntário. Ora, às vezes se nos dá satisfação contra a nossa vontade; como quando é punido pelo juiz quem nos ofendeu. Logo, a satisfação não é ato virtuoso.
3. Demais. ─ Segundo o Filósofo, na virtude moral a eleição é o principal. Ora, a satisfação, respeitando principalmente os atos externos, não se faz por eleição. Logo, não é um ato de virtude. Mas, em contrário. ─ A satisfação faz parte da penitência. Ora, a penitência é uma virtude. Logo, também ato de virtude é a satisfação.
2. Demais. ─ Nenhum ato, salvo o virtuoso, contribui para o perdão do pecado; pois, um contrário destrói o outro. Ora, pela satisfação o pecado fica totalmente delido. Logo, a satisfação não é um ato de virtude.
SOLUÇÃO. ─ De dois modos pode um ato ser chamado virtuoso. ─ Primeiro, materialmente. E assim, qualquer ato sem malícia implícita, ou falta da circunstância própria, pode ser chamado virtuoso; pois, qualquer ato tal como andar, falar e outros, pode a virtude empregar para o seu fim. ─ De outro modo, dizemos ser um ato formalmente virtuoso quando a sua denominação implica implícita a forma e a essência da virtude; assim, sofrer com valentia se considera ato de fortaleza. Ora, a idéia de mediedade é o que toda virtude moral tem de formal. Portanto, todo ato que implica a idéia de mediedade é chamado formalmente um ato de virtude. E sendo a igualdade um meio termo, implicado pelo nome mesmo de satisfação — pois, não dizemos satisfeito senão o que implica proporção de igualdade com outra causa — resulta que a satisfação também formalmente é um ato de virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. ─ Embora a satisfação em si mesma seja um débito, contudo enquanto praticamos essa obra voluntariamente, por nossa parte o ato se apresenta como gratuito. Assim, fazemos da necessidade virtude. Pois, se o débito diminui o mérito é por implicar a necessidade, que contraria a vontade. Portanto, a vontade consentindo no necessário não exclui a idéia de mérito.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O ato de virtude não implica o voluntário no paciente, mas no agente, por ser ato deste. Por onde, como aquele contra o qual o juiz exerce a vindita se comporta como paciente, quanto à satisfação, e não como agente, não é necessário seja a sua satisfação voluntária, senão só ao juiz agente.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O principal na virtude pode ser considerado a dupla luz. ─ Primeiro, como o principal nela, enquanto virtude. E assim, o elemento racional, ou o que mais se lhe aproxima, é o principal na virtude. De modo que a eleição e os atos inferiores, na virtude como tal, são o que há nela de principal. ─ De outra maneira, podemos considerar o principal relativamente a uma determinada virtude. E então, o mais principal nela é o donde tira a sua determinação. Ora, em certas virtudes, os atos internos se determinam pelos externos; porque a eleição, comum a todas as virtudes, por isso mesmo que é a eleição de um tal ato, torna-se própria dessa virtude. E assim, os atos exteriores em certas virtudes são os mais principais. Tal é o caso também da satisfação.
Em seguida devemos tratar da satisfação, sobre a qual há quatro questões a considerar. Primeiro, da sua quididade. Segundo, da sua possibilidade. Terceiro, da sua qualidade. Quarto, do pelo que o homem satisfaz a Deus.
Na primeira questão discutem-se três artigos:
O quinto discute-se assim. ─ Parece que o que sabemos por confissão, e também de qualquer outro modo, de maneira nenhuma o podemos revelar.
1. ─ Pois, não é quebrado o sigilo da confissão, senão revelando-se o pecado nela conhecido. Logo, quem revela o pecado ouvido em confissão, seja como for que o soube, parece quebrar o sigilo da confissão.
2. Demais. ─ Quem ouve a confissão de outrem fica obrigado não lhe revelar os pecados. Ora, quem prometesse a outrem guardar secreto o que lhe ouvisse ficaria obrigado a esse segredo, mesmo que por outras fontes viesse a sabê-lo. Logo, o que se ouviu em confissão, embora viesse a ser sabido de outro modo, deveria ser conservado como sigilo.
3. Demais. ─ Duas forças, a mais poderosa domina a outra. Ora, a ciência pela qual recebemos o pecado, como Deus, é mais elevada e digna que a pela qual como homem o sabemos. Logo, aquela domina esta. E portanto não a podemos revelar, como o exige a ciência, pela qual sabemos como Deus.
4. Demais. ─ O segredo da confissão foi instituído por evitar o escândalo, a fim de os homens não se afastarem dela. Ora, se alguém pudesse revelar o ouvido em confissão, mesmo se por outra via o soubesse, nem por isso deixaria de haver escândalo. Logo, de nenhum modo podemos revelar.
Mas, em contrário. ─ Ninguém pode obrigar a outrem o a que não estava obrigado, salvo se for o prelado, que obriga sob preceito. Ora, quem conheceu um pecado pelo ter visto, não está obrigado a ocultá-lo. Logo, quem lh'o confessa, desde que não lhe seja prelado, não pode obrigá-lo ao sigilo, pelo fato de lh'o confessar.
2. Demais. ─ Desse modo poderia ficar impedida a justiça da Igreja, se alguém, para fugir à sentença de excomunhão, que lhe ia ser lavrada, por um pecado de que foi convencido, fizesse deste a confissão a quem devesse lhe lavrar a sentença. Ora, executar a justiça é preceito. Logo, não estamos obrigados a ocultar o pecado ouvido em confissão, se por outra via o sabemos.
SOLUÇÃO. ─ Nesta matéria três são as opiniões. ─ Assim, certos dizem que o ouvido em confissão não podemos de nenhum modo revelá-lo, se por outra via o soubemos, quer antes, quer depois. ─ Outros porém dizem, que a confissão nos tira a faculdade de revelar a outrem o que já antes dela o sabíamos; mas não a de poder revelar o que depois dela viemos a saber.
Ora, ambas essas opiniões, exagerando o dever do sigilo da confissão, causam prejuízo à verdade e à conservação da justiça. Pois, poderia torná-la mais inclinado ao pecado o não temer o pecador ser acusado pelo confessor, se na presença deste reiterasse o pecado. Semelhantemente, muito da justiça pereceria se não pudessemos testemunhar o que vimos, depois de a confissão nos ter sido feita. ─ Nem obsta a opinião de certos, que devíamos protestar que o sabido não o obtivemos com o dever do sigilo. Pois, isso não o poderíamos senão depois de o pecado nos ter sido confessado. E então qualquer sacerdote poderia, quando quisesse, revelar o pecado, fazendo essa protestação, se essa o deixasse livre de o revelar.
Por onde, mais verdadeira é a outra opinião, que o sabido por outra via, quer antes, quer depois da confissão, não estamos obrigados a ocultá-lo, se como homem, o soubemos; pois, podemos dizer ─ sei-o porque o vi. Estamos porém obrigados ao segredo do que soubemos como Deus; pois não podemos dizer ─ ouvi-o em confissão. ─ Contudo, por evitar escândalo, devemos nos abster de falar nisso, salvo se urgir a necessidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Quem diz ter visto o que ouviu na confissão não revela, senão por acidente, o que nela ouviu. Como quem sabe de uma coisa pela ter ouvido e visto não revela o que viu, absolutamente falando, se disse que ouviu, senão por acidente; pois, conta como ouvido o que lhe sucedeu ver. Por onde, esse tal não quebra o sigilo da confissão.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Quem ouve uma confissão não fica obrigado a não revelar o pecado, absolutamente falando, mas só enquanto ouvido em confissão. Pois, em nenhum caso deve dizer que nela o ouviu.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Isto se entende de duas força opostas. Ora, a ciência pela qual sabemos como Deus, e a pela qual como homem sabemos, não são opostas. Logo, a objeção não procede.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Não devemos evitar escândalos, por um lado, de modo tal, que venha por outro a perder a justiça. Pois, não devemos deixar de dizer a verdade, por evitar escândalo. Por onde, quando a verdade e a justiça correm perigo iminente, não devemos deixar de revelar ouvido em confissão, se por outra via também o soubemos, por evitar escândalo; embora devamos nos esforçar para evitá-lo, em si mesmo.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que com licença do confitente não pode o sacerdote revelar a outrem o ouvido sob o sigilo da confissão.
1. ─ Pois, o que não pode o superior não pede o inferior. Ora, o Papa a ninguém poderá dar licença de revelar a outrem o pecado ouvido em confissão. Logo, nem o confitente poderia dar essa licença.
2. Demais. ─ O instituído em vista do bem comum não pode ser mudado por arbítrio de um particular. Ora, o sigilo da confissão foi instituído para o bem de toda a Igreja,a fim de que os homens se acerquem da confissão com mais confiança. Logo, o confitente não pode dar ao sacerdote licença para revelar a sua confissão.
3. Demais. - Se ao sacerdote pudesse ser dada essa licença, seria dada aos maus sacerdotes para encobrir a malícia, pois poderiam alegar que licença lhes foi dada, para assim pecarem impunemente. O que é inadmissível. E portanto, parece que não podem ter tal licença do confitente.
4. Demais. ─ Quem recebesse a revelação dessa confissão não estaria obrigado ao segredo. E assim poderia tornar público um pecado já perdoado. O que é inadmissível. Logo, não pode o sacerdote receber essa licença.
Mas, em contrário. - O superior pode mandar um pecador ao seu inferior, levando-lhe carta que manifeste a sua vontade. Logo, por vontade do confitente pode o pecado ser revelado a outrem.
2. Demais. ─ Quem pode agir por si também o pode por outrem. Ora, o confitente pode revelar o seu pecado, que por si cometeu, a outrem. Logo, também o pode fazer pelo sacerdote.
SOLUÇÃO. ─ Duas são as razões por que está o sacerdote obrigado ao sigilo: primeiro e principalmente, porque essa ocultação é da essência do sacramento, pois, o sacerdote conhece os pecados como Deus, cujas vezes faz na confissão; segundo, para evitar escândalo. Mas, o confitente pode fazer o sacerdote conhecer também como homem o que só como Deus o sabia; e isso, dando-lhe licença de revelar a confissão. Contudo, o sacerdote deve, ao revelar, evitar o escândalo de ser tido como infrator do sigilo da confissão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ O Papa não pode dar ao sacerdote licença de revelar a confissão, porque não pode fazê-lo conhecedor dela como homem. Mas isso o pode o confitente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ No caso não fica eliminado o instituído para o bem comum, pois não há quebra do sigilo da confissão quando se diz o que de outro modo foi sabido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Por aí não se confere impunidade aos maus sacerdotes, pois lhes incumbe provar, se acusados, que revelaram por licença do confitente.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quem chega ao conhecimento do pecado, mediante o sacerdote e por vontade do confitente, participa de algum modo do ato do sacerdote. Por isso se dá com ele o mesmo que com o intérprete; salvo se o pecador quiser que absoluta e livremente saiba da confissão.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que nem só o sacerdote está obrigado ao sigilo da confissão.
1. ─ Pois, às vezes, urgindo a necessidade, pode alguém confessar ao sacerdote por um intérprete. Ora, o intérprete está obrigado, segundo parece, a guardar o sigilo da confissão. Logo, parece que também quem não é sacerdote está obrigado ao sigilo da confissão.
2. Demais. ─ Em caso de necessidade podemos confessar a um leigo. Ora, este fica obrigado a ocultar os pecados, pois como a Deus lhe foram ditos. Logo, nem só o sacerdote está obrigado ao sigilo da confissão.
3. Demais. ─ Pode alguém fingir-se de sacerdote a fim de, por essa fraude, ficar conhecendo a consciência alheia. Ora, também esse, segundo parece, peca revelando a confissão. Logo, nem só o sacerdote está obrigado ao sigilo da confissão.
Mas, em contrário, só o sacerdote é o ministro deste sacramento. Ora, o sigilo confessional lhe está anexo. Logo, só o sacerdote está obrigado ao sigilo da confissão.
2. Demais. ─ O confessor está obrigado a ocultar o ouvido na confissão, porque o soube como Deus e não como homem: Ora, só o sacerdote é ministro de Deus. Logo, só ele está obrigado a guardar o segredo.
SOLUÇÃO. ─ O sigilo da confissão é dever do sacerdote enquanto ministro deste sacramento, que outra coisa não é senão é o dever de guardar secreta a confissão, assim como o poder das chaves é o poder de absolver. Contudo, como quem não é sacerdote em certas circunstâncias participa do poder das chaves, ouvindo a confissão em caso de necessidade, assim também participa do ato do sigilo confessional e está obrigado ao segredo, embora propriamente falando não haja o sigilo da confissão.
Donde se deduzem as respostas as objeções.