Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não tinha o poder das chaves.
1. — Pois, o poder das chaves resulta do caráter da ordem. Ora, Cristo não tinha esse caráter. Logo, não tinha o poder das chaves.
2. Demais. — Cristo tinha nos sacramentos o poder de excelência, de modo que podia conferir o efeito deles sem os sacramentos. Ora, as chaves são um sacramental. Logo, não precisava delas. E assim, teria inutilmente esse poder.
Mas, em contrário, a Escritura: Isto diz o que tem a chave de David, etc.
SOLUÇÃO. — O poder de agir reside ao mesmo tempo no instrumento e no agente principal; mas não do mesmo modo, porque no agente principal reside mais perfeitamente. Ora, o poder das chaves, que nós temos, assim como o de conferir os outros sacramentos é um poder instrumental. Mas Cristo o tem como o agente principal da nossa salvação; pela sua autoridade, como Deus; e pelo seu mérito, como homem. Ora, a chave, por sua natureza, exprime o poder de abrir e de fechar, quer quem abra o faça como agente principal, quer como ministro. Por onde. Cristo deve ter o poder das chaves; mas de modo mais elevado pelo qual o tem os seus ministros. Por isso se diz que tem a chave da excelência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O caráter, por natureza, significa uma impressão recebida de outrem. Por isso o poder das chaves, que nós recebemos de Cristo, resulta do caráter com que com Cristo nos conformamos. Ora, Cristo tem o referido poder não em virtude do caráter, mas como agente principal.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa chave que Cristo tinha não era sacramental, mas princípio da chave sacramental.
O primeiro discute-se assim. — Parece que o sacerdote da Lei Velha tinha o poder das chaves.
1. Pois, a chave é uma sequela da ordem. Ora, os sacerdotes da Lei Velha, como tais, tinham a ordem. Logo, também tinham o poder das chaves.
2. Demais. — Como o Mestre disse antes, duas são as chaves: a ciência do discernimento e o poder de julgar. Ora, os sacerdotes da Lei Velha tinham a autoridade para ambos. Logo, tinham o poder das chaves.
3. Demais. — Os sacerdotes da Lei Velha tinham um certo poder sobre o demais povo. Não temporal, porque então o poder real não se distinguiria do sacerdotal. Logo, o espiritual, que é o poder das chaves. Portanto, tinham este poder.
Mas, em contrário. — As chaves servem para abrir o reino dos céus, que não podia ser aberto antes da paixão de Cristo. Logo, o sacerdote da Lei Velha não tinha o poder das chaves.
2. Demais. — Os sacerdotes da Lei Velha não conferiam a graça. Ora, as portas do reino celeste não podem abrir-se senão pela graça. Logo, não podiam abrir-se por esses sacramentos. E assim, também o sacerdote, ministro deles, não tinha as chaves do reino dos céus.
SOLUÇÃO. — Certos disseram, que os sacerdotes da Lei Velha tinham as chaves, porque lhes foi cometido impor penas pelos delitos, como lemos na Escritura — o que implica o poder das chaves; este porém era então incompleto, ao passo que agora, por Cristo, os sacerdotes da Lei Nova o têm perfeito. — Mas isto vai contra a intenção do Apóstolo, quando diz que o sacerdócio de Cristo é mais excelente que o da Lei, porque Cristo está presente como pontífice dos bens vindouros, e entrou no tabernáculo celeste pelo seu próprio sangue; tabernáculo não feito por mão de homem, ao qual introduziam os sacerdotes da Lei Velha, por sangue de bodes e de bezerros. Por onde é claro que o poder desses sacerdotes não se estendia às realidades celestes, mas às figuras delas. — Por isso, segundo outros, devemos pensar que não tinham as chaves, senão as figuras delas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As chaves do reino celeste são dadas com o sacerdócio, pelo qual somos introduzidos nos céus; ora, tal não era a ordem do sacerdócio Levítico. Por isso os sacerdotes da Lei Velha não tinham as chaves do céu, mas só as do tabernáculo terrestre.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sacerdotes da Lei Velha tinham a autoridade de discernir e de julgar; mas não que fosse o homem julgado por eles admitido no céu, mas só a figura das coisas celestes.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Tinham o poder espiritual porque pelos sacramentos da Lei os homens se purificavam, não das culpas, mas de certas irregularidades, a fim de se lhes abrir aos purificados a entrada do tabernáculo feito por mão de homem.
Em seguida devemos tratar dos ministros das chaves e do uso delas.
E nesta questão discutem-se seis artigos:
Em seguida, devemos falar da obra do segundo dia.
E sobre este assunto, quatro artigos se discutem:
O quarto discute-se assim. — Parece que o sacerdote pode ligar e absolver por arbítrio próprio.
1. — Pois, Jerônimo diz: Os cânones não prefixam claramente o tempo durante o qual se deve fazer penitência, por cada crime, de modo que determine como deve ser a emenda de cada um; mas antes o deixam confiado ao arbítrio da compreensão do sacerdote. Logo, parece que este pode por seu arbítrio ligar e absolver.
2. Demais. — O Senhor louvou o feitor iníquo, por haver obrado como homem de juízo, porque perdoou aos devedores do seu amo, largamente. Ora, o Senhor é mais pronto a ter misericórdia, que qualquer senhor temporal. Logo, parece tanto mais louvável o sacerdote quanto mais perdoar a pena.
3. Demais. — Toda ação de Cristo serve para nossa instrução. Ora, Cristo a certos pecadores não impôs nenhuma pena, mas só a emenda da vida, como se deu com a adúltera. Logo, parece que também o sacerdote pode, segundo o seu arbítrio, ele como Vigário de Cristo, perdoar total ou parcialmente a pena.
Mas, em contrário. — Gregório diz: Falsa penitência consideramos a não imposta, conforme a qualidade do crime, pela autoridade dos santos Padres. Logo, parece que de nenhum modo é do sacerdote impor a pena.
2. Demais. — O exercício do poder das chaves supõe o discernimento. Ora, se dependesse exclusivamente do arbítrio do sacerdote impor a pena que quisesse, não teria ele necessidade da discrição, porque nunca poderia ser indiscreto. Logo, não está absolutamente no arbítrio do sacerdote.
SOLUÇÃO. — O sacerdote obra, no uso das chaves, como instrumento e ministro de Deus. Ora, nenhum instrumento tem ato eficaz, senão enquanto movido pelo agente principal. Por isso diz Dionísio, que os sacerdotes devem exercer suas sagradas funções, quando Deus os mover. Em sinal do que, antes do poder das chaves conferido a Pedro, faz o Evangelho menção da revelação da Divindade, que lhe foi feita; e noutro lugar se diz, que o dom do Espírito Santo, pelo qual se tornaram filhos de Deus, foi dado aos Apóstolos, antes do poder de perdoarem os pecados. Portanto, quem quisesse exercer o seu poder independentemente dessa moção divina, não conseguiria o efeito visado, como diz Dionísio. Além disso se desviaria da ordem divina e, assim incorreria em culpa. — Além disso, as penas satisfatórias são infligidas como remédios. Ora, os remédios prescritos pela arte médica não servem para todos indistintamente, mas devem variar segundo o arbítrio do médico, não seguindo este à sua vontade própria, mas obedecendo à ciência médica. Assim também as penas satisfatórias determinadas pelos cânones não se aplicam a todos, mas devem variar segundo o arbítrio do sacerdote, regulado por uma inspiração divina. Assim, pois, como o médico prudente às vezes não prescreve remédio de tal modo eficaz que baste à cura da doença, a fim de não causar maior dado a fraqueza do doente, assim também o sacerdote, levado por inspiração divina nem sempre impõe toda a pena devida a um pecado, não vá o enfermo desesperar com a grandeza da pena e afastar-se totalmente da penitência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Esse arbítrio deve ser regulado por inspiração divina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Também por isso foi elogiado o feitor, por ter agido prudentemente. Por isso, a remissão da pena devida deve ser feita com discernimento.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo tinha o poder de excelência, nos sacramentos. Por isso, tinha a autoridade de perdoar a pena, total ou parcialmente, como quisesse. Nem há símile com o que fazem os que não agem senão como ministros.
O terceiro discute-se assim. — Parece que o sacerdote, pelo poder das chaves, não pode ligar.
1. Pois, a virtude sacramental se ordena contra o pecado, como remédio. Ora, ligar, longe de ser remédio do pecado, agrava essa doença, segundo parece. Logo, o sacerdote, pelo poder das chaves, que é uma virtude sacramental, não pode ligar.
2. Demais. — Assim como absolver ou abrir é remover um obstáculo, assim ligar é por obstáculo. Ora, o obstáculo para o Reino é o pecado, obstáculo que ninguém nos pode criar, pois, só por vontade pecamos. Logo, o sacerdote não pode ligar.
3. Demais. — As chaves tiram a sua eficácia da paixão de Cristo. Ora, ligar não é efeito da paixão. Logo, pelo poder das chaves, o sacerdote não pode ligar.
Mas, em contrário, o Evangelho: Tudo o que ligares sobre a terra será ligado também no céu.
2. Demais. — As potências racionais são susceptíveis de tender para termos opostos. Ora, o poder das chaves, sendo acompanhado do discernimento, é uma potência racional. Logo, pode tender para termos opostos. Portanto, se pode absolver também pode ligar.
SOLUÇÃO. — A obra do sacerdote, no uso das chaves, é conforme à obra de Deus, de quem é o ministra. Ora, Deus pode obrar tanto sobre a pena como sobre a culpa. Sobre a culpa, diretamente, para absolver dela; indiretamente, para ligar, no sentido em que dizemos que torna o pecado obdurado, por não lhe dar a graça. Mas sobre a pena obra diretamente, tanto de um como de outro modo; pois, perdoa a pena e a minora. Semelhantemente, também o sacerdote, embora ao absolver, pelo poder das chaves, exerça de certo modo um ato ordenado ao perdão da culpa, da maneira referida, contudo, quando liga, nenhum ato exerce relativamente à culpa, salvo se por ligar se entende o não absolver o pecador, mas fazer-lhe saber que esta ligado. Mas sobre a pena tem o poder de ligar e de absolver. Pois, absolve da pena quem perdoa; mas liga quanto a pena que mantém, quanto a esta, porém, dizemos que liga de dois modos. De um, considerando a gravidade mesma dela em geral; e assim, não liga senão porque não absolve, e manifesta o pecado como ligado. De outro modo, considerando tal pena e tal outra determinadamente; e assim liga, quanto à pena, pela impor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Esse resíduo de pena que o pecador deve expiar é um remédio que purifica da impureza do pecado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Obstáculo ao Reino não é só o pecado, mas também a pena; e já dissemos como o sacerdote a impõe.
RESPOSTA À TERCEIRA. - Mesmo a paixão de Cristo nos obriga a uma certa pena, pela qual com essa paixão nos conformamos.
O segundo discute-se assim. — Parece que o sacerdote não pode perdoar a pena do pecado.
1. — Pois, o pecado merece uma pena eterna e outra temporal. Ora, mesmo depois da absolvição do sacerdote fica o penitente obrigado a cumprir a pena temporal neste mundo ou no purgatório. Logo, não perdoa de nenhum modo a pena.
2. Demais. — O sacerdote não pode prejudicar à justiça divina. Ora, pela justiça divina está determinada aos penitentes a pena que devem sofrer. Logo, o sacerdote nada pode perdoar dela.
3. Demais. — Quem comete um pequeno pecado não deixa de receber menos os efeitos das chaves, que quem cometeu um pecado maior. Ora, se o sacerdote pode perdoar algo da pena do pecado maior, é possível haver um pecado de tal modo pequeno, que não lhe é devida maior pena que a perdoada, do pecado maior. Logo poderá perdoar totalmente a pena desse pecado menor. O que é falso.
4. Demais. — Toda a pena temporal devida ao pecado tem o mesmo fundamento. Se, pois por uma primeira absolvição for perdoada uma parte da pena, também pela segunda pode sei perdoada outra, do mesmo pecado. E assim poderão multiplicar-se as absolvições a ponto de pelo poder das chaves, toda a pena ser perdoada pois, a segunda absolvição não tem menor eficácia que a primeira. Por onde; o pecado ficará de todo impune. E isso, é inadmissível.
Mas, em contrário. — O poder das chaves é o de ligar e de absolver. Ora, o sacerdote pode impor urna pena temporal. Logo, pode também absolver da pena.
2. Demais. — O sacerdote não pode perdoar a culpa do pecado, corno diz à letra o Mestre das Sentenças; nem a pena eterna, pela mesma razão. Se, pois, não pode perdoar a pena temporal do pecado, de nenhum modo pode perdoá-lo. O que vai em absoluto contra as palavras do Evangelho.
SOLUÇÃO. — Devemos dizer, do efeito, que o poder das chaves atualmente exercido, produz em quem teve antes a contrição, o mesmo que dizemos do efeito do batismo, dado a quem já estava em graça. Assim, pela fé e contrição precedentes ao batismo alcançamos a graça de perdão dos pecados, quanto à culpa; e quando depois recebemos atualmente o batismo, a graça se nos aumenta e ficamos de todo absolvidos do de reato da pena, por nos tornarmos participantes da paixão de Cristo. Semelhantemente, quem pela contrição alcançou a remissão dos pecados quanto à culpa, e por consequência quanto ao reato da pena eterna, perdoada simultaneamente com a culpa, em virtude do poder das chaves, que tira a sua eficácia da paixão de Cristo, a esse se lhe aumenta a graça e perdoa a pena temporal, cujo reato ainda permanecia depois da remissão da culpa. Não porém totalmente, corno no batismo, mas só parcialmente. Porque o regenerado pelo batismo se configura com a paixão de Cristo, recebendo em si totalmente a eficácia de sua paixão, suficiente para apagar toda pena, de modo que nada resta da pena do pecado atual anterior; pois, a ninguém devemos imputar a pena, senão o que realmente fez. No batismo porém, o batizado recebe uma nova vida e se torna, pela graça batismal, um novo homem; por isso não permanece nele nenhum reato da pena, pelo pecado precedente. Mas pela penitência não recebemos nenhuma vida nova, pois não é urna regeneração, mas uma cura. Por isso, em virtude do poder das chaves, que obra no sacramento da penitência, não é perdoada totalmente a pena, mas uma parte da pena temporal, cujo reato podia permanecer depois da absolvição da pena eterna. Nem só daquela pena que o penitente deve cumprir, imposta pelo confessor, como certos dizem; porque então a confissão e a absolvição sacramental não seriam senão ônus, o que não é próprio aos sacramentos da Lei Nova. Mas também da pena a ser expiada no purgatório algo é perdoado, de modo que quem morrer absolvido, mas antes de ter satisfeito, será punido no purgatório menos do que o seria se morresse antes da absolvição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O sacerdote não perdoa toda a pena temporal, mas só parte. Por isso o confitente ainda permanece obrigado à pena satisfatória.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A paixão de Cristo satisfez suficientemente pelos pecados de todo o mundo. Por onde, sem prejuízo para a justiça divina, pode o sacerdote perdoar algo da pena devida pelo penitente, segundo colheu este, pelos sacramentos da Igreja, os efeitos da paixão de Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A todo pecado é necessário se lhe aplique uma pena satisfatória, pela qual se lhe de remédio. Por onde, embora por virtude da absolvição seja perdoada uma parte da pena devida por algum grande pecado não implica isso que de qualquer pecado lhe seja perdoada totalmente a pena; pois, se assim fosse, algum pecado haveria de ficar totalmente impune; mas em virtude do poder das chaves, a cada pecado se lhe perdoam proporcionalmente as penas.
RESPOSTA À QUARTA. — Certos dizem, que a primeira absolvição perdoa, pelo poder das chaves, tanto quanto pode ser perdoado; contudo vale a confissão reiterada, quer pela instrução que ministra, quer pela maior certeza de sermos perdoados, quer pela intercessão do confessor, quer pelo mérito de vencer a vergonha de confessar os pecados.- Mas isto não é verdade. Porque, se fosse essa a razão de se reiterar a confissão, não seria porém a razão de se reiterar a absolvição, sobretudo para quem não tem nenhuma dúvida sobre a absolvição precedente; pois, do contrário, podia duvidar da segunda absolvição como duvida da primeira. Assim, vemos que o sacramento da extrema unção não se reitera na mesma doença, porque pela única vez que foi ministrado, já o sacramento produziu tudo o que podia produzir. Além disso, na segunda confissão não seria necessário tivesse o poder rias chaves aquele a quem se ela fizesse, pois que esse poder não deveria aí agir em nada. — Por isso outros dizem, que mesmo na segunda absolvição é conferido aumento de graça; e quanto maior for a graça recebida, tanto menos restará da impureza do pecado precedente; e por consequência será devida uma menor pena purificadora. Por onde, pela primeira absolvição se perdoa mais ou menos a pena ao confitente, pelo poder das chaves, segundo estiver mais ou menos disposto para a graça. E pode a disposição ser tal, que mesmo por virtude da contrição seja apagada totalmente a pena, como dissemos. Por isso, também não é inconveniente se a confissão freqüente apagar totalmente a pena, de modo que o pecado fique de todo impune, pelo qual a pena que sofreu Cristo satisfez.
O primeiro discute-se assim. — Parece que o poder das chaves se estende ao perdão da culpa.
1. — Pois, diz o Evangelho: Aos que vos perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados. Ora, isto não significa apenas que os pecados se declarem perdoados, como o explica a letra do Mestre; porque então o sacerdote do Testamento Novo não teria maior poder que o do Velho. Logo, exerce o poder para o perdão da culpa.
2. Demais. — Com o poder é dada a graça de perdoar os pecados. Ora, o dispensador deste sacramento é o sacerdote, em virtude do poder das chaves. Logo, como a graça não se opõe ao pecado, no concernente à pena, mas no concernente à culpa, parece que o sacerdote perdoa a culpa em virtude do poder das chaves.
3. Demais. — Maior poder recebe o sacerdote pela sua consagração, que a água do batismo pela sua santificação. Ora, a água do batismo recebe a virtude de tocar o corpo e purificar o coração, segundo Agostinho. Logo e com muito maior razão o sacerdote, na sua consagração, recebe um poder que lhe permite purificar o coração da mácula da culpa.
Mas, em contrário. — Antes, o Mestre tinha dito que Deus não conferiu esse poder ao ministro, para que cooperasse com êle na purificação interior. Ora, se perdoasse a culpa do pecado, cooperaria com ele na purificação interior. Logo, o poder das chaves não se estende ao perdão da culpa
2. Demais. — O pecado não é perdoado senão pelo Espírito Santo. Ora, comunicar o Espírito Santo não pertence a qualquer homem, como disse o Mestre no Livro Primeiro. Logo, nem perdoar a culpa do pecado.
SOLUÇÃO. — Os Sacramentos, segundo Hugo, pela satisfação, contêm a graça invisível. Ora, às vezes a santificação é necessária, assim à matéria como ao ministro do sacramento, como é o caso da confirmação; e então a virtude sacramental existe conjuntamente numa e noutra. Outras vezes, não é necessária senão a santificação da matéria do sacramento, como se dá com o batismo, porque não exige necessariamente um ministro determinado; e então a virtude sacramental está toda na matéria. Outras vezes ainda, o sacramento exige necessariamente a consagração ou a santificação do ministro, sem nenhuma santificação da matéria; e então toda a virtude sacramental está no ministro, como é o caso da penitência. Por onde, o poder das chaves, que tem o sacerdote, está para o efeito do sacramento da penitência, como a virtude da água do batismo está para o efeito do batismo. Ora, o batismo e o sacramento da penitência convêm de certo modo no seu efeito, porque ambos se ordenam diretamente contra a culpa — o que não se dá com os outros sacramentos. Mas diferem em que o sacramento da penitência, tendo como sua matéria os atos de quem os recebe, não por ser conferido senão aos adultos, que devem ter a preparação para colherem o efeito dos sacramentos. Ao passo que o batismo umas vezes é ministrado aos adultos, outras às crianças e aos desprovidos do uso da razão; por isso o batismo confere a graça e a remissão dos pecados às crianças sem deverem elas ter nenhuma preparação precedente; mas não aos adultos, que devem ter uma preparação eliminante da dissimulação. E essa preparação às vezes tem precedência no tempo, suficiente para a recepção da graça, antes de ser o batismo recebido atualmente; mas não antes do desejo do batismo, na vigência da revelação da verdade cristã. Outras vezes porém, não precede essa preparação no tempo, mas é dada simultaneamente com a recepção do batismo; e então com o recebimento do batismo é conferida a graça da remissão da culpa. Mas pelo sacramento da penitência nunca é dada a graça sem preparação presente ou precedente. Por onde, o poder das chaves opera a remissão da culpa, quer quando apenas existe um desejo, quer quando se exerce em ato, como a água do batismo.
Mas, como o batismo não opera na qualidade de agente principal, mas na de instrumento, não contribuindo porém para causar a recepção da graça, mesmo instrumentalmente, mas apenas dispondo para ela, pela qual se opera a remissão da culpa, o mesmo se dá com o poder das chaves. Por onde, só Deus tem o poder de perdoar a culpa; e por virtude dele o batismo opera instrumentalmente, como instrumento inanimado; e o sacerdote como instrumento animado, chamado servo, segundo o Filósofo. Por onde, o sacerdote obra como ministro.
Portanto é claro que o poder das chaves se ordena de certo modo à remissão da culpa, não pela causar mas pela dispor. E assim, quem antes da absolvição não estivesse perfeitamente disposto a receber a graça, consegui-la-ia na confissão mesma e com a absolvição sacramental, não opondo nenhum obstáculo. Se, pois, o poder das chaves de nenhum modo se ordenasse à remissão da culpa, senão só ao perdão da pena — como certos dizem, não seria necessário o desejo de receber o efeito das chaves, para a remissão da culpa, assim como não é necessário o desejo de receber os outros sacramentos, não ordenados à remissão da culpa, mas à da pena. Mas isto faz ver que não se ordenam ao perdão da culpa, porque sempre o uso das chaves, para produzir o seu efeito, exige a preparação da parte de quem deve receber o sacramento. E o mesmo se daria com o batismo se fosse ministrado só aos adultos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz à letra o Mestre, aos sacerdotes foi cometido o poder de remitir os pecados, não por virtude própria, o que só pertence a Deus, mas para manifestarem como ministros, a obra de Deus, que perdoa. O que se dá de três modos. — Primeiro, para que a manifestem, não como presente, mas como futura, sem em nada contribuírem para ela. E assim, os sacramentos da Lei Velha significavam a ação de Deus. Por isso o sacerdote dessa lei apenas mostrava a graça prometida e nada fazia. - Segundo, para a significarem como presente, e que em nada para ela contribuem. Por isso certos dizem que os sacramentos da Lei Nova significam a colação da graça, que Deus dá no ato mesmo de os conferir, sem haver neles nenhuma outra virtude que contribua para ela. E segundo esta opinião mesmo o poder das chaves serviria só para mostrar a ação divina na remissão da culpa, feita no momento da colação sacramental. — Em
terceiro lugar, para significarem a ação divina presente na remissão da culpa, e contribuírem para ela dispositiva e instrumentalmente. E assim, segundo outra opinião mais comumente sustentada, os sacramentos da Lei Nova manifestam a purificação feita por Deus. E deste modo também o sacerdote do Novo Testamento mostra aos absolvidos da culpa que o foram, porque devemos considerar os sacramentos proporcionalmente aos ministros deles. — Nem obsta que as chaves da Igreja não disponham para a remissão da culpa, por já ter ela sido perdoada; assim como não importa que o batismo o disponha, pelo que em si mesmo é, por já ter sido santificado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Nem o sacramento da penitência nem o do batismo contribuem diretamente para a graça, nem para a remissão da culpa, senão dispositivamente.
Donde também se deduz a resposta à terceira.
As outras objeções mostram, que para a remissão da culpa diretamente não contribui o poder das chaves. O que devemos conceder.
Em seguida devemos tratar do efeito das chaves.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que não há duas chaves, mas uma só.
1. ─ Pois, para uma fechadura não é necessária senão uma chave. Ora, a fechadura, obstáculo que a Igreja deve remover pelas chaves, é o pecado. Logo, para remover um só pecado não precisa a Igreja de duas chaves.
2. Demais. ─ As chaves são conferidas na calação da ordem. Ora, a ciência não resulta sempre infusa, mas é às vezes adquirida; nem é possuída por alguns ordenados, com exclusão de outros. Logo, chave não é a ciência. E assim, só há uma chave, a saber, o poder de julgar.
3. Demais. ─ O poder que tem o sacerdote sobre o corpo místico de Cristo depende do poder que ele tem sobre o verdadeiro corpo de Cristo. Ora, o poder de consagrar o verdadeiro corpo de Cristo é um só. Logo, a chave, que é o poder concernente ao corpo místico de Cristo, é uma só.
4. ─ Parece que há mais de duas chaves, pois, assim como um ato humano supõe a ciência e o poder, assim também a vontade. Ora, a ciência de discernir é considerada uma chave, e do mesmo modo o poder de julgar. Logo, a vontade de absolver também deve ser considerada uma chave.
5. Demais. ─ É toda a Trindade que perdoa o pecado. Ora, o sacerdote, pelas chaves, é o ministro do perdão dos pecados. Logo, deve ter três chaves, para assemelhar-se à Trindade.
SOLUÇÃO. ─ Em todo ato que requer disposições da parte daquele sobre quem ele exerce, duas coisas são necessárias naquele que o deve exercer:o juízo sobre as disposições do sujeito passivo e a prática ato. Por onde, também ao ato de justiça, pelo qual atribuímos a alguém o de que é digno, é necessário; de um lado o juízo, pelo qual discernamos se é digno, e de outro, o ato mesmo da atribuição. ─ E para ambos é necessária uma autoridade ou um poder; pois, não podemos dar senão o que está em nosso poder; nem pode haver juízo sem a força coativa, porque o juízo tem um objeto determinado. Essa determinação se faz, na ordem especulativa, por virtude dos primeiros princípios, a que não podemos fugir; e na ordem prática, pela força imperativa, atributo de quem julga. E como o poder das chaves exige certas disposições em quem o exerce, porque o juiz eclesiástico recebe, por elas, os dignos e exclui os indignos, segundo resulta da definição dada, por isso precisa ter o juízo de discernimento, pelo qual, julga das disposições e de praticar o ato mesmo de absolver; e para ambas essas coisas é necessário um poder ou autoridade. Por isso se distinguem duas chaves, uma relativa ao juízo sobre as disposições de quem deve ser absolvido; e a outra, à, absolvição mesma. E essas duas chaves não se distinguem essencialmente da autoridade, que as torna
ambas do ofício do sacerdote; senão só relativamente aos atos, dos quais um pressupõe o outro.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Para abrir uma fechadura basta imediatamente uma só chave; mas não há inconveniente em se ordenar uma ao ato da outra. Tal é o que se dá no caso vertente. Pois, a segunda chave, chamada poder de ligar e de absolver, é a que imediatamente abre a fechadura do pecado; mas a chave chamada ciência mostra a quem essa fechadura deve ser aberta.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Sobre a ciência das chaves há duas opiniões. ─ Certos disseram que a ciência, enquanto hábito, adquirido ou infuso, se chama aqui chave; mas não é chave principal, senão dependente de outra; por isso não se chama chave, quando existe independente de outro, como se pudesse ter um varão letrado, que não fosse sacerdote. Semelhantemente, também há sacerdotes que não têm essa chave, porque não têm a ciência adquirida nem a infusa, pela qual pudessem absolver e ligar; e o fazem então por uma certa indústria natural, que, segundo a opinião vertente, se chama clavíola. E assim, a chave da ciência, embora não conferida juntamente com a ordem, esta faz com que se torne chave o que antes não o era. E parece ter sido esta a opinião do Mestre das Sentenças. ─ Mas não concorda com as palavras do Evangelho, que prometem haverem as chaves de ser dadas a Pedro; e assim, são dadas, não só uma, mas duas e ordenadamente. ─ Por isso, outra opinião diz, que a ciência, sendo um hábito, não é chave, mas a autoridade para exercer o ato da ciência. E essa às vezes existe sem a ciência; às vezes, a ciência, sem ela. Como o demonstram também os juízos seculares; assim, um juiz secular tem a autoridade de julgar, que não tem a ciência do direito; outro, ao contrário, tem a ciência do direito, que não tem a autoridade de julgar. E como o ato de julgar, a que está o juiz obrigado pela autoridade assumida, mas não pela ciência que tem, sem ambos os elementos referidos não pode exercer-se bem, por isso a autoridade de julgar, que é a chave da ciência, não na podemos receber, sem a ciência, sob pena de pecado; mas, sem pecar, podemos receber a ciência, sem a autoridade de juiz.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O poder de consagrar implica só um ato de outro gênero. Por isso não faz parte do poder das chaves; nem se multiplica como esse poder, que abrange atos diversos. Embora seja uno quanto à essência do poder ou da autoridade, conforme se disse.
RESPOSTA À QUARTA, ─ A vontade de cada um de nós é livre. Por isso, não é preciso autoridade para querermos. Eis porque a vontade não é considerada chave.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Toda a Trindade, como uma pessoa, é a que perdoa os pecados. Por isso não é necessário que o sacerdote, ministro da Trindade, tenha três chaves. Sobretudo que a vontade, apropriada ao Espírito Santo, não exige uma chave, como se disse.