Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que os condenados não podem, com razão reta e deliberativa, querer não existir.
1. ─ Pois, Agostinho diz: Considera quão grande bem é a existência, que a querem tanto os santos, como os condenados. Ora, ter uma existência miserável é melhor que não a ter de nenhum modo.
2. Demais. ─ No mesmo lugar Agostinho argumenta da maneira seguinte. A pre-eleição supõe a eleição. Ora, a inexistência, não sendo nada e não tendo nem a aparência do bem, não pode ser objeto de eleição. Logo, os condenados não podem querer de preferência a inexistência à existência.
3. Demais. ─ O maior mal deve ser o mais evitado. Ora, inexistir é o mal máximo, pois, priva totalmente do bem, de modo que elimina todo ser. Logo, é preferível uma existência miserável à não-existência. Donde a mesma conclusão que antes.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Naqueles dias os homens buscarão a morte e a morte fugirá a eles.
2. Demais. ─ A miséria dos condenados sobrepuja todas as misérias deste mundo. Ora, há quem deseje a morte para fugir às misérias desta vida. Donde o dizer a Escritura: Ó morte, que boa é a tua sentença para um homem necessitado e que se acha falto de forças, para o de idade já decrépita e para o que esta cheio de cuidados, e para o desconfiado, que se vê de todo falto de sabedoria. Logo e com muito maior razão, os condenados podem desejar o não ser, com um desejo fundado na razão deliberativa.
SOLUÇÃO. ─ O não ser podemos considerá-lo à dupla luz ─ Em si mesmo e, então, não tendo nenhuma razão de bem, do qual é a privação pura, de nenhum modo é desejável. ─ Ou enquanto liberta de uma vida penosa ou miserável. E então assume o aspecto de bem, pois; é um bem-estar isento do mal, como diz o Filósofo. E neste sentido é melhor aos condenados não existir, que levar uma existência miserável. Donde aquilo do Evangelho: Melhor fosse ao tal homem não haver nascido. E aquele outro lugar da Escritura ─ Maldito seja o dia em que eu nasci, pondera a Glosa de Jerônimo: É melhor não existir que ter uma existência miserável. E, a esta luz, os condenados podem, pela razão deliberativa, preeleger a não existência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ As palavras de Agostinho significam que a inexistência não pode, em si mesma, ser objeto de eleição; senão só por acidente, quando põe termo à uma vida miserável. Quanto ao dito ─ todos os seres naturalmente desejam existir e viver ─ não devemos entendê-lo, ensina o Filósofo, de uma vida má, miserável e cheia de sofrimentos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O não-ser não pode constituir em si mesmo o objeto de uma eleição, senão só por acidente, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora a inexistência seja o máximo dos males por ser a privação do ser, é contudo um grande bem quando nos livra da miséria, o máximo dos males. E nesse sentido o não-ser pode constituir objeto de eleição.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que os condenados nunca poderão arrepender-se do mal que fizeram.
1. ─ Pois, como diz Bernardo, o condenado sempre quer a iniquidade que cometeu. Logo, nunca se arrependerá do pecado cometido.
2. Demais. ─ Querer não ter pecado é ter uma vontade boa. Ora, os condenados não terão nunca boa vontade. Logo, não quererão nunca ter pecado. Donde a mesma conclusão que antes.
3. Demais. ─ Segundo Damasceno, o que foi para os homens a morte foi para os anjos a queda. Ora, a vontade do anjo depois da queda ficou de tal modo inconvertível, que nunca mais poderá voltar da eleição com que pecou. Logo, nem os condenados poderão arrepender-se dos pecados cometidos.
4. Demais. ─ Maior será a maldade dos condenados no inferno que a dos pecadores neste mundo. Ora, certos pecadores neste mundo não se arrependem dos pecados cometidos ─ ou por cegueira da mente, como os heréticos; ou por obstinação, como os que se alegram depois de terem feito o mal e triunfam de prazer nas piores causas, no dizer da Escritura. Logo, também os condenados no inferno não se arrependerão dos pecados cometidos.
Mas, em contrário, a Escritura diz dos condenados: Dentro de si tocados de arrependimento.
2. Demais. ─ Conforme o Filósofo, os maus é que têm o coração cheio de arrependimento; pois, com o que se deleitam logo depois se contristam. Logo, os condenados, maus em sumo grau, serão os mais arrependidos.
SOLUÇÃO. ─ Podemos nos arrepender do pecado, considerado este em si mesmo; ou por acidente. Do pecado em si mesmo nos arrependemos quando como tal o abominamos. Acidentalmente porém quando o detestamos em razão de alguma circunstância que o acompanha, como a pena ou cousa semelhante. Ora, os maus não se arrependerão dos pecados em si mesmo considerado, porque têm a vontade fixada na malícia deles. Mas, se arrependerão acidentalmente, por sofrerem a pena que pelos pecados cometidos expiam.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os condenados querem a iniquidade, mas tem-lhe aversão à pena, E assim, se arrependem, por acidente, da iniquidade cometida.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Querer alguém não ter pecado, por causa da turpitude do pecado, é ter uma vontade boa. Mas essa não na terão os condenados.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Sem nenhuma aversão da vontade, podem os condenados se arrepender dos seus pecados; pois, o que lhes causa essa aversão não é o que neles antes desejaram, mas cousa diferente ─ a pena.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Os homens neste mundo, por mais obstinados que sejam, acidentalmente se arrependem dos seus pecados, quando por eles punidos. Pois, como diz Agostinho, vemos até mesmos os ferocíssimos dos animais se absterem, pelo temor das penas, dos mais intensos prazeres.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que nem toda vontade dos condenados é má.
1. ─ Pois, como diz Dionísio, os demônios desejam o que há de melhor ─ existir, viver e inteligir. Logo, como os condenados não estão em condição pior que os demônios, parece que também eles podem ter boa vontade.
2. Demais. ─ O mal, como diz Dionísio, é absolutamente involuntário. Logo, tudo quanto os condenados querem como bem real ou aparente o querem. Ora, a vontade em si mesma dirigida para o bem é boa. Logo, os condenados podem ter boa vontade.
3. Demais. ─ Certos condenados haverá que, quando viviam no mundo, conservaram certos hábitos virtuosos. Assim, os gentios, que tinham virtudes políticas. Ora, é dos hábitos virtuosos que procedem os atos meritórios da vontade. Logo, a vontade de certos condenados pode ser meritória.
Mas, em contrário. ─ A vontade obstinada só pode querer o mal. Ora, os condenados, como os demônios, serão obstinados. Logo, a vontade deles nunca poderá ser boa.
2 . Demais. ─ Assim está a vontade dos condenados para o mal, como a dos santos para o bem. Ora, a vontade dos santos nunca poderá ser má. Logo, nunca também os condenados poderão ter uma vontade boa.
SOLUÇÃO. ─ Podemos distinguir nos condenados uma dupla vontade: a deliberativa e a natural. ─ A natural não a têm eles de si mesmos, mas do autor da natureza, que nesta infundiu a inclinação chamada vontade natural. Ora, como nos condenados subsiste a natureza, poderão eles ter a boa vontade natural. ─ A vontade deliberativa porém eles a têm de si próprios, pela qual poderão inclinar o afeto para um ou outro objeto. E essa vontade deles não pode ser senão má. E isto pela completa aversão que têm do ─ fim último da vontade reta; nem pode vontade nenhuma ser boa senão em ordem a esse fim último. Por onde, embora queiram algum bem, não o querem contudo bem, de modo que a vontade se lhes pudesse chamar boa.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ As palavras de Dionísio se entendem da vontade natural, que é a inclinação da natureza para um bem. Essa inclinação natural porém lhes está corrompida pela malícia; pois, o bem que naturalmente desejam sob certas más circunstâncias o desejam.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O mal como tal não move a vontade, senão enquanto considerado bem. Ora, da própria malícia deles procede julgarem bom o mal. Razão pela qual lhes é má a vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O hábito das virtudes civis não subsiste na alma separada; porque estas virtudes só dão perfeição à vida civil, que não mais haverá depois de esta vida. Mas se perdurassem depois dela, os maus nunca os poriam em prática, por lh'o impedir a obstinação da mente.
O sétimo discute-se assim. ─ Parece que o fogo do inferno não está no interior da terra.
1. ─ Pois, do homem condenado diz a Escritura: Do mundo o transportará Deus. Logo, o fogo que punirá os condenados não está no interior da terra, mas fora dela.
2. Demais. ─ Nada de violento e acidental pode ser sempiterno. Ora, o fogo do inferno é sempiterno. Logo, não está lá por violência, mas naturalmente. Ora, no interior da terra o fogo não pode estar senão por violência. Logo, o fogo do inferno não está no interior da terra.
3. Demais. ─ No fogo do inferno serão atormentados todos os corpos dos condenados, depois do dia de juízo. Ora, esses corpos ocuparão lugar. Logo, colho será enorme a multidão dos condenados, porque infinito é o número dos estultos, será necessariamente um espaço máximo o que conterá o fogo eterno. Ora, não é admissível que haja no interior da terra uma tão grande concavidade, porque as suas partes são naturalmente levadas para o centro. Logo, o fogo do inferno não estará no interior da terra.
4. Demais. ─ A Escritura diz: pelas cousas em que alguém peca, por essas é também atormentado. Ora, os maus pecaram na terra. Logo, o fogo que os pune não deve estar no interior da terra.
Mas, em contrário, a Escritura: O inferno se viu lá em baixo todo turbado para te sair ao encontro. Logo, o fogo do inferno está debaixo dos nossos pés.
2. Demais. ─ Gregório diz: Não vejo o que obsta acreditarmos estar o inferno debaixo da terra.
3. Demais. ─ Aquilo da Escritura ─ Tu me lançaste no profundo até o coração do mar, diz a Glosa: Isto é, no inferno, correspondente à expressão do Evangelho ─ no coração da terra; porque, como o coração ocupa a parte central no corpo do animal, assim dizemos estar o inferno no centro da terra.
SOLUÇÃO. ─ Diz Agostinho, citado pelo Mestre: penso que ninguém sabe em que parte do mundo está o inferno, salvo quem obtiver revelação do Espírito divino. Por isso, Gregório, interrogado sobre essa questão, respondeu: Nesta matéria seria temeridade, que não ouso fazer qualquer afirmação categórica. Porque uns pensaram estar o inferno numa parte da superfície da terra; outros, no interior dela. Mas julga esta última opinião a mais provável, por duas razões. ─ Primeiro, pela etimologia mesma do nome: Assim, escreve: Se dissermos que o inferno é assim chamado por ocupar a parte inferior, o que é a terra para o céu isso mesmo deve ser o inferno para a terra. ─ Segundo, pelo que diz o Apocalipse: Ninguém podia, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, abrir o livro. Onde, a expressão ─ no céu ─ refere-se aos anjos; a expressão ─ na terra, aos que ainda vivem neste mundo; e a outra ─ debaixo da terra, as almas que estão no inferno.
E Agostinho também parece indicar duas razões que corroboram a opinião de estar o inferno no interior da terra. ─ A primeira é que, como as almas dos mortos pecaram pelo amor da carne, são tratadas como a carne morta, i. é, enterradas no solo. ─ A outra é que como está a gravidade para o corpo, assim a tristeza para o espírito, do qual a alegria é como a leveza para o corpo. Por onde, assim como, os corpos, se obedecerem à lei do seu peso, os mais graves ocuparão os lugares inferiores, assim, na ordem dos espíritos, os inferiores são os mais acabrunhados pela tristeza. E assim, como o lugar apropriado à felicidade dos eleitos é o céu empírio, assim, o lugar apropriado à tristeza dos condenados é o lugar ínfimo da terra. ─ Nem nos deve causar embaraço o que diz Agostinho no mesmo lugar: É crença ou suposição que o inferno está debaixo da terra. Porque o santo Doutor retratou-se desse dito quando escreveu: Eu deveria ter ensinado, antes, que o inferno está debaixo da terra, do que dar a razão por que crêem ou supõem que é esse o seu lugar.
Certos filósofos porém ensinaram que o inferno está localizado sob o globo terrestre, mas sobre a superfície da terra que nos é oposta. E este parece ter sido o sentir de Isidoro, quando disse: O sol e a lua permanecerão nos lugares onde foram criados, a fim de os ímpios, presa dos tormentos, não lhes gozarem da luz. Razão que seria nula se se colocasse o inferno debaixo da terra. Que sentido, porém, podemos dar a estas palavras já o dissemos. ─ Pitágoras, por seu lado, colocou o lugar das penas na esfera do fogo, que, na sua opinião, está no centro do universo, como o refere o Filósofo.
Mas, concorda melhor com o ensinamento da Escritura colocar o inferno debaixo da terra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essas palavras de Job ─ Do mundo o transportará Deus, deve entender-se do globo terrestre, i. é, deste mundo. É essa a exposição de Gregório, nestas palavras: É transportado fora do globo, quando, ao aparecer o soberano juiz, for retirado a este mundo, em que desvairadamente se glorificou. Nem se deve entender este globo pelo universo, como se o lugar das penas estivesse totalmente fora do universo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O fogo do inferno durará eternamente por disposição da justiça divina; embora, pela sua natureza, não possa nenhum elemento durar fora do seu lugar, sobretudo enquanto os seres estiverem sujeitos à lei da geração e da corrupção. E aí esse fogo desprenderá um calor intensíssimo, porque esse calor será no inferno concentrado de todos os lados, por causa do frio da terra que de todas as partes o rodeia.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O inferno nunca será tão pequeno que não baste a conter os corpos dos condenados; pois, ele está colocado entre as três causas insaciáveis. Nem é nenhum inconveniente haver no interior da terra, por obra do poder divino, uma concavidade bastante grande para conter o corpo de todos os condenados.
RESPOSTA À QUARTA. ─ O lugar da Escritura ─ Pelas cousas em que alguém peca, por essas é também atormentado, não se verifica necessariamente senão em relação aos principais instrumentos de pecado. Pois, é por pecar pela alma e pelo corpo que o homem será punido em ambos. Mas nenhuma necessidade há de ser o pecador punido no mesmo lugar em que pecou; pois, o lugar que ocupa o homem nesta vida é diferente daquele onde estão os condenados. ─ Ou devemos responder que esse passo se refere às penas com que somos punidos nesta vida, onde cada culpa tem a sua pena correspondente, pois, cada Clima que vive na desordem é para si mesma o seu castigo, como diz Agostinho.
O sexto discute-se assim. ─ Parece que o fogo do inferno não é da mesma espécie que o nosso fogo material.
1. ─ Pois, Agostinho diz, conforme o Mestre: Qual seja a natureza do fogo eterno, penso que ninguém sabe senão talvez aquele a quem o Espírito divino o revelar. Ora, a natureza do nosso fogo todos ou quase todos conhecem. Logo, o fogo do inferno não é da mesma espécie ou natureza que o nosso.
2. Demais. ─ Expondo aquilo de Job ─ Devorá-lo-á o fogo que não se acende, diz Gregório: O fogo corpóreo precisa, para manter-se, de alimentos materiais; e nem pode existir senão aceso, apagando-se se não for entretido. Pelo contrário, o fogo da geena, apesar de corpóreo e de queimar corporalmente os réprobos nele lançados, nem precisa ser aceso por cuidado humano nem de ser alimentado com lenha. Mas, uma vez criado, perdura inextinguível; nem necessita de ser acendido, nem o seu ardor se enfraquece. Logo, não tem a mesma natureza que o nosso fogo.
3. Demais. ─ O eterno e o corruptível não tem a mesma essência, pois, nem comunicam pelo mesmo gênero, segundo o Filósofo. Ora, o nosso fogo é corruptível, ao passo que o do inferno é eterno, conforme aquilo do Evangelho: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. Logo, não são da mesma natureza.
4. Demais. ─ E da natureza do nosso fogo luzir. Ora, o fogo do inferno não luz; por isso pergunta Job: Porventura a luz do ímpio não se apagará? Logo, não é da mesma natureza que o nosso.
Mas, em contrário. ─ Segundo o Filósofo, as águas são todas da mesma espécie. Logo e pela mesma razão, os fogos são todos da mesma espécie.
2. Demais. ─ A Escritura diz: pelas cousas em que alguém peca, por essas é também atormentado. Ora, os homens pecam pelas cousas sensíveis deste mundo. Logo, é justo sejam também por elas punidos.
SOLUÇÃO. ─ O fogo, por ser de todos os elementos o de maior virtude ativa, tem os outros corpos como a sua matéria, como diz Aristóteles. Daí os dois modos da sua existência: na sua matéria própria, quando está na sua esfera; e na matéria estranha, quer terrestre, como o carvão, quer aérea, como na chama. Ora, de qualquer modo que exista, é sempre especificamente o mesmo, pelo que lhe concerne à natureza; pode porém ser de espécie diferente, quanto aos corpos que lhe constituem a matéria. Por isso, a chama e o carvão diferem especificamente; assim como a madeira em brasa, do ferro em brasa. Nem importa tenha sido o fogo aceso por força de um agente externo, como se dá com o ferro, ou por um princípio intrínseco natural, como no caso do enxofre. ─ Ora, é manifesto que o fogo do inferno, pela sua natureza de fogo, é da mesma espécie que o nosso fogo. Se porém esse fogo existe em matéria própria sua ou, se estranha, de que natureza seja, isso nos é desconhecido. E assim, pode, materialmente considerado, diferir em espécie do nosso fogo. Mas tem certas propriedades diferentes das do nosso, pois, nem precisa de ser acendido, nem de ser alimentado com lenha. Essas diferenças porém não o constituem em espécie diferente, considerada a sua natureza de fogo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Agostinho se refere ao que o fogo do inferno tem de material, e não à sua natureza ígnea.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O nosso fogo alimenta-se de lenha e precisa ser acendido pelo homem, porque é artificial e violentamente introduzido em matéria estranha. Mas o fogo eterno não necessita de ser entretido, porque ou existe na sua matéria própria, ou em matéria estranha, mas não por violência, mas pela natureza e por um princípio intrínseco. Por isso não foi aceso pelo homem, mas por Deus, instituidor dessa natureza. Talo diz a Escritura: O assopro do Senhor, como uma torrente de enxofre é o que acende.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Os corpos dos condenados serão da mesma espécie que o são nesta vida, embora presentemente sejam corruptíveis, e então incorruptíveis por disposição da divina justiça e por causa de ter cessado o movimento do céu. Ora, o mesmo se dá com o fogo do inferno, pelo qual esses corpos serão punidos.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Luzir não é propriedade do fogo sob qualquer forma da sua existência. Assim, quando existe na sua matéria própria não luz; por isso não luz quando na sua esfera própria, como ensinam os filósofos. Do mesmo modo, quando existe em matéria estranha também não luz; assim quando na matéria opaca terrestre, como no enxofre. Também e semelhantemente, quando a sua claridade fica ofuscada por um fumo espesso. Por onde, o fato de o fogo do inferno não luzir não é argumento suficiente a provar que não seja da mesma espécie que o nosso.
O quinto discute-se assim. ─ Parece que o fogo do inferno, que cruciará os corpos dos condenados, não será um fogo corpóreo.
1. ─ Pois, diz Damasceno: O diabo, os demônios e o seu homem, o Anticristo, os ímpios e os pecadores serão precipitados no fogo eterno, não material, como o nosso, mas de natureza que Deus sabe. Ora, tudo o corpóreo é material. Logo, o fogo do inferno não será corpóreo.
2. Demais. ─ As almas dos condenados, separadas dos corpos, serão transportadas ao fogo do inferno. Ora, Agostinho diz: O lugar para onde a alma será transportada depois da morte, penso que é um lugar espiritual e não corpóreo. Logo, o fogo do inferno não será um fogo corpóreo .
3. Demais. ─ Um fogo corpóreo nada tem de análogo, no modo da sua ação, à culpa daquele que nele arde; mas antes age ao modo do úmido e do seco: pois, vemos que o mesmo fogo corpóreo tortura tanto o justo como o ímpio. Ao contrário, o fogo do inferno acompanha, no seu modo de supliciar ou de atuar o modo da culpa do punido. Por isso diz Gregório: certo, um só é o fogo da geena, mas não crucia do mesmo modo a todos os pecadores; pois, cada um tanto sentirá de pena quanto lh’o exige a culpa.
Mas, em contrário, diz ainda Gregório: Não duvido que o toga da geena seja um toga corpóreo, onde é certo que os corpos serão cruciados.
2. Demais. ─ A Escritura diz: Todo o universo pelejará da parte dele contra os insensatos. Ora, todo o universo não pelejaria contra os insensatos, se fossem punidos por uma pena só espiritual e não corporal. Logo, serão punidos por um fogo corpóreo.
SOLUÇÃO. ─ Sobre o fogo do inferno há muitas opiniões.
Assim, certos filósofos, como Avicena, não acreditando na ressurreição, crêem que só a alma é a punida, depois da morte. Mas como viam o absurdo de ser a alma, incorpórea, punida por um fogo corpóreo, negaram a natureza corpórea do fogo com que os maus são punidos, ensinando que devemos tomar em sentido metafórico todas as punições de natureza corpórea atribuídas à alma depois da morte. Pois, assim como o prazer e a felicidade das almas boas não consistirá em nada de corpóreo, mas num bem espiritual, que é a consecução do seu fim, assim também o suplício dos maus será somente espiritual e consistirá na tristeza de se verem separados do fim, de que têm um desejo natural imanente. Por onde, assim como todos os prazeres de natureza material atribuídos à alma depois da morte, como o repouso, o riso e outros devem ser entendidos em sentido metafórico, assim todas as torturas que supõem punição corpórea, como a de arderem ao fogo, de sofrerem odores fétidos e outras, devem ser entendidas no mesmo sentido. Pois, o prazer e o sofrimento espirituais, sendo incompreendidos da multidão é necessário lhe figurarmos mediante prazeres e penas materiais, para mover com eficácia os homens ao desejo ou ao temor. ─ Mas esse modo de explicar a punição não é suficiente porque a pena dos condenados não será só a do dano, correspondente à aversão que houve na culpa, mas também a do sentido, correspondente à conversão da culpa.
Por isso o próprio Avicena acrescenta outra explicação, dizendo que as almas dos maus depois da morte não serão punidas por meios materiais, mas por semelhanças. Assim, nos sonhos, por tais semelhanças, existentes na imaginação, pode-se nos afigurar que somos torturados por penas diversas. E também Agostinho parece admitir esse modo de punição, como o demonstrar o lugar supra-citado. ─ Mas isto não é admissível. Porque a imaginação é uma potência que se serve de um órgão corpóreo , por isso não é possível a alma separada do corpo ter, como a de quem sonha, essas visões imaginárias.
Razão por que ainda Avicena, para evitar esse inconveniente, disse que as almas separadas do corpo usam, como de órgão, de uma parte do corpo celeste, a que há de o corpo humano conformar-se para ter perfeição a alma racional, semelhante aos motores do corpo celeste. E nisto seguiu de certo modo a opinião dos antigos filósofos, que ensinavam a volta das almas aos corpos celestes a elas semelhantes. ─ Mas isto é absolutamente absurdo, segundo a doutrina do Filósofo. Porque a alma se serve de um determinado órgão corpóreo, como a arte de um determinado instrumento. Por isso não pode passar de um corpo para outro, como o ensina Pitágoras. ─ Quanto ao que diz Agostinho, responderemos mais adiante.
Seja, porém, o que for que se pense do fogo que crucia as almas separadas, quanto ao fogo, que atormentará os corpos dos condenados depois da ressurreição, devemos dizer que é um fogo corpóreo. Porque a um corpo não pode convenientemente adaptar-se senão uma pena corpórea. Donde a prova de Gregório que o fogo do inferno é de natureza corpórea, por isso mesmo que os réprobos, depois da ressurreição, nele serão precipitados. E também Agostinho, conforme o Mestre das Sentenças, declara manifestamente que o fogo atormentador dos corpos é um fogo corpóreo. Ora, é disto que agora se trata. ─ Quanto a saber como as almas dos condenados são punidas por esse fogo corpóreo, já o dissemos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Damasceno não nega, absolutamente falando, que o fogo do inferno seja material, mas que não o é como o é o nosso, por se distinguir deste por certas propriedades. ─ Ou devemos responder que o fogo do inferno não alterando materialmente os corpos, mas atuando sobre eles, para os punir por uma ação espiritual, por isso dizemos que não é material. Não quanto à sua substância, mas quanto ao efeito punitivo que exerce sobre os corpos e, muito mais ainda, sobre as almas.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ As palavras de Agostinho podem ser interpretadas do modo seguinte. Que não é corpóreo o lugar para onde as almas serão transportadas depois da morte no sentido em que elas aí não estarão de modo material, como um corpo está materialmente num lugar, mas do modo espiritual pelo qual os anjos ocupam lugar. ─ Ou devemos responder que Agostinho dá apenas uma opinião, sem nada decidir, como frequentemente faz nesses livros citados.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O fogo do inferno será um instrumento de punição da divina justiça. Ora, um instrumento age, não só por virtude própria e de um modo próprio, mas também por obra do agente principal e enquanto dirigido por ele . Por onde, embora o fogo não possa, por virtude própria, cruciar o pecador mais ou menos, conforme a gravidade do seu pecado, pode-o porém se tiver a sua ação modificada por ordem da divina justiça. Assim como também o fogo de uma fornalha pode ser modificado na sua ação por indústria do ferreiro, a fim de produzir o efeito que ele na sua arte se propõe.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que os condenados não são rodeados de trevas materiais.
1. - Pois, aquilo de Job ─ Mas aí habita um sempiterno horror ─ diz Gregório: Embora o fogo do inferno não traga com a sua luz nenhuma consolação, contudo luzirá para mais atormentar, fazendo, com a ilustração da sua chama, os réprobos verem os sequazes que consigo arrastaram. Logo, as trevas do inferno não serão materiais.
2. Demais. ─ Os condenados vêem a sua pena, o que lhes contribuirá para o aumento dela. Ora, nada podemos ver sem luz. Logo, as trevas do inferno não serão materiais.
3. Demais. ─ Os condenados no inferno terão o sentido da vista, depois de terem reassumido o corpo. Ora, esse sentido lhes seria inútil se nada vissem. Logo, como não é possível ver nada senão mediante a luz, parece que de nenhum modo estarão rodeados de trevas.
Mas, em contrário, o Evangelho: Atai-os de pés e mãos e lançai-os nas trevas exteriores. Ao que diz Gregório: Se o fogo do inferno desse luz, nunca o Evangelho diria que foram atirados nas trevas exteriores.
2. Demais. ─ Aquilo do salmista ─ Voz do Senhor, que divide a chama do fogo ─ diz Basílio: O poder de Deus fará com que a luz do fogo se lhe separe da sua virtude adustiva, de modo que a sua claridade redundará em alegria dos santos e a sua virtude adustiva em tormento dos condenados. Logo, os condenados estarão rodeados de trevas materiais.
Quanto ao mais, atinente à pena dos condenados, já tratamos antes.
SOLUÇÃO. ─ A disposição do inferno será tal como especialmente convém à miséria dos condenados. A luz, pois, e as trevas que nele houver serão as mais aptas para entreter essa miséria. Ora, a visão, em si mesma, nos é uma causa de prazer; pois, como diz Aristóteles, o sentido da vista é o mais amável, porque nos dá muitos conhecimentos. Mas, por acidente, pode a visão ser causa de sofrimento, como quando vemos o que nos pode ser nocivo ou repugnante à nossa vontade. Por isso o inferno deve ser um lugar disposto de modo aos condenados poderem ver, tanto na luz como nas trevas; de maneira que aí nada enxerguem à plena luz, mas apenas distingam, envolto numa certa umbrosidade, tudo o que lhes puder aumentar a aflição do coração. É, pois, absolutamente falando, a mansão das trevas, mas, por disposição divina, banhada de luz suficiente para fazer-lhe divisar o que lhes pode torturar a alma. E para isso suficientemente contribui a natural situação do lugar que o inferno ocupa, no meio da terra, onde não pode existir senão um fogo sombrio, turbido e como fumoso.
Outros porém explicam a causa dessas trevas pelo acúmulo em massa dos corpos dos condenados, cuja multidão encherá de tal modo o receptáculo do inferno, que expulsará daí todo o ar. Não haverá portanto nele nada de diáfano, susceptível de ser o sujeito da luz e das trevas, senão os olhos dos condenados, obscurecido por elas.
Donde se deduzem as respostas às objeções.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que o pranto que chorarão os condenados o será em sentido material.
1. ─ Pois, a Glosa diz que o pranto, com que o Senhor ameaça os réprobos, pode provar verdadeiramente a ressurreição dos corpos. O que não se daria se esse pranto fosse puramente espiritual.
2. Demais. ─ A tristeza causada pela pena corresponde ao prazer culposo gozado, conforme aquilo do Apocalípse: Quanto ela se tem glorificado e tem vivido em deleites tanto lhe dai de tormento e prantos. Ora, os pecadores se deleitaram culposamente interior e exteriormente. Logo, também hão de derramar prantos exteriores.
Mas, em contrário. ─ O pranto corporal consiste numa secreção de lágrimas. Ora, o corpo dos condenados não é susceptível de uma perpétua secreção, pois, não podem restaurar-se pela alimentação; e todo ser finito se consome se perde continuamente da sua natureza. Logo, os condenados não chorarão um pranto material.
SOLUÇÃO. ─ O pranto material implica duas cousas, ─ Uma, o derramamento de lágrimas. E, por aí, os condenados não no poderão chorar. Porque depois do dia do juízo, cessado o movimento do primeiro móvel, não mais haverá geração nem corrupção nem alteração corpórea. Ora, para se poderem derramar as lágrimas é necessária a geração do humor que nelas se resolve. Donde o não poderem os condenados chorar um pranto material. ─ Além disso, o pranto material supõe também uma certa comoção e turbação da cabeça e dos olhos. E, por este lado, os condenados poderão chorar, depois da ressurreição. Pois, os seus corpos serão atormentados, não só por causas externas, mas também internas, pela alteração agradável ou penosa da alma e nele redundante. E a esta luz, o pranto do corpo é uma prova da ressurreição e corresponde ao prazer culposo, gozado pela alma e pelo corpo.
Donde se deduzem as respostas às objeções.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que o verme que tortura os condenados é um verme material.
1. ─ Pois, a carne não pode ser atormentada por um verme espiritual. Ora, a carne dos condenados será atormentada por um verme, conforme a Escritura: Fará vir sobre as suas carnes o fogo e os bichos. E noutro lugar: A vingança da carne do ímpio será o toga e o bicho. Logo, esse verme será material.
2. Demais. ─ Agostinho diz: Ambos ─ fogo e verme ─ serão penas da carne. Donde a mesma conclusão anterior.
Mas, em contrário, Agostinho: o fogo inextinguível e o verme imperecível, que serão a pena dos maus, uns os entendem de um modo e outros, de outro. Uns dizem que serão ambos suplícios do corpo; outros, da alma; uns aplicam o fogo no seu sentido próprio ao corpo e, em sentido figurado, à alma, o verme ─ o que é mais aceitável.
SOLUÇÃO. ─ Depois do dia do juízo, no mundo renovado, não haverá mais nenhum animal, nem nenhum corpo misto além do homem. Porque de um lado tais seres ─ animais e corpos mistos ─ não são destinados à incorrupção de outro, depois do juízo não mais haverá geração nem corrupção. Por onde, o verme, suplício dos condenados, não deve ser entendido como um verme material, mas espiritual, como o remorso da consciência. Chamado verme por nascer da podridão do pecado e ser o suplício da alma, assim como o verme corpóreo nasce da podridão da matéria e faz sofrer com as suas punções.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A alma dos condenados a Escritura lhes chama carnes, por se terem em vida escravizado à carne. Ou também podemos dizer que o verme espiritual atormentará a carne, pela redundância no corpo dos sofrimentos da alma, tanto nesta vida como na futura.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Agostinho fala em sentido comparativo. Pois, não pretende afirmar que esse verme seja, absolutamente considerado, material; mas que deveríamos, antes, admitir verme e fogo entendidos em sentido material, do que os entender a ambos em sentido puramente espiritual. Porque, neste último caso, os condenados não sofreriam nenhuma pena corporal. Essa interpretação resulta clara a quem refletir no contexto do santo doutor.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que os condenados no inferno são atormentados só pela pena do fogo.
1. ─ Pois, o Evangelho, quando se refere à condenação deles, faz menção só do fogo: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno.
2. Demais. ─ Assim como a pena do purgatório é a merecida pelo pecado venial, assim a do inferno é a merecida pelo pecado mortal. Ora, a Escritura não nos diz que haja no purgatório outra pena além da do fogo. Assim, aquilo do Apóstolo: Qual seja a obra de cada um o fogo o provará. Logo, também no inferno não haverá outra pena além da do fogo.
3. Demais. ─ A variedade das penas causa um certo refrigério ao sofrimento; assim como quando alguém é transferido do calor para o frio. Ora, nenhum refrigério haverá para os condenados. Logo, não haverá no inferno, penas diversas, mas só a do fogo.
Mas, em contrário, a Escritura: O fogo, o enxofre e as tempestades são a parte que lhes toca.
2. Demais. ─ Diz ainda a Escritura: Passará das águas da neve para um excessivo calor.
SOLUÇÃO. ─ Segundo Basílio, na última purificação do mundo, haverá a separação dos elementos: o que for puro e nobre permanecerá na região superior, para glória dos bem-aventurados; e tudo o que for ignóbil e grosseiro será precipitado no inferno para pena dos condenados. De modo que, assim como toda criatura será para os santos, matéria de alegria, assim todas concorrerão para aumentar o tormento dos condenados, segundo aquilo da Escritura: Todo o universo pelejará da parte dele contra os insensatos. ─ E também entra no plano da divina justiça que, assim como, abandonando o bem único, pelo pecado, constituíram o seu fim nas causas materiais, que são muitas e varias, assim também sejam atormentados de muitos modos e por muitas causas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O fogo, pela sua grande virtude ativa, é capaz de nos causar os maiores suplícios. Por isso serve o seu nome para designar sofrimentos veementes, quaisquer que sejam.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O fim principal das penas do purgatório não é atormentar, mas purificar. Por isso devem ser causadas só pelo fogo, cuja virtude é essencialmente purificadora. Ora, as penas dos condenados não se ordenam a purificá-las. Não há, pois, símile.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Os condenados passarão de um veementíssimo calor para um frio veementíssimo sem gozarem com isso de nenhum refrigério. Porque o sofrimento dos condenados, provocado por agentes externos, não será como o que causam em nós, alterando a disposição natural, que encontrou em nosso corpo, de modo a reduzi-la a um estado proporcionado de equilíbrio, procurando-nos assim um refrigério: Mas será por ação espiritual, pela qual os sensíveis atuam sobre os sentidos, fazendo-se sentir pela impressão no órgão das suas formas, no seu ser espiritual, e não no material.