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Category: Louis JugnetConteúdo sindicalizado

Filósofo francês (1913-1973) que se defina assim: "católico, contra-revolucionário, de formação escolástica".

XI. De Ramsay a Franklin

XI

De Ramsay a Franklin

A presente lição versa dos autores de renome secundário, mas que fazem a ponte entre Fénelon, os “filósofos” do séc. XVIII e a Revolução. À sua maneira, são interessantíssimos.

RAMSAY, escocês (nascido em 1689), falso nobre, era filho de um pacato padeiro. “Apóstolo da verdade, que não pára de mentir sequer no leito de morte” (B. Fay), fizera os estudos na Universidade de Edimburgo, sendo por algum tempo preceptor de filhos de nobres. Espírito extremamente instável, fora anglicano, depois protestante relapso, a seguir indiferente e cético, novamente protestante, e enfim converteu-se (?) ao catolicismo. Conhecera Fénelon, que o influenciou muito em política, e encontrou-se mesmo com a célebre Madame Guyon. Recebido e condecorado pelo Regente, vem a ser preceptor do filho de Turenne, depois dos filhos de Tiago III. Fora a Oxford, onde o acolhem na Sociedade Real de Ciências e torna-se a cada dia mais influente. Escreve “Ensaio sobre política” (1719), “Viagem de Ciro” (1727), e trava conhecimento com Boulainvilliers (v. mais a frente). Maçom, tenta unir as Lojas. Apregoa a monarquia aristocrática e liberal (apego aos parlamentos). Em um plano de governo, planejado com o duque de Chevreuse, a ser proposto ao duque de Borgonha, fala dos Estados Gerais (clero, nobres, terceiro estado). O estudo de sua doutrina é proveitoso, se quisermos compreender a evolução das idéias e dos acontecimentos...

BOULAINVILLIERS (Conde de) (1658-1722) “astrólogo e profeta” (B. Fay). “Era um homem de valor e de espírito, bastante letrado”. (Saint-Simon). Dizem que era descendente de reis da Hungria. Parte da educação no oratório. Depois de ativa vida militar, retorna ao castelo de Saint-Sayre, na Normandia, onde vive solitário. Realiza trabalhos de genealogia, de astrologia (dizem que ele previa com precisão a morte de muitas grandes personagens), estuda História, sobretudo a da nobreza francesa. Conhece o duque de Noailles, Saint-Simon e Fénelon, que em certas ocasiões lhe pede conselhos.

Seu pensamento filosófico é um determinismo rígido: ele liga a crença de que tudo se rege pelos astros (“Histoire de l’apogée du Soleil”, “Pratique des règles de l’astronomie”) a noções científicas (“Abrégé de l’Histoire universelle” etc.). Deus não tem função nesse sistema, mas essa ausência estranha tem conseqüências políticas. A influência dos astros preside a hereditariedade biológica, conservando a pureza ou causando a mistura das raças (“Essai sur la noblesse de France”). Desta feita os francos eram nação livre, conquistadora, nobilíssima. Deles só se conhecem reis e comandantes eleitos. Nosso aristocrata anarquista exaspera-se contra os reis que vilipendiaram a bela ordem feudal, unindo a França – sobretudo Luís XI e Luís XIV. A mixórdia astrológica de Boulainvilliers rapidamente desmorona, mas o ódio aos Bourbons e ao absolutismo “monárquico”, o espírito escarninho, a hostilidade ao papel da Igreja, além da estapafúrdia explicação racista em que baseia a história da França, produziram vultosos efeitos ao serem manipulados por panfletários mais habilidosos. Após a morte de Boulainvilliers, sua obra é difundida por entre os círculos cabalísticos da Inglaterra e da Holanda. O duque de Vendôme, o de Noailles, o próprio rei (Luís XV), a rainha, se alimentavam dela...

MANDEVILLE (1670-1733) franco-holandês de Dordrecht, médico. Escreve obras obscenas, além da “Fábula das Abelhas”: não há livre-arbítrio, nem Deus, nem imortalidade – o prazer é o único real motor da atividade humana. A grande variedade dos desejos é o que nos distingue das feras. Eis porque trabalhamos (“os vícios privados são as benesses públicas”). Comparar com as idéias de Voltaire e de Holbach etc.

NEWTON é um cientista cujo nome é de todos conhecido. Pouco sabemos da atividade religiosa e política, do estudo dos profetas (livro de Daniel, Apocalipse). Membro do Parlamento, Presidente da Sociedade Real de Ciências de Londres, exerce influência mundial. Homem probo e honesto, que professava esquisita doutrina religiosa, luta contra a corrupção (a Inglaterra, admirada dos filósofos, ponto de partida dos ataques dirigidos ao Antigo Regime francês – acusado de cercear o imperialismo britânico – de fato era, àquela época, um país assolado por desigualdades econômicas e sociais brutais, em que os costumes estavam corrompidos, sobretudo na classe dirigente, onde medrava a ebriedade, a homossexualidade e os escândalos de toda natureza, enquanto a mortalidade infantil era a maior da Europa entre as classes pobres. V. a respeito do tema, nossa lição sobre Tomás Morus e sobre Montesquieu.). Houve aí o impulso ao livre- pensamento (Toland, Collins, Tindal).

Refugiado na Inglaterra, o pastor DESAGUILLIERS, de Rochelle, propaga o ideal maçônico. Especialista de valor (inventa um canhão de repetição que demais não é levado a sério), vulgariza as idéias de Newton. Associa a Bíblia, Pitágoras e o progresso das ciências. Há uma religião acima de todas as outras (tema maçônico).

FRANKLIN (1706-1790) de uma numerosa família de protestantes dissidentes, pessoas modestas (comerciantes de velas). O pai deixa a Inglaterra, aporta em Boston. Duas épocas distintas na vida de Benjamin Franklin. Começa por assumir a responsabilidade do jornal de seu irmão Jacques, o que lhe vale aborrecimentos. Vai a Filadélfia, reside entre os quakers, mais tolerantes. Editor – retorna à Inglaterra, onde leva vida de lúbrico. “Ensaio sobre a liberdade e a necessidade, o prazer e o sofrimento”. O homem, dizia, é simples mecanismo, em que não há virtudes nem vícios, resumindo-se tudo a reações automáticas: não existem imoralidade nem sanções do além-mundo (compare-se com a “filosofia” de Helvetius). Mas Benjamin conhece a tristeza, sofre tribulações, prova o sentimento de fracasso e angústia após grave doença (1727). Recupera-se já convertido, até místico à sua maneira adogmática (restando, ainda, certos traços de mau comportamento). Casa-se. Ingressa na maçonaria da Filadélfia, desempenhará o afamado papel na emancipação da América do Norte. Política liberal e parlamentar.

Quando de sua morte, descobrimos nele uma profissão de fé: há um Ser Supremo, mas a oração e a religião como tais não servem de nada. Seu pensamento exercerá notória influência nas gentes de 78.

Apesar da diversidade de temperamentos e doutrinas, na verdade, em todos esses autores existem traços comuns bem característicos: ódio à monarquia tradicional. Ódio sobretudo ao catolicismo; todas as religiões se comparam. O catolicismo, que sustenta obstinadamente o contrário, é o inimigo no 1, o obstáculo a ser derrubado. (Poderemos ler com grande proveito a sólida e valorosa obra de Charles Ledré sobre “La Franc- maçonnerie”, Fayard). Culto à ciência e à técnica, olhos voltados mais para os valores temporais e materiais que para a verdade desinteressada e transcendente. Crença no progresso através da difusão das “luzes” etc. Tal corrente, encarnada por Condorcet (“Essai d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain”), contribuirá fortemente para a Revolução Francesa, mas ultrapassará esta por assim dizer e inspirará a ideologia do séc. XIX e seus atuais rebentos.

NA FRANÇA

Não esquecer o Abbé de SAINT-PIERRE (1658-1743), cujo êxito fora extraordinário. Liberal, amante de constituições, regulamentos etc.. Para recordar: a idéia de academia política (que corresponde por sua vez à nossa Academia de Ciências Morais e Políticas, com características de... Conselho de Estado!). O princípio da seleção dos funcionários. A Polisinodia (pluralidade dos Conselhos) e, mais ainda, o “Projeto da Paz Perpétua”, começado em 1713, quando do Congresso de Utrecht, finalizado em 1718, publicado (como resumo) em 1729. Debatido pelos enciclopedistas, por Voltaire e Rousseau; escarnecido por Frederico II (“A coisa toda é realmente possível; só se esqueceu do consentimento da Europa e outras ninharias dessa ordem”.). Fundamento: uma “Sociedade Permanente”, compreendendo 24 potências signatárias de um “status quo” (como todos os utópicos, o abbé é detalhista: indica até a idade e o ordenado dos delegados!). Direito igual para potências muito desiguais (ex.: os estados italianos). Nada deverá mudar para que a paz seja salvaguardada. Fundo comum de assistência, renúncia a uso de força militar etc., com arbitragem; sanções exercidas por uma força internacional, em que termina por englobar turcos, tártaros etc.

Não esqueçamos de ARGENSON (1696-1764). “Considérations sur le gouvernement de la France”; liberal ou mesmo libertino, hostil à venalidade dos tributos, à influência da nobreza e, em geral, à desigualdade e... até ao casamento. 

 

X. Bossuet e Fenelon

X

Bossuet e Fénelon

I. BOSSUET

Para se entender o porquê dessa lição, convém primeiramente convencer- se da idéia de que nada se sabe sobre Bossuet se reduzimo-lo a um “escritor magnífico”, autor de “famosos sermões”, desinteressando-nos do conteúdo de seu pensamento. Nomeamo-lo de forma pitoresca como Bossuet “o último dos padres da Igreja” – o que é verdade, apesar das maledicências e baixezas que espalham sobre ele até hoje os admiradores tardios do quietismo e do jansenismo. “Bossuet”, dizia H. Bremond, pouco suspeito de lhe ser simpático, “é o catolicismo feito homem”. A fórmula parece-nos excelente, e para tomar as verdadeiras dimensões de nosso autor, bem faríamos remeter ao livro dificílimo de encontrar e cheio de méritos de Louis Dimier (“Bossuet”), e ao estudo de Massis em “Visage des idées” (Grasset), afora as generosas e benevolentes análises de Gustave Lanson (que todavia era incréu e irreligioso) em sua História da Literatura Francesa e em “Bossuet”. O equilíbrio do autor, a arte de composição, a extensão da erudição, a segurança da doutrina, apóiam-se sobre asneiras pseudo-teológicas, tais como as que enchem nossos dias...

As fontes do pensamento político de Bossuet são a Bíblia, Aristóteles (“Política”), os grandes doutores da Idade Média (o pensamento de Bossuet é um tomismo inato, algumas vezes revestido de elementos cartesianos) e da Contra-Reforma. Como todo autor cristão, Bossuet está firmemente persuadido de que a História tem um sentido (um significado e por isso um fim), mas que não podemos esgotá-la de todo por meio da razão que, quando muito, esclarecida e confirmada pela fé, poderá nos indicar as linhas gerais. Bossuet se lança em uma teologia da História que não é, a nosso ver, muito prudente ou discreta (tentação ademais bem freqüente entre os autores que desejam perscrutar os desígnios da Providência). Não daremos muita atenção a isso nessa lição, mas antes à sua teoria do governo.

Vimos que uma das idéias essenciais do cristianismo é a de que o homem é naturalmente sociável – aqui, é herdeira de Aristóteles –, à qual acrescenta a idéia sobrenatural da caridade. Isso não nos deve deixar esquecer o que há de brutal, de indisciplinado, de cruel no ser humano; ainda que o homem seja definido como um “animal racional”, sempre será preciso um espírito de lucidez e de sacrifício para obedecer à razão, lutando contra a inclinação e o peso do instinto, de sorte que o otimismo cristão (no terreno metafísico) acomode-se perfeitamente a um pessimismo existencial e histórico, no terreno do concreto e do acontecimento (quando os “pioneiros” neocristãos se esforçarão para distinguir as duas perspectivas? A tarefa ultrapassa em muito seu nível intelectual!...).

O Estado não tem papel coercitivo, ainda que saiba e possa constranger. Tem por finalidade assegurar a concórdia e a amizade entre os homens.

Todo poder vem de Deus (diz São Paulo, o que é tão-somente um corolário da idéia metafísica de Deus enquanto causa primeira de tudo o que existe). Nós dissemos isso mesmo: todo o poder; Lanson, entre outros, teve a argúcia de demonstrar que Bossuet nunca canonizou a idéia da “monarquia de direito divino” para todos os tempos e países.

Ele a defende para a França, por razões peculiáres, tanto religiosas quanto políticas. Contudo sabe muito bem que todo regime que respeite determinados valores fundamentais pode valer para um ou outro país, em tal ou tal época. Basta ler Bossuet para perceber isso1. O traço marcante de seu pensamento é recusa categórica do que se chamará a “pactomania”, obsessão juridicista que quer pôr um contrato à origem de todo grupo social, de toda autoridade, em prejuízo de uma espécie de idéia vitalista de sociedade, concebida como conjunto de instituições que se formam espontaneamente.

Tal disposição se manifestará sobretudo na polêmica com o pastor Jurieu (1632-1713). Diligente defensor do protestantismo (“cartas pastorais” etc.), é também um teórico democrata convicto que, diferente de Lutero e Calvino, vai até as últimas conseqüências dos princípios reformados: ódio ao princípio monárquico, crença na soberania popular, idéia de um pacto inicial etc., o que o faz radical continuador de Althusius e precursor de Rousseau. Exasperado pela oposição, em que já enxergava com clareza e lucidez uma perigosa escalada revolucionária, Bossuet não reconhecia sequer a legitimidade daquelas insurreições admitidas por São Tomás e Suarez. Isso não quer dizer que ele dá ao rei todos os direitos! A monarquia, tal como a concebe, não é totalitária, mas sim o perfeito contrapeso ao cesarismo totalitário da época moderna, já que:

  1. a)  Ela submete à mesma lei moral tanto o rei quanto o último dos súditos (a respeito da liberdade dos predicadores do antigo regime, remontemos aos sermões de Bourdaloue em Versalhes!), ao passo que os césares totalitários têm-se por criaturas superiores e crêem-se “para além do bem e do mal”;

  2. b)  Ela admite uma gama de organismos moderadores entre o Estado e o indivíduo, possuindo funcionamento autônomo (famílias, províncias, corporações, assembléias diversas – só Deus sabe quantas vezes eles enfrentaram o rei, durante o antigo regime!), enquanto as ditaduras modernas só admitem o indivíduo desarmado defronte o Estado todo- poderoso.

    II. FÊNELON

    Impossível conceber um homem tão diferente de Bossuet, seja física como moralmente. Temperamento cíclico, fugidio, respondendo às grosserias de Bossuet por punhaladas disfarçadas em sorrisos, fértil em intrigas, e tudo isso desempenhando o papel de homem de Deus... J. Guitton, em uma recente defesa de tese na Sorbonne, falava de um “budismo” nas idéias de Fénelon sobre a contemplação. Compreendemos porque a Igreja não se encantou delas...

Em política o mesmo contraste: Fénelon admitia com certeza a monarquia, mas a queria aristocrática, dando boa parte do poder aos maiorais, mas ao mesmo tempo havia algo do parlamentarismo em sentido moderno. Era uma espécie de feudal utópico, tipo bem comum à época, do qual voltaremos a falar. Nele há algo de Platão e Morus, mas com qualquer coisa de arrogante, que sabe à Fronda. R. Mousnier trata-o por “aristocrata retrógrado”.

Encontramos em Fénelon os temas cristãos sobre a paz e a justiça social, mas são, tanto nele como em outros que se lhe seguiram, apenas uma agitação vã... Destacamos o péssimo hábito de desaprovar seu país, de rebaixá-lo em face dos inimigos, desconhecendo as situações concretas em política. Apesar de as fortificações de Vauban provarem seu valor em circunstâncias gravíssimas, Fénelon propôs sua destruição devido ao alto custo... Desejava que nos entregássemos às mãos da Suiça, Valência, Douai, Cambrai, Namur, Charleroi, Luxemburgo, "a fim de que nos franqueassem as portas aos inimigos, caso faltássemos com a palavra" (v. Mousnier). Não vislumbra a ameaça germânica, o perigoso progresso da Inglaterra e da Holanda, instando-nos a restituir Besançon, Lille e Strasbourg, que são "injustas conquistas". Mousnier acrescenta: "Fénelon parece redigir os panfletos do inimigo" (Nesse tema, podemos vê-lo como precursor de certo tipo de "intelectual"). Humanista escrupuloso no que tange a seu país, também é derrotista por princípio. Só consegue ver a derrota à frente. Deve-se acabar com a guerra a todo o custo; concebia a França do séc. XVIII (em pleno apogeu, apesar das tribulações) como "velha máquina degringolada, que segue por inércia do antigo impulso dado, até que termine por se despedaçar ao primeiro impacto (sic)". Entendemos porque Mousnier pôde dizer que esse grande escritor fora um político lamentável, e porque Luís XIV, voltando os olhos aos efeitos desastrosos da agitação, chamara Fénelon de "o pedante mais fantasioso do Reino". 

 

  1. 1. Eis aqui uma boa ocasião para esclarecer aquela opinião tola e convencional, sempre repisada a partir de muitos pontos de vista, sobre a “monarquia de direito divino”. Em verdade: 

    a) Os teólogos e canonistas da Idade Média e da Contra-Reforma sempre repetiram que as várias formas de regime político são concebíveis e legítimas, apesar de a monarquia lhes parecer, de modo geral, a melhor, ou o menos pior se comparado aos outros sistemas; 

    b) Em sua quase totalidade, são hostis à concepção teocrática do Estado; o Rei-Pontífice por excelência é idéia típica dos cismáticos greco-russos, quiçá de seus sucedâneos laicos, em países protestantes como a Inglaterra;
    c) A divinização e a sacralização hiperbólica e excessiva do poder real é uma reminiscência da antiguidade pagã e do culto dos imperadores romanos, que é cara aos legisladores laicos, hostis ademais aos membros da Igreja. De modo que o que sobra da famosa “monarquia de direito divino” é um acordo genérico entre a Igreja e o Estado sob o Antigo Regime, conformado à doutrina das encíclicas pontificais e consagrado por meio de cerimônias religiosas. É só isso!

IX. Os juristas e a escola cartesiana

IX

Os juristas e a escola cartesiana

I. OS JURISTAS

ALTHUSIUS (Althusen) (1566-1617). Holandês. Calvinista. “Política methodice digesta”. Alguns lhe vêem como o fundador do direito público moderno. Soberania una e indivisível, tendo o povo por fonte. Ela é inalienável, retornando ao povo à morte do chefe. Na origem da sociedade há um contrato, tácito pelo menos (isso basta para mostrar-nos que os autores do séc. XVIII não criaram um pensamento totalmente novo...).

GROTIUS (Hugo de Groot) (1583-1645). Também holandês, mas luterano. De nossa parte, espantamo-nos do gigantesco papel que lhe conferem alguns filósofos do direito, já que seu pensamento é tacanho e, de uma certa forma, quase amoralista. Principal obra: “Sobre o direito de paz e de guerra” (1623).

Provavelmente De Groot crê em um direito natural anterior às convenções sociais (idéia que tampouco “inventara”, uma vez que lhe vinha dos doutores escolásticos da Idade Média e da Contra-Reforma...). Também crê na sociabilidade natural do homem (idéia que remonta aos filósofos gregos clássicos), mas de fato acantona-se por demais, à moda dos jurisconsultos, em raciocínios que se fundamentam no que se pratica, sem atinar se é bom ou mal, mesmo quando graves problemas de consciência estão em jogo. É desta forma que esse “cristão” admite sem reservas a escravidão, sobretudo na forma do “perpetuus famulatus pro alimentis”, através do direito de guerra – o que o pagão Aristóteles não considera válido, já que se inspira em legitimação diversa; mais ainda, dá aos beligerantes o direito de agir a seu talante, o que jamais admitiram teólogos e canonistas medievais, nem os da Contra-Reforma. (“Segundo Grotius, na guerra podemos assassinar, envenenar, passar os povos ao fio da espada sem distinção de idade ou sexo, deportar, saquear, queimar, violar as sepulturas, mentir, estuprar”. Bonthoul: “Les guerres”, Payot, 1951, p. 485).

PUFFENDORF (1632-1694), alemão (“Elementos de jurisprudência universal” e “Do direito da natureza e dos povos”). Sua obra consiste sobretudo em pôr uma ordem mais “airada” na massuda obra de Grotius. Espírito claro, metódico, honesto, mas pouco original. Aproxima-se de Hobbes nas origens da sociedade (egoísmo e instinto de conservação), embora admita certo altruísmo natural. Todavia conserva-lhe o papel dos valores morais em matéria de comportamento social e político.

II. A ESCOLA CARTESIANA

A princípio, o próprio DESCARTES. Muitos imaginam que Descartes, conforme o espírito de seu método, deveria professar um racionalismo político abstrato, o que lhe faria precursor dos enciclopedistas etc.. Nada mais falso: na “lógica interna” do cartesianismo, haveria (como na do luteranismo) um elemento revolucionário, é bem possível, mas suas intenções, não mais que as de Lutero, não estão no sentido da subversão política.

Muitos, para quem Descartes está por inteiro no “Discurso do Método”, ficarão surpresos em saber que com algumas reservas admira Maquiavel.

(“Devemos supor que os meios de que se serve o príncipe para se estabelecer são justos, como eu o creio que são quase todos, uma vez que os príncipes que os pratiquem estimam-nos como tais; pois a justiça entre soberanos tem limites diferentes dos entre particulares; parece que nessas refregas, Deus dá o direito àqueles a quem Ele dá a força... em face de seus inimigos, possuem permissão de fazer quase de tudo... entendo sob o nome de inimigos os que não são amigos ou aliados, daí se ter o direito de lhes fazer guerra quando isso for vantajoso e, ao começarem tornar-se suspeitos e temíveis, temos a licença de desconfiar deles”. Carta à princesa Elisabete, setembro de 1646). Os problemas envolvendo o governo não o atraem e, tanto por prudência humana quanto por falta de paixão pelo tema, prefere deixar a outrem o que toca à direção dos negócios públicos. Considerar Descartes o pai da Revolução Francesa é querer fazer todo o mundo de bobo.

MALEBRANCHE pouco se dá a esse tipo de problema. Em contrapartida, Espinosa e Leibniz dão-lhe ao conjunto da obra um lugar destacado.

ESPINOSA (Consultar elementos de história da filosofia). Textos básicos:

“Tratado Teológico-Político” (1645-1670) e; “Tratado Político” (1675-1677).

Espinosa admira Maquiavel (“O sagacíssimo Maquiavel”) e crê que há algumas verdades em Hobbes. Elogia os “empíricos” contra os teológicos e utópicos. As paixões humanas são fenômenos naturais como o frio, o calor, a chuva. O poder das coisas é o próprio poder de Deus, já que Deus e a natureza são uma só e mesma realidade (panteísmo). Temos pois tantos direitos quantos sejam nossos poderes. Nesse sentido os peixes grandes comem os pequeninos, e o homem pode agir à vontade, nos limites de suas forças, já que o homem não é livre, mas determinado.

Para tanto convém também considerar a lei da razão: “Por meio da lei da natureza, o homem obedece às leis gerais das coisas. Por meio da razão, obedece às leis de sua própria natureza”. Ora a razão nos ensina que o que há de mais útil ao homem é a sociedade; que a paz vale mais que a guerra etc. Mas como o homem é levado pelas paixões, a força é necessária para fazê-lo sentir-se tranqüilo. O estado deve usar de coação (embora Espinosa admita certa liberdade de consciência, manifestando-se mais no interior [dos espíritos] que na sociedade). Espinosa tenta ir mais além ao descrever- nos no “Tratado Político” detalhes de uma constituição que sabe deveras à utopia (no tema da soberania, dos impostos etc., deixando transparecer a simpatia pelo ideal democrático).

Em matéria de política, a influência desse pensamento é mais importante do que comumente acreditamos. Convém destacar que ele inspirou algumas teorias de Sieyès e da Constituição do ano VIII. No plano dos acontecimentos lemos com curiosidade o livro de Pierre Lafue sobre “Rohan contre le Roi” (Le Livre contemporain, 1959) a respeito da insensata aventura que fora a conspiração dita de Rohan contra Luís XIV, encorajada pelo holandês Van den Enden, correspondente de Espinosa, e auxiliado por algumas personagens singulares. (Queriam até mesmo proclamar um regime republicano).

LEIBNIZ. Um grande filósofo e cientista. Os mais avisados acham-no superior a Descartes em largueza de visão e riqueza de síntese – somos da mesma opinião. De fato um gênio universal; realiza descobertas em matemática e em física, e é um metafísico de escol; e para mais distanciar-se de Descartes, esse pensador protestante conhece a fundo a teologia e o estado da arte das controvérsias religiosas, nas quais se imiscui regularmente. É em suma um jurista de valor.

Severo em face de Hobbes e mesmo de Grotius, quer vincular as disciplinas jurídicas às normas morais e religiosas. Cf. seu “Méthode nouvelle pour apprendre et pour enseigner la jurisprudence” (1667) e demais tratados. 

VIII. Hobbes e Locke

VIII

Hobbes e Locke

O pensamento do séc. XVI situa-se em face da Reforma; o do séc. XVII, em face da Revolução Inglesa, inclusive na Europa continental (ver lição sobre Bossuet e Jurieu).

Duas doutrinas contrastantes.

I. HOBBES

Procedente de uma família de pregadores – Estuda em Oxford – Funções como preceptor – Relações com grandes homens do tempo (Francis Bacon, Gassendi etc.). Termina os dias na França, por causa do monarquismo. Obra a se lembrar: “De Cive” (1642) e “Leviatã” (1650).

- Sua filosofia básica é um empirismo, quiçá um materialismo radical, determinista e mecanicista. O método expositivo é dedutivo e racionalista (admiração por Euclides). A política é absolutista, mas sem motivação religiosa, prefigurando configurações totalitárias modernas, ainda mais por se aproximar das teorias monarquistas tradicionais. De resto a Igreja da Inglaterra e os partidários dos Stuart permaneceram indiferentes aos esforços de Hobbes, cuja obra viam mais como comprometedora que útil à sua causa.

Ponto de partida.

O homem não é naturalmente bom; poderíamos dizer que ele é de fato mau, mas não à maneira de Lutero ou Calvino, pois Hobbes não crê no pecado original. O homem é o lobo do homem. Não é naturalmente sociável (comparar com Aristóteles e São Tomás). No curioso vocabulário de Hobbes, convém distinguir o “direito natural” e a “lei natural”. O primeiro é a liberdade de se valer de seu poder como bem entender (destruir, matar etc.). É a “guerra de todos contra todos”. Felizmente há o extinto de conservação, mais forte que tudo, dínamo de nossas ações. Daí a “lei natural”: é a regra pela qual nos impedimos de prejudicar a outrem, em troca de os demais fazê-lo em nosso favor. De onde os acordos, os contratos, os pactos e, para fechar, a passagem para o estado social propriamente dito (comparar com o que dirá Rousseau, que é contra, mas de certa forma simétrico).

Em tal estado, a obrigação baseia-se nos interesses evidentes (utilitarismo bem britânico...).

Será preciso um poder fortíssimo para constranger o homem a viver em sociedade. Taine dirá que o homem é “um gorila feroz e lúbrico”. Está bem perto da idéia de Hobbes (que já era a de Maquiavel, mas este era republicano, como vimos). O estado será monárquico; Hobbes confere maior importância ao fato de que é um só o que governa (príncipe monárquico, no sentido etimológico, ou monocrático, como dizem alguns) que ao ambiente diversificado em qualidade e respeitoso das liberdades concretas, que serão defendidos por pessoas como Bossuet, Maistre e Maurras. Sua concepção da monarquia é totalitária, diríamos quase um hitlerismo antes do tempo, pelo menos em alguns traços. Não podemos erigi-lo como teórico-tipo da monarquia cristã e tradicional.

Toda insurreição é ilegítima. A distinção do bem e do mal vem da vida social, que está submetida às decisões do estado. Mesmo em matéria religiosa, o estado tem grande poderio, já que ela também concerne à vida social e que sozinho o soberano faz da multidão um corpo policiado. Convém proscrever o “papismo”, por causa de seu “suserano estrangeiro” (ainda uma obsessão bem inglesa...), e as seitas presbiterianas, de inspiração revolucionária. O rei pode e deve codificar um Credo mínimo.

O que acabamos de dizer é o bastante para mostrar as vantagens e os bperigos dessa concepção. Ademais ela possui, como tudo o que se baseia na pura força, os elementos de sua derrocada. É assim que para Hobbes o indivíduo afastado da sociedade habitual (por ex., um prisioneiro de guerra) desapega-se de toda obrigação frente a ela, podendo entrar (sempre por instinto de conservação) a serviço do vencedor. Mais uma vez, oscilamos do totalitarismo à anarquia, contra a qual ele concebera a teoria.

2. LOCKE

Família de mercadores. Estuda para ser padre. Depois, médico (sem conseguir o grau). Vida política agitada: fuga para a Holanda; emprego importante na administração. Vocação filosófica tardia. Interesse por questões monetárias (papel na fundação do Banco da Inglaterra). Em filosofia pura, um empirismo mais hesitante e menos radical que o de seus continuadores (Condillac, Hume). Para gravar: “Ensaio sobre a tolerância” e “Ensaio sobre o governo civil”, cuja influência será considerável.

Luta contra a teocracia anglicana, a propósito do “direito divino” do rei e do direito de impor uma religião à nação. Método basicamente racionalista e abstrato, apesar do pretenso empirismo.

O estado de natureza não é selvagem (ver Rousseau, a seguir). Há uma liberdade e igualdade natural dos homens, os quais são naturalmente sociáveis (oposição a Hobbes).

Locke admite a propriedade privada, mas sem grande entusiasmo. Sem rejeitar a posse, a herança e outros títulos tomados do direito clássico, acredita no trabalho como fundamento da apropriação de bens.

O pacto social assegura a garantia dos direitos fundamentais do homem, a soberania popular é inalienável, existe um direito permanente de resistência à opressão.

Também em Locke encontramos o cerne da famosa “separação dos poderes”: distinguimos o legislativo, o executivo e o confederativo (paz e guerra). Contudo põe o legislativo na posição mais baixa, tem a fobia do arbitrário e do “despotismo” (comparar com Montesquieu). Esperaríamos de um autor com tal espírito a rejeição a toda forma de escravidão, mas, no entanto, Locke não vai tão longe e admite a legitimidade do princípio contra os criminosos, ou ainda em caso de guerra. Igualmente seu tão gabado liberalismo religioso é mitigadíssimo, já que por ele o estado deveria proscrever o catolicismo (sempre por causa do “soberano estrangeiro”, que é o Papa...) e também o ateísmo (pois a idéia de Deus é a garantia da lei moral e da vida social). A influência de Locke foi considerável, não apenas – como cremos muitas vezes – por intermédio de Montesquieu, mas também de maneira direta, na Declaração Americana dos Direitos (“bill of right”) e ainda sobre as gentes de 89, na França, que liam Locke no original. 

 

VII. Maquiavelismo e utopia

VII

Maquiavelismo e utopia
 

Achamos interessante apresentar em paralelo dois elementos contrastantes:

- o primeiro, um “realismo amoralista”;
- o segundo, um “idealismo” por demais moralista (v. lição I)

I. MAQUIAVEL

Leva vida agitada, dividida entre a política militante, a libertinagem e o estudo... A seu modo, sua obra é capital, já que introduz o amoralismo em política – lição que infelizmente só provou do sucesso.

Ele é um intrigante, em que pese as convicções de cariz democrático (v. mais à frente), bajula torpemente os Médicis – que contudo o torturam... – a fim de lhes obter um emprego. Resultado: está novamente em maus lençóis no momento em que o partido republicano sobe ao poder...

Obra: As Comédias (“A Mandrágora” etc); Da Arte da Guerra; O Príncipe; Discurso sobre Tito Lívio. Resta dúvidas sobre a cronologia. Editou-se pela N.R.F (1954-1955) dois grossos volumes de correspondência.

Menoscaba a moral, a boa-fé, a eqüidade. O fim sempre justifica os meios. Pessoalmente é totalmente incrédulo: o cristianismo só lhe é visto como força política (desconhecimento específico dos valores religiosos e transcendentes). Como Nietzsche mais tarde, vê nele um fator de enfraquecimento e decadência da sociedade.

Sua obra foi apreciada de diversos modos. Coisa curiosa, a maioria de seus contemporâneos e sucessores imediatos tinham-no em alta estima, Descartes o admira com reservas, e Espinosa com poucas.

Outros tratam por refutá-lo, ainda que... por maquiavelismo, tal como o “honrado” Frederico da Prússia (e que, no entanto!...). Rousseau faz-lhe o elogio, julga o tratado do “Príncipe” “o livro dos republicanos”. Para Rousseau, Maquiavel, bom democrata no fundo do coração, desagradaria aos cidadãos devido à terrível descrição do tirano...

Para saber o que pensar disso, devemos esclarecer o pensamento de Maquiavel

  1. a)  sobre o melhor regime político;

  2. b)  sobre moral e política (v. lição I).

    Por não fazer tal distinção, cometem-se muitos contra-sensos a esse respeito.

a) O melhor regime – por convicção, Maquiavel é republicano, quiçá democrata. Ainda assim, ao conhecer a França, admira o regime capetino por seu equilíbrio ao mesmo tempo estável e flexível; continua um individualista, prefere os “estados populares” à monarquia. Faz apologia do povo, posto que este possa ser enganado. Ajuíza a oposição quase fatal entre o interesse do príncipe e o do país, e que um príncipe mal, sozinho, é pior que uma assembléia má. Se acrescentarmos que Maquiavel é um patriota italiano, desejoso em unificar seu país, criando um exército nacional, compreenderemos a indulgência dos muitos homens de estado revolucionários defronte ele.

b) Moral e política – o amoralismo (ou mesmo o imoralismo político: é a idéia

da maior fecundidade dos vícios que das virtudes) é uma constante em seu comportamento: seja encorajando (por oportunismo inescrupuloso) César Bórgia, duque de Valentinois, a supliciar seus inimigos, seja louvando a república romana, é sempre a negação da moral que o anima.

Isso nos bastaria para pôr a obra de Maquiavel – apesar da astúcia e das observações muitas vezes lúcidas e penetrantes – abaixo não tão-somente dos grandes doutores cristãos da Idade Média e da Contra-Reforma, mas também dos filósofos gregos clássicos, como Platão e Aristóteles, que sempre reivindicaram a primazia do bem moral acima da utilidade empírica e das razões de estado.

II. OS UTÓPICOS

A utopia consiste em construir a priori um tipo ideal de sociedade, sem dar- se conta da experiência concreta nem dos limites da natureza humana (v. Ruyer: “L’utopie et les utopies”). É uma corrente constante em filosofia política, de Platão aos socialistas do séc. XIX (Fourier, Cabet etc.), passando por Fénelon e o abbé de Saint-Pierre.

- Tomaremos somente dois exemplos :

1. Tomás MORE, ou Morus (1480-1535). Homem de estado, altas incumbências na Inglaterra (Grande Chanceler), humanista católico, pai de família, cheio de humor e bonomia, decapitado por ordem de Henrique VIII, por crime de catolicismo, e também por opor-se às exações financeiras do rei (canonizado em 1935, pela Igreja romana).

Principal obra: “A Utopia”. Ponto de partida concreto: enojado dos abusos sociais (tanto piores, visto que a Inglaterra já é palco de um impulso tecno- capitalista nascente, com o surgimento da indústria têxtil, do êxodo rural, da extraordinária miséria do povo, dos motins populares reprimidos com selvageria), Tomás More, através de engenhoso artifício, propõe a crítica às instituições de seu tempo e país. Os nomes do país (imaginário), do suserano, dos habitantes etc., são construídos para despistar o leitor.

Entrementes a crítica passa dos limites, torna-se mito, senão mistificação. O autor derrama-nos aos olhos o quadro de uma sociedade racionalizada por inteiro, por demais “o melhor dos mundos” para nos agradar de verdade. Uma mescla de costumes idílicos (que mais tarde encantarão as gentes do séc. XVIII) e de cupinzeiro, onde tudo, até ao cardápio das refeições e à música que se escuta ao comer, é regulamentado... A família subsiste, não a propriedade (dissociação rara na história do pensamento). Moral honesta, mas assaz utilitária. Religião natural, sem culto definido. (Por seu martírio, More atestaria todavia a profundidade e autenticidade de seu cristianismo). Coisa curiosa a cidade de Utopia era moralista como ela só “para uso interno”, e maquiavélica, ou quase isso, em face de seus vizinhos, de sorte que se poderia dizer que More é uma mistura de Platão e Maquiavel (Pierre Mesnard). A dimensão exata desse trabalho ainda se presta à discussão até hoje. Parece que não é nem puro artifício, nem qualquer coisa que o autor leve totalmente a sério.

2. CAMPANELLA (1568-1639) é um utópico, de “cabo a rabo”.

Monge dominicano calabrês, meio doido, agitado, desperdiçando anos de vida na prisão, filosofa contra a Escolástica, junto à linha do panpsiquismo italiano da Renascença. Após conceber a era de um Império Universal, do qual o Papa seria o chefe, escreve: “A Cidade do Sol” (da qual se aproximam os socialistas utópicos do séc. XIX.)

Fontes: Platão, a vida monástica e... a exuberante imaginação de Campanella...

Estado teocrático, não-popular (diferente de Morus). No cume o “Sol”, que é o “Metafísico”, pontífice supremo que possui a ciência universal e a pureza absoluta (?). Abaixo, três magistrados: “Poder” (Ministério da Defesa Nacional), “Amor” (espécie de engenheiro chefe da libido, ocupando-se de tudo que respeita à sexualidade, eugenia etc.), e “Sabedoria” (ciências, artes, educação). Supressão da família. Dirigismo econômico estrito. Controle de tudo através de um corpo de funcionários poderosíssimos. (Parece que com um pouquinho de sorte Campanella levaria seu projeto a efeito). 

 

VI. Reforma e Contra-reforma

VI

Reforma e Contra-Reforma

Ainda aqui, pensamento religioso mais que filosofia pura, mas de grande influência sobre o político e o social.

Há um aspecto minudente, que interessa sobretudo aos historiadores enquanto tais (Guerra dos Camponeses, a Liga etc.), e um aspecto principalmente doutrinal, que é o que nos importa.

I. A REFORMA

Lutero e Calvino não são de modo algum racionalistas ou precursores do livre pensamento. Eles combatem o catolicismo, como o fazem os humanistas renascentistas de inspiração pagã, mas por razão inversa: os segundos reprovam no catolicismo o sacrifício do homem e da natureza; os reformadores temem paganizar a religião e ceder demais à razão e à filosofia...

Para eles, a natureza humana está totalmente corrompida pelo pecado original; o homem é incapaz do bem, está salvo ou condenado a despeito de sua livre escolha (v. Lutero, “De servo arbitrio”); a razão é tão-somente serva do erro etc.

- A doutrina reformada engendra grandes mudanças no problema Estado- Igreja: resumindo, a Igreja é uma realidade interior e invisível, cujo aspecto jurídico e institucional subtrai-se quase totalmente. Mas já que ainda assim existem igrejas protestantes, quais serão suas relações com o poder temporal? Os reformadores oscilam entre duas tendências: uma consiste em associar intimamente o destino das igrejas ao dos príncipes temporais – sem os quais a Reforma não se poderia espraiar (ex.: Lutero na Alemanha) e que, por isso, se imiscuirão naquelas o tempo todo (Demais, se tudo o que é humano é podre, para que então se associar tanto a ele? Eles deixam César agir como bem quer.); a outra tendência é uma espécie de nova teocracia, de poderio de homens de Deus sobre a cidade, resultando em um verdadeiro clericalismo sem padres (Calvino em Genebra, regulamentando de modo despótico o mínimo detalhe da vida dos habitantes; o ambiente puritano na Inglaterra e na América dos sécs. XVII e XVIII).

- Por outro lado, podemos nos perguntar qual é a posição da Reforma diante do problema da democracia e do liberalismo. Como se diz amiúde, foram eles que o engendraram? Convém distinguir dois aspectos do problema:

  1. a)  A questão da intenção: Lutero não é de espírito democrata nem liberal, mas absolutista e autoritário. Quando da Guerra dos Camponeses, empolgara os príncipes à repressão brutal, negando aos oprimidos o direito da revolta (o que é um recuo, em comparação à teoria de São Tomás, p. ex.). Calvino tampouco é revolucionário social e político.

  2. b)  A questão da lógica interna: a doutrina reformada contém os germes da revolução política. Que é o individualismo liberal do séc. XVIII senão o livre exame aplicado por Lutero à interpretação da Bíblia, desapegado da tradição eclesiástica e estendido daí em diante à sociedade temporal?

Isso é tão verdadeiro que no século seguinte o pastor Jurieu, defensor do protestantismo, adversário de Bossuet, será precursor de Rousseau no plano político; por conseguinte, os adversários da Revolução Francesa, mesmo os incréus, serão anti-protestantes (cf. Augusto Comte, que chamará o protestantismo de “a sedição do indivíduo contra a espécie”).

- Um último ponto: autores de tendências tão díspares quanto Max Weber, Tawney e Santayana (sem dúvidas, o primeiro e o último são incréus) crêem que a Reforma cumpriu importante papel na emancipação e no desenvolvimento do capitalismo moderno: não que lhe seja a causa formal, mas porque sua concepção de vida religiosa, centrada não mais na contemplação, como na Idade Média, mas na ação eficaz, e a idéia do sucesso temporal dos eleitos (próxima às idéias do Antigo Testamento, onde a prosperidade cá embaixo é recompensa pelo serviço de Deus) contribuíram para se criar o clima favorável ao produtivismo mercantil e financeiro, [clima esse] que depois se disseminará. (v. sobre o tema os textos um tanto agros de Mousnier, in “Histoire génerale des civilisations”, Presses Universitaires, volume sobre o séc. XVI e XVII, sobretudo págs. 81 a 159).

II. A CONTRA-REFORMA

Ela está bem longe de ser apenas uma reação ao protestantismo. Nomeamo-la Contra-Reforma devido à ocasião histórica, mas de fato é um meticuloso trabalho de retomada de consciência, de organização, de transformação dos métodos de prédica e ensino etc.. Seu alcance será formidável, mesmo para além da religião e da política, influenciando até à arte. Dará nascimento à época (ou estilo) “barroco”, em sentido técnico e não pejorativo. Possibilitada pelo heróico esforço da Espanha (já que os reis da França, hesitando por algum tempo diante da Reforma, não se entusiasmaram pelo Concílio de Trento), a Contra-Reforma contribuíra por sua vez para inspirar e desenvolver a civilização espanhola do “Século de Ouro”, de onde a riqueza intelectual, religiosa, literária e pictórica desta – um grande esplendor.

Todavia nossa apresentação desse assunto será mais breve que a da Reforma, porque no fim das contas trata-se apenas do aprofundamento e expansão do catolicismo tradicional, anteriormente considerado.

Alguns grandes nomes:

- Francisco de VITÓRIA, dominicano espanhol (1480-1546), humanista de caráter, tomista de doutrina. Ocupa-se deveras dos problemas morais suscitados pela colonização (tratado “De Indis”). Primeiro devido ao espírito independente, entra em conflito com Carlos V; depois, feito por este conselheiro para assuntos americanos1. Interessa-se igualmente por Direito Internacional, do qual ele e sua escola (Escola de Salamanca) são de fato os fundadores.

- BELARMINO (canonizado em 1935). Italiano, teólogo e homem de ação (Núncio na França). Tradicionalíssimo, mas de espírito independente em várias circunstâncias críticas (apoio dado a Henrique IV, o caso com os teólogos de Veneza etc.).

- E sobretudo Francisco SUAREZ, jesuíta, espanhol de Granada (1548- 1612), cujas obras como teólogo, filósofo e canonista eram tão importantes que no séc. XVIII ainda eram utilizadas em filosofia, mesmo nas universidades protestantes da Alemanha!...

Seus princípios fundamentais baseiam-se na Escolástica clássica, embora a doutrina afaste-se do tomismo em pontos cruciais (sobretudo em metafísica). Também construíra uma teoria do poder, do consentimento etc., que sem ser democrática no sentido moderno – longe disso – está mais próxima dessa última que a de São Tomás, quando se refere ao consentimento popular na legitimidade do poder político. Suas concepções jurídicas conheceram grande sucesso, mesmo para além dos meios católicos (cf. seu tratado “De legibus”). 

 

  1. 1. A obra da Espanha fora bastamente caluniada (“a lenda negra”) pelos autores protestantes, sobretudo ingleses, pelos enciclopedistas e pelos historiadores revolucionários do séc. XIX. Para arrumar um pouco as coisas, v. por ex. Carlos Peyrera: “L’oeuvre de l’Espanhe en Amérique Latine” (Presses universitaires).

V. A Idade Média

V
A Idade Média

NOTA PRELIMINAR

Existem períodos da História mais desconhecidos e caluniados que outros. A Idade Média é o melhor exemplo disso. Desprezada pelo Renascimento e pela Reforma, incompreendida pelo séc. XVII, odiada pelo séc. XVIII devido ao seu catolicismo e monarquismo resolutos, espezinhado pelo materialismo cientificista e pela ideologia revolucionária do séc. XIX, ela fora descoberta gradualmente pelos mestres de História Medieval, na França e no exterior; mas, infelizmente, para o grande público, ela só evoca as imagens de Epinal, de “Notre-Dame de Paris” (de Victor Hugo), um panorama com suplícios, empestados, feiticeiros e monges ignaros.

Os manuais universitários de filosofia perfazem o pensamento medieval, ao qual muitos especialistas atuais consagram trabalhos em poucas linhas peremptórias, o que prova sobretudo que os autores ignoram a escolástica em tudo. (Para esclarecimentos, poderemos ler o livro pequeno e esclarecedor de Paul Vignaux, professor da Sorbonne, sobre “Le Pensée au Moyen age”, (Armand Colin), e percorrer (pelo menos) “la philosophie au Moyen age”, de Etienne Gilson (Payot) [“A Filosofia na Idade Média”, em português, ed. Martins Fontes, 1995]).

De fato a Idade Média é um período longo (de sete a oito séculos!), que conheceu toda uma evolução interna, e que engloba diversas correntes contrastantes; vemos aí uma sucessão de divergências religiosas (v. o Catarismo, por ex.), de místicos, de cientistas (mais do que poderíamos crer: Gerbet d’Aurillac, Papa sob o nome de Silvestre II; Roger Bacon, Nicolas Oresme etc.), de filósofos, de políticos. Encontramos pessoas que querem dar ao Papa todo o poder, mesmo o temporal, mas também “laicos” ao estilo moderno, divinizando o poder civil; aqueles que são hostis à Igreja, devido à crueza da justiça criminal e às superstições da época, esquecem facilmente que a Idade Média é a continuação do mundo antigo, e que ela está sempre em contenda com este, trabalhando por aniquilá-lo, em proveito dos valores cristãos.

- Não podemos esboçar aqui senão algumas perspectivas, um sumário, do pensamento tomista (de São Tomás de Aquino), que fora tão importante em sua grandeza que inspira, até aos dias de hoje, uma vigorosa corrente doutrinal1.

Nascido em 1225, no reino de Nápoles, de casta nobre, Tomás de Aquino arrostou a família para seguir a vocação religiosa. Aluno de Alberto o Grande, outro grande pensador dominicano, logo ilustraria as maiores universidades européias, de maneira especial a de Paris. Morre em 1274. É o modelo do pensador católico, glorificado em inúmeros documentos pontificais, dos quais alguns são recentes.

Os princípios de sua política encontram-se na segunda parte da “Suma Teológica”, no (mui livre) comentário sobre a Política de Aristóteles, e no pequeno Tratado sobre o Governo dos Príncipes dirigido ao Rei do Chipre (uma de suas partes é debitada a um seu discípulo). Só podemos oferecer aqui breve esboço de alguns temas relevantes.

Ainda que fosse imbuído de inspiração religiosa e moral, a política tomista não é um moralismo estreito, no sentido que definimos na primeira lição.

O homem é naturalmente sociável (como para Aristóteles, mas com algo a mais: a noção cristã de caridade). São Tomás repugna a atitude individualista, forma larval da anarquia, mas não é totalitário, óbvio. Entretanto, sua doutrina também não é um “personalismo” (equívoco de Maritain a esse respeito, notado sobretudo por autores canadenses, espanhóis e italianos).

Em São Tomás, a idéia de Lei cumpre um papel de destaque, o que explica a forte influência que exerce até aos dias de hoje em todas as espécies de juristas. Há uma lei eterna, fundada em Deus; uma lei natural (escala de valores, tornando nossos atos intrinsecamente bons ou maus, independente de convenções sociais); e uma lei positiva, que varia segundo os lugares e os países. São Tomás não professa o relativismo historicista de muitos pensadores, nem o racionalismo de tipo supra-temporal e abstratista, à moda de Rousseau: tem em grande consideração a diversidade das civilizações.

Isso explica mormente a teoria dos diferentes regimes políticos. Se ele considera a monarquia como o regime menos imperfeito, por causa da unidade e da continuidade que assegura ao poder, sem contudo sacrificar as diversidades legítimas, como ocorre com a tirania ditatorial – não pretende, por outro lado, que ela convenha de modo indistinto a qualquer país e época. O papel que outorga ao consentimento popular dá lugar a divergências de interpretação, até mesmo a contra-sensos. Alguns, tais como Gilson, ao usar da fórmula “alicujus vicem gerentis multitudinis”, impelem- no à democracia em sentido moderno. Outros o levam para um sentido maurrasiano. A bem dizer sua posição não coincide com nenhuma dessas visões, se bem que seja mais próxima da segunda que da primeira.

São Tomás admite a sedição contra a opressão, quando todos os outros meios de se fazer justiça fracassaram e a tirania é mesmo intolerável desde que haja real oportunidade de sucesso e não arrisque, ao se rebelar, trazer maiores males que os que poderiam sofrer.

No caso das relações entre poder temporal e espiritual, formula princípios que se tornarão cada vez mais, de modo assumido, a doutrina oficial da Igreja católica. É a dita teoria do “poder indireto”: o temporal é soberano em sua própria ordem (São Tomás repugna a teocracia, que obcecara certos canonistas e teólogos), mas subordinado ao espiritual no que tem de moral e religioso. (Rejeitar essa idéia é ademais professar o maquiavelismo ou o amoralismo político. Provamos de suas conseqüências desde há alguns séculos!).

- Dever-se-ia falar também de sua teoria da justiça, em matéria individual e coletiva. São Tomás diz por exemplo que só podemos exigir uma vida virtuosa se dermos às pessoas meios de levar uma vida material decente.

Concluímos com a frase de um jurista, o qual está longe de ser tomista: “apesar de se darem novas formas às expressões dos [velhos] problemas, os filósofos do direito [ainda] não puderam resolver as questões fundamentais apresentadas por São Tomás para além dos limites assinalados por ele – tratem das relações da moral e do direito, do direito de rebelião ou de liberdade individual, todos os pensadores são obrigados a antes solucionar, seja total ou parcialmente, os problemas cujos elementos São Tomás enunciara” (Brimo, “Pascal et le Droit”, Sirey). 

 

  1. 1. Perceberão isso ao ler, no nosso “Pour connaître saint Thomas d’Aquin” (Bordas), o apêndice II intitulado “A escola tomista através das épocas” (pp. 245-252). A influência de São Tomás fez Bertrand Russel, filósofo e cientista (muito irreligioso), dizer: “Em 1945, a influência de São Tomás é mais poderosa que a de Hegel”. É necessário vislumbrar o panorama mundial do pensamento, e não se mesmerizar em um ou outro meio intelectual restrito – árvore que nos esconde a floresta.

IV. O Cristianismo antigo

IV

O cristianismo antigo

Em sentido estrito, o cristianismo não é filosofia, mas um sistema de mundo, cuja influência ultrapassou em muito a de todas as doutrinas filosóficas.

Urge-nos falar dele.

Seu significado essencial, sua missão principal, é ensinar ao homem o caminho da salvação espiritual, e não aperfeiçoar diretamente ou muito menos reedificar por completo a estrutura temporal. Hoje em dia alguns deturpam o cristianismo deveras ao fazer-lhe simples meio de o homem ser feliz cá embaixo. Sem dúvida o cristianismo não se desinteressa pelo homem de carne e osso, que vive no tempo, mas olha para além da terra. Seria mutilá-lo reduzi-lo a uma moral vaga. Antes de tudo, é uma doutrina cuja moral é-lhe somente o corolário ou condição de realização. (Daí a importância extrema das questões de dogma, das quais se desinteressam por completo muitos dos cristãos “militantes” ou “engajados”). Não se deve duvidar de que no curso da história há uma tomada de consciência cada vez mais explícita do conteúdo das crenças – mas esta preocupação doutrinal sente-se desde o Evangelho, e mais ainda em São Paulo.

Ademais é preciso ser doido para enxergar no Evangelho um apelo à Revolução: o Cristo vivera em uma sociedade patriarcal, de grandes injustiças e, além disso, em um país ocupado. Ora ele jamais abordara esse duplo problema diretamente. Julga os homens segundo a virtude de cada um e não segundo a raça ou a classe, para as quais não dá importância. (Uma leitura honesta e calma do Evangelho basta para confirmá-lo). Toda a lengalenga sobre o “socialismo”, o “comunismo” ou o “anarquismo” de Jesus pertence à ordem da mistificação.

No entanto o cristianismo não abandona o mundo às forças da violência e da injustiça. Seu grande ensinamento é a Caridade, em sentido forte (sobrenatural, teologal): amor de Deus e do próximo na qualidade de filho de Deus. Trás à lembrança a existência da justiça, que é por sua vez individual e social. Embora não se misture com a política, não é todavia compatível com qualquer doutrina ou instituição: não se pode ser nazi e cristão ao mesmo tempo (nem de resto ser comunista e cristão. Retomaremos o tema nas lições sobre o marxismo).

Sobre a Caridade, v. São Paulo, 1a Epístola aos Coríntios, c. XIII. O cristianismo acarretou, num prazo mais ou menos longo, conseqüências político-sociais consideráveis.

- Vejamos por exemplo o caso da escravidão: o cristianismo antigo não eleva contra ela nenhuma condenação teórica, e não convida os escravos à rebelião violenta (isso nos espanta e escandaliza, e com razão!). Mas ao mesmo tempo exorta os mestres à bondade em face dos escravos, e os escravos a uma obediência digna. (v. São Paulo, Epístola aos Efésios, 6, 5,9; Epístola a Timóteo, 6, 1,2; Epístola a Filêmon; 1a Epístola de São Pedro, 11, 18-20). É que, já que ele professa a unidade da natureza e da remissão de todos os homens (Epístola aos Colossensses, 3, 2), torna logicamente inevitável a exploração do homem pelo homem, o desprezo racial etc., mas os que vêm a ser culpáveis de tais faltas são infiéis ao cristianismo. Havia aí um fermento de grande eficácia concreta.

A imaginação não nos basta para conceber o horror da escravidão na antiga civilização pagã (v. os historiadores desse tema). Os pensadores da época não viam nisso grande problema, sobretudo os romanos, que se adaptaram muito bem a ela (v. Cícero, Horácio, Ulpiano etc.).

No culto, mesclando patrícios e plebeus, homens livres e escravos, admitindo estes às ordens sagradas, a Igreja nascente corta os preconceitos mais enraizados.

Por outro lado o cristianismo inspira continuamente medidas concretas para melhorar a sorte do escravo. Os cristãos alforriaram verdadeiras massas de homens. (Um tal Hermes liberou 1250, no dia de Páscoa; Cromásius, 1400; Melânius o Jovem, 4000). Grande parte dos bens da Igreja consagra- se ao resgate dos escravos. Os imperadores cristãos, após a conversão de Constantino, abrandaram a legislação nesse domínio etc., de forma que a instituição enfraqueceu-se por si, foi-se dissolvendo. A escravidão vai se transformar em servidão. Ora só os ignorantes incondicionais podem confundir os dois institutos. O segundo comporta direitos reais, garantias canônicas no plano familiar (interdição de separar membros da mesma família etc.). Há ademais tipos de servidão cada vez mais atenuados: os especialistas em história medieval ensinam-nos que a servidão, contrário a erro tão difundido, quase que desaparece no curso da Idade Média, tanto mais que os Capetos favoreciam com todas as suas forças as desobrigas (v. atos de manumissão de Felipe o Belo, de Charles de Valois, de Luís o Cabeçudo, e de Felipe V. V. a ordenação de Luís o Cabeçudo frente ao bailo de Senlis: “Conforme o direito natural, cada qual nasce franco (livre)”...)

Haveria outras coisas para se mostrar quanto ao tema da influência político- social do cristianismo: o problema das relações entre poder temporal e espiritual, por exemplo. Nós o retomaremos nas lições seguintes. 

 

III. A política de Aristóteles

III

A política de Aristóteles

ARISTÓTELES (384-322). Aluno de Platão, depois filósofo independente. Preceptor e conselheiro de Alexandre da Macedônia, fundador de uma escola (o “Liceu”). Obra vastíssima, gênio notável, constantemente esquecido do ensino universitário, por razões diversas, mas admirado também por diversas pessoas, de Hegel (“Aristóteles é um dos mais ricos, mais profundos gênios que hão aparecido no mundo: um homem a que nenhum outro, em nenhum tempo, se poderia comparar... de todos os filósofos, é aquele com que fomos mais injustos”) até Darwin (“Lineu e Cuvier foram minhas duas divindades, mas são simples colegiais em comparação a Aristóteles”). É ao pensar sua filosofia (a qual não aceitava) que Bérgson fala da “metafísica natural da inteligência humana”.

- O essencial de sua obra política está circunscrito nos limites d’“A Política”, construída solidamente, baseada no conhecimento preciso dos dados concretos (diversidade dos regimes segundo a localização, o gênero de vida dos habitantes etc., fazendo que a “teoria dos climas”, a qual se atribuí a Montesquieu, encontre-se já explícita em Aristóteles e seus continuadores escolásticos!).

- A atitude geral [da obra] é a recusa simultânea do empirismo político puro à maneira dos sofistas, e do racionalismo utópico de Platão (tal está ligado a uma teoria do conhecimento que não convém analisar aqui. V. Thonnard, “Histoire de la Philosophie”, Desclée et Cie). Crença na natureza humana essencialmente estável e idêntica a si (id. Comte, Maurras, Camus, contra Hegel, Marx, Sartre), diversificando-se na variedade das instituições (contrasta com Rousseau e com o racionalismo abstrato do séc. XVIII). Preocupações morais profundas, mas não “moralismo” de tipo puritano.

- Ponto de partida: o homem é social por natureza, ou sociável, não por seu aspecto gregário, mas pela parte racional (a civilização é escolha coletiva). Não se deve procurar a origem da sociedade partindo do constrangimento, nem de uma espécie de convenção jurídica. É fato da natureza, mas da natureza racional, espiritual.

A família é a forma fundamental da sociedade (antiplatonismo). A propriedade é legítima, e indispensável à expansão da família. (Difere totalmente do capitalismo de tipo liberal e tecnicista, claro!) A mulher é subordinada ao homem, dentro do grupo familiar, de maneira “política” (quer dizer, humana, como pessoa) e não “despótica”. O Estado assume a responsabilidade efetiva na educação das crianças (tendência estatista comum aos gregos, tal como certa eugenia, bastante inumana). O Estado governa uma como federação de cidades, cada qual com cerca de 100.000 habitantes, no máximo.

O fim da sociedade não é o enriquecimento material; Aristóteles não aprecia o imperialismo, a política de expansão; desconfia dos argentários e da especulação monetária; detesta a guerra; teme a subversão em países onde os contrastes são demasiado fortes entre os vários meios sociais, e onde não existe, ou praticamente não há, classes médias. Admite a escravidão, como quase todos os autores antigos, mas não a fundamenta no direito de guerra (sendo aí mais humano que os jurisconsultos “cristãos”, como Grotius). Justifica-a antes pelas desigualdades naturais e necessidades práticas. Em uma curiosa fórmula, diz que a escravidão seria inútil “no dia em que as lançadeiras (de tecer) fiassem por si próprias”.

- Essencialmente, a classificação dos diferentes regimes políticos é a mesma da de Platão. Aristóteles não se consagra a nenhum deles em particular, mas prefere um “regime misto”, mescla que compreende elementos de democracia, de aristocracia e de monarquia, dosados de formas várias conforme os países e as épocas (realismo político).

Compreendemos que esse pensamento, tão equilibrado e comedido, imbui- se de grande proveito – mesmo para um homem de nossos dias. 

 

II. A política de Platão

II

A política de Platão

Trata-se aqui do “binômio” SÓCRATES-PLATÃO, visto que não podemos distinguir, com precisão histórica, o que vem de um e de outro.

Motivo do interesse pelos gregos: no Oriente (exceto na China), não há filosofia política propriamente dita, mas uma religião com repercussões sociais. V. Maritain, a respeito dos gregos – “povo eleito pela razão” – que cumpriam, no plano da [razão], o papel de Israel no plano da religião.

Efervescência na Grécia do séc. V: dissolução da religião, dos costumes, da ciência, das instituições. Daí o ceticismo e a sofística. Papel negativo dos sofistas (apesar de Hegel e Nietzsche, que os defendem) – destruição da idéia de verdade, da distinção do bem e do mal e de todos os valores sociais.

PLATÃO (429-348), de casta principesca, inclinado à poesia: renuncia-a. Viaja e compara. Tentativa de ação política, retumbante fracasso. Filosofia pura, no final (“Academia”).

Para ele, existe um verdadeiro interesse político, guiado por preocupações morais que supunham a reforma dos espíritos. Ocupar-se-á de convencer sucessivamente cidades inimigas.

Gradação de uma política de tipo utópica (a mais célebre) para uma visão mais realista. “A República” – “O Político” – “As Leis”.

- “A República”: divisão tripartite da alma (pensamento, coração, desejo), regrada por virtudes fundamentais. Projeção desse esquema sobre a sociedade; três escalões sociais: filósofos, guerreiros, artesãos (os escravos, que não eram cidadãos, não entravam na classificação). Os filósofos não são os “puros intelectos” que opomos tão amiúde frente aos homens de ação. Os guerreiros não são abrutalhados, mas recebem vigorosa educação. Não diz respeito a castas fechadas, como no bramanismo. Há ascensão e queda de homens, de um escalão para outro, segundo suas qualidades. As mulheres são iguais aos homens e podem aceder às funções superiores. Não existe propriedade individual (Platão é coletivista), nem família (o Estado regula questões tais como eugenia etc.), já que essas duas instituições são obstáculos ao poder absoluto do Estado.

Comparação desse comunismo moralista com o dos anarquistas (Platão era estatista); com o dos marxistas (Platão sublinha o plano espiritual); com a atitude de Nietzsche (Platão põe os homens superiores ao serviço do bem comum, e não acima dele).

Teoria dos diferentes tipos de regime político, conforme seja governado por um grande número, por um pequeno número ou por um só. Cada um desses tipos pode desviar-se, tornar-se demagógico, oligárquico ou tirânico (destino dessa classificação, a seguir).

- “O Político”: o filósofo não governa, mas é conselheiro do governante. A soberania fundamenta-se na superioridade natural, atitude mais realista que a d’“A República”.

- “As Leis”: obra de maturidade, moralista como a “República”, mas politicamente menos utópica: papel da persuasão, maior liberdade do cidadão, alguma propriedade familiar etc.

 

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