Skip to content

XI. De Ramsay a Franklin

XI

De Ramsay a Franklin

A presente lição versa dos autores de renome secundário, mas que fazem a ponte entre Fénelon, os “filósofos” do séc. XVIII e a Revolução. À sua maneira, são interessantíssimos.

RAMSAY, escocês (nascido em 1689), falso nobre, era filho de um pacato padeiro. “Apóstolo da verdade, que não pára de mentir sequer no leito de morte” (B. Fay), fizera os estudos na Universidade de Edimburgo, sendo por algum tempo preceptor de filhos de nobres. Espírito extremamente instável, fora anglicano, depois protestante relapso, a seguir indiferente e cético, novamente protestante, e enfim converteu-se (?) ao catolicismo. Conhecera Fénelon, que o influenciou muito em política, e encontrou-se mesmo com a célebre Madame Guyon. Recebido e condecorado pelo Regente, vem a ser preceptor do filho de Turenne, depois dos filhos de Tiago III. Fora a Oxford, onde o acolhem na Sociedade Real de Ciências e torna-se a cada dia mais influente. Escreve “Ensaio sobre política” (1719), “Viagem de Ciro” (1727), e trava conhecimento com Boulainvilliers (v. mais a frente). Maçom, tenta unir as Lojas. Apregoa a monarquia aristocrática e liberal (apego aos parlamentos). Em um plano de governo, planejado com o duque de Chevreuse, a ser proposto ao duque de Borgonha, fala dos Estados Gerais (clero, nobres, terceiro estado). O estudo de sua doutrina é proveitoso, se quisermos compreender a evolução das idéias e dos acontecimentos...

BOULAINVILLIERS (Conde de) (1658-1722) “astrólogo e profeta” (B. Fay). “Era um homem de valor e de espírito, bastante letrado”. (Saint-Simon). Dizem que era descendente de reis da Hungria. Parte da educação no oratório. Depois de ativa vida militar, retorna ao castelo de Saint-Sayre, na Normandia, onde vive solitário. Realiza trabalhos de genealogia, de astrologia (dizem que ele previa com precisão a morte de muitas grandes personagens), estuda História, sobretudo a da nobreza francesa. Conhece o duque de Noailles, Saint-Simon e Fénelon, que em certas ocasiões lhe pede conselhos.

Seu pensamento filosófico é um determinismo rígido: ele liga a crença de que tudo se rege pelos astros (“Histoire de l’apogée du Soleil”, “Pratique des règles de l’astronomie”) a noções científicas (“Abrégé de l’Histoire universelle” etc.). Deus não tem função nesse sistema, mas essa ausência estranha tem conseqüências políticas. A influência dos astros preside a hereditariedade biológica, conservando a pureza ou causando a mistura das raças (“Essai sur la noblesse de France”). Desta feita os francos eram nação livre, conquistadora, nobilíssima. Deles só se conhecem reis e comandantes eleitos. Nosso aristocrata anarquista exaspera-se contra os reis que vilipendiaram a bela ordem feudal, unindo a França – sobretudo Luís XI e Luís XIV. A mixórdia astrológica de Boulainvilliers rapidamente desmorona, mas o ódio aos Bourbons e ao absolutismo “monárquico”, o espírito escarninho, a hostilidade ao papel da Igreja, além da estapafúrdia explicação racista em que baseia a história da França, produziram vultosos efeitos ao serem manipulados por panfletários mais habilidosos. Após a morte de Boulainvilliers, sua obra é difundida por entre os círculos cabalísticos da Inglaterra e da Holanda. O duque de Vendôme, o de Noailles, o próprio rei (Luís XV), a rainha, se alimentavam dela...

MANDEVILLE (1670-1733) franco-holandês de Dordrecht, médico. Escreve obras obscenas, além da “Fábula das Abelhas”: não há livre-arbítrio, nem Deus, nem imortalidade – o prazer é o único real motor da atividade humana. A grande variedade dos desejos é o que nos distingue das feras. Eis porque trabalhamos (“os vícios privados são as benesses públicas”). Comparar com as idéias de Voltaire e de Holbach etc.

NEWTON é um cientista cujo nome é de todos conhecido. Pouco sabemos da atividade religiosa e política, do estudo dos profetas (livro de Daniel, Apocalipse). Membro do Parlamento, Presidente da Sociedade Real de Ciências de Londres, exerce influência mundial. Homem probo e honesto, que professava esquisita doutrina religiosa, luta contra a corrupção (a Inglaterra, admirada dos filósofos, ponto de partida dos ataques dirigidos ao Antigo Regime francês – acusado de cercear o imperialismo britânico – de fato era, àquela época, um país assolado por desigualdades econômicas e sociais brutais, em que os costumes estavam corrompidos, sobretudo na classe dirigente, onde medrava a ebriedade, a homossexualidade e os escândalos de toda natureza, enquanto a mortalidade infantil era a maior da Europa entre as classes pobres. V. a respeito do tema, nossa lição sobre Tomás Morus e sobre Montesquieu.). Houve aí o impulso ao livre- pensamento (Toland, Collins, Tindal).

Refugiado na Inglaterra, o pastor DESAGUILLIERS, de Rochelle, propaga o ideal maçônico. Especialista de valor (inventa um canhão de repetição que demais não é levado a sério), vulgariza as idéias de Newton. Associa a Bíblia, Pitágoras e o progresso das ciências. Há uma religião acima de todas as outras (tema maçônico).

FRANKLIN (1706-1790) de uma numerosa família de protestantes dissidentes, pessoas modestas (comerciantes de velas). O pai deixa a Inglaterra, aporta em Boston. Duas épocas distintas na vida de Benjamin Franklin. Começa por assumir a responsabilidade do jornal de seu irmão Jacques, o que lhe vale aborrecimentos. Vai a Filadélfia, reside entre os quakers, mais tolerantes. Editor – retorna à Inglaterra, onde leva vida de lúbrico. “Ensaio sobre a liberdade e a necessidade, o prazer e o sofrimento”. O homem, dizia, é simples mecanismo, em que não há virtudes nem vícios, resumindo-se tudo a reações automáticas: não existem imoralidade nem sanções do além-mundo (compare-se com a “filosofia” de Helvetius). Mas Benjamin conhece a tristeza, sofre tribulações, prova o sentimento de fracasso e angústia após grave doença (1727). Recupera-se já convertido, até místico à sua maneira adogmática (restando, ainda, certos traços de mau comportamento). Casa-se. Ingressa na maçonaria da Filadélfia, desempenhará o afamado papel na emancipação da América do Norte. Política liberal e parlamentar.

Quando de sua morte, descobrimos nele uma profissão de fé: há um Ser Supremo, mas a oração e a religião como tais não servem de nada. Seu pensamento exercerá notória influência nas gentes de 78.

Apesar da diversidade de temperamentos e doutrinas, na verdade, em todos esses autores existem traços comuns bem característicos: ódio à monarquia tradicional. Ódio sobretudo ao catolicismo; todas as religiões se comparam. O catolicismo, que sustenta obstinadamente o contrário, é o inimigo no 1, o obstáculo a ser derrubado. (Poderemos ler com grande proveito a sólida e valorosa obra de Charles Ledré sobre “La Franc- maçonnerie”, Fayard). Culto à ciência e à técnica, olhos voltados mais para os valores temporais e materiais que para a verdade desinteressada e transcendente. Crença no progresso através da difusão das “luzes” etc. Tal corrente, encarnada por Condorcet (“Essai d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain”), contribuirá fortemente para a Revolução Francesa, mas ultrapassará esta por assim dizer e inspirará a ideologia do séc. XIX e seus atuais rebentos.

NA FRANÇA

Não esquecer o Abbé de SAINT-PIERRE (1658-1743), cujo êxito fora extraordinário. Liberal, amante de constituições, regulamentos etc.. Para recordar: a idéia de academia política (que corresponde por sua vez à nossa Academia de Ciências Morais e Políticas, com características de... Conselho de Estado!). O princípio da seleção dos funcionários. A Polisinodia (pluralidade dos Conselhos) e, mais ainda, o “Projeto da Paz Perpétua”, começado em 1713, quando do Congresso de Utrecht, finalizado em 1718, publicado (como resumo) em 1729. Debatido pelos enciclopedistas, por Voltaire e Rousseau; escarnecido por Frederico II (“A coisa toda é realmente possível; só se esqueceu do consentimento da Europa e outras ninharias dessa ordem”.). Fundamento: uma “Sociedade Permanente”, compreendendo 24 potências signatárias de um “status quo” (como todos os utópicos, o abbé é detalhista: indica até a idade e o ordenado dos delegados!). Direito igual para potências muito desiguais (ex.: os estados italianos). Nada deverá mudar para que a paz seja salvaguardada. Fundo comum de assistência, renúncia a uso de força militar etc., com arbitragem; sanções exercidas por uma força internacional, em que termina por englobar turcos, tártaros etc.

Não esqueçamos de ARGENSON (1696-1764). “Considérations sur le gouvernement de la France”; liberal ou mesmo libertino, hostil à venalidade dos tributos, à influência da nobreza e, em geral, à desigualdade e... até ao casamento. 

 

AdaptiveThemes