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VII. Maquiavelismo e utopia

VII

Maquiavelismo e utopia
 

Achamos interessante apresentar em paralelo dois elementos contrastantes:

- o primeiro, um “realismo amoralista”;
- o segundo, um “idealismo” por demais moralista (v. lição I)

I. MAQUIAVEL

Leva vida agitada, dividida entre a política militante, a libertinagem e o estudo... A seu modo, sua obra é capital, já que introduz o amoralismo em política – lição que infelizmente só provou do sucesso.

Ele é um intrigante, em que pese as convicções de cariz democrático (v. mais à frente), bajula torpemente os Médicis – que contudo o torturam... – a fim de lhes obter um emprego. Resultado: está novamente em maus lençóis no momento em que o partido republicano sobe ao poder...

Obra: As Comédias (“A Mandrágora” etc); Da Arte da Guerra; O Príncipe; Discurso sobre Tito Lívio. Resta dúvidas sobre a cronologia. Editou-se pela N.R.F (1954-1955) dois grossos volumes de correspondência.

Menoscaba a moral, a boa-fé, a eqüidade. O fim sempre justifica os meios. Pessoalmente é totalmente incrédulo: o cristianismo só lhe é visto como força política (desconhecimento específico dos valores religiosos e transcendentes). Como Nietzsche mais tarde, vê nele um fator de enfraquecimento e decadência da sociedade.

Sua obra foi apreciada de diversos modos. Coisa curiosa, a maioria de seus contemporâneos e sucessores imediatos tinham-no em alta estima, Descartes o admira com reservas, e Espinosa com poucas.

Outros tratam por refutá-lo, ainda que... por maquiavelismo, tal como o “honrado” Frederico da Prússia (e que, no entanto!...). Rousseau faz-lhe o elogio, julga o tratado do “Príncipe” “o livro dos republicanos”. Para Rousseau, Maquiavel, bom democrata no fundo do coração, desagradaria aos cidadãos devido à terrível descrição do tirano...

Para saber o que pensar disso, devemos esclarecer o pensamento de Maquiavel

  1. a)  sobre o melhor regime político;

  2. b)  sobre moral e política (v. lição I).

    Por não fazer tal distinção, cometem-se muitos contra-sensos a esse respeito.

a) O melhor regime – por convicção, Maquiavel é republicano, quiçá democrata. Ainda assim, ao conhecer a França, admira o regime capetino por seu equilíbrio ao mesmo tempo estável e flexível; continua um individualista, prefere os “estados populares” à monarquia. Faz apologia do povo, posto que este possa ser enganado. Ajuíza a oposição quase fatal entre o interesse do príncipe e o do país, e que um príncipe mal, sozinho, é pior que uma assembléia má. Se acrescentarmos que Maquiavel é um patriota italiano, desejoso em unificar seu país, criando um exército nacional, compreenderemos a indulgência dos muitos homens de estado revolucionários defronte ele.

b) Moral e política – o amoralismo (ou mesmo o imoralismo político: é a idéia

da maior fecundidade dos vícios que das virtudes) é uma constante em seu comportamento: seja encorajando (por oportunismo inescrupuloso) César Bórgia, duque de Valentinois, a supliciar seus inimigos, seja louvando a república romana, é sempre a negação da moral que o anima.

Isso nos bastaria para pôr a obra de Maquiavel – apesar da astúcia e das observações muitas vezes lúcidas e penetrantes – abaixo não tão-somente dos grandes doutores cristãos da Idade Média e da Contra-Reforma, mas também dos filósofos gregos clássicos, como Platão e Aristóteles, que sempre reivindicaram a primazia do bem moral acima da utilidade empírica e das razões de estado.

II. OS UTÓPICOS

A utopia consiste em construir a priori um tipo ideal de sociedade, sem dar- se conta da experiência concreta nem dos limites da natureza humana (v. Ruyer: “L’utopie et les utopies”). É uma corrente constante em filosofia política, de Platão aos socialistas do séc. XIX (Fourier, Cabet etc.), passando por Fénelon e o abbé de Saint-Pierre.

- Tomaremos somente dois exemplos :

1. Tomás MORE, ou Morus (1480-1535). Homem de estado, altas incumbências na Inglaterra (Grande Chanceler), humanista católico, pai de família, cheio de humor e bonomia, decapitado por ordem de Henrique VIII, por crime de catolicismo, e também por opor-se às exações financeiras do rei (canonizado em 1935, pela Igreja romana).

Principal obra: “A Utopia”. Ponto de partida concreto: enojado dos abusos sociais (tanto piores, visto que a Inglaterra já é palco de um impulso tecno- capitalista nascente, com o surgimento da indústria têxtil, do êxodo rural, da extraordinária miséria do povo, dos motins populares reprimidos com selvageria), Tomás More, através de engenhoso artifício, propõe a crítica às instituições de seu tempo e país. Os nomes do país (imaginário), do suserano, dos habitantes etc., são construídos para despistar o leitor.

Entrementes a crítica passa dos limites, torna-se mito, senão mistificação. O autor derrama-nos aos olhos o quadro de uma sociedade racionalizada por inteiro, por demais “o melhor dos mundos” para nos agradar de verdade. Uma mescla de costumes idílicos (que mais tarde encantarão as gentes do séc. XVIII) e de cupinzeiro, onde tudo, até ao cardápio das refeições e à música que se escuta ao comer, é regulamentado... A família subsiste, não a propriedade (dissociação rara na história do pensamento). Moral honesta, mas assaz utilitária. Religião natural, sem culto definido. (Por seu martírio, More atestaria todavia a profundidade e autenticidade de seu cristianismo). Coisa curiosa a cidade de Utopia era moralista como ela só “para uso interno”, e maquiavélica, ou quase isso, em face de seus vizinhos, de sorte que se poderia dizer que More é uma mistura de Platão e Maquiavel (Pierre Mesnard). A dimensão exata desse trabalho ainda se presta à discussão até hoje. Parece que não é nem puro artifício, nem qualquer coisa que o autor leve totalmente a sério.

2. CAMPANELLA (1568-1639) é um utópico, de “cabo a rabo”.

Monge dominicano calabrês, meio doido, agitado, desperdiçando anos de vida na prisão, filosofa contra a Escolástica, junto à linha do panpsiquismo italiano da Renascença. Após conceber a era de um Império Universal, do qual o Papa seria o chefe, escreve: “A Cidade do Sol” (da qual se aproximam os socialistas utópicos do séc. XIX.)

Fontes: Platão, a vida monástica e... a exuberante imaginação de Campanella...

Estado teocrático, não-popular (diferente de Morus). No cume o “Sol”, que é o “Metafísico”, pontífice supremo que possui a ciência universal e a pureza absoluta (?). Abaixo, três magistrados: “Poder” (Ministério da Defesa Nacional), “Amor” (espécie de engenheiro chefe da libido, ocupando-se de tudo que respeita à sexualidade, eugenia etc.), e “Sabedoria” (ciências, artes, educação). Supressão da família. Dirigismo econômico estrito. Controle de tudo através de um corpo de funcionários poderosíssimos. (Parece que com um pouquinho de sorte Campanella levaria seu projeto a efeito). 

 

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