Filósofo francês (1913-1973) que se defina assim: "católico, contra-revolucionário, de formação escolástica".
Louis Jugnet
Não esperem encontrar aqui uma história, ainda que sumária, da filosofia medieval, tão bem estudada por especialistas como Gilson e Maurice de Wulf. Antes do mais, já que nosso objetivo não é fazer obra histórica, mas mormente apreender o significado essencial e o valor perene do pensamento tomista, não usamos de contingências cronológicas. Além disso, falta muito para que pensamento medieval seja sinônimo de tomismo, mesmo de escolástica. No presente capítulo, simplesmente propomos dissipar as confusões assaz propagadas, dando idéia geral, por sua vez sumária e precisa, do nascimento do tomismo. Eis porque diremos somente o estrito necessário dos sistemas que o precederam, e nada dos que se seguiram a ele (scotismo, occamisno etc).
Primeiramente, digamos que o tomismo e a escolástica não são de forma alguma sinônimos. Sem dúvida, a nossos olhos, o tomismo representa a encarnação mais pura e a única forma realmente válida do pensamento escolástico. Mas, enfim, há além dele outras correntes que são parte autêntica da Escola (agostinismo, franciscanos, scotismo, suarismo). As relações entre tomismo e escolástica são as da parte com o todo, se tomarmos a questão dum plano puramente descritivo e histórico.
Demais, o tomismo não é – não mais que os outros sistemas escolásticos – “a filosofia da Idade Média”, e isso por dois motivos: primeiro, porque na Idade Média, a escolástica, apesar de sua proeminência no ambiente ocidental, sempre tivera de combater sistemas opostos em espírito e conteúdo, gozando em face do pensamento medieval a mesma relação de parte e todo de que o tomismo gozava em face dos demais sistemas escoláticos; ainda, porque o tomismo (como de resto o scotismo ou o suarismo, contudo mais fortemente que esses) ultrapassou em duração a Idade Média, encarnando-se em grandes nomes e obras influentes dos séculos XVI e XVII [...]. Só ignorantes consideram a cultura medieval um como bloco monolítico e jugulado num conformismo marcial, suprimindo-lhe as profundas diversidades. A Idade Média, a despeito das seitas não-cristãs, judias ou muçulmanas – cuja vitalidade filosófica e teológica foi grande, e cuja influência dá-se até em ambiente cristão -, conheceu formas doutrinais tais como o panteísmo, o dualismo de tipo maniqueu, até mesmo o materialismo. Se observamos de perto, a coisa é impressionante. Descobre-se que, em pleno século XIV, mais exatamente em 1351, um teólogo foi declarado niilista, numa disputa pública em vistas ao doutorado... Isso sem falar dos místicos ortodoxos – por vezes cautelosos em face da especulação escolática – , dos espíritos de compleição científica, como Rogério Bacônio, cientista e erudito, ou dos doutores da Universidade de Paris, cujos trabalhos em mecânica prepararam as descobertas da Renascença.
Demoraria nomear os fomentadores que contribuíram para a formação da escolástica, tomada em conjunto. Já os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos dos primeiros séculos tentaram, às vezes com algum sucesso e real riqueza de pensamento, utilizar os recursos da filosofia antiga para repudiar as objeções dos pagãos e heréticos. Todavia, as tentativas eram mais das vezes fragmentárias, ou adstritas às preocupações apologéticas específicas, o que os impediam de construir um verdadeiro sistema do mundo, e sobretudo de reconhecer à filosofia a especificidade que lhe convinha. As grandes invasões e o fim do Império Romano foram uma catástrofe para a cultura profana e religiosa. No entanto, lentamente começa ela a emergir durante a Alta Idade Média, marcando o início da escolástica. De meados do século VIII a meados do XI, a escolástica toma forma. Do século XI ao XIII, organiza-se. No século XIII, conhece sua idade de ouro. O que vem depois é lento declínio. Vejamos mais de perto.
No final do século VIII, graças a Carlos Magno, o ensino se organiza, amparado pela fundação de escolas, dentre as quais convém fazer especial menção à Escola Palatina, em Aix-la-Chapelle. Recordemos o nome de Alcuíno, graças a quem foram possíveis grandes feitos. Além das escolas palacianas, multiplicaram-se as escolas monacais e episcopais: Corbie, Reims, Auxerre, Cluny etc, em França, daí o nome escolástica (schola). Aí comentam os textos, ou melhor, o que conheciam [dos textos] de Aristóteles (pouquíssimos escritos, dentre os quais os escritos lógicos) e das fontes neoplatônicas, em particular. Ensinavam as artes liberais (trivium et quadrivium), que englobavam o conjunto da cultura profana (sem prejuízo dos estudos propriamente religiosos sobre a Escritura, os Padres etc.). A filosofia e a teologia estão em estado de completa indistinção, mas as controvérsias religiosas (sobre a Trindade, a presença real na Eucaristia etc.) obrigam os mestres a aprofundar as noções metafísicas fundamentais (substância, natureza, pessoa etc.). Citemos Rabano Mauro, Fredegiso e João Escoto Erígena dentre os primeiros “escolásticos”: o último professa uma doutrina de inspiração neoplatônica que mal consegue esquivar-se – apesar de sua intenção e protestos – da acusação de panteísmo, tomando, de fato, lugar entre os sistemas anti-escolásticos de que falamos acima.
Além do mais, este é o período dos sistemas, em que se toma consciência dos problemas filosóficos de modo mais distinto e explícito, com a célebre querela dos universais (longe de morrer em seu começo, esse problema contém um dos pontos fundamentais de toda a filosofia: a natureza e o valor do conceito, ou idéia geral, a qual interessa à teoria do conhecimento).
Pedro Lombardo (que morreu no século XII) compôs uma espécie de suma, o Livro das Sentenças, forma continuada por outras obras além da sua, consistindo numa espécie de síntese do saber, de enciclopédia cristã, com o enunciado das razões pró e contra, e tentativa de solução. Não devemos esquecê-lo, não tanto por causa da qualidade (menor) da sua obra, mas pela importância da forma empregada – que fará fortuna na grande escolástica; tal veículo fora munido dalgumascorreções na [forma de] apresentação, graças, notadamente, a Alexandre de Hales (morto no séc. XIII), que foi um precursor de São Tomás, valorizando a apresentação silogística mais rigorosa.
Ei-nos no século XIII, século de ouro do pensamento escolástico, uma século notável para a humanidade. Por vezes, o pitoresco bizarro da Idade Média, a rudeza (voluntária, enquanto nossas crueldades são hipócritas e clandestinas) dos costumes, geralmente a torna incompreensível ao homem moderno médio, para quem civilização quer dizer transporte rápido, máquinas colossais, cinema 24 horas e reportagens radiodifundidas (o homem viria a suicidar-se com a bomba atômica, ou soçobrar no cretinismo intelectual à ausência de perspectivas ajuizadas a respeito do sentido de seu destino). Contudo, nada mais justo que a admirável fórmula do Sr. Gustavo Cohen: “as trevas da Idade Média só existem na alma dos que assim o crêem”. Um século que conheceu a monarquia simples e popular, não tão distante e hierárquica como a do século XVII, que viu lado a lado São Luís e São Tomás, que deu origem à Santa Capela e à Divina Comédia deveria estar ao abrigo dos sarcasmos ininteligíveis de que o cobrem as gentes que não lhe alcançaram à medula – i.é, os humanistas (eruditos e ocos) do século XVI e os “filósofos” do século XVIII, cheios de desprezo pelas “idades góticas”...
De que forma pôde se dar o nascimento dum pensamento tão amplo e sistemático? Às qualidades individuais de tal ou qual personagem, convém acrescer as condições históricas bem delineadas. As três principais dentre elas são: as aquisições de traduções e de várias fontes; o aparecimento das grandes universidades; a criação das Ordens Mendicantes. Algumas precisões se impõem aqui: em 1200 exatamente, Felipe Augusto reuniu numa universidade as várias escolas de Paris, fazendo-se o mesmo em Tolouse, Montpellier e outras mais, tais como Oxford e Cambridge, Salamanca e Bolonha – contudo Paris lhes supera, com seus milhares de estudantes (teria até 30.000 alunos, vindos de todo lugar), com suas “nações”, suas faculdades (Teologia e Artes, sobretudo filosofia; após, Medicina e Direito). Os professores e “leitores” (comentavam) constantemente, com grande independência, os textos fixados para o uso (obras de Aristóteles, Boécio etc.); junto a isso, acontecia variados gêneros de “disputa” – ou discussão – em que se poderia formular livremente as dificuldades percebidas...
Provavelmente, tais métodos de ensino - justificados, entre outras razões, pela penúria de textos que obrigavam o mestre e o discípulo a afiar a inteligência e desenvolver a memória – ocasionaram o nascimento da lenda tola da Idade Média jugulada sob o método da autoridade (do qual sozinho nos libertara Descartes), reproduzida piamente, quase que por obrigação, por qualquer manual de história da literatura, para a edificação dos alunos do médio e do fundamental. Realmente, nisso há um considerável contra-senso, que é importante denunciar: em primeiro lugar, confundem a teologia (que depende eminentemente em suas bases da autoridade da Escritura, da Tradição e da Igreja: Pascal, inimigo da escolástica, repisou esse ponto) e a filosofia propriamente dita; projetam sobre a filosofia escolástica a verdade da teologia católica (medieval ou moderna, tanto faz) enquanto tal. Em seguida, obnubilam os procedimentos pedagógicos, esquecendo seu sentido e necessidade naquelas condições históricas determinadas e também, como veremos, esquecendo a liberdade com que os escolásticos se valiam dos luminares em relação aos textos “lidos”: as “autoridades”, ou textos veneráveis alegados em favor duma tese, serviam como contraponto. Os grandes escolásticos (é deles que se trata, e não dos epígonos) nunca pensaram nem afirmaram que era mister aceitar de olhos fechados uma afirmação em matéria profana, baseados na autoridade de Aristóteles ou qualquer outro. Disseram mesmo o contrário. Deste modo, Santo Alberto Magno (Alberto de Colônia), o mestre de São Tomás, de quem falaremos mais adiante, não hesita em dizer sem pejos: “Aqui, enganou-se Aristóteles (hic erravit Aristóteles): sua opinião não repousa sobre fundamento razoável”. São Tomás é ainda mais direto, porque escreve sem rodeios, na Suma Teológica, 1ª parte, q. I. a. 8 ad 2m: “O argumento de autoridade que se funda sobre a razão humana (= autoridade humana) é o mais fraco dos argumentos”. Comentando o Tratado do Céu e do Mundo de Aristóteles, I lect. 22: “O estudo da filosofia não consiste em saber o que pensaram os homens, mas o que é realmente verdade”. Ficou claro? Mas a lenda ainda vigora...
Precisamente, quais foram os textos que renovaram o legado das Universidades? Os cruzados estabeleceram um contato, de início rude mas concreto, entre oriente e ocidente. Após a fundação do Império Latino de Constantinopla, em 1204, reaproximaram-se os gregos e os latinos. No final do séc. XII, a perseguição espanhola causou o refluxo de importantíssimas obras árabes e judias para França e Espanha. As traduções arábico-latinas e greco-latinas divulgaram os filósofos gregos e seus comentadores mouros. As primeiras, supondo-se a transposição dos textos através de várias línguas, são pouco fiéis, mas as que vieram depois são mais confiáveis. Além das obras de Alfarabi, Alkindus, Avicena e Averróis, tomar-se-á conhecimento direto dalguns textos até então desconhecidos, graças a inestimáveis helenistas como Guilherme de Moerbeke, cuja tradução de Aristóteles São Tomás (que lia grego) utilizará. É falso então dizer que a Idade Média – em bloco – “não sabia grego”. Mesmo não sendo filósofo ao estilo dos alemães do séc. XIX, ele conheceu Aristóteles com fidelidade maior do que se acredita.
Essa obra só foi possível com a criação das grandes Ordens Mendicantes – Franciscanos e Dominicanos. Durante o primeiro quartel do séc. XIII, os seculares defendem energicamente seu monopólio nas universidades. Mas em 1229 e 1231, na seqüência de incidentes diversos, alguns com certo toque de pitoresco (notadamente, um movimento paredista de mestres artífices), os dominicanos conseguiram se estabelecer, assim como os franciscanos. Ocupando no começo só uma cátedra, conseguiram os regulares, com o apoio dos Papas, estenderem sua influência, e lograr a derrota dalguns de seus inimigos mais encarniçados... O exemplo estimula outras ordens (Cisterciences, Agostinianos e os Carmelitas) a imitá-los. É justamente dessas duas ordens mendicantes admiráveis que sairão na prática todos os grandes doutores escolásticos.
Explicam as características fundamentais da escolástica a identidade dos pioneiros, o meio de origem e o conhecimento das fontes, que a partir de agora tentaremos enumerar antes de ir adiante. Não falemos do gosto pela síntese e coerência, que ela elevou ao cume, mas que se manifesta através da história em outras correntes de pensamento, trate-se do próprio Aristóteles ou da filosofia de Hamelin, por exemplo. Antes do mais, insistamos acerca da fonte de acordo entre razão e fé, entre filosofia e Revelação, que jaz na origem dos sistemas escolásticos. [...] Os escolásticos não tinham pontos de vista concordes no detalhe (uns davam primazia à fé, outros à filosofia), mas estavam absolutamente de acordo nos princípios; isso é muito importante, porque tal perspectiva metodológica distancia-os tanto dos pensadores antigos, que ignoravam a fé, quando dos modernos que, em sua maioria, combatiam-na ou, caso a conservassem, separavam-na de sua atividade filosófica e científica num “compartimento hermético”, com algumas exceções.
Ainda, é notável entre os escolásticos da era de ouro o respeito à razão espontânea ou natural, o caráter como que autêntico, fundante, das construções (e nisto aqui eram helênicos, mais particularmente aristotélicos): realismo, dogmatismo, confiança madura nos sentidos e na razão. [...]
Por isso, não era uma filosofia puramente espiritualista (mereceriam tal nome Descartes ou Malebranche), mas estava centrada nalgumas noções que, embora recebessem dos diversos sistema escolásticos interpretações diversas e por vezes inconciliáveis, constituem uma sorte de patrimônio comum (ato e potência, matéria e forma, essência e existência etc.) que tem por origem também a filosofia grega.
O pensamento escolástico possui uma fisionomia geral. Cabe-nos agora contemplar a forma tomada por ela em São Tomás.
A crescente influência das obras de Aristóteles, favorecida pelas traduções de que acima falamos, suscitou diversas reações: nalguns, verdadeiro entusiasmo; noutros, oposição feroz. Outros enfim (é o caso de Santo Alberto Magno e São Tomás) quiseram separar o que era aceitável no Estagirita do que um cristão deveria rejeitar. A luta fora longa e confusa. Continuou [...] até depois a morte de São Tomás.
Muitas traduções de Aristóteles, como vimos, faziam-se a partir do texto árabe. Eram freqüentes glosas inquietantes (de inspiração panteísta etc..) se infiltrarem no texto original. Obras de fato neoplatônicas se atribuíam a Aristóteles. Compreende-se porque a autoridade eclesiástica, colocando-se ao lado da prudência e da salvação das almas, em detrimento da ciência profana, começara a obstruir a difusão do aristotelismo então falsificado. Todavia, tal interdição disciplinar, cujo alvo principal era Paris, deixava a Toulose certa liberdade, e além disso os doutores ortodoxos, licenciados para combater a nova doutrina, haviam de estudar as obras do Filósofo para arrostar com proveito as doutrinas perniciosas. Por isso, numa censura decretada uns vinte anos mais tarde (1231), Gregório IX estipula claramente que a condenação é válida até que a obra atribuída a Aristóteles estivesse passada a limpo e desimpedida de erros, nomeando para tanto uma comissão de teólogos. Ademais, a física e a metafísica de Aristóteles difundiam-se em todo lugar; dois decretos posteriores resultaram sem efeito. No séc. X, a Igreja obriga os candidatos de licenciatura ao estrito dever de estudar Aristóteles. Esse conflito histórico repousava de fato sobre um mal-entendido, sobre apresentações ou interpretações mui posteriores à obra do Filósofo. Em seus princípios fundamentais, a filosofia do Estagirita era perfeitamente conciliável com os pressupostos judaico-cristãos, e foi São Tomás, precedido de Santo Alberto Magno, que tiveram a honra de demonstrá-lo. Por conseqüência, não há comparação entre esse caso e a oposição da Igreja, na época moderna, contra a “falsa philosophia” relativista, idealista, subjetiva, que natural e necessariamente arruína os fundamentos da fé e da ortodoxia, e cuja condenação é portanto irrevogável.
Alberto Magno é um gênio admirável, que explorou com veras a obra de Aristóteles, e tinha clara inclinação para as ciências experimentais. Contudo, sua coerência sistemática não é das maiores, por vezes justapondo, ao sabor dos comentários e das ocasiões, visões aristotélicas, neoplatônicas e agostinianas. Por seu turno, o pensamento de São Tomás, embora não desdenhe o platonismo [...], é muito mais coerente, no que era devedor de Aristóteles. Nisso opõe-se ao que se denomina algumas vezes de antiga escolástica agostiniana, que não obstante ainda goza de prestígio na ordem franciscana, por causa dalgumas idéias mestras, cujos pontos fundamentais são a orientação mística, o relativo racionalismo em sua teoria do conhecimento (pondo o mundo sensível e o conhecimento sensível em segundo plano), além das teses bem peculiares acerca da pluralidade das formas substanciais no ser corpóreo [...]; eram representantes dessa escola Alexandre de Hales e o admirável pensador São Boaventura, doutor franciscano contemporâneo a São Tomás. O Doutor Angélico teve de defender a metafísica aristotélica contra a corrente agostiniana e contra os sectários servis e heterodoxos de Aristóteles, como Sigério de Brabante. Este último, com as idéias embebidas em Averróis, chegou a conclusões inaceitáveis à ortodoxia cristã, como a unidade do intelecto em todos os homens (monismo) e a eternidade do mundo, sem mencionar as doutrinas que reduziam a liberdade humana a nada. A bem dizer, não professava a teoria das duas verdades [...], mas lhes sustentava os princípios. Mau-grado a boa vontade em atenuar o que havia de inaceitável no sistema, em seus últimos anos de vida, o pensamento de Sigério ainda se conservava mui distante do aristotelismo tomista. Isso não impediu os renhidos e “veteres” adversários do pensamento de São Tomás de incluir as teses tomistas numa condenação que Etienne Tempier, bispo de Paris, formulou contra os erros averroistas. Manobra inútil, pois não impediu a Igreja de testemunhar em favor do tomismo um crescente apreço, jamais desmentido [...].
Situamos [a obra de] São Tomás. [...] Convém-nos agora, antes de encerrar o capítulo, dar algumas indicações biográficas sobre nosso autor e construir sua personagem psicológica.
Tomás de Aquino nasceu a 7 de março de 1225, em Roca Secca, no reino de Nápoles. Era de família nobre, parente de Frederico Barbarroxa. Os ancestrais maternos remontavam a chefes normandos. Seu pai, o conde Landolfo, o confiou desde os cinco anos de idade aos beneditinos de Monte Cassino, levando-o para casa somente nove anos mais tarde, depois de já muito ler e estudar latim nos escritos dos mais eminentes Padres (sobretudo, Santo Agostinho). Após o imperador expulsar os monges de Monte Cassino, a criança retornara ao lar e partira (1239) para a Universidade de Nápoles, cuja vitalidade intelectual e informativa era digna de elogio. Em 1224, atingida a maioridade, decide ingressar na Ordem de São Domingos, seduzido pelo pensamento e atividade dos irmãos pregadores. Essa decisão privava sua família da abadia de Monte Cassino, mas pessoas tomadas daquilo que Pascal denomina a primeira ordem das grandezas (grandezas carnais) não compreendiam muito bem tal atitude. O superior geral da ordem dominicana decidiu enviar Tomás a Paris, para poupá-lo de pressões sobre sua vontade, mas seus irmãos o capturaram no caminho e, mui sordidamente, tentaram corrompê-lo com uma sedutora cortesã, mas depois que o jovem a perseguira com um tição, aquela nada mais intentou. Retido cerca de um ano, lograra abandonar os tiranos familiares e chegar a Paris (1245). No convento de São Tiago, tornou-se aluno de Alberto Magno, mestre com justiça reputadíssimo. Pouco loquaz, taciturno, aos estudantes petulantes parecia que se acercavam dum parvalhão, dum “boi mudo da Sicília”, digno de compaixão e ironia. Não se deixou levar pelas aparências Alberto Magno, e lhe predissera fulgurante carreira de doutor. Em 1248, Tomás seguiu Alberto para Colônia como professor assistente; retorna a Paris em 1252, e é admitido como mestre em Teologia em 1256 (os estudos teológicos eram longos e minuciosos, joeirando o aluno a partir de temas escolhidos). Durante três anos, ensinou na universidade mais admirável da Europa; retornou à Itália para ensinar em Anagni, de 1256 a 1261. Depois, enquanto acompanhava a corte romana em trânsito, ensinou em Orvieto, Roma e Viterbo. Em 1269, volta a Paris, então em plena efervescência doutrinal, e luta por sua vez contra os averroístas e os arcaizantes agostinianos. Em 1272, retorna novamente à Itália para ensinar em Roma e Nápoles até o final de 1273, já que, sob as ordens de Gregório X, segue caminho para se juntar ao Concílio Geral de Lyon. É neste momento que adoece e morre, curiosamente em março (nascera ele em 7 de março), no monastério de Fossanova, assistido pelos cisterciences. Tinha apenas quarenta e oito anos. [...]
Nossos contemporâneos, amantes de biografias e descrições vivazes, não nos perdoariam caso não evocássemos, ainda que à brevidade, a fisionomia moral e até física do autor. Tratemos de saciá-los, sem contudo cair na anedota.
Tomás era mui grande e gordo, verdadeira cariátide que obrigava as pessoas a desviarem-se a sua passagem; de resto, era de compleição sensível e delicada. Dotado dum intelecto prodigioso, confessava com simplicidade nunca ter lido algo que não houvesse compreendido à primeira vista, e ditava textos de sua autoria para quatro secretários simultaneamente. Possuía imensa memória, impressionando os que se aproximavam. Era humilíssimo, e confiava no próximo ao ponto da ingenuidade: um dia, dirigira-se à janela para observar um boi voando, confiando no testemunho dum noviço chocarreiro; declarara ele com delicada ironia que maior prodígio era um monge mentiroso. À mesa de São Luís, constrangido com as contingências sociais, encontrara um argumento decisivo contra os maniqueus, e eis que de tudo se esquece, nada mais existe a seu redor. A pureza de coração, que nossa época não mais respeita, mas os pagãos reverenciam num homem superior, nele era tão imensa que, à sua morte, fizera a confissão duma criança de cinco anos, conforme seus biógrafos. O ardor pelo trabalho nada roubava à piedade; imaginá-lo como uma máquina de citações e silogismos seria fazer dele uma idéia grotesca. Interrogando-o Cristo, numa visão que teve em Nápoles, sobre qual seria o prêmio de suas penas e labores por um trabalho acerca da Eucaristia, respondeu ele: “Vós mesmo, Senhor.” Morrera a afirmar que tudo quanto escrevera não passava de palha (mihi videtut ut palea). [...]
Tradução: Permanência
(a partir da obra de Louis Jugnet, La pensée de saint Thomas d’Aquin, 1964)