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X. Bossuet e Fenelon

X

Bossuet e Fénelon

I. BOSSUET

Para se entender o porquê dessa lição, convém primeiramente convencer- se da idéia de que nada se sabe sobre Bossuet se reduzimo-lo a um “escritor magnífico”, autor de “famosos sermões”, desinteressando-nos do conteúdo de seu pensamento. Nomeamo-lo de forma pitoresca como Bossuet “o último dos padres da Igreja” – o que é verdade, apesar das maledicências e baixezas que espalham sobre ele até hoje os admiradores tardios do quietismo e do jansenismo. “Bossuet”, dizia H. Bremond, pouco suspeito de lhe ser simpático, “é o catolicismo feito homem”. A fórmula parece-nos excelente, e para tomar as verdadeiras dimensões de nosso autor, bem faríamos remeter ao livro dificílimo de encontrar e cheio de méritos de Louis Dimier (“Bossuet”), e ao estudo de Massis em “Visage des idées” (Grasset), afora as generosas e benevolentes análises de Gustave Lanson (que todavia era incréu e irreligioso) em sua História da Literatura Francesa e em “Bossuet”. O equilíbrio do autor, a arte de composição, a extensão da erudição, a segurança da doutrina, apóiam-se sobre asneiras pseudo-teológicas, tais como as que enchem nossos dias...

As fontes do pensamento político de Bossuet são a Bíblia, Aristóteles (“Política”), os grandes doutores da Idade Média (o pensamento de Bossuet é um tomismo inato, algumas vezes revestido de elementos cartesianos) e da Contra-Reforma. Como todo autor cristão, Bossuet está firmemente persuadido de que a História tem um sentido (um significado e por isso um fim), mas que não podemos esgotá-la de todo por meio da razão que, quando muito, esclarecida e confirmada pela fé, poderá nos indicar as linhas gerais. Bossuet se lança em uma teologia da História que não é, a nosso ver, muito prudente ou discreta (tentação ademais bem freqüente entre os autores que desejam perscrutar os desígnios da Providência). Não daremos muita atenção a isso nessa lição, mas antes à sua teoria do governo.

Vimos que uma das idéias essenciais do cristianismo é a de que o homem é naturalmente sociável – aqui, é herdeira de Aristóteles –, à qual acrescenta a idéia sobrenatural da caridade. Isso não nos deve deixar esquecer o que há de brutal, de indisciplinado, de cruel no ser humano; ainda que o homem seja definido como um “animal racional”, sempre será preciso um espírito de lucidez e de sacrifício para obedecer à razão, lutando contra a inclinação e o peso do instinto, de sorte que o otimismo cristão (no terreno metafísico) acomode-se perfeitamente a um pessimismo existencial e histórico, no terreno do concreto e do acontecimento (quando os “pioneiros” neocristãos se esforçarão para distinguir as duas perspectivas? A tarefa ultrapassa em muito seu nível intelectual!...).

O Estado não tem papel coercitivo, ainda que saiba e possa constranger. Tem por finalidade assegurar a concórdia e a amizade entre os homens.

Todo poder vem de Deus (diz São Paulo, o que é tão-somente um corolário da idéia metafísica de Deus enquanto causa primeira de tudo o que existe). Nós dissemos isso mesmo: todo o poder; Lanson, entre outros, teve a argúcia de demonstrar que Bossuet nunca canonizou a idéia da “monarquia de direito divino” para todos os tempos e países.

Ele a defende para a França, por razões peculiáres, tanto religiosas quanto políticas. Contudo sabe muito bem que todo regime que respeite determinados valores fundamentais pode valer para um ou outro país, em tal ou tal época. Basta ler Bossuet para perceber isso1. O traço marcante de seu pensamento é recusa categórica do que se chamará a “pactomania”, obsessão juridicista que quer pôr um contrato à origem de todo grupo social, de toda autoridade, em prejuízo de uma espécie de idéia vitalista de sociedade, concebida como conjunto de instituições que se formam espontaneamente.

Tal disposição se manifestará sobretudo na polêmica com o pastor Jurieu (1632-1713). Diligente defensor do protestantismo (“cartas pastorais” etc.), é também um teórico democrata convicto que, diferente de Lutero e Calvino, vai até as últimas conseqüências dos princípios reformados: ódio ao princípio monárquico, crença na soberania popular, idéia de um pacto inicial etc., o que o faz radical continuador de Althusius e precursor de Rousseau. Exasperado pela oposição, em que já enxergava com clareza e lucidez uma perigosa escalada revolucionária, Bossuet não reconhecia sequer a legitimidade daquelas insurreições admitidas por São Tomás e Suarez. Isso não quer dizer que ele dá ao rei todos os direitos! A monarquia, tal como a concebe, não é totalitária, mas sim o perfeito contrapeso ao cesarismo totalitário da época moderna, já que:

  1. a)  Ela submete à mesma lei moral tanto o rei quanto o último dos súditos (a respeito da liberdade dos predicadores do antigo regime, remontemos aos sermões de Bourdaloue em Versalhes!), ao passo que os césares totalitários têm-se por criaturas superiores e crêem-se “para além do bem e do mal”;

  2. b)  Ela admite uma gama de organismos moderadores entre o Estado e o indivíduo, possuindo funcionamento autônomo (famílias, províncias, corporações, assembléias diversas – só Deus sabe quantas vezes eles enfrentaram o rei, durante o antigo regime!), enquanto as ditaduras modernas só admitem o indivíduo desarmado defronte o Estado todo- poderoso.

    II. FÊNELON

    Impossível conceber um homem tão diferente de Bossuet, seja física como moralmente. Temperamento cíclico, fugidio, respondendo às grosserias de Bossuet por punhaladas disfarçadas em sorrisos, fértil em intrigas, e tudo isso desempenhando o papel de homem de Deus... J. Guitton, em uma recente defesa de tese na Sorbonne, falava de um “budismo” nas idéias de Fénelon sobre a contemplação. Compreendemos porque a Igreja não se encantou delas...

Em política o mesmo contraste: Fénelon admitia com certeza a monarquia, mas a queria aristocrática, dando boa parte do poder aos maiorais, mas ao mesmo tempo havia algo do parlamentarismo em sentido moderno. Era uma espécie de feudal utópico, tipo bem comum à época, do qual voltaremos a falar. Nele há algo de Platão e Morus, mas com qualquer coisa de arrogante, que sabe à Fronda. R. Mousnier trata-o por “aristocrata retrógrado”.

Encontramos em Fénelon os temas cristãos sobre a paz e a justiça social, mas são, tanto nele como em outros que se lhe seguiram, apenas uma agitação vã... Destacamos o péssimo hábito de desaprovar seu país, de rebaixá-lo em face dos inimigos, desconhecendo as situações concretas em política. Apesar de as fortificações de Vauban provarem seu valor em circunstâncias gravíssimas, Fénelon propôs sua destruição devido ao alto custo... Desejava que nos entregássemos às mãos da Suiça, Valência, Douai, Cambrai, Namur, Charleroi, Luxemburgo, "a fim de que nos franqueassem as portas aos inimigos, caso faltássemos com a palavra" (v. Mousnier). Não vislumbra a ameaça germânica, o perigoso progresso da Inglaterra e da Holanda, instando-nos a restituir Besançon, Lille e Strasbourg, que são "injustas conquistas". Mousnier acrescenta: "Fénelon parece redigir os panfletos do inimigo" (Nesse tema, podemos vê-lo como precursor de certo tipo de "intelectual"). Humanista escrupuloso no que tange a seu país, também é derrotista por princípio. Só consegue ver a derrota à frente. Deve-se acabar com a guerra a todo o custo; concebia a França do séc. XVIII (em pleno apogeu, apesar das tribulações) como "velha máquina degringolada, que segue por inércia do antigo impulso dado, até que termine por se despedaçar ao primeiro impacto (sic)". Entendemos porque Mousnier pôde dizer que esse grande escritor fora um político lamentável, e porque Luís XIV, voltando os olhos aos efeitos desastrosos da agitação, chamara Fénelon de "o pedante mais fantasioso do Reino". 

 

  1. 1. Eis aqui uma boa ocasião para esclarecer aquela opinião tola e convencional, sempre repisada a partir de muitos pontos de vista, sobre a “monarquia de direito divino”. Em verdade: 

    a) Os teólogos e canonistas da Idade Média e da Contra-Reforma sempre repetiram que as várias formas de regime político são concebíveis e legítimas, apesar de a monarquia lhes parecer, de modo geral, a melhor, ou o menos pior se comparado aos outros sistemas; 

    b) Em sua quase totalidade, são hostis à concepção teocrática do Estado; o Rei-Pontífice por excelência é idéia típica dos cismáticos greco-russos, quiçá de seus sucedâneos laicos, em países protestantes como a Inglaterra;
    c) A divinização e a sacralização hiperbólica e excessiva do poder real é uma reminiscência da antiguidade pagã e do culto dos imperadores romanos, que é cara aos legisladores laicos, hostis ademais aos membros da Igreja. De modo que o que sobra da famosa “monarquia de direito divino” é um acordo genérico entre a Igreja e o Estado sob o Antigo Regime, conformado à doutrina das encíclicas pontificais e consagrado por meio de cerimônias religiosas. É só isso!

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