VI
Reforma e Contra-Reforma
Ainda aqui, pensamento religioso mais que filosofia pura, mas de grande influência sobre o político e o social.
Há um aspecto minudente, que interessa sobretudo aos historiadores enquanto tais (Guerra dos Camponeses, a Liga etc.), e um aspecto principalmente doutrinal, que é o que nos importa.
I. A REFORMA
Lutero e Calvino não são de modo algum racionalistas ou precursores do livre pensamento. Eles combatem o catolicismo, como o fazem os humanistas renascentistas de inspiração pagã, mas por razão inversa: os segundos reprovam no catolicismo o sacrifício do homem e da natureza; os reformadores temem paganizar a religião e ceder demais à razão e à filosofia...
Para eles, a natureza humana está totalmente corrompida pelo pecado original; o homem é incapaz do bem, está salvo ou condenado a despeito de sua livre escolha (v. Lutero, “De servo arbitrio”); a razão é tão-somente serva do erro etc.
- A doutrina reformada engendra grandes mudanças no problema Estado- Igreja: resumindo, a Igreja é uma realidade interior e invisível, cujo aspecto jurídico e institucional subtrai-se quase totalmente. Mas já que ainda assim existem igrejas protestantes, quais serão suas relações com o poder temporal? Os reformadores oscilam entre duas tendências: uma consiste em associar intimamente o destino das igrejas ao dos príncipes temporais – sem os quais a Reforma não se poderia espraiar (ex.: Lutero na Alemanha) e que, por isso, se imiscuirão naquelas o tempo todo (Demais, se tudo o que é humano é podre, para que então se associar tanto a ele? Eles deixam César agir como bem quer.); a outra tendência é uma espécie de nova teocracia, de poderio de homens de Deus sobre a cidade, resultando em um verdadeiro clericalismo sem padres (Calvino em Genebra, regulamentando de modo despótico o mínimo detalhe da vida dos habitantes; o ambiente puritano na Inglaterra e na América dos sécs. XVII e XVIII).
- Por outro lado, podemos nos perguntar qual é a posição da Reforma diante do problema da democracia e do liberalismo. Como se diz amiúde, foram eles que o engendraram? Convém distinguir dois aspectos do problema:
a) A questão da intenção: Lutero não é de espírito democrata nem liberal, mas absolutista e autoritário. Quando da Guerra dos Camponeses, empolgara os príncipes à repressão brutal, negando aos oprimidos o direito da revolta (o que é um recuo, em comparação à teoria de São Tomás, p. ex.). Calvino tampouco é revolucionário social e político.
b) A questão da lógica interna: a doutrina reformada contém os germes da revolução política. Que é o individualismo liberal do séc. XVIII senão o livre exame aplicado por Lutero à interpretação da Bíblia, desapegado da tradição eclesiástica e estendido daí em diante à sociedade temporal?
Isso é tão verdadeiro que no século seguinte o pastor Jurieu, defensor do protestantismo, adversário de Bossuet, será precursor de Rousseau no plano político; por conseguinte, os adversários da Revolução Francesa, mesmo os incréus, serão anti-protestantes (cf. Augusto Comte, que chamará o protestantismo de “a sedição do indivíduo contra a espécie”).
- Um último ponto: autores de tendências tão díspares quanto Max Weber, Tawney e Santayana (sem dúvidas, o primeiro e o último são incréus) crêem que a Reforma cumpriu importante papel na emancipação e no desenvolvimento do capitalismo moderno: não que lhe seja a causa formal, mas porque sua concepção de vida religiosa, centrada não mais na contemplação, como na Idade Média, mas na ação eficaz, e a idéia do sucesso temporal dos eleitos (próxima às idéias do Antigo Testamento, onde a prosperidade cá embaixo é recompensa pelo serviço de Deus) contribuíram para se criar o clima favorável ao produtivismo mercantil e financeiro, [clima esse] que depois se disseminará. (v. sobre o tema os textos um tanto agros de Mousnier, in “Histoire génerale des civilisations”, Presses Universitaires, volume sobre o séc. XVI e XVII, sobretudo págs. 81 a 159).
II. A CONTRA-REFORMA
Ela está bem longe de ser apenas uma reação ao protestantismo. Nomeamo-la Contra-Reforma devido à ocasião histórica, mas de fato é um meticuloso trabalho de retomada de consciência, de organização, de transformação dos métodos de prédica e ensino etc.. Seu alcance será formidável, mesmo para além da religião e da política, influenciando até à arte. Dará nascimento à época (ou estilo) “barroco”, em sentido técnico e não pejorativo. Possibilitada pelo heróico esforço da Espanha (já que os reis da França, hesitando por algum tempo diante da Reforma, não se entusiasmaram pelo Concílio de Trento), a Contra-Reforma contribuíra por sua vez para inspirar e desenvolver a civilização espanhola do “Século de Ouro”, de onde a riqueza intelectual, religiosa, literária e pictórica desta – um grande esplendor.
Todavia nossa apresentação desse assunto será mais breve que a da Reforma, porque no fim das contas trata-se apenas do aprofundamento e expansão do catolicismo tradicional, anteriormente considerado.
Alguns grandes nomes:
- Francisco de VITÓRIA, dominicano espanhol (1480-1546), humanista de caráter, tomista de doutrina. Ocupa-se deveras dos problemas morais suscitados pela colonização (tratado “De Indis”). Primeiro devido ao espírito independente, entra em conflito com Carlos V; depois, feito por este conselheiro para assuntos americanos1. Interessa-se igualmente por Direito Internacional, do qual ele e sua escola (Escola de Salamanca) são de fato os fundadores.
- BELARMINO (canonizado em 1935). Italiano, teólogo e homem de ação (Núncio na França). Tradicionalíssimo, mas de espírito independente em várias circunstâncias críticas (apoio dado a Henrique IV, o caso com os teólogos de Veneza etc.).
- E sobretudo Francisco SUAREZ, jesuíta, espanhol de Granada (1548- 1612), cujas obras como teólogo, filósofo e canonista eram tão importantes que no séc. XVIII ainda eram utilizadas em filosofia, mesmo nas universidades protestantes da Alemanha!...
Seus princípios fundamentais baseiam-se na Escolástica clássica, embora a doutrina afaste-se do tomismo em pontos cruciais (sobretudo em metafísica). Também construíra uma teoria do poder, do consentimento etc., que sem ser democrática no sentido moderno – longe disso – está mais próxima dessa última que a de São Tomás, quando se refere ao consentimento popular na legitimidade do poder político. Suas concepções jurídicas conheceram grande sucesso, mesmo para além dos meios católicos (cf. seu tratado “De legibus”).