V
A Idade Média
NOTA PRELIMINAR
Existem períodos da História mais desconhecidos e caluniados que outros. A Idade Média é o melhor exemplo disso. Desprezada pelo Renascimento e pela Reforma, incompreendida pelo séc. XVII, odiada pelo séc. XVIII devido ao seu catolicismo e monarquismo resolutos, espezinhado pelo materialismo cientificista e pela ideologia revolucionária do séc. XIX, ela fora descoberta gradualmente pelos mestres de História Medieval, na França e no exterior; mas, infelizmente, para o grande público, ela só evoca as imagens de Epinal, de “Notre-Dame de Paris” (de Victor Hugo), um panorama com suplícios, empestados, feiticeiros e monges ignaros.
Os manuais universitários de filosofia perfazem o pensamento medieval, ao qual muitos especialistas atuais consagram trabalhos em poucas linhas peremptórias, o que prova sobretudo que os autores ignoram a escolástica em tudo. (Para esclarecimentos, poderemos ler o livro pequeno e esclarecedor de Paul Vignaux, professor da Sorbonne, sobre “Le Pensée au Moyen age”, (Armand Colin), e percorrer (pelo menos) “la philosophie au Moyen age”, de Etienne Gilson (Payot) [“A Filosofia na Idade Média”, em português, ed. Martins Fontes, 1995]).
De fato a Idade Média é um período longo (de sete a oito séculos!), que conheceu toda uma evolução interna, e que engloba diversas correntes contrastantes; vemos aí uma sucessão de divergências religiosas (v. o Catarismo, por ex.), de místicos, de cientistas (mais do que poderíamos crer: Gerbet d’Aurillac, Papa sob o nome de Silvestre II; Roger Bacon, Nicolas Oresme etc.), de filósofos, de políticos. Encontramos pessoas que querem dar ao Papa todo o poder, mesmo o temporal, mas também “laicos” ao estilo moderno, divinizando o poder civil; aqueles que são hostis à Igreja, devido à crueza da justiça criminal e às superstições da época, esquecem facilmente que a Idade Média é a continuação do mundo antigo, e que ela está sempre em contenda com este, trabalhando por aniquilá-lo, em proveito dos valores cristãos.
- Não podemos esboçar aqui senão algumas perspectivas, um sumário, do pensamento tomista (de São Tomás de Aquino), que fora tão importante em sua grandeza que inspira, até aos dias de hoje, uma vigorosa corrente doutrinal1.
Nascido em 1225, no reino de Nápoles, de casta nobre, Tomás de Aquino arrostou a família para seguir a vocação religiosa. Aluno de Alberto o Grande, outro grande pensador dominicano, logo ilustraria as maiores universidades européias, de maneira especial a de Paris. Morre em 1274. É o modelo do pensador católico, glorificado em inúmeros documentos pontificais, dos quais alguns são recentes.
Os princípios de sua política encontram-se na segunda parte da “Suma Teológica”, no (mui livre) comentário sobre a Política de Aristóteles, e no pequeno Tratado sobre o Governo dos Príncipes dirigido ao Rei do Chipre (uma de suas partes é debitada a um seu discípulo). Só podemos oferecer aqui breve esboço de alguns temas relevantes.
Ainda que fosse imbuído de inspiração religiosa e moral, a política tomista não é um moralismo estreito, no sentido que definimos na primeira lição.
O homem é naturalmente sociável (como para Aristóteles, mas com algo a mais: a noção cristã de caridade). São Tomás repugna a atitude individualista, forma larval da anarquia, mas não é totalitário, óbvio. Entretanto, sua doutrina também não é um “personalismo” (equívoco de Maritain a esse respeito, notado sobretudo por autores canadenses, espanhóis e italianos).
Em São Tomás, a idéia de Lei cumpre um papel de destaque, o que explica a forte influência que exerce até aos dias de hoje em todas as espécies de juristas. Há uma lei eterna, fundada em Deus; uma lei natural (escala de valores, tornando nossos atos intrinsecamente bons ou maus, independente de convenções sociais); e uma lei positiva, que varia segundo os lugares e os países. São Tomás não professa o relativismo historicista de muitos pensadores, nem o racionalismo de tipo supra-temporal e abstratista, à moda de Rousseau: tem em grande consideração a diversidade das civilizações.
Isso explica mormente a teoria dos diferentes regimes políticos. Se ele considera a monarquia como o regime menos imperfeito, por causa da unidade e da continuidade que assegura ao poder, sem contudo sacrificar as diversidades legítimas, como ocorre com a tirania ditatorial – não pretende, por outro lado, que ela convenha de modo indistinto a qualquer país e época. O papel que outorga ao consentimento popular dá lugar a divergências de interpretação, até mesmo a contra-sensos. Alguns, tais como Gilson, ao usar da fórmula “alicujus vicem gerentis multitudinis”, impelem- no à democracia em sentido moderno. Outros o levam para um sentido maurrasiano. A bem dizer sua posição não coincide com nenhuma dessas visões, se bem que seja mais próxima da segunda que da primeira.
São Tomás admite a sedição contra a opressão, quando todos os outros meios de se fazer justiça fracassaram e a tirania é mesmo intolerável desde que haja real oportunidade de sucesso e não arrisque, ao se rebelar, trazer maiores males que os que poderiam sofrer.
No caso das relações entre poder temporal e espiritual, formula princípios que se tornarão cada vez mais, de modo assumido, a doutrina oficial da Igreja católica. É a dita teoria do “poder indireto”: o temporal é soberano em sua própria ordem (São Tomás repugna a teocracia, que obcecara certos canonistas e teólogos), mas subordinado ao espiritual no que tem de moral e religioso. (Rejeitar essa idéia é ademais professar o maquiavelismo ou o amoralismo político. Provamos de suas conseqüências desde há alguns séculos!).
- Dever-se-ia falar também de sua teoria da justiça, em matéria individual e coletiva. São Tomás diz por exemplo que só podemos exigir uma vida virtuosa se dermos às pessoas meios de levar uma vida material decente.
Concluímos com a frase de um jurista, o qual está longe de ser tomista: “apesar de se darem novas formas às expressões dos [velhos] problemas, os filósofos do direito [ainda] não puderam resolver as questões fundamentais apresentadas por São Tomás para além dos limites assinalados por ele – tratem das relações da moral e do direito, do direito de rebelião ou de liberdade individual, todos os pensadores são obrigados a antes solucionar, seja total ou parcialmente, os problemas cujos elementos São Tomás enunciara” (Brimo, “Pascal et le Droit”, Sirey).