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Category: Jackson de FigueiredoConteúdo sindicalizado

Jackson de Figueiredo (1891-1928) foi o célebre fundador do Centro Dom Vital e da Revista A Ordem.

Ainda o bolchevismo mexicano

O nosso confrade da imprensa mexicana, professor general Dr. Elias Calles, no artigo com que honrou, dias atrás, um dos diários desta Capital, soube mostrar, ao menos, que, como publicista, tem tanto ou mais coragem do que como chefe de Estado. Filósofo – porque já um plumitivo nosso provou à saciedade que foi mestre-escola em seu país – a sua argumentação é das que não precisam amparar-se em provas e fatos, e de si mesmo resulta evidente aos olhos de todo homem de boa fé. O seu mal são alguns esquecimentos.

O judeu vermelho dá como provado, por exemplo, que o mundo civilizado admite, aceita, acata e defende a concepção pagã do Estado senhor absoluto das consciências, não só de fatos, mas de direito. Dado isto, é claro: o Estado mexicano tem uma Constituição política que prescreve tais e tais rigores contra a família, a escola confessional, a Igreja, as tradições mais legítimas da nação mexicana. Logo, não há que discutir: à nação nada mais cabe fazer que obedecer, paciente e pacificamente.

Ora, o que o mundo civilizado está demonstrando é justamente o contrário do que dele diz o ilustre Calles.

Em primeiro lugar, se a principal tendência do Estado moderno é realmente essa de sobrepor-se violentamente a todas as outras expressões da vida em sociedade, a verdade é que só a mais crassa ignorância, a mais positiva incapacidade de observação ou a mais refinada má fé, poderá fugir à verificação de que todos os povos cultos já reagem, a esta hora, contra uma tão absurda volta ao passado, pois até mesmo nos países em que se implantou o poder pessoal, sob formas ditatoriais, a verdade é que se inicia uma fase de transição entre a tirania do Estando burocrático e a harmonia entre o poder político e as demais forças que, em planos diferentes, são, no entanto, tão necessárias como aquele poder à conservação da sociedade.

Mas quando Calles parece defender uma tese sobre os fundamentos do Estado moderno, a realidade é que devemos ouvi-lo em silêncio.

Deus me livre de trazer para aqui o que de tais generais e, principalmente, dos coronéis, ou pretendentes a generais, enfim, de tais caudilhos e caudilhotes disse ainda em 1920 o insuspeito, o insuspeitíssimo Blasco Ibañez no seu livro “El Militarismo Mexicano”.

Juro que ainda não houve bispo ou frade, nem mesmo mexicano, que mostrasse tão nua e cruamente a verdade verdadeira sobre o valor filosófico e moral dos atuais dirigentes daquele pais e eu avalio o que não sofreu o governo espanhol do general ou coronel embaixador que representava em Madri a soberania mexicana...

Mas voltemos aos esquecimentos de Calles periodista, e defensor do filósofo (estadista) Elias Calles.

O segundo deles é que, protestando sempre contra leis absurdas e imorais, arranjadas a coice de armas por uma mazorca vitoriosa, o Episcopado mexicano protesta, antes do mais, neste momento, e com maior indignação, é contra a infame maneira de executá-las.

Eu sei bem que, mesmo antes de sair ele próprio a defender-se sobre esta matéria, não se esquecera o judeu eminente de recomendar aos seus representantes o digno esquecimento de que ele mesmo dá exemplo.

Assim, “El Universal” do México, com data de 14 de julho deste ano, e também insuspeito, ao que parece, de clericalismo e outras coisas horríveis, confiava aos seus muitos leitores estas deliciosas reflexões sobre a atitude do oficialismo mexicano em face da questão religiosa:

“Asombra desde luego la homogeneidad de pensamiento de todos nuestros cónsules en el estranjeiro, hasta el del señor Otálora, que es español, si no mienten mis noticias. Se dice que donde hay dos mexicanos, hay tres pareceres. Ello podrá ser cierto por lo que troca al vulgo, pero de la regla se sustraen los cónsules mexicanos, que poseen uma maravillosa unidad de pensamiento para decir todos en todas partes las mismas cosas com respecto a la cuestion religiosa; en otras matérias discreparán, pero en ésta la uniformidad es conmovedora: no se persigue a nadie por cuestiones religiosas en México; solamente se aplica la ley; ley que México tiene el perfecto derecho de hacer en la forma que le dé la gana y sin que a ninguno le importe; por otra parte, la ley es muy buena, pues todavia perdona la vida a los católicos y a los curas... Lo único que ahora se pretende es, simplemente, reducirlos a polvo impalpable; por lo demás, la libertad de consciencia es uma de las más preciadas conquistas de la revolución.

He aqui el compendio y resumen de todas las declaraciones de nuestros disciplinados cónsules”.

O testemunho dos católicos, pois, não se baseia em criações do medo ou no “estilo talismânico” – como diria Gobineau – dos representantes do Sr. Elias.

“Desconsolador espetáculo – diz o Sr. C. Eguia – es el que los governantes actuales continuan alli sin traba la expoliación y el latrocínio oficial de templos, como el de siete Iglesias católicas Del Estado de Tabasco, definitivamente arrancadas al culto por no sujeitarse los sacerdotes a la imbecil lei tabasqueña, que entre otras cosas obligaba a los curas a casarse”.

É diante de semelhantes misérias, provocadas pelos delirantes interpretadores ou deformadores de leis que, de si mesmas, não mereceriam o respeito da mais degradada tribo africana, que já em fevereiro o nobre Arcebispo de Morelia, D. Leopoldo Ruiz dirigia o seguinte apelo a um dos membros do bolchevismo mexicano:

“Señor Secretario del Despacho da Gobernación: La situacion de los católicos es intolerable por las patentes violaciones a los poquissimos derechos que la Constitucion las reconoce, al clausurarse e intervenirse, sin processo ninguno, sin orden escrita y sin dar lugar a defensa, seminários, colégios de instrucción normal y comercio, que no están comprendidos em el art. 3o. de la Constitucion; escuelas primarias, secundarias y superiores que funccionaban dentro da ley; orfanatorios, asilos y casas de beneficiencia, sostenidos por la caridad publica; todo sin miramiento alguno a las garantias individuales y com grave prejuicio de las victimas”.

Eis ai o que dizem os católicos, pouco preocupados com o saber filosófico dos primários mexicanos, mas conscientes de que, acima de todas as magicancias e truanices de qualquer filosofismo, estão os direitos naturais, digamos assim, da consciência humana, atacados todas as vezes que se diminui o prestígio da família ou se não consente a afirmação da verdade cristão em toda a sua inteireza.

E nós, cidadãos de qualquer país da América, sabemos perfeitamente do que pode a força bruta quando se rotula com qualquer título de legitimidade jurídica, dentro do Estado, não raro com a só legitimidade de vitória tão brutal quanto passageira.

Pois é contra o que podem tais governos, nascidos da anarquia e da revolução, e mantenedores da revolução e da anarquia, é contra esses paradoxos da nossa vida social, que nos levantamos, todos nós, os que aspiramos à estabilidade da civilização nas terras da América.

Nós sabemos que “Civilização e Cristianismo são termos sinônimos” e que não existe sociedade latino-americana onde não impere a tradição da Igreja católica, que a criou.

Os filósofos do México serão como os seus generais e coronéis descritos com tanta graça por Blasco Ibanez.

Pois façam as suas gigantescas correrias pelo campo político: destruam-se à vontade mutuamente. Mas não ousem desrespeitar o que é propriamente a sociedade americana, coisa menos efêmera e mais séria e mais respeitável, que os diversos estilos governamentais que ainda nos afeiam a paisagem espiritual, mas nos preocupam pouco, quando os olhamos um a um...

Sabemos que eles duram menos que as célebres rosas do senador Azeredo, e que o que temos a vencer são as condições também “sociais” que ainda permitem a criação de tais monstruosidades.

É por isso que o que se está passando no México tem provocado o protesto de todos quantos formam, conscientemente, o que com orgulho pode chamar-se a civilização americana.

É que os crimes que ali se estão cometendo alcançam coisas ainda mais sagradas que as que limitam o domínio propriamente político. São injúrias, são calúnias, são tentativas de morte contra a própria consciência do México, contra a sua integridade moral.

(Gazeta de Notícias, 8 de Setembro de 1926)

Ainda a perseguição no México

O mundo é assim... Enquanto que, em nome da fé católica, e os que me contraditavam, como inimigo da Igreja, aqui mediamos forças (algumas das quais — diga-se entre parêntesis — incrivelmente inadequadas a uma luta de idéias), esquecíamos, ao que parece, o que, unicamente, tínhamos a debater, isto é, a inumana perseguição de que era vítima a população católica do México.

Mas a tempestade diplomática, também ao que parece, está terminada, e tanto eu como os meus contraditores, todos nós, enfim, continuamos nos nossos postos respectivos, gozando com serena consciência, a santa paz de quem cumpriu o dever...

Ainda pior, porém, que os puros entes de razão, são os puros entes de vaidade. E esta paz ou calmaria, em que nos deparamos, é uma coisa assim...

Eu, pelo menos, não me deixo dominar por eles durante muito tempo.

No caso presente, pois, já é tempo que nos esqueçamos de nós mesmos, e voltemos a protestar contra a pedantesca barbaria que, mais uma vez, soube engrossar os traços da caricatura de civilização americana, e, aos olhos do mundo, atormenta e maltrata milhões de criaturas.

Porque, ou mentem as agências telegráficas ou o México continua sendo esse campo de tragicômicas experiências, de mais um desses grupos de vândalos, que costumam irromper nos domínios da vida social da América, para vergonha da espécie humana.

E não há aqui discutir religião ou metafísica. Com quem, aliás? Ao mundo civilizado pouco importa saber que o ilustre ministro do Interior do governo do não menos ilustre Sr. Elias, é contra a revisão constitucional pedida pelo Episcopado mexicano, porque julga S. Ex. que ceder, seja o que for, ante as reclamações da Igreja é retrogradar no caminho das conquistas filosóficas!!

Oh! As conquistas filosóficas do México!

Elas devem ser realmente assombrosas, a julgar pelos grandes homens que as personificam, neste momento.

Não terá sido sem profundas e meditadas razões que uma das altas autoridades religiosas dos Estados Unidos, o Sr. Arcebispo de Baltimore, disse a respeito desses filósofos as seguintes palavras, que cito no espanhol da revista de que as transcrevo: “No ovidemos a Puig Casauranc. Si tenemos em cuenta lo que deve ser un ministro de Estado, Puig no podria serlo. De hecho no hay un solo hombre en el Gabinete de Calles que dé la talla. No hay uno entre ellos que pueda resistir um escrutínio.

Vários de los ministros rojos no se atreven a pasar el Rio Grande. Se les desea em esta nación para juzgarlos por asesinato y bigamia. Por eso envian a Puig para que pueda llegar hasta Washington”(Sal Terrae, julho, 26, 556).

Admiráveis filósofos, não resta dúvida!...

Com relação à Igreja, o mundo civilizado, mais modesto, menos arrogante, preferirá ouvir a palavra de um Godofredo Kurth, por exemplo, de certo mais autorizada, em matéria de civilização e de cultura, que a de qualquer destemido e feliz tropeiro, a quem a enxurrada dos “pronunciamentos” tenha impelido até o poder... até o poder tal como ainda é possível firmar-se na América, sobre base mista de inconsciência e presunção, de crueldade e covardia.

O grande pensador dela assim falava:

“Que se trace sobre um mapa as fronteiras da civilização: perceber-se-á que se traçou as do cristianismo. Escrutemos as camadas superpostas da sociedade para ver até que profundidade penetrou o trabalho do espírito civilizador, e verificaremos que ele para no limite preciso alcançado pelo princípio cristão. Em uma palavra: civilização e cristianismo são dois termos equivalentes. Hoje, como nos primeiros dias da Igreja, a vida moral não tem outra atmosfera que não a da lei cristã: In ipso vivimus, movemur, et sumus.

E o princípio cristão, aquele que, no dizer do mesmo Kurth, realizou a maior e mais pacífica das revoluções que registram os anciãos do mundo, é este: Dai a Cesar o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

O ilustre Valenguela, ministro mexicano, está convencido do contrário... Que se há de fazer, em matéria de convicção? Leibniz sabia bem o que dizia quando dizia: se a verdade matemática que os três ângulos de um triângulo fazem dois retos implicasse interesses morais, já teria sido negada um sem número de vezes.

E Leibniz falava a gente culta de verdade.

Que se pode esperar dos interesses morais, das paixões, dos impulsos de ambição dos pobres diabos que a política americana sacode não raro a alturas estonteantes?

Não devemos esquecer nunca as palavras do grande Libertador: “Tenhamos sempre presente ao espírito que nosso povo não é o Europeu o Americano do Norte; que ele é mais um composto de África e de América que uma emanação da Europa, porque a própria Espanha deixa de ser européia pelo seu sangue africano, pelas suas instituições e pelo seu caráter”.

São palavras de um pessimista, e não devemos temer o que elas contém de excessivo amargor, e só as cito aqui para escarmento de rastaqüeras culturais e metecos endomingados.

Mas não resta dúvida que o que se verifica na vida social latino-americano é uma luta sem tréguas entre o sentido europeu, ou cristão, e a barbaria, que também nos veio da Europa, mas não é de sua essência, e aqui achou meio próprio, e aqui foi reforçada pelas mais diversas correntes de podridão humana.

Seja como for, teimo em repetir: diante do que atualmente se passa no México, ninguém deve perder tempo em discutir o valor da Religião, o que é Civilização ou que é o Direito.

Há somente que protestar-se, e com a maior veemência, contra o desrespeito mais estúpido a todo o sentimento de humanidade. O que aí está em perigo é a própria dignidade humana, na sua expressão mais simples.

A história não conhece sociedade humana sem base religiosa. No México, a esta hora, é o Estado revolucionário e armado com o só direito da força bruta, que legisla como não se ousaria, nem na cidade pagã, legislar para escravos...

É ele quem fere a personalidade em cada cidadão, é ele quem quer impor a uma multidão de homens, vivendo em sociedade, que se transforme em puro ajuntamento de formas sem consciência.

Isto não é política, sob aspecto algum, e muito menos se poderá chamar de política nacional. Pelo contrário: é a negação da própria pátria, porque não se conhecem pátrias sem tradições, sem vida, sem demarcações espirituais, e, por conseguinte, sem religião.

“Dizer que eu devo obedecer a tudo o que uma assembléia política achar necessário estabelecer, ainda contrário seja à minha fé, à minha Religião, é o mesmo que dizer que eu não devo ter nenhum Deus, nem fé, nem Religião, nem consciência, mas entregar-me, como um escravo bruto, nas mãos dos governadores políticos, para que eles, nisto como em tudo o mais, façam de mim o que entenderem. É a mais aviltante abdicação da dignidade ‘humana’”.

Foi assim que, no Brasil, respondeu quem encarnava a consciência católica a um governo que tentou sofismar, entre nós, o direito de ser homem, “uma criatura de Deus, a Deus destinada”, e não uma simples “larva aperfeiçoada, unicamente originaria das fermentações do lodo da terra”.

No Brasil, venceu, por fim, a consciência católica, a liberdade de ser digno, de ser homem na plenitude da posse de si mesmo.

No México hão de vencer também os que se batem pela Verdade.

Crucificada e sepultada, Ela ressurgiu em todo o seu divino esplendor, no limite originário da era cristã.

É esse o exemplo eterno que ficou aos filhos da Igreja.

Eles sabem que a violência é, por essência, passageira, e que a Igreja tem por si a promessa de Jesus Cristo: não prevalecerão contra ela as portas do Inferno.

Uma coisa, porém, é não temer que o governo do México destrua a Igreja, e outra é ver-se o sentimento cristão do mundo inteiro desrespeitado e insultado por um vago general mexicano, e por uns ainda mais vagos mandatários seus, máxime quando esses desrespeitos e esses insultos são feitos com o sangue e as lágrimas de um nobre povo, dominado, brutalizado pelos mais odiosos processos da sofisticaria e da força bruta.

Ë contra isto que protestamos, é contra isto que a consciência dos povos latino-americanos se deve mostrar severa e rigorosa, como graças a Deus se vai mostrando.

  

PS. Após ter escrito estas linhas, verifico que Elias Calles é também jornalista.

Não faz mal que Marte desça e venha lutar contra os simples mortais. Aqui, pelo menos, encontrará contraditores.

Ele bem sabe que, no México, ninguém ousaria rebater-lhe aqueles seus tão sérios argumentos do fuzil e da baioneta.

E eu me comprometo a vir mostrar em breve o que tem sido a “execução” da famosa carta constitucional a que defende, e, principalmente, se a agitação católica naquele país tem mesmo a significação que ele quer emprestar-lhe, ou se vale como indignado protesto da consciência humana, não só contra leis absurdas, mas também contra interpretadores ainda mais imorais do que elas em si mesmas.

Veremos os testemunhos de que me valerei.

Sei perfeitamente que toda a discussão com homens de má fé é coisa, por assim dizer, inútil.

Mas trata-se de esclarecer o povo brasileiro sobre o martírio do grande povo irmão, e não de convencer os tiranizadores do México.

Contra estes, o protesto puro e simples, como venho fazendo, e hei de fazê-lo enquanto a consciência de cristão mo exigir...

(Gazeta de Notícias, 1 de Setembro de 1926)

Do meu autocratismo...

De um amigo, que de verdade é amigo, e cuja amizade honra, acabo de receber uma carta em que me assegura toda a sua solidariedade, atuante do seu jornal, no caso em que, ao que se diz, ando envolvido com o Sr. Embaixador do México.

É um gesto que me comove e desvanece. Mas se as iras do Sr. Embaixador são realmente verdadeiras, eu espero que solidário comigo há de ficar todo o Brasil digno deste nome, ou, pelo menos, tudo quanto, entre nós, represente uma lúcida e sólida harmonia entre a nossa dignidade e a nossa cultura.

Um ponto, porém, me merece reparo, na missiva que tão de perto me tocou o coração, e é o seguinte:

“Agora – diz-me ele, finalizando – permite ao teu velho amigo uma observação: o que se passa no México é uma aplicação da tua doutrina sobre a supremacia da autoridade e da ordem sobre a liberdade. Tens, ali a demonstração viva e dolorosa, de que o meu liberalismo é menos nocivo do que o teu autocratismo ...”

Permita, por sua vez, o querido amigo, que lhe responda de público. Primeiramente, porque há verdades que devem ser ditas sempre em voz alta, tão certo é que muita gente lucra com ouvi-las. Em segundo lugar, porque não me cansa rebater acusações como a que tão delicadamente me faz. Responder ao insulto e à injúria é, realmente, uma ingrata tarefa e raramente os tenho deixado sem resposta.

Porque, pois, não ter paciência diante do que é convicção sincera, e, às vezes se baseia em múltiplas aparências de verdade?

Ademais, tenho consciência quando me defendo, de não defender produto algum de vaidade intelectual, nenhum arranho da minha imaginação ou da confiança em mim mesmo. Pelo contrário. Ninguém, até hoje, teve mais perfeita certeza de não ser original, de não ter originalidade de qualquer espécie. Com todas as minhas misérias de homem, com todas as falhas meu temperamento e da minha educação, do ponto de vista intelectual, jamais me apresentei senão como soldado da Igreja Católica, jamais defendi senão o que ela ensina, desde que tive a graça de poder penetrar o espírito e a grandeza dessa escola de ordem e disciplina.

Como seria possível, pois, que eu pugnasse por um autocratismo qualquer, por um governo ou sistema de idéias que pudesse levar logicamente as infâmias ora praticadas no México?

Não, o meu ilustre amigo está absolutamente enganado, e desafio-o, como a outro qualquer homem de boa fé, a que aponte na minha obra doutrinária – muito da qual está reunida em livro – uma só página que justifique tal acusação.

Não venho discutir aqui o fundamento do Direito conforme a Igreja, nem a fortaleza da sua complexa, mas perfeitamente determinada teoria da autoridade. Se, por acaso, o homem ilustre a quem me dirijo não leu ainda a Introdução de Godofredo Kurth a sua obra magistral: Les origines de la Civilisation Moderne, eu desejaria que o fizesse, e, de uma vez por todas, lhe ficaria noção clara do que tenho escrito, até hoje, relativamente a constituição, por assim dizer, natural dos povos cristãos. Não quero mais, nem menos. Jamais escrevi uma só palavra com a qual se possa provar que, doutrinariamente, me separo do que regra e quer a Igreja.

Mas dirá o amigo ilustre: que não posso negar ter já escrito, mais de uma vez, que o pior governo é melhor que a melhor das revoluções.

E então?

A minha resposta é simples.

Da Reforma e, principalmente da Revolução Francesa, aos nossos dias, a civilização ocidental atravessa uma terrível crise, na qual, sob pretexto ou com a intenção de proteger-se a liberdade individual, o que se tem, de fato, é anulado esta em todas as suas manifestações objetivas, e em proveito de uma abstrata Liberdade (com L grande), que não é mais do que o bel-prazer de uma outra terrível abstração: o Estado neo-pagão, senhor novamente das consciências e acima dos organismos naturais que o antecederam na vida social. Essa abstração tornou-se, pois, a única força realmente dominante no mundo moderno e, como tudo que se refere ao homem, encarnada nos homens que a exploram a cada momento.

Dessa situação de fato, dessa fundamental contradição das sociedades contemporâneas, nasceu, como era de prever, a teoria de que a força é a geradora normal do direito, e as revoluções, e não já somente a Revolução, foram pouco a pouco parecendo meios normais de oposição e combate aos abusos do poder. Ora, fora preciso que a sociedade tivesse perdido de todo a fé no Direito e nos protestos da consciência cristã, para que se justificasse uma teoria tal, absolutamente prejudicial a todos os povos, pois é claro como o sol que ela estabelece um círculo vicioso de revoluções, todas salvadoras e todas decepcionantes.

Deste modo, como a autoridade é a condição mesma da liberdade, (pelo menos na vida do homem histórico e conhecido) o que é preciso, no mundo moderno – e tão preciso que ele mesmo está realizando em países da mais alta civilização – é reforçar o princípio de autoridade, mesmo com aparente prejuízo, e sempre passageiro, de interesses particulares.

A verdade é que a sociedade moderna procura o seu leito natural, que é aquele em que se harmonizem Autoridade – que lhe permita estabilidade e conseqüente realização dos seus fins – e liberdades que homenageiem em cada homem essa liberdade moral, que é a sua característica na face do planeta.

Ora, com relação à América e principalmente, ao Brasil, é isto que tenho pregado: o pior governo que ainda nos garanta a simples polícia, o respeito das leis particulares, é melhor que o salto no escuro mais bem intencionado, isto é, é melhor que a melhor das revoluções.

É, então, para os homens dignos deste nome, e, principalmente, dignos do nome de cidadão, não fica de modo algum mais restrito o campo da atividade política digna, por sua vez, de ser acatada, desde que se anuncie como norma de conduta o que muitas vezes tenho enunciado: não é com as armas e a violência que se deve combater os abusos do poder, e, sim, com atos de dignidade, com todas as formas de resistência calma e serena e, sobretudo, com exclusão de qualquer ato de subserviência àqueles mesmos que ajudamos na rude tarefa de governar.

Se o atual governo brasileiro, ao invés de lançar mão da força para combater a força — pois há momentos em que o direito tem de necessariamente armar-se de toda a força que lhe é possível reunir — o atual governo, ao invés de combater mais uma das muitas revoluções que nos têm perturbado —  sem se saber bem o que elas querem — quisesse, em plena paz, revolver os fundamentos morais da sociedade brasileira ou ferir-me particularmente, em um direito meu adquirido, creio que o meu velho amigo não põe em dúvida que eu o combateria com todas as forças da minha consciência, sem, que uma só vez, no entanto, me fizesse pregador de revolução ou de assassinato, como tenho visto fazer muitos dos chamados espíritos liberais.

Mais ainda: se o governo brasileiro viesse amanhã, como no México, a desrespeitar todos os direitos naturais e as mais santas instituições sociais, anteriores à formação da República e ainda do Império, devo dizer que o doutrinário que sou nada mais pregaria que a resistência passiva a todas essas infâmias, e é o que no México estão fazendo todas as autoridades religiosas e todos os católicos de responsabilidade.

Mas nem a graça altera a natureza do homem, nem a fé o isenta de paixões, nem há mais terrível tentação que a do desespero. E se o povo brasileiro desesperasse na luta contra uma tirania, que a tal ponto o quisesse aviltar, não é impossível, é mesmo muito possível, que eu tomasse parte na revolução ou no levante com que buscasse vingar os seus direitos de viver tal como a si próprio se conheceu sempre, desde que surgiu para a vida.

Não sei se estaria em erro, mas sei que não há doutrina cuja prática não ofereça passageiras síncopes teóricas, como essa que idealizo, e puramente no que se refere a sua forma. O essencial é o amor da Ordem, e este não teria alteração. O que não é possível é erigir como teoria de verdade política uma simples doutrina revolucionária, indefinida, incaracterística, formada, a cada momento, ao sabor dos acontecimentos os mais vários.

O que se pode jurar é que quem assim fala não pode ser responsabilizado pelo derramamento de sangue brasileiro. Poder-se-á fazer o mesmo em relação aos pregadores de revolução em nosso país?

Eu não me alimento de palavras. Eis tudo.

A palavra democracia não substitui, a meu ver, as reais franquias e liberdades que todo governo forte pode garantir.

E bem sabe o meu querido amigo que não sou um insulado nesse modo de pensar. Ponha-se de parte o que é pensamento propriamente católico e ver-se-á que, mesmo no chamado século estúpido, em que a chamada democracia tudo mediocrizou e envenenou, o que se salva de verdadeiramente digno de atenção está além da revolução burguesa e judaica, ou contra ela, radicalmente.

“A maioria dos pensadores do século XIX – diz o insuspeito Faguet – não defende a democracia e era este o meu desespero quando escrevi os meus “Políticos e Moralistas do século XIX”. Não encontrei um só que fosse democrata, apesar do muito que desejava, encontrei-o para fundamentar nele a doutrina democrática”

E Antonio Sardinha, aproveitando uma frase de Taine, do também insuspeitíssimo Taine, contra a Revolução Francesa, assim resume o seu e o meu modo de pensar sobre as revoluções em geral: “As revoluções são sempre assim: “une petite feodalité de brigands”. E por mais que se revistam de aparentes reivindicações sociais ou nacionais, não redundam senão em benefício de uma casta de aventureiros, cobiçosos de se enriquecerem e de mandarem. As declamações das misérias do povo e as concomitantes investidas salivosas contra a opressão dos poderes tradicionais, são o caminho sabido por onde a sua astúcia sem escrúpulos envereda resolutamente e com êxito”.

Este é o meu ponto de vista, e ele não implica, de modo algum, apoio, de qualquer espécie, a governos tirânicos e essencialmente revolucionários, a governos que esqueçam os direitos de todo o ser humano a ser respeitado como criatura de Deus. Poderia sofrê-los, mas apoiá-los nunca. Pelo contrário, se me conheço, quase que posso afirmar que estaria entre os primeiros que no Brasil se levantassem contra um jugo que tentasse aviltar-nos, desrespeitando-nos em nossos lares, nas nossas crenças, na nossa dignidade cristã, enfim.

O que eu não farei nunca é confundir tirania com qualquer governo que seja, mesmo forçado a desrespeitar sofismas revolucionários, repelindo com armas na mão os que só às armas recorrem, quando se sentem feridos em direitos particulares, às vezes bem duvidosos.

Há alguma coisa bem mais sagrada a defender que as declamações dos ambiciosos, e esta é a paz dos nossos lares.  

(Gazeta de Notícias, 18 de agosto de 1926)

Civilização e barbária

Diante de fatos como os que se passam no México, atualmente, uma coisa, que se impõe a todo espírito verdadeiramente livre, a todo homem capaz de pensamento despreconceituoso, é a identificação do princípio civilizador, em meio das múltiplas forças que como tais se apresentam no cenário do mundo.

Porque não há charlatão ou bárbaro, não há pérfido ou louco com pruridos de reformador do gênero humano, que não fale em nome da Civilização, que não se apresente como seu vingador ou  seu profeta.

O anarquista mais cínico, o estadista mais desbriado, não propunham outro fim, não querem outra coisa: a defesa da Civilização, quando não a sua conquista, custe o que custar. Também o homem de boa fé e o simplesmente ingênuo assim procede: “A realização de um dado ideal da sociedade humana é o que os impele. Mas, diz Godofredo Kurth, é quando se tenta dizer em que consiste esse ideal é que as dissidências aparecem, e com tanto maior violência quanto a questão é das que apaixonam todo o gênero humano”. E é quando se fica em face desta questão, como agora, que justamente convém recordar as dificuldades vencidas pelo grande historiador belga, no seu propósito de determinar, não só o caráter da civilização ocidental, como no de definir de modo claro e positivo o conceito de civilização em geral.

Kurth lembra que em vão os cépticos procuram esquivar-se a tão grave problema, alegando que uma sociedade perfeita é impossível. Se, de fato, olhada em cada um dos seus membros, toda sociedade está condenada a uma perpétua imperfeição, não é menos impositiva a ânsia de conquistar a possível perfeição social, que consiste somente numa tendência a perfeição absoluta, isto é, a permanência, em um dado meio, de um princípio de organização que coordene todos os elementos, ou melhor, que tendo em conta as suas falhas naturais, lhes dê as condições mais favoráveis ao seu contínuo aperfeiçoamento, o que equivale a dizer que “não se concebe uma definição exata de civilização sem um prévio conhecimento da pessoa humana, toda sociedade consistindo apenas, realmente, em uma reunião de pessoas”.

O fim da pessoa humana, eis o que há a indagar antes de qualquer indagação sobre o fim da sociedade, pois é claro que, desde logo, ficará prejudicada toda ideologia social que contrarie esse fim adequado à essência de cada um dos elementos componentes de uma dada sociedade.

Ora, a questão sempre presente há quase dois mil anos é a se o Cristianismo corresponde ou não ao ideal da civilização quando este seja assim definido: “A perfeição social, ou, em outros termos, a civilização consiste na forma da sociedade que ofereça aos seus membros o maior número de facilidades para atingir o seu fim último”.

Godofredo Kurth diante desta questão não se limitou, como também outros, a declamar pró ou contra o Cristianismo. Ninguém mais do que ele ousou aprofundar o espírito social do paganismo, na sua mais perfeita organização, estudando a concepção do Império, não só na sua realidade histórica, como no seu princípio gerador e conseqüentes desenvolvimentos teóricos. E o que ele pôde verificar foi o seguinte: a Antigüidade “impôs” ao homem que o homem é feito para o Estado, e quando este foi forçado, como no caso romano, a encarnar-se num só homem, este homem, onipotente como o próprio Estado, acabou por ser aceito como uma divindade, regulando, não só as relações exteriores de homem para homem, mas até as do foro íntimo de cada um, como senhor das consciências, causa e fim da vida não só externa como interna de cada um dos seus súditos.

E não se trata aqui de um estado de coisas ideal, somente almejado. Não. O império realizou-o, e o vulgar dos homens, e o escol da humanidade, a superstição como a filosofia aceitaram-no de coração alegre, e conscientemente. Platão e Aristóteles fizeram a sua apologia e o aforismo do maior jurisconsulto da antiguidade – nota Kurth – formula as conseqüências de tal aceitação, com uma precisão irrepreensível: “O bel prazer do príncipe tem força de lei, pois que, em virtude da lei real, que é a fonte da sua autoridade, o povo lhe conferiu e a ele incorporou todo o conjunto dos seus direitos e dos seus poderes”.

Como se vê, o que vivifica, se assim pode se dizer, uma tal sociedade é um materialista tão grosseiro quanto violentamente dogmático. O fim do homem está em si mesmo, e quando a sociedade – composto de homens – é forçada a resumir-se num só homem ou num grupo de homens, esse homem ou esses homens se apresentam como fim de toda a atividade humana. Sejam quais forem os cultos, que nasçam da necessidade iniludível, de relação com o sobrenatural, a verdade é que o Estado é a única força diretora das conseqüências, e que o Estado representa o “deus presente e corporal” da antiga fé.

Estamos aqui - diz Kurth – no coração do cezarismo e em face da última palavra da política pagã.

Mas, pode haver coisa mais clara do que o absurdo de uma tal concepção da vida humana? Poderá imaginar-se maior rebaixamento da dignidade humana que essa escravização do homem ao homem, que essa imitação das suas aspirações de felicidade?

Sabe-se o que resultou da realização desse ideal no seio do “tipo mais completo da sociedade pagã”: desrespeitadas todas as tendências naturais do homem, aquele que fora elevado à categoria divina, desceu quase sempre abaixo dos animais, pela grosseria do instinto de mando, absolutamente sem controle”, e os governados, reduzidos a meros instrumentos do prazer do Príncipe, nem felizes nem mesmo unidos, como haviam esperado, mas divididos e lançados uns contra os outros, e afundados todos na objeção do temor da perpétua incerteza.

É a essa hora que surge o Cristianismo. Veremos o que ele trouxe ao mundo, como força de reintegração do ser humano na sua própria natureza. Veremos depois o que trouxe o Estado moderno, que quer substituir o Cristianismo na direção dos homens.

E há de se ver de que lado está a civilização, de que lado está a barbárie, na luta que, com maior ou menor brutalidade, atualmente se trava, em quase toda a parte na face do mundo.

 (Gazeta de notícias, 11 de agosto de 1926).

Ainda em torno de uma questão religiosa

Apesar da referência pessoal feita a mim pelo Sr. embaixador do México, em uma de suas últimas entrevistas, não venho discuti-las, propriamente. Não quero fazer mal a S. Ex., e elas já deixaram ver tão claro a pouca prática ou o temperamento anti-diplomático do ilustre mexicano. — S. Ex. critica publicamente o nosso ministro do Exterior e fala na possibilidade de um rompimento de relações entre os dois países... — elas já deixaram ver tão claramente que S. Ex. julga razoável manter para com os brasileiros a linguagem que o seu governo fala ao povo mexicano, [*] o seu admirável governo. Apesar dos seus admiráveis processos de política interna, é bem capaz de desautorizá-lo, como a quem esqueceu as mais comezinhas reservas que deve ao exercício de sua função...

Não quero, pois, concorrer para o desespero de S. Ex., máxime após a sua também pública confissão de que o seu governo é um derrotado em face da opinião do mundo culto. De S. Ex. basta-me isso. Da boca de um diplomata, do representante de um governo que diz ter as aspirações normais de todo governo, isto é, ser estimado e respeitado, aquela confissão vale como um dobre a finados... Sempre os sinos...

O que vale a pena discutir, em uma nação livre como a nossa, é o “fruto” da chamada Constituição, que o Sr. embaixador, como todos os representantes do atual governo do México, afirma será executada naquele país, caindo sobre a consciência dos que o formam como peso de irrecusável direito dos que já se apossaram do poder... O sofisma que batiza de “clericais” a todos os católicos que defendem seus direitos não poderia aparecer ali porque, como lei positiva a ser aplicada, o novo direito mexicano prefere desconhecer brutalmente a história da nação, e atuar como sobre seres nascidos com ele, indistintos ainda, sem memória, sem caráter próprio, e, à primeira vista, o Estado mexicano está em absoluta contradição com o axioma de moral política de que ele, o Estado, funciona para o país e para o que o “constitui”, pois todo o mundo sabe que só o México – abstração dos seus atuais dominantes, poderia ser esse organismo absolutamente neutro em matéria de fé religiosa.

Mas um juízo que assim se formulasse sobre o atual estado de coisas naquela República, e, sobretudo, sobre a sua suposta lei fundamental, ainda seria juízo positivamente inquinado de simplismo tal, de ingenuidade tal, que poder-se-ia confundir com a idiotice.

A pretensa Constituição do México não esquece a nação mexicana. Pelo contrário: tem-na bem presente, visa-a de todos os modos, mas para combatê-la, feri-la, despedaçá-la, humilhá-la e envergonhá-la, e o que os guia, nos seus autores e executores, em toda essa impatriótica campanha, é, justamente, esse anticatolicismo, que eles chamam anticlericalismo, tão mal escondido nas dobras da mortalha com que querem vestir uma nação que deve à Igreja de Jesus Cristo tanto, pelo menos, como qualquer outra nação americana.

“É do Estado, sobretudo, que depende o encontrar a pura política da Igreja, porque só a perseguição solidariza, nesta, os bons e os maus elementos”.

E é este sempre o processo dos miseráveis tiranizantes de consciência dos povos cristãos: coarctam, perseguem, espezinham, ensangüentam, e quando, a excessos tais, os católicos respondem com energia, protestam e fazem face ao despotismo, logo esses monstruosos títeres criam a lenda do clericalismo, e buscam realizar contra todos os católicos o que uma legislação, mesmo revolucionária e ateizante, só poderia fazê-lo contra um ou outro temperamento de católico mais inquieto e irrefletido.

O nosso grande jurisconsulto, Lacerda de Almeida, assim resume, na sua notável obra sobre as relações da Igreja e o Estado no Direito Brasileiro, a situação de fato da maioria absoluta dos governos contemporâneos:

“Os governos na época atual são mantidos pelo prestígio que lhes dá a organização aparente com que se combinam o capital, já meio desmantelado, a força dos exércitos permanentes, expostos cada vez mais à influência destruidora da indisciplina e do bolchevismo, e o funcionalismo, que é o mais seguro esteio das situações políticas, porque delas vive; todos esses elementos juntos a um resto de tradição, alimentados e aumentados pelos esforços da moral cristã e do espírito conservador do catolicismo, mal agüentam o estado atual das coisas, trazendo-nos sempre suspeitosos da segurança e estabilidade dos governos, e, em geral, da ordem estabelecida: o mundo inteiro parece estar sobre um vulcão, tal a desorganização que reina em tudo”.

Esta situação é o lamentável resultado — como o demonstra o mestre brasileiro — de ter o Estado moderno se originado de uma concepção absolutamente arbitrária de sua própria finalidade, concepção em que fica, por assim dizer, esquecida, a existência de um Direito ao qual estão subordinadas Constituições políticas e leis administrativas e civis, Direto que vive e desempenha o papel de censor, mestre e juiz de todos os atos legislativos, e não só os julga, critica e interpreta, senão que os vai aplicando, modificando, retificando e transformando ao sabor das circunstâncias, aos reclamos do tempo, e, sobretudo, às exigências da intuição jurídica nacional.”

Sabe-se que não incide o pensamento do mestre brasileiro em doutrinarismo hegeliano ou evolucionista. Aceitando as idéias profundamente ortodoxas de Vico, Lacerda de Almeida nada mais quer que acentuar “a existência de um Direito Natural e Superior, obra divina, que vai regendo os povos e lhes inspira as leis positivas, não só as corrige e critica, mas se insinua e domina a despeito de opiniões de partidos e de sistemas filosóficos de bom ou mau grado aceitos, em todo caso dissonantes da índole, da história e das aspirações da nacionalidade”.

E preceitua: “O direito é como a língua, uma coisa nacional e assim como a língua não é pura criação da raça, mas toma de empréstimo a outras línguas e vai buscar em um passado comum os elementos que a constituem; assim também o Direito: é nacional e tem raízes estrangeiras; zomba de quantas tentativas façam para desnacionaliza-lo, convertendo-o em espelho e cópia de instituições exóticas, ou, o que é pior, um campo de experiências para opiniões filosóficas e teorias de ideólogos por acaso guindados ao supremo poder”.

Dentro deste ponto de vista, rigorosamente filosófico, julgue o leitor brasileiro, católico ou não, que denominação merecem os atuais dominadores da grande nação mexicana, que não poderão jamais provar que seja uma exigência de sua pura intuição jurídica nacional o que os leva a desconhecer as normas mais comezinhas do Direito Natural, aquelas que garantem a qualquer povo o respeito a si próprio, às bases de moralidade universal sobre as quais se formou e se caracterizou como coletividade. Isto, como disse, de um ponto de vista rigorosamente filosófico.

Ora, de um ponto de vista histórico, no México, como em todo o mundo ocidental, não é possível negar que a Igreja, como sociedade orgânica, antecedeu ao Estado ou, pelo menos, que, ao lado dele, como ele, sofresse solução de continuidade que alterasse a sua natureza e fins dentro da vida americana. Mais do que em qualquer outra parte mesmo, é na América que se encontra a diferença essencial entre os dois organismos: “o primeiro — diz Demenran (L’Église) resulta de uma análise: é com efeito após a sua instituição divina, e conformemente às leis progressivas desta instituição, que a Igreja se dividiu em sociedades inferiores, distintas umas das outras, ligadas todas entre si pela mesma fé, os mesmos sacramentos e o mesmo chefe visível. O segundo resulta de uma síntese, pois o Estado deve a sua existência à união das sociedades inferiores preexistentes, tais como as famílias, cidades e províncias.”

Isto quer dizer que o Estado moderno (e o mexicano, pois), não encontrou as nações em estado de natureza, seja qual for a idéia, falsa ou verdadeira que dele se faça, é um condicionado à história do Cristianismo, e, em matéria de respeitabilidade, seria impossível contrapor a autoridade de qualquer desses Estados à autoridade da Igreja, que os ajudou a formar-se, a progredir e viver, enfim, vida digna de ser vivida.

“Por isso, um homem como Tainé, a quem certamente o Sr. Embaixador do México, por menos que o conheça, não ousará chamar de fanático, não recuava ante a afirmação de que, dentro do Estado tal como o conhecemos no mundo Ocidental, a Igreja Católica, “força social distinta e permanente e de primeira ordem, todo o cálculo político que não contar com ela, está errado”.

Ora, no domínio da realidade política, estamos diante dos seguintes fatos, segundo as próprias afirmações eu aqui se apresentam como oficiais: há atualmente um país de 15 milhões de católicos, que não são só excluídos, mas perseguidos como tais, por um grupo de indivíduos, que dizem encarnar o Estado naquele país.

Esse Estado, dizem eles que é a expressão da vontade daqueles mesmos quinze milhões de criaturas.

Eis tudo quanto se pôde compreender de tão grosseira quanto confusa literatura oficial mexicana, que tem chegado até nós.

E temos que crer no que ela diz, porque todo o mundo culto está aí a protestar horrorizado contra a existência, de fato, de uma Constituição mexicana, que é uma negação absoluta daquele povo, segundo os dados mais positivos da história.

Dessa literatura, toda a parte que constitui a defesa dos tiranizadores do México, não merece, como já dissemos, maior atenção. É a ideologia bolchevista através de uma mentalidade de tropeiros, é o radicalismo revolucionário e paganizante agitado por vaqueanos, embriagados pela água ardente de um poder que eles julgam eterno.

Parece incrível!

Para atacarem a Igreja, para justificarem as suas tropelias contra o lar mexicano, esses homens não recuam em caluniar os seus antepassados ou em lançar contra irmãos de sangue a pecha de traidores da pátria!

Parece que não foram poucos os “clericais”, os padres católicos, os fervorosos crentes católicos que contribuíram com o seu sangue e o seu denodo, para solidificarem a Independência do México, coisa, ao que também nos parece, mais séria, muito mais séria, que a solidificação das idéias de Elias Calles e seus comparsas, ante a consciência daquele país.

Os católicos do México, que se miram em tais exemplos, são hoje acusados por homens que os “representam” no estrangeiro, como capazes de atrair sobre o seu país as ganas imperialistas dos Estados Unidos!

A acusação é muito baixa demais para ser respondida.

Mas é, assim, que, em geral, fazem e obram os que, por ódio à Igreja, acabam por perder, de todo, o respeito que devem à própria pátria.

E, se pudessem, fariam mais.

Aquela palavra do personagem de Chesterton, eles talvez não a conheçam: “Começais por quebrar a cruz, mas acabareis por destruir o mundo habitável”.

Por que a outra, essa, eles a esqueceram: a que anunciou que o mundo habitável não permanecerá um dia mais que a Igreja visível e militante, fundada com o sangue de Jesus Cristo.

 
(Gazeta de Notícias, 4 de Agosto de 1926)

 


[*] palavra ilegível no original.

Paralelo edificante

A América do Norte é um país com cem milhões de habitantes, dos quais só dezenove milhões são católicos.         

O Chefe do Estado americano – que não governa, portanto, um país de maioria católica – na mensagem dirigida a Sua Eminência o Cardeal Mundelein, Presidente do Congresso Eucarístico, ultimamente reunido em Chicago, teve, entre outras, as seguintes palavras:

“Se pôde o nosso País alcançar algum sucesso político, se vive o nosso povo apegado à própria constituição, é porque as nossas instituições estão em harmonia com as suas crenças religiosas.

Daí a importância da vida religiosa da Nação. Assegura-lhe livre exercício o estatuto fundamental do País. Se progrediu a América no terreno econômico, se é ela hoje em dia a mansão da justiça e da liberdade, é graças às profundas convicções religiosas do seu povo”.

Estas são as palavras de Calvin Coolidge, mas não menos afirmativas, não menos brilhantes, não menos graves e comoventes são as do seu representante na sessão inaugural daquele Congresso, o secretário Davis, chefe do Departamento do Trabalho da grande República.

Eis um trecho do final do seu discurso:

“A vossa Igreja – já o disse – cresceu extraordinariamente na América e continua até hoje a crescer. Vossa influência não se acha, porém, na América, circunscrita aos de vosso grêmio.

“Escritores católicos são largamente lidos entre nós, os hinos católicos são cantados em todos os nossos centros de orações. Honram-se em toda a parte as vidas dos vossos santos. Acanhados preconceitos de intolerância, próprios de outras eras, foram-se dissipando como a névoa ao despontar do sol.

“Aqui haveis encontrado – e não duvido que sempre haveis de encontrar na América, sejam quais fores as circunstâncias atuais a esse respeito em outros países do nosso Continente – toda a liberdade de que necessitais para ensinardes a vossa fé a velhos e moços, e para estenderdes a vossa missão a todos nós”.

Note-se, atente-se bem nesta frase: “Sejam quais forem as circunstâncias atuais a esse respeito em outros países do nosso Continente”.

O eminente político americano sabia bem aonde feria, e pode-se dizer que traçou, com aquela simples sugestão, um edificante paralelo...

É que neste mesmo Continente, e ali, bem aos pés do país onde de tal modo se cultua a liberdade de consciência e se rende tão altas homenagens à Igreja Católica, o México estadia, neste momento, processos e métodos governamentais ou políticos capazes de empalidecer os da Uganda de Stanley...

São vinte milhões talvez os habitantes do México e, segundo as próprias estatísticas oficiais, é católica noventa e cinco por cento da população.

Que fora de esperar de um tal país que se diz regido por leis democráticas e liberais, descontados mesmo todos os sofismas que estas palavras acobertam?

É claro que tudo se poderia compreender, menos a escravidão, o azorrague, o ódio, e a perseguição para os católicos, imensa maioria que são, e do seio da qual deveria, pelo menos, pretender ter saído qualquer governo, que procurasse tornar-se legítimo e, como tal respeitado.

Mas o México parece justificar, a esta hora, os filmes yankees, contra os quais os seus representantes andaram pelo mundo a reclamar e a protestar indignamente ...

O que já é impossível negar, porém, é que as vicissitudes de uma política – se política se pode chamar a agitações que fizeram auréolas como as de Pancho y Villa – de uma política de lábregos, têm garrotado o nobre povo mexicano ao jugo mais degradante e mais tirânico, que já desonrou terras americanas.

Sob o nome de Constituição, o povo mexicano sofre o opróbrio de leis, que a sábia e discreta sabedoria da Santa Sé já julgou não merecerem este nome e as violências, os esbulhos, os vexames de toda a espécie que estão sofrendo, neste momento, o Clero e os mais altos representantes da fé católica naquela terra católica, são de ordem a justificarem todas as resistências nacionais e, de todos nós, americanos e católicos, os protestos mais veementes e mais indignados, como deve merecer sempre tudo quanto nos desonre e nos rebaixe.

Os fatos particulares, ou melhor, os últimos crimes cometidos pelo governo do México contra a nação que, humilhada, o vem sofrendo, não merecem comentário, e nem mesmo vale a pena reproduzir aqui as nobres e altivas palavras com que o delegado apostólico acaba de responder ao decreto de sua expulsão do território mexicano.

De homens que ousaram impor à sua própria pátria uma Constituição como a que ora violenta a consciência cristã do México, tudo se deveria esperar no terreno da violência e do crime. O que é espantoso é que tais homens conseguissem dominar um povo, fosse esse povo, não o mexicano, de tão heróica tradições, mas o mais desfibrado e infeliz entre os que mancham de negro a vastidão africana.

Noventa e cinco por cento da população mexicana é, repito, segundo dados oficiais, católica, e o estado legal da Igreja Católica é, presentemente, naquele país, o que reproduzo de um resumo autorizado de A União:

“O ensino é leigo, nas escolas primárias, tanto nas do Estado como nas particulares”. São estas sujeitas ao Estado e é proibido que os professores sejam eclesiásticos ou religiosos (art.3)

São proibidas todas as Ordens Monásticas (art.5).

Proibido o culto religioso fora das igrejas, e é ele submetido à vigilância da autoridade (art.24).

Não pode a Igreja adquirir nem possuir bens imóveis de qualquer espécie: basta a simples presunção para apoiar a denúncia de qualquer violação (art.27).

A Igreja é espoliada dos templos, dos paços diocesanos, dos seminários, das casas paroquiais, escolas etc., e isso com força retroativa (art.27). Não se reconhece o casamento religioso (art.130) nem a personalidade jurídica da Igreja (id). Os eclesiásticos são considerados como operários assalariados, ou profissionais expostos a pagar direitos do exercício do seu ministério (id).

As legislaturas das províncias têm a faculdade de marcar o número máximo de sacerdotes necessários e é proibido o exercício aos sacerdotes estrangeiros, ainda que se naturalizem os mexicanos (art. 130).

É crime fazerem os eclesiásticos qualquer censura contra as leis ou contra a autoridade civil, ou ao governo em geral, durante os atos do culto e nas reuniões públicas ou privadas...

Não se pode abrir igreja nova sem licença do governo federal e o dos Estados. Trâmites difíceis e indecorosos são impostos para cada nomeação ou remoção de sacerdotes (art.130). São nulos os estatutos nos seminários.

É considerado delito comentar os negócios do governo nos jornais católicos, tenham ou não esse título, nem se pode constituir agrupamento algum com o nome de católico (id). É restringido quase totalmente o direito dos eclesiásticos para herdar ou constituir herdeiros (id).

Finalmente, são privados os católicos da proteção que poderiam ter, se nos delitos fossem sujeitos ao júri popular.

Não se tem a sensação exata de estar-se a ver um bando de selvagens a imitar os atos, os gestos mais insensatos da nevrose revolucionária que ensangüentou a França de 93?

A memória do selvagem é fraca, relativamente a tudo quanto não seja espetaculoso. Por isto, não lembra aos atuais dominadores do México o que se seguiu na França àquelas bárbaras violências...

Mas não ficam aí as glórias políticas do México contemporâneo. O seu famoso Congresso elabora ainda leis e regulamentos que agravarão a tirania vermelha, e do mesmo resumo aproveito a lição dessas disposições em preparativos:

 

I.                    Expulsão de todos os padres estrangeiros.

II.                 O governo só reconhece como sacerdote quem tiver estudado no México.

III.               Não é permitido nenhum sinal eclesiástico – tonsura ou vestes sacerdotais.

IV.              As igrejas só se abrem às seis horas da manhã e fecham às seis da tarde.

V.                 Não se admite padre de menos de 35 anos.

VI.              Suprimem-se absolutamente a Universidade Pontifícia do México e os Seminários.

VII.            As igrejas serão divididas eqüitativamente (!) entre as diversas confissões religiosas.

VIII.         Criar um Ministério de cultos para fazer executar essas ... resoluções.

IX.              Suprimir todos os oratórios particulares.

X.                 Só se permitir a administração dos sacramentos a domicílio em casos gravíssimos.

 

Não se tem a sensação, exatíssima, de um bando de vaqueanos a imitar os atos, os gestos mais infames do bolchevismo? Certo o orgulho não lhes faltará de terem também seu Lenine no judeu Elias ... Um judeu mexicano! E não querem depois a lúgubre propaganda dos filmes americanos!!

A visão do vaqueano é fraca relativamente a tudo quanto não seja espetaculoso, estardalhante e brutal. Ele não pode ver a curva gigantesca que vai traçando o Soviete na ânsia de encontrar apoio no coração do povo Russo.

Mas talvez seja mais certo admitir que os tripingados de bota e espora que tiranizam o México, não terão tempo para descrever essa curva do bom senso ressurrecto.

O povo Mexicano não os suportará com a mesma paciência do povo russo, nem as condições sociais do México justificam tal comparação e nem mesmo a tirania, que lhe impõem, tem, como a Rússia, uma base ideológica, monstruosa, não resta dúvida, mas nem por isto menos verificável na triste e paradoxal história do Império Moscovita.

O eminente Secretário de Estado americano, em seu já citado discurso, no Congresso Eucarístico de Chicago, teve mais algumas palavras, que julgo dignas de serem citadas aqui, como comentário indireto à obra dos atuais reformadores do México:

“Não temos rancores para com a religião de ninguém, porque a nação que recusa a liberdade de culto é uma nação que, cedo ou tarde, acabará capacitada de haver cometido o mais lamentável dos equívocos.

“Alguns elementos há entre nós, como alhures, que tão descontentes se acham com a vida, ou, melhor, com a vida que estabelecem por experiência, que desejam destruir as nossas instituições americanas.

“Tais advogados da revolução são criaturas refratárias a toda religião e não crêem em Deus nem na vida eterna. São materialistas contra os quais todos aqueles que confiam no valor dos ideais de ordem superior devem sustentar um combate sem tréguas.

“A Igreja Católica se tem mantido como uma muralha de diamante contra os viciosos processos revolucionários dessa classe de gente, que ostensivamente se agita na defesa do trabalho, mas cujo verdadeiro móvel é a ambição de uma parcela do poder. Onde que que haja um homem de fé religiosa, não pode haver comércio intelectual com essa casta de revolucionários”.

Ninguém esqueça em face desta homenagem à Igreja, como “muralha de diamante”, contra a qual em balde se levantam as ondas do mal revolucionário, ninguém esqueça que os atuais dominadores do México se constituíram em advogados da Revolução, no que ela tem de mais radical e ostensivamente anticristão.

Também o Presidente Coolidge dizia na sua mensagem esta simples palavra que nem todos os governos saberão ouvir, mas de todos, cedo ou tarde, conhecerão a profundeza: “Nenhum governo pode durar muito se não estiver o povo convencido de que é ele um governo reto”.

Quem fala assim não ignora o mal das revoluções, mas sabe que os governos, ainda mais do que ao povo, cabe evitá-las.

Se os algozes do México não são de todos surdos, como terão soado aos seus ouvidos aquelas nobres palavras?

Civilização e Barbárie

Esses artigos sobre a Cristiada, que talvez apareçam reunidos pela primeira vez desde sua publicação em 1926, foram transcritos por PERMANÊNCIA diretamente dos originais microfilmados da Gazeta de Notícias, arquivados na Biblioteca Nacional. Estamos seguros de que sua publicação não apenas honra a memória daqueles heróis e mártires mexicanos, como honra a memória da igualmente menosprezada imprensa católica brasileira.     

Cristianismo e poesia

Jackson de Figueiredo foi uma das fortes e brilhantes personalidades que constituem especial categoria de católicos brasileiros, em tudo distantes da vulgaridade perversa dos progressistas de nossos dias. Pode-se traçar uma linha dinástica ilustre, inteligente, batalhadora e fiel que liga por cima do tempo um Visconde de Cairu a um Carlos de Laet e vincula Jackson de Figueiredo a Gustavo Corção. Jackson foi o fundador do Centro Dom Vital, de onde saíram Gustavo Corção e vários amigos para fundar Permanência em 1968. 

A Redação

 

CRISTIANISMO E POESIA 1

“A tradição cristã aceita Orfeu como um dos símbolos do Cristo” 2, e o canto foi, desde os primeiros tempos do Cristianismo, a linguagem preferida do homem, que imitava os anjos do céu. E não podia ser de outra forma desde que, com a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, surgira o novo homem, com mais luz nos olhos e por conseguinte mais amor no coração. Pode-se dizer que se havia, propriamente, inaugurado o reino da prece, ou, pelo menos, ela tinha tomado proporções tão grandiosas como jamais se concebera. O Filho de Deus descera à terra e demonstrara, pelo exemplo de seu sacrifício, o grande valor que tem a vida do homem aos olhos de seu Pai.

Desde então se sentia o homem em relação mais direta com o próprio céu, e a prece, desse outro plano de existência, a que subira, deixara de ser sinal de respeito e adoração unicamente, para ser também palavra amorosa; podia ser mais suavemente dita e mais claramente ouvida, tornar-se um colóquio mais intimo, mais confiante, com a Divindade.

Como não elevar-se também a poesia numa alma assim, como que criada de novo, tendo aos olhos um mundo novo a conquistar?

“O lirismo na sua mais alta concepção pode-se definir como a prece: é uma elevação da alma para Deus.” 3

E a poesia, ajustando-se à definição platônica, quando poderia irmanar-se com tanta força à prece como após o drama do Calvário? A dúvida humana não fora ali desiludida de si mesma? Não tocara as feridas que ela própria e a maldade tinham feito na humanidade de que se revestira o Criador dos mundos? A missão providencial da sua inteligência não foi ali, aos pés daquela Cruz, que ao homem se revelou na plenitude de uma luz descida do mais profundo mistério?

“Guarda, e guarda único da retidão natural, único capaz, com efeito, de disciplinar, sem destruir, as forças vivas do homem, como não atuar o Cristianismo em benefício da palavra literária, a qual jorra da conjugação mesma de todas essas forças? O Cristianismo mantém as potências humanas em sua harmoniosa atividade; já assim fica dito o que lhe pode dever a palavra literária. Se o pagão se conserva como nosso modelo pelo que imprimiu de força e ordem nas suas obras, conservando por isto mesmo algo de retidão, nisto reconhecemos, por um lado, o testemunho da alma naturalmente cristã, e de direito o fazemos porque o Cristianismo admite, depura, assegura e consagra tudo quanto de beleza real tem a musa profana.” 4

Se o sangue do Cordeiro curara a cegueira do indivíduo, foi porque a sociedade humana tomara, aos olhos deste, aspecto inesperado: foi esta a prova do milagre. A transmutação de todos os valores sociais se opera tão vivamente, que uma alma só não poderia ficar impassível ante a deslumbradora aurora que, a surgir dentre as ruínas de um mundo, e vinda de outro mundo, rompia as nuvens do imenso crepúsculo do paganismo.

Um autor pouco cristão disse uma vez que o santuário dos templos é o verdadeiro berço da poesia. 5

Ora, o Cristianismo sagrou a morada do homem e dela fez um só Templo grandioso; não despedaçaria nas mãos dos crentes a lira que se lhe consagrava. Antes, abençoou-a, e aos poetas do mundo novo ensinou a linguagem vibrante dos Apóstolos.

A poesia se faz então “um meio de glorificar a Deus, uma forma da prece” 6, e deixa, tanto quanto a ação daqueles homens, ver bem claro que a velha sociedade tinha de desaparecer, arrojada da terra pela onda do novo espírito, que fazia assim visível, palpável quase, uma divisão entre o tempo, que passara, obscuro e sinistro, às vezes, e a eternidade, que a fé revelava, imperativa, vitoriosamente. Porque, se o pagão vivera para o tempo, o cristão é o homem que vive para a eternidade.

O certo é que o ser essencialmente religioso que é o homem — e que até então como que se achava desterrado de si mesmo — entrara de novo na plena posse da sua natureza e da sua essência. Degradado pela queda, afastado cada vez mais pela força das suas paixões, das verdades reveladas pelo Deus criador e ordenador, só um pugilo de eleitos, a raça de Abraão, tinha noção clara do seu destino religioso, e a arte fora, até à suprema revelação do Calvário, o alimento mais puro da consciência humana em geral, sem que jamais, entretanto, pudesse satisfazê-la, porque, além do belo, a consciência deseja o bem, a Verdade, enfim, o bem e o belo no máximo esplendor da sua harmonia.

São de Ernest Hello estas profundas verdades: “Uma recordação ainda viva da unidade primordial domina a alta Antiguidade. A religião e a arte estão inteiramente unidas na vida dos primeiros homens. A religião e a arte vivem do mesmo ar, ambas coloridas pelos mesmos longínquos reflexos, ambas desonradas pelas mesmas torpezas.

“Entretanto a arte é mais fiel que a religião. Esta guarda dos fatos o que eles têm de falso, e se faz idolatria. A arte mantém-se mais perto da origem, mais perto do espírito, da tradição. Fala a religião de Júpiter, a arte de Prometeu. Dobra-se a religião aos instintos, aos erros, às paixões de cada cidade e de cada indivíduo. A arte conserva-se mais universal. A religião diverte o pagão com faunos e sátiros. Mantém-se a arte como que à parte, menos infiel à dor antiga e à antiga esperança da humanidade.

“É a religião mais degradada pelos caprichos do homem; a arte menos distante do coração.

“Ésquilo está mais em relação com a arte, Eurípides com a religião.

“A religião antiga excita as paixões. A arte é mais afligida e ferida por elas que propriamente dominada. O paganismo ri com um riso ignóbil. A arte conserva uma certa tristeza imperfeita mas nobre. É o refúgio das lágrimas do homem.” 7

Que é, porém, o Cristianismo senão a luz do céu que esclarece a tristeza do homem, e diz: — Nela persistes, porque erraste, mas certo de que dentro dela conquistarás a perfeita alegria —?

Que fez ele senão dar a divina significação das nossas lágrimas?

Foi assim, legitimamente, que a arte, “refúgio das lágrimas do homem”, também mergulhou nessa luz do eterno dia, que despontava.

Salva e até revigorada na sua essência, perdera, não resta dúvida, a riqueza das formas exteriores, que o paganismo lhe dera. Lentamente, porém, com segurança, o Cristianismo, que, antes do mais, busca acender o bem no coração dos homens, vai dotando-a de outras formas, vestindo-a do seu gênio prático, amoldando-a ao gênero de ação que requer a humanidade salva pelo batismo... Não lhe foi difícil achar os sinais meio apagados de uma tradição poética, que a arte propriamente cristã deveria também redimir. A poesia do Velho Testamento já se poderia chamar de poesia cristã, pois a realização das profecias também lhe dava, com o vigor da sublime verdade que se impunha, sabor de novidade, e, quando Santo Ambrósio introduziu no Ocidente o uso dos hinos durante o ofício público 8, já no Oriente ele era universal entre os cristãos 9.

É não só as Escrituras seriam origem dessa poesia cristã. Conta-nos Eusébio que no segundo século, tendo ensinado Ártemon que Jesus Cristo era apenas um homem, foi combatido por um escritor católico que, para refutar, lhe alegou a fé da Igreja contida em certos hinos compostos em época vizinha do Cristianismo 10.

E tão notável é o desenvolvimento da poesia cristã, desde os primeiros séculos paralelo, como nota Bayle 11, ao da arquitetura, que foi um poema, a História Evangélica de Juvenco, a primeira concordância que tiveram os cristãos dos quatro evangelhos 12. E não mentirá quem disser poder-se provar que a Igreja jamais se desviou da primitiva fé e sempre teve os mesmos dogmas, só com as citações tiradas dos poetas da primeira época da poesia cristã, que vai até o sexto século 13.

Também não seria difícil mostrar como o sobrenaturalismo cristão criou causas segundas, naturais, de uma bem maior importância para a arte, em geral, e para a poesia, em particular, na vida dos povos. De fato, como faz observar Ozanam, mediam-se ainda duas civilizações, a cristã e a dos pagãos, quando os bárbaros forçavam as portas do império. Mas uma invasão mais poderosa, de conseqüências muito mais importantes, já despedaçara todas as linhas delimitadoras no quadro da antiga ordem social. O Cristianismo elevara de nível a grande maioria dos homens, igualando na ordem do espírito pobres e ricos; pondo aqueles talvez ainda mais alto na ordem da caridade. “É esta invasão dos deserdados do mundo antigo, aqueles que a sociedade desprezava, que, a meu ver, prepara, antecede e ultrapassa muito, nas suas proporções”, diz o grande historiador, “a invasão dos bárbaros. É ela que já fez maior o auditório a que se dirigirá a palavra humana e que, por conseqüência, renovou a inspiração das letras.” 14

Ozanam mostra como a literatura cristã conquistou, por assim dizer, uma língua, e o que há de espantoso no caso é ser a língua conquistada o latim, “Cette vieille langue païenne que gardait les noms de ses trente mille dieux, cette langue souillée des impuretés de Pétrone et de Martial.”

A princípio “nada parece menos capaz de transmitir as idéias cristãs que essa velha língua latina, que, na sua primitiva aspereza, só parecia feita para a guerra, a agricultura e os processos” 15. Mas já a invasão dos costumes gregos a alterara no sentido das próprias formas gregas da expressão 16, e já em Cícero ela em plena maturidade, se mostra à altura “de qualquer esforço da inteligência humana, até os últimos degraus, que tocam o infinito” 17. A sua decomposição, porém, já se fazia ver a esse tempo de modo violento; o latim está a morrer quando o Cristianismo o salva 18, o Cristianismo, que fundiu os três gênios que dividiam a Antiguidade, a poesia do Oriente, a filosofia da Grécia e a ação de Roma 19.

Mas “para que a arte cristã se manifestasse foi preciso que a paz fosse dada à Igreja, que fosse permitido aos fiéis sair dos subterrâneos, mostrar-se à luz do dia, adorar em novos templos ao Deus desconhecido do velho mundo”. É o que se deu no 4º século com a vitória de Constantino 20, e o instrumento da reforma do latim, da completa cristianização do latim, é a primeira grande, imortal, incomparável obra de arte da fé católica, a Bíblia, a Vulgata de S. Jerônimo. É por isto que com tanto critério dizia Ozanam: “Tinham razão os nossos antepassados cobrindo de ouro a Bíblia e carregando-a em triunfo; este, primeiro dos livros antigos, é também o primeiro dos livros modernos; é, por assim dizer, o autor destes mesmos livros, pois das suas páginas saíram todas as línguas, toda a eloqüência, toda a poesia e toda a civilização dos novos tempos” 21.

E ao tempo dos últimos esforços de S. Jerônimo pode-se dizer que a arte cristã, principalmente a poesia, ficava perfeitamente caracterizada, tanto do ponto de vista do espírito, que a anima, como das suas formas exteriores. Nela transparece um novo simbolismo da natureza (que já em Prudêncio é tão vivamente cristão) 22, e não já da natureza envilecida, conspurcada pelos deuses imorais, mas da natureza digna de admiração e respeito, restaurada também em Jesus Cristo 23.

Se, como observa Hello, o sacrifício é a essência mesma da palavra, e a arte é dividindo-se que se manifesta 24, como não encontrar no Cristianismo o plano mais próprio ao seu desenvolvimento?

É certo que, fazendo-se mais popular, a arte, cristianizada, longo tempo conserva um rude sabor e uma ingenuidade que só a rude gente, o povo ingênuo, podia casar perfeitamente ao seu sentir. Mas, nessa mesma primitiva ingenuidade, nessa mesma rudeza, criava, pouco a pouco, a verdadeira poesia do espírito, as lúcidas arcangélicas asas com que Dante voará um dia do Inferno ao Paraíso.

* * *

“Se no naufrágio do mundo antigo a civilização pôde salvar-se”, afirma um escritor nosso contemporâneo e que nada tem de católico 25, “devemo-lo às ordens religiosas; foram a arca do futuro. Sem elas a humanidade talvez sofresse irreparável regressão, todo o progresso adquirido ficaria aniquilado, a história teria de ser recomeçada.

“Os frades foram, então, em verdade, o sal da terra, o escol que trabalha pela espécie e a dignifica. É fazer-lhes injustiça reduzi-los ao papel de escribas ou de copistas, de bibliotecários da cristandade.

“Não só os livros mas também os hábitos e as sementes da cultura nos foram transmitidos pelos religiosos. Graças a eles as tradições não ficaram sendo letra morta. As funções liberais, as aplicações da indústria não deixaram de ser exercidas. Onde quer que houvesse frades, houve prescrição contra a barbaria. As artes foram praticadas. Elevaram-se monumentos. A vida inteligente não sofreu interrupção.”

Mudadas as condições sociais do Ocidente, já no período que vai do fim do século XIII ao meado do século XVIII, observa também o mesmo historiador, o que também caracteriza a marcha da civilização é uma criação de novas ordens, o aparecimento das duas grandes Ordens Mendicantes. “Contemporâneas das grandes lutas empreendidas pelas Comunas para a conquista de suas liberdades, foram, a seu modo, uma reação contra os costumes da Igreja feudal.”

Este papel de Menores e Pregadores pode ser interpretado de diversos modos, e não estamos de pleno acordo com o escritor citado, mas a verdade é que, como ele, se pode dizer, sem medo de errar, que o caráter essencial dessa forma original do monaquismo é a “ação popular”.

“Ajunte-se”, diz ainda Gillet, “que as Ordens Mendicantes suscitaram durante três séculos, através de toda a Europa, um incalculável número de obras de arte, que são contemporâneas do movimento intelectual de que saiu a Renascença, e que estiveram assim associadas, numa medida ainda a precisar, a alguns dos mais graves acontecimentos de nossa vida moral, que produziram multidão de legendas, de heróicas ou poéticas figuras, a começar pelas de seus fundadores, S. Domingos e S. Francisco, figuras que fazem parte das mais caras lembranças, do tesouro espiritual conservado pela humanidade”, e poder-se-á avaliar quanto essas Ordens merecem ser estudadas atualmente na sua história e nas suas legendas. Também, confessa Gillet, os trabalhos modernos sobre o assunto “se multiplicaram a ponto de não se poderem enumerar nem mesmo os principais”.

Deve-se dizer, porém, que a maior causa deste reflorescimento de estudos de toda espécie sobre o monaquismo ocidental daquele período é a figura incomparável de São Francisco. Após a obra de Ozanam, nunca mais modernamente esmoreceu o ardor dos estudiosos em derredor daquela figura central da poesia cristã no Ocidente.

Mas ao debate provocado por Sabatier (um protestante) é que o grande santo deve o ter sido proclamado na própria Alemanha “o homem do dia”.

Desse debate não saiu, como se sabe, nem de leve ferida a excelsa glória do humílimo Francisco. O próprio Sabatier veio a ser depois prova, de não pequena valia, de quanto é difícil à ciência mais bem aparelhada negar seja o que for da maravilhosa vida do Irmãozinho da cinza. E a complexa literatura franciscana dos nossos dias, em que há de tudo, desde a delicadeza e a profundeza de um Joergensen até as blasfêmias e truanices dos Gómez Carrillo e outros cabotinos de renome, diz bem da glória de quem não mais desejou que refletir Jesus Cristo, e por isto mesmo pode, caridosamente, ainda sustentar muita glória legítima e muita glória de malandrins letrados e perversos.

Livros como os de Joergensen, Cherancé, Pardo Bazan, d’Armestad, Lafenestre, Gillet e tantos outros forçam, pelo menos, a esta confissão: não há figura histórica em todo o Ocidente que tenha conseguido interessar tanto a inteligência contemporânea como a do criador dos Frades Menores. Mas, se concordamos com Gebhart que é diminuí-lo não querer ver, da sua grandeza, senão o que suavemente se impõe do singular poeta e ingênuo apóstolo das “Fioretti”, estamos convictos de que o que mais concorreu mesmo para sua moderna e contemporânea popularidade (popularidade entre letrados, bem entendido, desde Gorres, Ozanam, Renan, Rio até Wizewa, Joergensen etc.) foi o lirismo essencial da sua evangelização, foi mais o piedosíssimo vulto de trovador popular do que a sua figura de organizador, de economista da pobreza. Porque, se fora esta a feição mais apreciada da sua vida, certo não merecerá ele mais louvores ou, pelo menos, mais interesse que S. Domingos, máscula, gigantesca personalidade, de cuja ação se pode afirmar que vale, só por si, como uma epopéia dessa ordenadora energia cristã, eternamente em luta com as paixões e as misérias do homem.

Mas S. Domingos, como diz Gillet, que cito ainda por insuspeito, “não fez o Cântico do Sol”. Não oferece essa inaudita mistura de sensibilidade e de paixão, de otimismo e de ternura, de requintada aristocracia e espírito popular que faz de S. Francisco — posta de lado a sua santidade (se isto é possível) — o mais maravilhoso poeta que jamais existiu.

Só a conversão de um homem como Joergensen já é título de glória singularíssimo na história moderna de um santo.

S. Francisco tinha de ser o santo desta época. Deus sabe que armas e que homens deve empregar a cada hora para reconduzir a criatura transviada ao seio da sua Igreja.

(Revista PERMANÊNCIA, 1981, novembro/dezembro, números 157/157.)

 

 

 

 

  1. 1. Este estudo, que faz parte do ensaio Durval de Morais e os Poetas de Nossa Senhora, é uma amostra das mais expressivas das virtudes intelectuais de Jackson de Figueiredo.
  2. 2. L. Veuillot, Mélanges, 3a. s., t. III.
  3. 3. Abbé A. Bayle, Étude sur Prudence, Paris, 1860
  4. 4. G. Longhaye S. J., Théorie des Belles-Lettres, Paris, 1920, p. 125.
  5. 5. Fabre d’Olivet, Les vers dores de Phytagore, p. 31.
  6. 6. Abbé A. Bayle, op. cit., 60.
  7. 7. Ernest Hello, L’Homme, cap. “L’art antique et la litterature ancienne”, 14a. ed., p. 328.
  8. 8. Bayle, op. cit., p. 20.
  9. 9. Bayle, op. cit., p. 21.
  10. 10. Bayle, op. cit., p. 21.
  11. 11. Bayle, op. cit., p. 5.
  12. 12. Bayle, op. cit., p. 13.
  13. 13. O autor que venho citando, no seu livro sobre Prudêncio, não faz esta asserção, mas eu próprio pude verificar das suas citações alguns edificantes exemplos.
  14. 14. Ozanam, op. cit., p. 125.
  15. 15. Ozanam, op. cit., p. 127.
  16. 16. Ozanam, op. cit., p. 127.
  17. 17. Ozanam, op. cit., p. 129.
  18. 18. Ozanam, op. cit., pp. 130-131.
  19. 19. Ozanam, op. cit., p. 131.
  20. 20. V. Bayle, op. cit., p. 2.
  21. 21. Ozanam, op. cit., p. 155.
  22. 22. Bayle, op. cit., p. 80.
  23. 23. Bayle, op. cit., pp. 82-83.
  24. 24. E. Hello, op. cit., livro III, p. 281: “Le son ne naît que pour mourir, et ne se posséde que pour se donner.”
  25. 25. Louis Gillet, Histoire Artistique des Ordres Mendiants, Paris, 1912.

Netos de Renan

A V., meu caro Amigo, parece que impressionou a frase, que foi do escol dos intelectuais do mundo inteiro e V. já ouviu dos augustos lábios do jornalista de Timboré...: “Somos netos de Renan”... Que mal faz isto? Nenhum, creia V. Somos bisnetos de Voltaire, tetranetos de muitos outros desgraçados... de preferirmos tais ascendentes entre tantos, bem mais nobres, que a história nos apresenta.

Mas, enfim, netos de Renan... Creia, meu Amigo, o jornalista de Timboré não sabe o que disse. Foi um puro instrumento, um instrumento da Providência! Pequena glória, já se vê, para o diretor-proprietário do Progresso Timboreense, mas não pouco proveitosa para nós... Porque foi após a leitura da sua carta que, pela primeira vez em minha vida, pensei na família de Renan... Sim, aquele homem, que tão suave e sorridentemente envenenou tantos corações, arrancou a fé de tantas almas frágeis, entregou fria e despiedosamente tantas consciências, ardentes e generosas, às misérias da dúvida, sim, aquele homem também fizera uma família, tivera filhos, talvez, e os criara e educara sabe Deus como... Que fins terá tido aquela gente, que será ela, hoje em dia, lá naquela revolvida terra européia, eis o que a mim próprio perguntava, tomado, acredite V., de verdadeira piedade. Pois bem: não só a mim interroguei. Fi-lo também a um padre francês, meu amigo, e que é hoje exemplo de dedicação e carinho à nossa rude gente do sertão mineiro, após ter-se batido quatro anos, como soldado, nas fileiras do glorioso exército de sua terra. A resposta não se fez esperar muito tempo. E, veja V., não é que aquele excelente sacerdote se desse ao trabalho de escrever, ele próprio, uma história dos Renans... Não. Enviou-me simplesmente um livro, que veio a calhar. Avalie que é, justamente, a biografia de Ernest Psichari, um neto de Renan...

Chega a parecer resposta direta ao jornalista de Timboré, e V. vai ver como acertou o fino ironista, o rival sertanejo do nosso Humberto de Campos.

Sim, V. verá, meu Amigo, que já não nos pode molestar, a nós católicos, a nós crentes, que se diga das gerações que entram agora em plenitude da ação que são netas do homem que fez de Jesus Cristo protagonista de um dos mais vis romances das letras modernas, pela açucarada perfídia com que quis vestir de inconsciência o mesmo tipo que, para nós, é o Filho de Deus vivo — mas que para ele era também o mais alto, o mais perfeito, da humanidade!!

Até já podemos proclamar bem alto que somos netos desse homem, para maior glória do Deus invencível e único.

“Dios no muere”, disse o grande García Moreno, respondendo à punhalada do infernal sectário... Sim, Deus não morre, nem mesmo no sangue dos que blasfemaram de seu nome, dos que repudiaram o amor de seu Filho e apunhalaram o seio da sua Esposa.

Nem de leve suponha que exagero se lhe digo que este livro, que venho de ler, me arrancou lágrimas. Somente não lhe sei dizer se foram elas de tristeza ou de alegria. Sei que as chorei. No silêncio da noite, em que, uma a uma, fui voltando as fúlgidas páginas de Henri Massis, como que vi levantar-se, mais do que nunca, formosa, digna de adoração, a figura da excelsa majestade do espírito da Igreja, sustentáculo do mundo, todos os dias crucifica­do, todos os dias exaltado, glorifica­do, vencedor de todo o mal!

Ouvi a prece que a todas as horas sobe aos céus e abranda a justiça do Criador, sofri também de to­dos os silenciosos sacrifícios que se fazem no altar da renúncia às vaidades do mundo, e como que, dentro em mim, ecoavam também — tão grande era o silêncio lá por fora — os cânticos felizes de todos os que, ardentes de fé, na paz dos claustros ou nos perigos da catequese, bendizem Jesus Cristo, aquele que deu sentido à nossa peregrinação sobre a terra.

Mas, se eu pudesse nestas poucas linhas dar-lhe a biografia desse neto de Renan, certo V. Compreenderia a minha exaltação.

Dele já se disse até que “a França cristã pode invocá-lo nas suas preces”. E por que não? Que vida mais gloriosa, que fim mais sublime e mais ardentemente santificado? Quem se conhece aí vencedor de mais temerosas vaidades?

Avalie V. que educação poderia ter tido um neto de Renan, respirando a atmosfera mesma da mais orgulhosa idolatria a tudo quanto falava daquele homem, que ousara contrapor a sua pérfida palavra ao sangue dos mártires! Ademais, tudo parecia indicar que era Ernest Psichari um digno herdeiro do nome tristemente glorioso: o mesmo pendor para as letras, o mesmo indomável intelectualismo, e fluidez de expressão...

Mas que pode o mal quando Deus não quer? Que é que tocou o coração do jovem príncipe da inteligência?

Ernest Psichari, diz o seu biógrafo, conheceu todas as febres, todas as perturbações da sua geração, mas, sempre adiante dos seus companheiros, “nele se exaltava a mocidades de França”.

Ainda foi com assombro que o viram abandonar os cursos da Sorbone para fazer-se soldado e partir para a África, a uma rude guerra de conquista. Mas, se o entusiasmo das suas primeiras obras, nascidas do contato com a barbaria e a religiosidade do deserto, a muitos pareceu ainda entusiasmo de diletante, não tardou que se compreendesse o idealista que se revelava com força invencível. E não é nunca demais esperar-se de um soldado que se faça apóstolo. O entusiasmo pela guerra não é já entusiasmo pelo sacrifício?

Ernest Psichari em poucos anos de guerra, de “vida perigosa”, se fizera um apóstolo da desforra francesa, e Deus é como Deus dos exércitos que, pela primeira vez, fulge na sua consciência.

Ele encarna, dentro em pouco, a ação intensa, mesmo a violência, para responder ao cepticismo do avô.

“Nossa geração”, escrevia ele, “a dos que começaram a vida com o século, é importante. Nela, sabemos, estão todas as esperanças. É dela que depende a salvação da França e assim a do mundo, a da civilização. Parece-me que os moços sentem obscuramente que verão grandes coisas, que grandes coisas se farão por eles. Não serão nem amadores nem cépticos. Não serão turistas através da vida. Sabem o que se espera deles.” Estava muda­do aos seus olhos o cenário do mundo. Estava delineado o seu programa, não havia mais escolher: “prendre contre son père le parti de ses pères”.

Ainda era quem assim falava um homem que não tinha por si as armas de uma fé positiva.

Mas, como ele mesmo disse:“Dès qu’on fait un pas hors de Ia médiocrité, on est sauvé...” “On est embarqué dans l’absolu...” – Ao primeiro passo para fora da mediocridade estamos salvos. Embarcamos no absoluto.

Daí em diante, seus livros assim como a sua vida são a resposta mais lúcida, mais vibrante e mais séria que o espírito de ordem podia dar à anarquia contemporânea, e a sua figura de herói e de artista, de homem de ação e de sábio vai pouco a pouco aproximando-se e por fim surge, duplamente envolvida, de entre as fileiras dos que, a esta hora, cristãos e franceses, já salvaram as grandes tradições da sua pátria do completo aniquilamento. A Igreja podia gloriar-se de mais um filho, um verdadeiro filho, amante e fiel.

E é comovente ler estas palavras do neto de um Renan... “Toda a tentativa por nos libertarmos do catolicismo é um absurdo, pois, queiramos ou não, somos cristãos; e é uma maldade, visto que, quanto temos de belo e grande no coração, nos vem do catolicismo. Não apaga­remos vinte séculos de história, precedidos de toda uma eternidade. E, como a ciência foi fundada por crentes, nossa moral, no que tem de nobre e de elevado, também vem dessa grande e única fonte do cristianismo, de cujo abandono decorre a falsa moral, assim como a falsa ciência.”

No dia 8 de fevereiro de 1913, Ernest Psichari, o neto de Renan, foi confirmado por Mons. Gibier, na capela do pequeno seminário de Grandchamp.

Com a voz a tremer de ardor contido, recitou o “Credo”, de que, uma a uma, acentuou as sílabas latinas. Após a confirmação, o Bispo de Versailles lhe perguntou a sua idade: — Vinte e nove anos! Muito tempo perdido!, foi sua resposta.

E porque, assim, tanto tempo perdera foi que desde então o viram seus soldados e toda a França intelectual arder na febre de reparar, em cada livro, em cada ato, as injúrias que seu avô fizera à França cristã, e, humílimo, ou melhor, possuído de santo orgulho, servir a missa e ser aquele mesmo ser — Cristão, que Louis Veuillot também quisera ser... E foi deste modo, entre os rigores da vida militar e os rigores de uma exaltada prática cristã, que a Grande Guerra surgiu. Foi dos primeiros que marcharam contra o inimigo de sua pátria, foi dos primeiros que caíram fulminados no campo de honra.

“Os que o viram mais tarde ficaram impressionados ante a calma de seu rosto; tinha nas mãos o rosário que pudera segurar.”

Eis aí, meu Amigo, como soube morrer um neto de Renan. Felicito o jornalista de Timboré pelas suas ironias. Já podemos ser bons netos de Renan. E V. há de concordar comigo: Ernest Psichari foi, de fato, uma dessas naturezas que são privilégio daquela nação a quem nem as desgraças nem os erros tiraram ainda o que Joseph de Maistre, então insuspeito de lhe ser favorável, pode observar no seu destino: o exercício de uma verdadeira magistratura sobre a Europa e, por conseguinte, sobre o mundo.

Quando uma dessas naturezas aparece como uma estrela sobre os céus borrascosos daquela grande pátria, não há consciência cristã que não veja claramente alguma coisa de mais profundo e de mais forte que o que prende todas as mais nações, ligando os destinos da França aos destinos da Igreja Católica.

E tem-se o desejo de dizer que, sejam quais forem as aparências, sempre a causa da França é a causa da Igreja.

 

(Revista PERMANÊNCIA, 1981, novembro/dezembro, números 157/157.)

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