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Civilização e barbária

Diante de fatos como os que se passam no México, atualmente, uma coisa, que se impõe a todo espírito verdadeiramente livre, a todo homem capaz de pensamento despreconceituoso, é a identificação do princípio civilizador, em meio das múltiplas forças que como tais se apresentam no cenário do mundo.

Porque não há charlatão ou bárbaro, não há pérfido ou louco com pruridos de reformador do gênero humano, que não fale em nome da Civilização, que não se apresente como seu vingador ou  seu profeta.

O anarquista mais cínico, o estadista mais desbriado, não propunham outro fim, não querem outra coisa: a defesa da Civilização, quando não a sua conquista, custe o que custar. Também o homem de boa fé e o simplesmente ingênuo assim procede: “A realização de um dado ideal da sociedade humana é o que os impele. Mas, diz Godofredo Kurth, é quando se tenta dizer em que consiste esse ideal é que as dissidências aparecem, e com tanto maior violência quanto a questão é das que apaixonam todo o gênero humano”. E é quando se fica em face desta questão, como agora, que justamente convém recordar as dificuldades vencidas pelo grande historiador belga, no seu propósito de determinar, não só o caráter da civilização ocidental, como no de definir de modo claro e positivo o conceito de civilização em geral.

Kurth lembra que em vão os cépticos procuram esquivar-se a tão grave problema, alegando que uma sociedade perfeita é impossível. Se, de fato, olhada em cada um dos seus membros, toda sociedade está condenada a uma perpétua imperfeição, não é menos impositiva a ânsia de conquistar a possível perfeição social, que consiste somente numa tendência a perfeição absoluta, isto é, a permanência, em um dado meio, de um princípio de organização que coordene todos os elementos, ou melhor, que tendo em conta as suas falhas naturais, lhes dê as condições mais favoráveis ao seu contínuo aperfeiçoamento, o que equivale a dizer que “não se concebe uma definição exata de civilização sem um prévio conhecimento da pessoa humana, toda sociedade consistindo apenas, realmente, em uma reunião de pessoas”.

O fim da pessoa humana, eis o que há a indagar antes de qualquer indagação sobre o fim da sociedade, pois é claro que, desde logo, ficará prejudicada toda ideologia social que contrarie esse fim adequado à essência de cada um dos elementos componentes de uma dada sociedade.

Ora, a questão sempre presente há quase dois mil anos é a se o Cristianismo corresponde ou não ao ideal da civilização quando este seja assim definido: “A perfeição social, ou, em outros termos, a civilização consiste na forma da sociedade que ofereça aos seus membros o maior número de facilidades para atingir o seu fim último”.

Godofredo Kurth diante desta questão não se limitou, como também outros, a declamar pró ou contra o Cristianismo. Ninguém mais do que ele ousou aprofundar o espírito social do paganismo, na sua mais perfeita organização, estudando a concepção do Império, não só na sua realidade histórica, como no seu princípio gerador e conseqüentes desenvolvimentos teóricos. E o que ele pôde verificar foi o seguinte: a Antigüidade “impôs” ao homem que o homem é feito para o Estado, e quando este foi forçado, como no caso romano, a encarnar-se num só homem, este homem, onipotente como o próprio Estado, acabou por ser aceito como uma divindade, regulando, não só as relações exteriores de homem para homem, mas até as do foro íntimo de cada um, como senhor das consciências, causa e fim da vida não só externa como interna de cada um dos seus súditos.

E não se trata aqui de um estado de coisas ideal, somente almejado. Não. O império realizou-o, e o vulgar dos homens, e o escol da humanidade, a superstição como a filosofia aceitaram-no de coração alegre, e conscientemente. Platão e Aristóteles fizeram a sua apologia e o aforismo do maior jurisconsulto da antiguidade – nota Kurth – formula as conseqüências de tal aceitação, com uma precisão irrepreensível: “O bel prazer do príncipe tem força de lei, pois que, em virtude da lei real, que é a fonte da sua autoridade, o povo lhe conferiu e a ele incorporou todo o conjunto dos seus direitos e dos seus poderes”.

Como se vê, o que vivifica, se assim pode se dizer, uma tal sociedade é um materialista tão grosseiro quanto violentamente dogmático. O fim do homem está em si mesmo, e quando a sociedade – composto de homens – é forçada a resumir-se num só homem ou num grupo de homens, esse homem ou esses homens se apresentam como fim de toda a atividade humana. Sejam quais forem os cultos, que nasçam da necessidade iniludível, de relação com o sobrenatural, a verdade é que o Estado é a única força diretora das conseqüências, e que o Estado representa o “deus presente e corporal” da antiga fé.

Estamos aqui - diz Kurth – no coração do cezarismo e em face da última palavra da política pagã.

Mas, pode haver coisa mais clara do que o absurdo de uma tal concepção da vida humana? Poderá imaginar-se maior rebaixamento da dignidade humana que essa escravização do homem ao homem, que essa imitação das suas aspirações de felicidade?

Sabe-se o que resultou da realização desse ideal no seio do “tipo mais completo da sociedade pagã”: desrespeitadas todas as tendências naturais do homem, aquele que fora elevado à categoria divina, desceu quase sempre abaixo dos animais, pela grosseria do instinto de mando, absolutamente sem controle”, e os governados, reduzidos a meros instrumentos do prazer do Príncipe, nem felizes nem mesmo unidos, como haviam esperado, mas divididos e lançados uns contra os outros, e afundados todos na objeção do temor da perpétua incerteza.

É a essa hora que surge o Cristianismo. Veremos o que ele trouxe ao mundo, como força de reintegração do ser humano na sua própria natureza. Veremos depois o que trouxe o Estado moderno, que quer substituir o Cristianismo na direção dos homens.

E há de se ver de que lado está a civilização, de que lado está a barbárie, na luta que, com maior ou menor brutalidade, atualmente se trava, em quase toda a parte na face do mundo.

 (Gazeta de notícias, 11 de agosto de 1926).

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