De um amigo, que de verdade é amigo, e cuja amizade honra, acabo de receber uma carta em que me assegura toda a sua solidariedade, atuante do seu jornal, no caso em que, ao que se diz, ando envolvido com o Sr. Embaixador do México.
É um gesto que me comove e desvanece. Mas se as iras do Sr. Embaixador são realmente verdadeiras, eu espero que solidário comigo há de ficar todo o Brasil digno deste nome, ou, pelo menos, tudo quanto, entre nós, represente uma lúcida e sólida harmonia entre a nossa dignidade e a nossa cultura.
Um ponto, porém, me merece reparo, na missiva que tão de perto me tocou o coração, e é o seguinte:
“Agora – diz-me ele, finalizando – permite ao teu velho amigo uma observação: o que se passa no México é uma aplicação da tua doutrina sobre a supremacia da autoridade e da ordem sobre a liberdade. Tens, ali a demonstração viva e dolorosa, de que o meu liberalismo é menos nocivo do que o teu autocratismo ...”
Permita, por sua vez, o querido amigo, que lhe responda de público. Primeiramente, porque há verdades que devem ser ditas sempre em voz alta, tão certo é que muita gente lucra com ouvi-las. Em segundo lugar, porque não me cansa rebater acusações como a que tão delicadamente me faz. Responder ao insulto e à injúria é, realmente, uma ingrata tarefa e raramente os tenho deixado sem resposta.
Porque, pois, não ter paciência diante do que é convicção sincera, e, às vezes se baseia em múltiplas aparências de verdade?
Ademais, tenho consciência quando me defendo, de não defender produto algum de vaidade intelectual, nenhum arranho da minha imaginação ou da confiança em mim mesmo. Pelo contrário. Ninguém, até hoje, teve mais perfeita certeza de não ser original, de não ter originalidade de qualquer espécie. Com todas as minhas misérias de homem, com todas as falhas meu temperamento e da minha educação, do ponto de vista intelectual, jamais me apresentei senão como soldado da Igreja Católica, jamais defendi senão o que ela ensina, desde que tive a graça de poder penetrar o espírito e a grandeza dessa escola de ordem e disciplina.
Como seria possível, pois, que eu pugnasse por um autocratismo qualquer, por um governo ou sistema de idéias que pudesse levar logicamente as infâmias ora praticadas no México?
Não, o meu ilustre amigo está absolutamente enganado, e desafio-o, como a outro qualquer homem de boa fé, a que aponte na minha obra doutrinária – muito da qual está reunida em livro – uma só página que justifique tal acusação.
Não venho discutir aqui o fundamento do Direito conforme a Igreja, nem a fortaleza da sua complexa, mas perfeitamente determinada teoria da autoridade. Se, por acaso, o homem ilustre a quem me dirijo não leu ainda a Introdução de Godofredo Kurth a sua obra magistral: Les origines de la Civilisation Moderne, eu desejaria que o fizesse, e, de uma vez por todas, lhe ficaria noção clara do que tenho escrito, até hoje, relativamente a constituição, por assim dizer, natural dos povos cristãos. Não quero mais, nem menos. Jamais escrevi uma só palavra com a qual se possa provar que, doutrinariamente, me separo do que regra e quer a Igreja.
Mas dirá o amigo ilustre: que não posso negar ter já escrito, mais de uma vez, que o pior governo é melhor que a melhor das revoluções.
E então?
A minha resposta é simples.
Da Reforma e, principalmente da Revolução Francesa, aos nossos dias, a civilização ocidental atravessa uma terrível crise, na qual, sob pretexto ou com a intenção de proteger-se a liberdade individual, o que se tem, de fato, é anulado esta em todas as suas manifestações objetivas, e em proveito de uma abstrata Liberdade (com L grande), que não é mais do que o bel-prazer de uma outra terrível abstração: o Estado neo-pagão, senhor novamente das consciências e acima dos organismos naturais que o antecederam na vida social. Essa abstração tornou-se, pois, a única força realmente dominante no mundo moderno e, como tudo que se refere ao homem, encarnada nos homens que a exploram a cada momento.
Dessa situação de fato, dessa fundamental contradição das sociedades contemporâneas, nasceu, como era de prever, a teoria de que a força é a geradora normal do direito, e as revoluções, e não já somente a Revolução, foram pouco a pouco parecendo meios normais de oposição e combate aos abusos do poder. Ora, fora preciso que a sociedade tivesse perdido de todo a fé no Direito e nos protestos da consciência cristã, para que se justificasse uma teoria tal, absolutamente prejudicial a todos os povos, pois é claro como o sol que ela estabelece um círculo vicioso de revoluções, todas salvadoras e todas decepcionantes.
Deste modo, como a autoridade é a condição mesma da liberdade, (pelo menos na vida do homem histórico e conhecido) o que é preciso, no mundo moderno – e tão preciso que ele mesmo está realizando em países da mais alta civilização – é reforçar o princípio de autoridade, mesmo com aparente prejuízo, e sempre passageiro, de interesses particulares.
A verdade é que a sociedade moderna procura o seu leito natural, que é aquele em que se harmonizem Autoridade – que lhe permita estabilidade e conseqüente realização dos seus fins – e liberdades que homenageiem em cada homem essa liberdade moral, que é a sua característica na face do planeta.
Ora, com relação à América e principalmente, ao Brasil, é isto que tenho pregado: o pior governo que ainda nos garanta a simples polícia, o respeito das leis particulares, é melhor que o salto no escuro mais bem intencionado, isto é, é melhor que a melhor das revoluções.
É, então, para os homens dignos deste nome, e, principalmente, dignos do nome de cidadão, não fica de modo algum mais restrito o campo da atividade política digna, por sua vez, de ser acatada, desde que se anuncie como norma de conduta o que muitas vezes tenho enunciado: não é com as armas e a violência que se deve combater os abusos do poder, e, sim, com atos de dignidade, com todas as formas de resistência calma e serena e, sobretudo, com exclusão de qualquer ato de subserviência àqueles mesmos que ajudamos na rude tarefa de governar.
Se o atual governo brasileiro, ao invés de lançar mão da força para combater a força — pois há momentos em que o direito tem de necessariamente armar-se de toda a força que lhe é possível reunir — o atual governo, ao invés de combater mais uma das muitas revoluções que nos têm perturbado — sem se saber bem o que elas querem — quisesse, em plena paz, revolver os fundamentos morais da sociedade brasileira ou ferir-me particularmente, em um direito meu adquirido, creio que o meu velho amigo não põe em dúvida que eu o combateria com todas as forças da minha consciência, sem, que uma só vez, no entanto, me fizesse pregador de revolução ou de assassinato, como tenho visto fazer muitos dos chamados espíritos liberais.
Mais ainda: se o governo brasileiro viesse amanhã, como no México, a desrespeitar todos os direitos naturais e as mais santas instituições sociais, anteriores à formação da República e ainda do Império, devo dizer que o doutrinário que sou nada mais pregaria que a resistência passiva a todas essas infâmias, e é o que no México estão fazendo todas as autoridades religiosas e todos os católicos de responsabilidade.
Mas nem a graça altera a natureza do homem, nem a fé o isenta de paixões, nem há mais terrível tentação que a do desespero. E se o povo brasileiro desesperasse na luta contra uma tirania, que a tal ponto o quisesse aviltar, não é impossível, é mesmo muito possível, que eu tomasse parte na revolução ou no levante com que buscasse vingar os seus direitos de viver tal como a si próprio se conheceu sempre, desde que surgiu para a vida.
Não sei se estaria em erro, mas sei que não há doutrina cuja prática não ofereça passageiras síncopes teóricas, como essa que idealizo, e puramente no que se refere a sua forma. O essencial é o amor da Ordem, e este não teria alteração. O que não é possível é erigir como teoria de verdade política uma simples doutrina revolucionária, indefinida, incaracterística, formada, a cada momento, ao sabor dos acontecimentos os mais vários.
O que se pode jurar é que quem assim fala não pode ser responsabilizado pelo derramamento de sangue brasileiro. Poder-se-á fazer o mesmo em relação aos pregadores de revolução em nosso país?
Eu não me alimento de palavras. Eis tudo.
A palavra democracia não substitui, a meu ver, as reais franquias e liberdades que todo governo forte pode garantir.
E bem sabe o meu querido amigo que não sou um insulado nesse modo de pensar. Ponha-se de parte o que é pensamento propriamente católico e ver-se-á que, mesmo no chamado século estúpido, em que a chamada democracia tudo mediocrizou e envenenou, o que se salva de verdadeiramente digno de atenção está além da revolução burguesa e judaica, ou contra ela, radicalmente.
“A maioria dos pensadores do século XIX – diz o insuspeito Faguet – não defende a democracia e era este o meu desespero quando escrevi os meus “Políticos e Moralistas do século XIX”. Não encontrei um só que fosse democrata, apesar do muito que desejava, encontrei-o para fundamentar nele a doutrina democrática”
E Antonio Sardinha, aproveitando uma frase de Taine, do também insuspeitíssimo Taine, contra a Revolução Francesa, assim resume o seu e o meu modo de pensar sobre as revoluções em geral: “As revoluções são sempre assim: “une petite feodalité de brigands”. E por mais que se revistam de aparentes reivindicações sociais ou nacionais, não redundam senão em benefício de uma casta de aventureiros, cobiçosos de se enriquecerem e de mandarem. As declamações das misérias do povo e as concomitantes investidas salivosas contra a opressão dos poderes tradicionais, são o caminho sabido por onde a sua astúcia sem escrúpulos envereda resolutamente e com êxito”.
Este é o meu ponto de vista, e ele não implica, de modo algum, apoio, de qualquer espécie, a governos tirânicos e essencialmente revolucionários, a governos que esqueçam os direitos de todo o ser humano a ser respeitado como criatura de Deus. Poderia sofrê-los, mas apoiá-los nunca. Pelo contrário, se me conheço, quase que posso afirmar que estaria entre os primeiros que no Brasil se levantassem contra um jugo que tentasse aviltar-nos, desrespeitando-nos em nossos lares, nas nossas crenças, na nossa dignidade cristã, enfim.
O que eu não farei nunca é confundir tirania com qualquer governo que seja, mesmo forçado a desrespeitar sofismas revolucionários, repelindo com armas na mão os que só às armas recorrem, quando se sentem feridos em direitos particulares, às vezes bem duvidosos.
Há alguma coisa bem mais sagrada a defender que as declamações dos ambiciosos, e esta é a paz dos nossos lares.
(Gazeta de Notícias, 18 de agosto de 1926)