Jackson de Figueiredo foi uma das fortes e brilhantes personalidades que constituem especial categoria de católicos brasileiros, em tudo distantes da vulgaridade perversa dos progressistas de nossos dias. Pode-se traçar uma linha dinástica ilustre, inteligente, batalhadora e fiel que liga por cima do tempo um Visconde de Cairu a um Carlos de Laet e vincula Jackson de Figueiredo a Gustavo Corção. Jackson foi o fundador do Centro Dom Vital, de onde saíram Gustavo Corção e vários amigos para fundar Permanência em 1968.
A Redação
CRISTIANISMO E POESIA
“A tradição cristã aceita Orfeu como um dos símbolos do Cristo” , e o canto foi, desde os primeiros tempos do Cristianismo, a linguagem preferida do homem, que imitava os anjos do céu. E não podia ser de outra forma desde que, com a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, surgira o novo homem, com mais luz nos olhos e por conseguinte mais amor no coração. Pode-se dizer que se havia, propriamente, inaugurado o reino da prece, ou, pelo menos, ela tinha tomado proporções tão grandiosas como jamais se concebera. O Filho de Deus descera à terra e demonstrara, pelo exemplo de seu sacrifício, o grande valor que tem a vida do homem aos olhos de seu Pai.
Desde então se sentia o homem em relação mais direta com o próprio céu, e a prece, desse outro plano de existência, a que subira, deixara de ser sinal de respeito e adoração unicamente, para ser também palavra amorosa; podia ser mais suavemente dita e mais claramente ouvida, tornar-se um colóquio mais intimo, mais confiante, com a Divindade.
Como não elevar-se também a poesia numa alma assim, como que criada de novo, tendo aos olhos um mundo novo a conquistar?
“O lirismo na sua mais alta concepção pode-se definir como a prece: é uma elevação da alma para Deus.”
E a poesia, ajustando-se à definição platônica, quando poderia irmanar-se com tanta força à prece como após o drama do Calvário? A dúvida humana não fora ali desiludida de si mesma? Não tocara as feridas que ela própria e a maldade tinham feito na humanidade de que se revestira o Criador dos mundos? A missão providencial da sua inteligência não foi ali, aos pés daquela Cruz, que ao homem se revelou na plenitude de uma luz descida do mais profundo mistério?
“Guarda, e guarda único da retidão natural, único capaz, com efeito, de disciplinar, sem destruir, as forças vivas do homem, como não atuar o Cristianismo em benefício da palavra literária, a qual jorra da conjugação mesma de todas essas forças? O Cristianismo mantém as potências humanas em sua harmoniosa atividade; já assim fica dito o que lhe pode dever a palavra literária. Se o pagão se conserva como nosso modelo pelo que imprimiu de força e ordem nas suas obras, conservando por isto mesmo algo de retidão, nisto reconhecemos, por um lado, o testemunho da alma naturalmente cristã, e de direito o fazemos porque o Cristianismo admite, depura, assegura e consagra tudo quanto de beleza real tem a musa profana.”
Se o sangue do Cordeiro curara a cegueira do indivíduo, foi porque a sociedade humana tomara, aos olhos deste, aspecto inesperado: foi esta a prova do milagre. A transmutação de todos os valores sociais se opera tão vivamente, que uma alma só não poderia ficar impassível ante a deslumbradora aurora que, a surgir dentre as ruínas de um mundo, e vinda de outro mundo, rompia as nuvens do imenso crepúsculo do paganismo.
Um autor pouco cristão disse uma vez que o santuário dos templos é o verdadeiro berço da poesia.
Ora, o Cristianismo sagrou a morada do homem e dela fez um só Templo grandioso; não despedaçaria nas mãos dos crentes a lira que se lhe consagrava. Antes, abençoou-a, e aos poetas do mundo novo ensinou a linguagem vibrante dos Apóstolos.
A poesia se faz então “um meio de glorificar a Deus, uma forma da prece” , e deixa, tanto quanto a ação daqueles homens, ver bem claro que a velha sociedade tinha de desaparecer, arrojada da terra pela onda do novo espírito, que fazia assim visível, palpável quase, uma divisão entre o tempo, que passara, obscuro e sinistro, às vezes, e a eternidade, que a fé revelava, imperativa, vitoriosamente. Porque, se o pagão vivera para o tempo, o cristão é o homem que vive para a eternidade.
O certo é que o ser essencialmente religioso que é o homem — e que até então como que se achava desterrado de si mesmo — entrara de novo na plena posse da sua natureza e da sua essência. Degradado pela queda, afastado cada vez mais pela força das suas paixões, das verdades reveladas pelo Deus criador e ordenador, só um pugilo de eleitos, a raça de Abraão, tinha noção clara do seu destino religioso, e a arte fora, até à suprema revelação do Calvário, o alimento mais puro da consciência humana em geral, sem que jamais, entretanto, pudesse satisfazê-la, porque, além do belo, a consciência deseja o bem, a Verdade, enfim, o bem e o belo no máximo esplendor da sua harmonia.
São de Ernest Hello estas profundas verdades: “Uma recordação ainda viva da unidade primordial domina a alta Antiguidade. A religião e a arte estão inteiramente unidas na vida dos primeiros homens. A religião e a arte vivem do mesmo ar, ambas coloridas pelos mesmos longínquos reflexos, ambas desonradas pelas mesmas torpezas.
“Entretanto a arte é mais fiel que a religião. Esta guarda dos fatos o que eles têm de falso, e se faz idolatria. A arte mantém-se mais perto da origem, mais perto do espírito, da tradição. Fala a religião de Júpiter, a arte de Prometeu. Dobra-se a religião aos instintos, aos erros, às paixões de cada cidade e de cada indivíduo. A arte conserva-se mais universal. A religião diverte o pagão com faunos e sátiros. Mantém-se a arte como que à parte, menos infiel à dor antiga e à antiga esperança da humanidade.
“É a religião mais degradada pelos caprichos do homem; a arte menos distante do coração.
“Ésquilo está mais em relação com a arte, Eurípides com a religião.
“A religião antiga excita as paixões. A arte é mais afligida e ferida por elas que propriamente dominada. O paganismo ri com um riso ignóbil. A arte conserva uma certa tristeza imperfeita mas nobre. É o refúgio das lágrimas do homem.”
Que é, porém, o Cristianismo senão a luz do céu que esclarece a tristeza do homem, e diz: — Nela persistes, porque erraste, mas certo de que dentro dela conquistarás a perfeita alegria —?
Que fez ele senão dar a divina significação das nossas lágrimas?
Foi assim, legitimamente, que a arte, “refúgio das lágrimas do homem”, também mergulhou nessa luz do eterno dia, que despontava.
Salva e até revigorada na sua essência, perdera, não resta dúvida, a riqueza das formas exteriores, que o paganismo lhe dera. Lentamente, porém, com segurança, o Cristianismo, que, antes do mais, busca acender o bem no coração dos homens, vai dotando-a de outras formas, vestindo-a do seu gênio prático, amoldando-a ao gênero de ação que requer a humanidade salva pelo batismo... Não lhe foi difícil achar os sinais meio apagados de uma tradição poética, que a arte propriamente cristã deveria também redimir. A poesia do Velho Testamento já se poderia chamar de poesia cristã, pois a realização das profecias também lhe dava, com o vigor da sublime verdade que se impunha, sabor de novidade, e, quando Santo Ambrósio introduziu no Ocidente o uso dos hinos durante o ofício público , já no Oriente ele era universal entre os cristãos .
É não só as Escrituras seriam origem dessa poesia cristã. Conta-nos Eusébio que no segundo século, tendo ensinado Ártemon que Jesus Cristo era apenas um homem, foi combatido por um escritor católico que, para refutar, lhe alegou a fé da Igreja contida em certos hinos compostos em época vizinha do Cristianismo .
E tão notável é o desenvolvimento da poesia cristã, desde os primeiros séculos paralelo, como nota Bayle , ao da arquitetura, que foi um poema, a História Evangélica de Juvenco, a primeira concordância que tiveram os cristãos dos quatro evangelhos . E não mentirá quem disser poder-se provar que a Igreja jamais se desviou da primitiva fé e sempre teve os mesmos dogmas, só com as citações tiradas dos poetas da primeira época da poesia cristã, que vai até o sexto século .
Também não seria difícil mostrar como o sobrenaturalismo cristão criou causas segundas, naturais, de uma bem maior importância para a arte, em geral, e para a poesia, em particular, na vida dos povos. De fato, como faz observar Ozanam, mediam-se ainda duas civilizações, a cristã e a dos pagãos, quando os bárbaros forçavam as portas do império. Mas uma invasão mais poderosa, de conseqüências muito mais importantes, já despedaçara todas as linhas delimitadoras no quadro da antiga ordem social. O Cristianismo elevara de nível a grande maioria dos homens, igualando na ordem do espírito pobres e ricos; pondo aqueles talvez ainda mais alto na ordem da caridade. “É esta invasão dos deserdados do mundo antigo, aqueles que a sociedade desprezava, que, a meu ver, prepara, antecede e ultrapassa muito, nas suas proporções”, diz o grande historiador, “a invasão dos bárbaros. É ela que já fez maior o auditório a que se dirigirá a palavra humana e que, por conseqüência, renovou a inspiração das letras.”
Ozanam mostra como a literatura cristã conquistou, por assim dizer, uma língua, e o que há de espantoso no caso é ser a língua conquistada o latim, “Cette vieille langue païenne que gardait les noms de ses trente mille dieux, cette langue souillée des impuretés de Pétrone et de Martial.”
A princípio “nada parece menos capaz de transmitir as idéias cristãs que essa velha língua latina, que, na sua primitiva aspereza, só parecia feita para a guerra, a agricultura e os processos” . Mas já a invasão dos costumes gregos a alterara no sentido das próprias formas gregas da expressão , e já em Cícero ela em plena maturidade, se mostra à altura “de qualquer esforço da inteligência humana, até os últimos degraus, que tocam o infinito” . A sua decomposição, porém, já se fazia ver a esse tempo de modo violento; o latim está a morrer quando o Cristianismo o salva , o Cristianismo, que fundiu os três gênios que dividiam a Antiguidade, a poesia do Oriente, a filosofia da Grécia e a ação de Roma .
Mas “para que a arte cristã se manifestasse foi preciso que a paz fosse dada à Igreja, que fosse permitido aos fiéis sair dos subterrâneos, mostrar-se à luz do dia, adorar em novos templos ao Deus desconhecido do velho mundo”. É o que se deu no 4º século com a vitória de Constantino , e o instrumento da reforma do latim, da completa cristianização do latim, é a primeira grande, imortal, incomparável obra de arte da fé católica, a Bíblia, a Vulgata de S. Jerônimo. É por isto que com tanto critério dizia Ozanam: “Tinham razão os nossos antepassados cobrindo de ouro a Bíblia e carregando-a em triunfo; este, primeiro dos livros antigos, é também o primeiro dos livros modernos; é, por assim dizer, o autor destes mesmos livros, pois das suas páginas saíram todas as línguas, toda a eloqüência, toda a poesia e toda a civilização dos novos tempos” .
E ao tempo dos últimos esforços de S. Jerônimo pode-se dizer que a arte cristã, principalmente a poesia, ficava perfeitamente caracterizada, tanto do ponto de vista do espírito, que a anima, como das suas formas exteriores. Nela transparece um novo simbolismo da natureza (que já em Prudêncio é tão vivamente cristão) , e não já da natureza envilecida, conspurcada pelos deuses imorais, mas da natureza digna de admiração e respeito, restaurada também em Jesus Cristo .
Se, como observa Hello, o sacrifício é a essência mesma da palavra, e a arte é dividindo-se que se manifesta , como não encontrar no Cristianismo o plano mais próprio ao seu desenvolvimento?
É certo que, fazendo-se mais popular, a arte, cristianizada, longo tempo conserva um rude sabor e uma ingenuidade que só a rude gente, o povo ingênuo, podia casar perfeitamente ao seu sentir. Mas, nessa mesma primitiva ingenuidade, nessa mesma rudeza, criava, pouco a pouco, a verdadeira poesia do espírito, as lúcidas arcangélicas asas com que Dante voará um dia do Inferno ao Paraíso.
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“Se no naufrágio do mundo antigo a civilização pôde salvar-se”, afirma um escritor nosso contemporâneo e que nada tem de católico , “devemo-lo às ordens religiosas; foram a arca do futuro. Sem elas a humanidade talvez sofresse irreparável regressão, todo o progresso adquirido ficaria aniquilado, a história teria de ser recomeçada.
“Os frades foram, então, em verdade, o sal da terra, o escol que trabalha pela espécie e a dignifica. É fazer-lhes injustiça reduzi-los ao papel de escribas ou de copistas, de bibliotecários da cristandade.
“Não só os livros mas também os hábitos e as sementes da cultura nos foram transmitidos pelos religiosos. Graças a eles as tradições não ficaram sendo letra morta. As funções liberais, as aplicações da indústria não deixaram de ser exercidas. Onde quer que houvesse frades, houve prescrição contra a barbaria. As artes foram praticadas. Elevaram-se monumentos. A vida inteligente não sofreu interrupção.”
Mudadas as condições sociais do Ocidente, já no período que vai do fim do século XIII ao meado do século XVIII, observa também o mesmo historiador, o que também caracteriza a marcha da civilização é uma criação de novas ordens, o aparecimento das duas grandes Ordens Mendicantes. “Contemporâneas das grandes lutas empreendidas pelas Comunas para a conquista de suas liberdades, foram, a seu modo, uma reação contra os costumes da Igreja feudal.”
Este papel de Menores e Pregadores pode ser interpretado de diversos modos, e não estamos de pleno acordo com o escritor citado, mas a verdade é que, como ele, se pode dizer, sem medo de errar, que o caráter essencial dessa forma original do monaquismo é a “ação popular”.
“Ajunte-se”, diz ainda Gillet, “que as Ordens Mendicantes suscitaram durante três séculos, através de toda a Europa, um incalculável número de obras de arte, que são contemporâneas do movimento intelectual de que saiu a Renascença, e que estiveram assim associadas, numa medida ainda a precisar, a alguns dos mais graves acontecimentos de nossa vida moral, que produziram multidão de legendas, de heróicas ou poéticas figuras, a começar pelas de seus fundadores, S. Domingos e S. Francisco, figuras que fazem parte das mais caras lembranças, do tesouro espiritual conservado pela humanidade”, e poder-se-á avaliar quanto essas Ordens merecem ser estudadas atualmente na sua história e nas suas legendas. Também, confessa Gillet, os trabalhos modernos sobre o assunto “se multiplicaram a ponto de não se poderem enumerar nem mesmo os principais”.
Deve-se dizer, porém, que a maior causa deste reflorescimento de estudos de toda espécie sobre o monaquismo ocidental daquele período é a figura incomparável de São Francisco. Após a obra de Ozanam, nunca mais modernamente esmoreceu o ardor dos estudiosos em derredor daquela figura central da poesia cristã no Ocidente.
Mas ao debate provocado por Sabatier (um protestante) é que o grande santo deve o ter sido proclamado na própria Alemanha “o homem do dia”.
Desse debate não saiu, como se sabe, nem de leve ferida a excelsa glória do humílimo Francisco. O próprio Sabatier veio a ser depois prova, de não pequena valia, de quanto é difícil à ciência mais bem aparelhada negar seja o que for da maravilhosa vida do Irmãozinho da cinza. E a complexa literatura franciscana dos nossos dias, em que há de tudo, desde a delicadeza e a profundeza de um Joergensen até as blasfêmias e truanices dos Gómez Carrillo e outros cabotinos de renome, diz bem da glória de quem não mais desejou que refletir Jesus Cristo, e por isto mesmo pode, caridosamente, ainda sustentar muita glória legítima e muita glória de malandrins letrados e perversos.
Livros como os de Joergensen, Cherancé, Pardo Bazan, d’Armestad, Lafenestre, Gillet e tantos outros forçam, pelo menos, a esta confissão: não há figura histórica em todo o Ocidente que tenha conseguido interessar tanto a inteligência contemporânea como a do criador dos Frades Menores. Mas, se concordamos com Gebhart que é diminuí-lo não querer ver, da sua grandeza, senão o que suavemente se impõe do singular poeta e ingênuo apóstolo das “Fioretti”, estamos convictos de que o que mais concorreu mesmo para sua moderna e contemporânea popularidade (popularidade entre letrados, bem entendido, desde Gorres, Ozanam, Renan, Rio até Wizewa, Joergensen etc.) foi o lirismo essencial da sua evangelização, foi mais o piedosíssimo vulto de trovador popular do que a sua figura de organizador, de economista da pobreza. Porque, se fora esta a feição mais apreciada da sua vida, certo não merecerá ele mais louvores ou, pelo menos, mais interesse que S. Domingos, máscula, gigantesca personalidade, de cuja ação se pode afirmar que vale, só por si, como uma epopéia dessa ordenadora energia cristã, eternamente em luta com as paixões e as misérias do homem.
Mas S. Domingos, como diz Gillet, que cito ainda por insuspeito, “não fez o Cântico do Sol”. Não oferece essa inaudita mistura de sensibilidade e de paixão, de otimismo e de ternura, de requintada aristocracia e espírito popular que faz de S. Francisco — posta de lado a sua santidade (se isto é possível) — o mais maravilhoso poeta que jamais existiu.
Só a conversão de um homem como Joergensen já é título de glória singularíssimo na história moderna de um santo.
S. Francisco tinha de ser o santo desta época. Deus sabe que armas e que homens deve empregar a cada hora para reconduzir a criatura transviada ao seio da sua Igreja.
(Revista PERMANÊNCIA, 1981, novembro/dezembro, números 157/157.)