O mundo é assim... Enquanto que, em nome da fé católica, e os que me contraditavam, como inimigo da Igreja, aqui mediamos forças (algumas das quais — diga-se entre parêntesis — incrivelmente inadequadas a uma luta de idéias), esquecíamos, ao que parece, o que, unicamente, tínhamos a debater, isto é, a inumana perseguição de que era vítima a população católica do México.
Mas a tempestade diplomática, também ao que parece, está terminada, e tanto eu como os meus contraditores, todos nós, enfim, continuamos nos nossos postos respectivos, gozando com serena consciência, a santa paz de quem cumpriu o dever...
Ainda pior, porém, que os puros entes de razão, são os puros entes de vaidade. E esta paz ou calmaria, em que nos deparamos, é uma coisa assim...
Eu, pelo menos, não me deixo dominar por eles durante muito tempo.
No caso presente, pois, já é tempo que nos esqueçamos de nós mesmos, e voltemos a protestar contra a pedantesca barbaria que, mais uma vez, soube engrossar os traços da caricatura de civilização americana, e, aos olhos do mundo, atormenta e maltrata milhões de criaturas.
Porque, ou mentem as agências telegráficas ou o México continua sendo esse campo de tragicômicas experiências, de mais um desses grupos de vândalos, que costumam irromper nos domínios da vida social da América, para vergonha da espécie humana.
E não há aqui discutir religião ou metafísica. Com quem, aliás? Ao mundo civilizado pouco importa saber que o ilustre ministro do Interior do governo do não menos ilustre Sr. Elias, é contra a revisão constitucional pedida pelo Episcopado mexicano, porque julga S. Ex. que ceder, seja o que for, ante as reclamações da Igreja é retrogradar no caminho das conquistas filosóficas!!
Oh! As conquistas filosóficas do México!
Elas devem ser realmente assombrosas, a julgar pelos grandes homens que as personificam, neste momento.
Não terá sido sem profundas e meditadas razões que uma das altas autoridades religiosas dos Estados Unidos, o Sr. Arcebispo de Baltimore, disse a respeito desses filósofos as seguintes palavras, que cito no espanhol da revista de que as transcrevo: “No ovidemos a Puig Casauranc. Si tenemos em cuenta lo que deve ser un ministro de Estado, Puig no podria serlo. De hecho no hay un solo hombre en el Gabinete de Calles que dé la talla. No hay uno entre ellos que pueda resistir um escrutínio.
Vários de los ministros rojos no se atreven a pasar el Rio Grande. Se les desea em esta nación para juzgarlos por asesinato y bigamia. Por eso envian a Puig para que pueda llegar hasta Washington”(Sal Terrae, julho, 26, 556).
Admiráveis filósofos, não resta dúvida!...
Com relação à Igreja, o mundo civilizado, mais modesto, menos arrogante, preferirá ouvir a palavra de um Godofredo Kurth, por exemplo, de certo mais autorizada, em matéria de civilização e de cultura, que a de qualquer destemido e feliz tropeiro, a quem a enxurrada dos “pronunciamentos” tenha impelido até o poder... até o poder tal como ainda é possível firmar-se na América, sobre base mista de inconsciência e presunção, de crueldade e covardia.
O grande pensador dela assim falava:
“Que se trace sobre um mapa as fronteiras da civilização: perceber-se-á que se traçou as do cristianismo. Escrutemos as camadas superpostas da sociedade para ver até que profundidade penetrou o trabalho do espírito civilizador, e verificaremos que ele para no limite preciso alcançado pelo princípio cristão. Em uma palavra: civilização e cristianismo são dois termos equivalentes. Hoje, como nos primeiros dias da Igreja, a vida moral não tem outra atmosfera que não a da lei cristã: In ipso vivimus, movemur, et sumus.
E o princípio cristão, aquele que, no dizer do mesmo Kurth, realizou a maior e mais pacífica das revoluções que registram os anciãos do mundo, é este: Dai a Cesar o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
O ilustre Valenguela, ministro mexicano, está convencido do contrário... Que se há de fazer, em matéria de convicção? Leibniz sabia bem o que dizia quando dizia: se a verdade matemática que os três ângulos de um triângulo fazem dois retos implicasse interesses morais, já teria sido negada um sem número de vezes.
E Leibniz falava a gente culta de verdade.
Que se pode esperar dos interesses morais, das paixões, dos impulsos de ambição dos pobres diabos que a política americana sacode não raro a alturas estonteantes?
Não devemos esquecer nunca as palavras do grande Libertador: “Tenhamos sempre presente ao espírito que nosso povo não é o Europeu o Americano do Norte; que ele é mais um composto de África e de América que uma emanação da Europa, porque a própria Espanha deixa de ser européia pelo seu sangue africano, pelas suas instituições e pelo seu caráter”.
São palavras de um pessimista, e não devemos temer o que elas contém de excessivo amargor, e só as cito aqui para escarmento de rastaqüeras culturais e metecos endomingados.
Mas não resta dúvida que o que se verifica na vida social latino-americano é uma luta sem tréguas entre o sentido europeu, ou cristão, e a barbaria, que também nos veio da Europa, mas não é de sua essência, e aqui achou meio próprio, e aqui foi reforçada pelas mais diversas correntes de podridão humana.
Seja como for, teimo em repetir: diante do que atualmente se passa no México, ninguém deve perder tempo em discutir o valor da Religião, o que é Civilização ou que é o Direito.
Há somente que protestar-se, e com a maior veemência, contra o desrespeito mais estúpido a todo o sentimento de humanidade. O que aí está em perigo é a própria dignidade humana, na sua expressão mais simples.
A história não conhece sociedade humana sem base religiosa. No México, a esta hora, é o Estado revolucionário e armado com o só direito da força bruta, que legisla como não se ousaria, nem na cidade pagã, legislar para escravos...
É ele quem fere a personalidade em cada cidadão, é ele quem quer impor a uma multidão de homens, vivendo em sociedade, que se transforme em puro ajuntamento de formas sem consciência.
Isto não é política, sob aspecto algum, e muito menos se poderá chamar de política nacional. Pelo contrário: é a negação da própria pátria, porque não se conhecem pátrias sem tradições, sem vida, sem demarcações espirituais, e, por conseguinte, sem religião.
“Dizer que eu devo obedecer a tudo o que uma assembléia política achar necessário estabelecer, ainda contrário seja à minha fé, à minha Religião, é o mesmo que dizer que eu não devo ter nenhum Deus, nem fé, nem Religião, nem consciência, mas entregar-me, como um escravo bruto, nas mãos dos governadores políticos, para que eles, nisto como em tudo o mais, façam de mim o que entenderem. É a mais aviltante abdicação da dignidade ‘humana’”.
Foi assim que, no Brasil, respondeu quem encarnava a consciência católica a um governo que tentou sofismar, entre nós, o direito de ser homem, “uma criatura de Deus, a Deus destinada”, e não uma simples “larva aperfeiçoada, unicamente originaria das fermentações do lodo da terra”.
No Brasil, venceu, por fim, a consciência católica, a liberdade de ser digno, de ser homem na plenitude da posse de si mesmo.
No México hão de vencer também os que se batem pela Verdade.
Crucificada e sepultada, Ela ressurgiu em todo o seu divino esplendor, no limite originário da era cristã.
É esse o exemplo eterno que ficou aos filhos da Igreja.
Eles sabem que a violência é, por essência, passageira, e que a Igreja tem por si a promessa de Jesus Cristo: não prevalecerão contra ela as portas do Inferno.
Uma coisa, porém, é não temer que o governo do México destrua a Igreja, e outra é ver-se o sentimento cristão do mundo inteiro desrespeitado e insultado por um vago general mexicano, e por uns ainda mais vagos mandatários seus, máxime quando esses desrespeitos e esses insultos são feitos com o sangue e as lágrimas de um nobre povo, dominado, brutalizado pelos mais odiosos processos da sofisticaria e da força bruta.
Ë contra isto que protestamos, é contra isto que a consciência dos povos latino-americanos se deve mostrar severa e rigorosa, como graças a Deus se vai mostrando.
PS. Após ter escrito estas linhas, verifico que Elias Calles é também jornalista.
Não faz mal que Marte desça e venha lutar contra os simples mortais. Aqui, pelo menos, encontrará contraditores.
Ele bem sabe que, no México, ninguém ousaria rebater-lhe aqueles seus tão sérios argumentos do fuzil e da baioneta.
E eu me comprometo a vir mostrar em breve o que tem sido a “execução” da famosa carta constitucional a que defende, e, principalmente, se a agitação católica naquele país tem mesmo a significação que ele quer emprestar-lhe, ou se vale como indignado protesto da consciência humana, não só contra leis absurdas, mas também contra interpretadores ainda mais imorais do que elas em si mesmas.
Veremos os testemunhos de que me valerei.
Sei perfeitamente que toda a discussão com homens de má fé é coisa, por assim dizer, inútil.
Mas trata-se de esclarecer o povo brasileiro sobre o martírio do grande povo irmão, e não de convencer os tiranizadores do México.
Contra estes, o protesto puro e simples, como venho fazendo, e hei de fazê-lo enquanto a consciência de cristão mo exigir...
(Gazeta de Notícias, 1 de Setembro de 1926)