A V., meu caro Amigo, parece que impressionou a frase, que foi do escol dos intelectuais do mundo inteiro e V. já ouviu dos augustos lábios do jornalista de Timboré...: “Somos netos de Renan”... Que mal faz isto? Nenhum, creia V. Somos bisnetos de Voltaire, tetranetos de muitos outros desgraçados... de preferirmos tais ascendentes entre tantos, bem mais nobres, que a história nos apresenta.
Mas, enfim, netos de Renan... Creia, meu Amigo, o jornalista de Timboré não sabe o que disse. Foi um puro instrumento, um instrumento da Providência! Pequena glória, já se vê, para o diretor-proprietário do Progresso Timboreense, mas não pouco proveitosa para nós... Porque foi após a leitura da sua carta que, pela primeira vez em minha vida, pensei na família de Renan... Sim, aquele homem, que tão suave e sorridentemente envenenou tantos corações, arrancou a fé de tantas almas frágeis, entregou fria e despiedosamente tantas consciências, ardentes e generosas, às misérias da dúvida, sim, aquele homem também fizera uma família, tivera filhos, talvez, e os criara e educara sabe Deus como... Que fins terá tido aquela gente, que será ela, hoje em dia, lá naquela revolvida terra européia, eis o que a mim próprio perguntava, tomado, acredite V., de verdadeira piedade. Pois bem: não só a mim interroguei. Fi-lo também a um padre francês, meu amigo, e que é hoje exemplo de dedicação e carinho à nossa rude gente do sertão mineiro, após ter-se batido quatro anos, como soldado, nas fileiras do glorioso exército de sua terra. A resposta não se fez esperar muito tempo. E, veja V., não é que aquele excelente sacerdote se desse ao trabalho de escrever, ele próprio, uma história dos Renans... Não. Enviou-me simplesmente um livro, que veio a calhar. Avalie que é, justamente, a biografia de Ernest Psichari, um neto de Renan...
Chega a parecer resposta direta ao jornalista de Timboré, e V. vai ver como acertou o fino ironista, o rival sertanejo do nosso Humberto de Campos.
Sim, V. verá, meu Amigo, que já não nos pode molestar, a nós católicos, a nós crentes, que se diga das gerações que entram agora em plenitude da ação que são netas do homem que fez de Jesus Cristo protagonista de um dos mais vis romances das letras modernas, pela açucarada perfídia com que quis vestir de inconsciência o mesmo tipo que, para nós, é o Filho de Deus vivo — mas que para ele era também o mais alto, o mais perfeito, da humanidade!!
Até já podemos proclamar bem alto que somos netos desse homem, para maior glória do Deus invencível e único.
“Dios no muere”, disse o grande García Moreno, respondendo à punhalada do infernal sectário... Sim, Deus não morre, nem mesmo no sangue dos que blasfemaram de seu nome, dos que repudiaram o amor de seu Filho e apunhalaram o seio da sua Esposa.
Nem de leve suponha que exagero se lhe digo que este livro, que venho de ler, me arrancou lágrimas. Somente não lhe sei dizer se foram elas de tristeza ou de alegria. Sei que as chorei. No silêncio da noite, em que, uma a uma, fui voltando as fúlgidas páginas de Henri Massis, como que vi levantar-se, mais do que nunca, formosa, digna de adoração, a figura da excelsa majestade do espírito da Igreja, sustentáculo do mundo, todos os dias crucificado, todos os dias exaltado, glorificado, vencedor de todo o mal!
Ouvi a prece que a todas as horas sobe aos céus e abranda a justiça do Criador, sofri também de todos os silenciosos sacrifícios que se fazem no altar da renúncia às vaidades do mundo, e como que, dentro em mim, ecoavam também — tão grande era o silêncio lá por fora — os cânticos felizes de todos os que, ardentes de fé, na paz dos claustros ou nos perigos da catequese, bendizem Jesus Cristo, aquele que deu sentido à nossa peregrinação sobre a terra.
Mas, se eu pudesse nestas poucas linhas dar-lhe a biografia desse neto de Renan, certo V. Compreenderia a minha exaltação.
Dele já se disse até que “a França cristã pode invocá-lo nas suas preces”. E por que não? Que vida mais gloriosa, que fim mais sublime e mais ardentemente santificado? Quem se conhece aí vencedor de mais temerosas vaidades?
Avalie V. que educação poderia ter tido um neto de Renan, respirando a atmosfera mesma da mais orgulhosa idolatria a tudo quanto falava daquele homem, que ousara contrapor a sua pérfida palavra ao sangue dos mártires! Ademais, tudo parecia indicar que era Ernest Psichari um digno herdeiro do nome tristemente glorioso: o mesmo pendor para as letras, o mesmo indomável intelectualismo, e fluidez de expressão...
Mas que pode o mal quando Deus não quer? Que é que tocou o coração do jovem príncipe da inteligência?
Ernest Psichari, diz o seu biógrafo, conheceu todas as febres, todas as perturbações da sua geração, mas, sempre adiante dos seus companheiros, “nele se exaltava a mocidades de França”.
Ainda foi com assombro que o viram abandonar os cursos da Sorbone para fazer-se soldado e partir para a África, a uma rude guerra de conquista. Mas, se o entusiasmo das suas primeiras obras, nascidas do contato com a barbaria e a religiosidade do deserto, a muitos pareceu ainda entusiasmo de diletante, não tardou que se compreendesse o idealista que se revelava com força invencível. E não é nunca demais esperar-se de um soldado que se faça apóstolo. O entusiasmo pela guerra não é já entusiasmo pelo sacrifício?
Ernest Psichari em poucos anos de guerra, de “vida perigosa”, se fizera um apóstolo da desforra francesa, e Deus é como Deus dos exércitos que, pela primeira vez, fulge na sua consciência.
Ele encarna, dentro em pouco, a ação intensa, mesmo a violência, para responder ao cepticismo do avô.
“Nossa geração”, escrevia ele, “a dos que começaram a vida com o século, é importante. Nela, sabemos, estão todas as esperanças. É dela que depende a salvação da França e assim a do mundo, a da civilização. Parece-me que os moços sentem obscuramente que verão grandes coisas, que grandes coisas se farão por eles. Não serão nem amadores nem cépticos. Não serão turistas através da vida. Sabem o que se espera deles.” Estava mudado aos seus olhos o cenário do mundo. Estava delineado o seu programa, não havia mais escolher: “prendre contre son père le parti de ses pères”.
Ainda era quem assim falava um homem que não tinha por si as armas de uma fé positiva.
Mas, como ele mesmo disse:“Dès qu’on fait un pas hors de Ia médiocrité, on est sauvé...” “On est embarqué dans l’absolu...” – Ao primeiro passo para fora da mediocridade estamos salvos. Embarcamos no absoluto.
Daí em diante, seus livros assim como a sua vida são a resposta mais lúcida, mais vibrante e mais séria que o espírito de ordem podia dar à anarquia contemporânea, e a sua figura de herói e de artista, de homem de ação e de sábio vai pouco a pouco aproximando-se e por fim surge, duplamente envolvida, de entre as fileiras dos que, a esta hora, cristãos e franceses, já salvaram as grandes tradições da sua pátria do completo aniquilamento. A Igreja podia gloriar-se de mais um filho, um verdadeiro filho, amante e fiel.
E é comovente ler estas palavras do neto de um Renan... “Toda a tentativa por nos libertarmos do catolicismo é um absurdo, pois, queiramos ou não, somos cristãos; e é uma maldade, visto que, quanto temos de belo e grande no coração, nos vem do catolicismo. Não apagaremos vinte séculos de história, precedidos de toda uma eternidade. E, como a ciência foi fundada por crentes, nossa moral, no que tem de nobre e de elevado, também vem dessa grande e única fonte do cristianismo, de cujo abandono decorre a falsa moral, assim como a falsa ciência.”
No dia 8 de fevereiro de 1913, Ernest Psichari, o neto de Renan, foi confirmado por Mons. Gibier, na capela do pequeno seminário de Grandchamp.
Com a voz a tremer de ardor contido, recitou o “Credo”, de que, uma a uma, acentuou as sílabas latinas. Após a confirmação, o Bispo de Versailles lhe perguntou a sua idade: — Vinte e nove anos! Muito tempo perdido!, foi sua resposta.
E porque, assim, tanto tempo perdera foi que desde então o viram seus soldados e toda a França intelectual arder na febre de reparar, em cada livro, em cada ato, as injúrias que seu avô fizera à França cristã, e, humílimo, ou melhor, possuído de santo orgulho, servir a missa e ser aquele mesmo ser — Cristão, que Louis Veuillot também quisera ser... E foi deste modo, entre os rigores da vida militar e os rigores de uma exaltada prática cristã, que a Grande Guerra surgiu. Foi dos primeiros que marcharam contra o inimigo de sua pátria, foi dos primeiros que caíram fulminados no campo de honra.
“Os que o viram mais tarde ficaram impressionados ante a calma de seu rosto; tinha nas mãos o rosário que pudera segurar.”
Eis aí, meu Amigo, como soube morrer um neto de Renan. Felicito o jornalista de Timboré pelas suas ironias. Já podemos ser bons netos de Renan. E V. há de concordar comigo: Ernest Psichari foi, de fato, uma dessas naturezas que são privilégio daquela nação a quem nem as desgraças nem os erros tiraram ainda o que Joseph de Maistre, então insuspeito de lhe ser favorável, pode observar no seu destino: o exercício de uma verdadeira magistratura sobre a Europa e, por conseguinte, sobre o mundo.
Quando uma dessas naturezas aparece como uma estrela sobre os céus borrascosos daquela grande pátria, não há consciência cristã que não veja claramente alguma coisa de mais profundo e de mais forte que o que prende todas as mais nações, ligando os destinos da França aos destinos da Igreja Católica.
E tem-se o desejo de dizer que, sejam quais forem as aparências, sempre a causa da França é a causa da Igreja.
(Revista PERMANÊNCIA, 1981, novembro/dezembro, números 157/157.)