Capítulo quarto
Doutrina do Concílio de Trento.
Vamos agora ouvir o que a santa Igreja nos ensina sobre a doutrina do pecado original: para isso bastará traduzir a quinta sessão do Concílio de Trento. Ela se compõe de um preâmbulo, cânones e, finalmente, de uma declaração relativa à Santíssima Virgem. Vejamos de início o preâmbulo:
“Para que nossa santa fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus (Heb 11. 6), purgada de todo erro, conserve-se íntegra e pura em sua sinceridade, e para que o provo cristão não se deixe agitar por qualquer vento de doutrina (Ef 4, 14), pois a antiga serpente, inimiga perpétua do gênero humano, entre os muitos males que em nossos dias perturbam a Igreja de Deus, não hesitou suscitar acerca do pecado original e seu remédio tanto novas como antigas discórdias, o sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente reunido no Espírito Santo, e presidido pelos mesmos três Legados da Sé Apostólica, desejando desde já reconduzir os que laboram em erro e confirmar os vacilantes, tendo seguido os testemunhos das Sagradas Escrituras, dos Santos Padres, dos mais autorizados Concílios, bem como o julgamento e o consenso da própria Igreja, estabelece, confessa e declara o que segue: (...).”[1]
Para compreender esta linguagem, é preciso se dar conta do estado da sociedade em meados do século XVI. Estava-se ainda sob a influência de um grande movimento literário, moral e religioso chamado Renascença.
A Renascença começara pelas letras. Pretendeu pôr em destaque e prestar homenagem às belas-letras e, por conseqüência, aos bons autores. Exaltava e cantava Demóstenes e Cícero, Homero e Virgílio, Platão e Sêneca, e uma multidão de outros autores.
Ao lerem esses autores, os renascentistas assimilavam suas idéias, e estas não eram católicas, mas simplesmente pagãs. O paganismo puro e simples ingressou portanto na sociedade cristã. Passou-se então a negar o pecado original. E daí à negação de tudo, visto que o pecado original de um lado e a Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo de outro é todo o cristianismo.
Quando então o Concílio diz que em seu tempo antigas discórdias sobre o pecado original eram suscitadas, referia-se a alguns heréticos que então renovavam a antiga heresia de Pelágio, a qual negava pura e simplesmente o pecado original.
A esta heresia antiga se juntavam outras novas, por obra de Lutero e Calvino. Esses inovadores pretendiam que o o pecado original subsistia mesmo depois do batismo, que o batismo nos valia apenas a não-imputação do pecado, mas não o apagava realmente.
Por onde se vê que o espírito humano se presta a todos os excessos: alguns buscavam provar que o pecado original não existia, enquanto outros sustentavam que ele subsistia mesmo depois do batismo.
Posta entre inimigos de sentimentos tão opostos e tão miseravelmente errados a respeito do pecado original e do seu remédio que é o batismo, a Igreja, pela boca do Concílio, ensina a uns e a outros, e, ao mesmo tempo, a todos os fiéis, a doutrina pura e sem mácula das divinas Escrituras, dos Santos Padres e dos Concílios mais autorizados.
Esses Concílios são aqueles realizados contra os antigos pelagianos, a saber, os Concílios de Cartago, Milevi e, sobretudo, o segundo Concílio de Orange, no qual a doutrina do pecado original foi afirmada nos termos de que se apropriará o Concílio de Trento. Podemos lê-los no primeiro de seus cânones:
“Se alguém não confessar que Adão, o primeiro homem, após ter transgredido o mandado de Deus no paraíso, perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que fora constituído; e que pela sua prevaricação incorreu na ira e na indignação de Deus, e por isso na morte com que Deus antes lhe havia ameaçado e, com a morte, na escravidão e no jugo daquele que desde então teve o império da morte (Heb 2, 14), a saber, o demônio; e que Adão por aquela ofensa foi segundo o corpo e a alma mudado para pior – seja anátema!”[2]
Como se pode ver, o Concílio nos instrui aqui sobre o estado de Adão antes e depois da queda. Antes de sua queda, ele possuía a santidade e a justiça. Pensa-se geralmente que Deus as deu a ele desde sua criação; entretanto, como certos autores católicos ensinavam que Deus havia primeiro criado Adão segundo a natureza, depois o havia elevado à santidade e à justiça que nós chamamos de original, o santo Concílio, não desejando condená-los, se contentou em dizer que Adão foi constituído nesse estado: ele não diz criado. Com isso, o santo Concílio nos permite perceber melhor sua diferença com respeito aos dons da ordem natural: mostra-nos que a graça de Adão era verdadeiramente uma graça sobrenatural, não devida à sua natureza.
Adão caiu, e por sua própria culpa perdeu a graça, a santidade e a justiça que compunham seu mérito diante de Deus. Decaído da amizade de Deus, incorreu em sua cólera e indignação: de imortal que era pela graça, tornou-se mortal segundo a condição da sua natureza. E de servidor livre de seu Criador, tornou-se escravo de Satanás, a quem obedecera.
A queda foi horrivelmente grande: o homem inteiro se ressente dela, ele foi deteriorado por inteiro, segundo seu corpo e sua alma. Segundo o corpo, tornou-se sujeito às doenças e, finalmente, à morte. Segundo a alma, ele foi despido dos dons da graça, e de todos os bens que lhe resultavam da presença desse dom sobrenatural.
Tendo sua alma rompido o jugo tão doce de sua dependência para com Deus, submeteu-se ao estranho jugo da concupiscência: e ele, que no Paraíso era puro e feliz, quase como os anjos no Céu, ele que andava nu e não se ruborizava, assim que pecou conheceu a vergonha, e foi obrigado a cobrir-se! Deus jogou-lhe uma pele de animal, e ele escondeu sua vergonha. Ele a cobriu, mas não a eliminou. Ela permanece!
Em seguida, Adão se tornou escravo de Satanás segundo o corpo e segundo a alma, e, por conseqüência, ele tinha de viver na morada do próprio demônio, lá onde a escravidão é eterna, sob o mais perverso dos mestres, num lugar de fogo.
O segundo cânone do Concílio de Trento relativo ao pecado original foi concebido nos termos seguintes:
“Se alguém sustentar que a prevaricação de Adão prejudicou somente a ele e não à sua descendência; e que a santidade e a justiça que recebera de Deus e perdera pelo pecado, foi perdida somente para ele mas não para nós; ou que estando ele manchado pelo pecado de desobediência, transmitiu a todo gênero humano tão-somente a morte e as penas corporais, não porém o mesmo pecado, que é a morte da alma – seja anátema!"[3]
Toda a doutrina de Pelágio é aqui derrubada e fulminada com o anátema. Ele reconhecia que Adão havia pecado e sido despido da justiça original, mas pretendia que a queda de Adão fora, para sua descendência, apenas um mau exemplo, nada mais.
Os discípulos do heresiarca, confrontados por toda parte com os anátemas da Igreja, consentiram em reconhecer que o pecado de Adão prejudicara todo o gênero humano; mas, quando instados a confessar que mal nos causara o pecado de nosso primeiro pai, reconheciam que Adão nos havia transmitido as penas de seu pecado, os sofrimentos, a doença, a morte, mas não queriam reconhecer que Adão nos transmitira o seu próprio pecado, com a ignorância e a concupiscência que são, a um tempo, a conseqüência dele e o seu indício cruelmente revelador. Em uma palavra, eles reconheciam que Adão nos transmitira a morte do corpo, mas não a morte da alma ou o pecado propriamente dito.
Os antigos Concílios condenaram as doutrinas pelagianas, e o Concílio de Trento, observando que essas mesmas doutrinas ressurgiam no século XVI, condena-as de novo se apropriando dos próprios termos dos Concílios anteriores.
A razão humana não tem dificuldade em reconhecer que nós herdamos as penas incorridas por Adão, as punições inflingidas ao seu pecado: nós concebemos isso facilmente porque vemos se realizar sob nossos olhos fatos absolutamente correspondentes: uma pena infligida a um pai lança a desonra sobre seus filhos; nós vemos isso e ninguém sonha em levantar objeções a esse dado moral que, no entanto, é bastante duro, durus sermo.
Mas o que não é concebível tão facilmente é que Adão nos transmitiu não apenas as penas do pecado, mas o próprio pecado. Instruídos pela divina revelação, nós aceitamos a doutrina do pecado original e, com a garantia da palavra divina, a fé repousa nesta verdade.
Depois de conduzir a razão a se submeter à razão de Deus, a fé provoca a razão a procurar o como daquilo que crê. Segundo as palavras profundas de Santo Anselmo, a fé busca a inteligência, a fé procura compreender, fides quaerit intellectum.
Aqui o papel da razão cresce, porque, ajudada pela razão de Deus, ela se eleva acima de si mesma, e se pergunta como é possível que o pecado de Adão tenha se tornado pecado nosso. Sozinha diante dessa grande questão, a razão tem de confessar sua impotência; mas, ajudada pela fé, a razão pode avançar sem temeridade. Eis o caminho que pode fazer e como ela procede.
O Concílio de Trento vem em nosso auxílio de um modo que não poderia ser mais satisfatório, dizendo: "O pecado de Adão, sendo único em sua origem, transvasou para todos por geração e não por imitação, e é próprio a cada um”[4].
Nós nos perguntávamos como o pecado de Adão passava para cada criança, e o Santo Concílio nos responde: “Por transvasamento, pela própria geração.” Abre-se assim à razão uma via de conhecimento absolutamente nova, absolutamente sobre-humana, absolutamente divina. A geração é uma espécie de duplicação de Adão: e este último, no ato mesmo da geração, engendra à sua imagem e semelhança, segundo as palavras das Escrituras (Gn 5, 3). Adão decaído engendra decaídos, Adão pecador verte nos seus filhos tanto a sua natureza como o seu pecado.
Eis um exemplo que nos ajudará a compreender essa importante verdade: um linotipista comete um erro numa gráfica. A página montada é enviada à impressora; a impressora é posta em movimento e todos os os exemplares que nos chegam às mãos reproduzem o erro inicial.
Sob a imagem do prote (protos, primeiro), reconhecemos Adão; sob a imagem da impressão, reconhecemos a geração; e sob aquela dos exemplares, reconhecemos todos os filhos de Adão.
Único na sua origem, o erro inicial torna-se próprio a cada um dos exemplares. Por aí, compreendemos, tanto quanto nos é possível no momento, o transvasamento do pecado original.
[1] Eis o texto original: “Ut fides nostra Catholica, sine qua impossibile est placere Deo: purgatis erroribus, in sua sinceritate integra et illibata permaneat, et ne populus Christianus omni vento doctrinae circumferatur; cum Serpens ille antiquus, humani generis perpetuus hostis, inter plurima mala, quibus Ecclesia Dei his nostris temporibus perturbatur, etiam de peccato originali, ejusque remedio non solum nova; sed vetera etiam dissidia excitaverit: sacrosanta oecumenica, et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata praesentibus in ea eisdem tribus Aspostolicae Sedis Legatis, jam ad revocandos errantes, et nutantes confirmandos accedere volens, sacrarum Scripturarum, et sanctorum Patrum, ac probatissimorum Conciliorum testimonia et ipsius Ecclesiae judicium, et consensum secuta, haec de ipso peccato originali statuit, fatetur, ac declarat.” [N. do E.]
[2] Eis o texto original: “Si quis non confitetur, primum hominem Adam, cum mandatum Dei in paradiso fuisset transgressus, statim sanctitatem et justitiam, in qua constitutus fuerat, amisise, incurrisseque per offensam praevaricationis hujumodi iram, et indignationem Dei, atque ideo mortem, quam antea illi comminatus fuerat Deus: et cum morte captivitatem sub ejus potestate, qui mortis deinde habuit imperium hoc est, diaboli, totumque Adam, per illam praevaricationis offensam, secundum corpus et animam in deterius commutatum fuisse; anathema sit.” [N. do E.]
[3] Eis o texto original: “Si quis Adae praevaricationem sibi soli, et non ejus propagini asserit nocuisse, et acceptam a Deo sanctitatem, et justitiam, quam perdidit, sibi soli, et non nobis etiam eum perdidisse, aut inquinatum illum per inobedientiae peccatum, mortem et poenas corporis tantum in omne genus humanum transfudisse, non autem et peccatum, quod mors est animae: anathema sit.” [N. do E.]
[4] Eis o texto original: “Si quis hoc Adae peccatum quod origine unum est et propagatione non imitatione transfusum omnibus inest unicuique proprium [...] negat [...] anathema sit” - cânone terceiro [N. do E.]