Capítulo oitavo
As feridas da natureza
Para exprimir as conseqüências devastadoras do pecado original, os Padres da Igreja têm uma fórmula, aceita por Santo Tomás e repetida desde então por todas as vozes católicas: pelo pecado de Adão, o homem foi privado dos dons gratuitos e ferido nos dons naturais (Spoliatus gratuitis, et vulneratus in naturalibus).
Por dons gratuitos entende-se a graça santificante e todo o cortejo de bens sobrenaturais por meio dos quais o homem foi feito filho de Deus, herdeiro do céu, irmão dos anjos, e imortal mesmo no seu corpo. Todos esses bens foram completamente perdidos em conseqüência do pecado.
Resta a natureza; ou seja, o homem composto de corpo e alma: ora estes bens, que nos restaram depois da queda, não são mais o que eram, não são mais o que deveriam ser segundo o plano divino. Eles foram feridos, e feridos de modo grave.
Essas feridas são quatro: a ignorância, a malícia, a fraqueza e a concupiscência.
A ignorância afeta a razão, que não está mais na ordem que lhe convém em relação à verdade. A malícia afeta a vontade, que não está mais ordenada segundo o bem. A fraqueza e a concupiscência afetam igualmente a vontade e paralisam suas forças em relação ao bem árduo que ela deve procurar e em relação ao prazer que ela deve moderar e regular.
Vê-se que a natureza está muito enferma.
Ora, há hoje muitos espíritos – excelentes, de resto – que, depois de reconhecer que a natureza perdeu os dons sobrenaturais, esforçam-se para nos fazer crer que ela guarda integralmente os dons naturais. As feridas que enumeramos para eles não contam, ou contam muito pouco; são nada ou quase nada.
Um dia, chegou-nos às mãos um escrito devoto onde, a propósito da Imaculada Concepção da Santíssima Virgem, se pretende dizer o que é o pecado original. E assim o define: a perda da justiça original. Isto está bem, mas, em seguida, acrescenta: “Evitemos de ver aí uma deterioração da natureza!”
Como o Concílio de Trento assevera que pelo pecado original o homem se deteriorou segundo o corpo e segundo a alma, nos permitimos procurar o autor e perguntar-lhe como ele escapava do anátema lançado pelo Concílio. Ele nos respondeu: “Você não leu Suárez.” A resposta não nos pareceu suficiente, e insistimos. Mas o autor não tinha tempo para discutir conosco e, com palavras polidas, nos mandou passear.
Esta pequena história é a história de muita gente. Eles não querem olhar a verdade face a face; e se nos propomos a colocá-la diante de seus olhos, eles nos rejeitam.
Nós católicos não desprezamos a natureza. Distinguimos nela o que é de Deus, e bendizemos o Criador. Ao mesmo tempo, reconhecemos o que nela está ferido pelo pecado original, e suplicamos a cura a Jesus, nosso único Salvador.