Capítulo nono
As crianças mortas sem batismo.
Nós vimos como o naturalismo trabalhava para renegar a fé no pecado original, e desse modo destruir todo o cristianismo. Queremos agora mostrar esse mesmo naturalismo na tarefa detestável que desempenha na questão das crianças mortas sem a graça do batismo.
Eis aqui um autor, um autor contemporâneo, que não hesita em escrever: “É evidente que essas crianças não serão nem punidas nem infelizes”. A citação é textual.
Sobre o que faremos a seguinte reflexão – que todos sem dúvida acompanharão: se essas crianças não serão nem punidas nem infelizes, é evidente que não são pecadoras; dito de outro modo, nelas não há propriamente o pecado original; isso é absoluta e totalmente contrário à fé cristã.
Eles dizem: as crianças mortas sem batismo não serão punidas. Nós dizemos: todo pecado tem de ser punido; ora, a fé nos ensina que essas crianças estão no pecado. Concluímos então que serão punidas.
Eles dizem: elas não serão infelizes. Nós dizemos: o pecado original fez com que essas crianças perdessem a graça e a amizade de Deus; ora, a fé nos ensina que o homem não saberia alcançar a felicidade sem a graça de Deus. Concluímos então que essas crianças serão infelizes.
Veremos mais adiante que essas conclusões são rigorosamente verdadeiras e pertencem à fé.
Mas eis que chegam os que imaginaram um estado intermediário entre o céu e o inferno: eles imaginaram uma felicidade que eles chamam de natural para essas pobres crianças deserdadas.
A bem dizer, não compreendemos sequer o que possa ser tal beatitude natural. No entanto, se chegarmos a admiti-la, será preciso admitir também suas conseqüências.
Se estes pobres deserdados não serão nem punidos nem infelizes, se lá onde estão gozam de uma felicidade natural, gostaríamos de saber se foram criados para essa bem-aventurança inferior, se foram destinados à pequena bem-aventurança, ou se foram criados, como nós, para verem a Deus.
Se admitirmos que eles foram criados para ver a Deus, que é a única verdadeira beatitude do homem, concluiremos então que eles não alcançaram seu fim e que, portanto, só poderão ser infelizes.
Se, ao contrário, admitirmos que eles foram criados para essa beatitude natural, que estão num estado de natureza pura, como dizia outrora uma voz eloqüente, seremos obrigados a admitir que estão fora da humanidade redimida por Nosso Senhor, donde se seguirá que Nosso Senhor não morreu por todos os homens. Essa é uma proposição de Jansênio, e não podemos sustentá-la sem incorrer na excomunhão.
Não ignoramos a objeção que se poderia tirar contra nós da doutrina de Santo Tomás. Charles Billuart, comentador autorizado de Santo Tomás, que retém tanto quanto pode da teoria do doutor angélico sobre o estado das crianças mortas sem batismo, afirma que não há questão de beatitude natural para elas. A razão que ele aduz é impressionante: essas crianças, diz o teólogo, morrendo em pecado original, morrem em um estado de aversão a Deus; por conseguinte, conclui, não poderia haver entre elas e Deus esta relação livre e amorosa que é a beatitude[1].
Ademais, é preciso destacar – e isto é capital para a questão – que Santo Tomás escreveu antes da definição da Igreja sobre o estado das crianças mortas sem batismo. Sabemos bem que ele escreveu também sobre a Concepção da Santíssima Virgem, igualmente antes da definição da Igreja.
A Igreja já se pronunciou acerca do estado das crianças mortas sem batismo? Sim, já o fez solenemente e por duas vezes: no Concílio de Lyon (1274) e no Concílio de Florença (1438).
Eis os termos do Concílio de Lyon, repetidos tais e quais pelo Concílio de Florença:
“Definimos que as almas daqueles que morrem em pecado mortal atual, ou tão-somente em pecado original, descem logo para o inferno, para aí serem, contudo, punidas com penas desiguais.”[2]
Citamos anteriormente Bossuet. Será bom ouvir o grande bispo comentar a definição de fé que acabamos de traduzir. Havia em seu tempo, na França, um racionalista famoso, e certamente um dos pais do racionalismo contemporâneo. Bossuet o refuta nos seguintes termos:
“Este grande crítico ignora a definição de dois Concílios ecumênicos, o Concílio de Lyon, sob Gregório X, e o de Florença, sobre Eugênio IV, onde as duas igrejas (a grega e a latina) reunidas decidem como sendo de fé, que as almas daqueles que morrem tanto em pecado mortal atual como apenas em pecado original, descem diretamente para o inferno, para aí serem, contudo, punidas com penas desiguais; donde o Cardeal Belarmino, e depois dele, o Pe. Pétau, concluem pela danação eterna de uns e outros, sem que seja permitido duvidar disto. Eis portanto que estão no inferno, nos suplícios, nas punições, na danação, nos tormentos perpétuos, segundo São Gregório[3]; na geena, segundo São Ávito, citado por esse mesmo teólogo; na morte eterna, diz o Papa João, citado no Direito, e depois por Belarmino, que conclui dessa passagem e de muitas outras que esta doutrina é de fé católica, e a contrária herética, condenando a falsa piedade daqueles que, para testemunhar uma afeição a essas crianças mortas, que de nada lhes serve, opõem-se às Escrituras, aos Concílios e aos Padres da Igreja. Será preciso afetar tanta astúcia quando se ignora os dogmas da fé, expressamente definidos e nos mesmos termos, por dois Concílios tão autênticos: na confissão da Igreja grega, aprovada pelo Concílio de Lyon, e no decreto de união do Concílio de Florença, pronunciado de comum acordo por gregos e latinos, com a a provação de toda a Igreja?”[4]
Assim falava Jacques Bossuet, refutando as teorias naturalistas de Richard Simon. Será preciso afetar tanta astúcia, exclamava ele, quando se ignora... O naturalismo, nos nossos dias, tem outra maneira de se fazer de astuto. Por exemplo: o autor que nos diz que as crianças mortas sem batismo não serão nem punidas nem infelizes, tinha sob seus olhos o texto dos dois Concílios que condenavam expressamente suas teorias desencontradas. Ele cita o texto, mas vejam a astúcia: onde estavam as palavras “ou tão-somente em pecado original”, ele substitui por três pontos...
Eis como alguns católicos abandonam a fé ao naturalismo, julgando, sem dúvida, que com três pontinhos são muito astutos.
Para evitar equívocos,
recomendamos fortemente a leitura da
"nota" da Permanência sobre o tema
[1] Beatitudo naturalis stare non potest cum aversione a Deo ut auctore naturæ; consistit enim beatitudo naturalis in libera et amicabili conversione ac unione cum Deo ut auctore naturæ: atqui parvuli ratione peccati originalis sunt aversi a Deo etiam ut auctore naturæ; ergo. (De effectibus peccati. Dissert. VII, art. VI.)
[2] “Illorum animas qui in actuali mortali peccato, vel solo originali decedunt, diffinimus mox in infernum descendere, poenis tamen disparibus puniendas.”
[3] Is quem salutis unda non diluit, originalis culpae supplicia non amittit. (S. Greg., Moral., Lib. IV, Præfatio) — Quos a culpa originis sacramenta non liberant, et hic ex proprio nihil egerunt, et illuc ad tormenta perveniunt... Perpetua quippe tormenta percipiunt, et qui nihil ex propria voluntate peccaverunt (Id., Lib. IX, no. 32, Ed. Ben.)
[4] Défense de la Tradition et des saints Pères, livro V, capítulo II.