Capítulo sexto
O que resta do pecado original depois do batismo.
O pecado original é destruído, arrasado pelo batismo: nada resta no homem batizado, absolutamente nada, que fira a amizade dele com Deus. No entanto, a concupiscência ou inclinação para o pecado permanece nos batizados. Deus quis deixá-la para nos dar o mérito de lutar contra ela e vencê-la. A concupiscência não prejudica aqueles que lhe resistem pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes, torna-se para eles uma ocasião de mérito e um título a mais para a recompensa eterna.[1]
A concupiscência não é sequer um resto de pecado; mas, mesmo sem o ser, inclina nossa vontade em direção ao pecado, e se não lhe resistirmos com coragem, ela acaba por nos fazer perder a graça e cair na danação eterna.
Suas seduções são poderosas: ela nos bajula, ela nos faz crer que sua voz é a voz da natureza, e sob esse pretexto seduz a muitos.
Só a fé pode nos esclarecer acerca da concupiscência. Para os que não têm fé, trata-se de um enigma indecifrável. Eles se perguntam de onde viriam tantas inclinações do tipo, se não fossem naturais: sem poder descobrir sua origem, sua natureza íntima, acabam por pensar que elas são inseparáveis da natureza, que elas são a natureza mesma e, portanto, que são legítimas.
Tamanho erro acarreta conseqüências formidáveis. Pois, como quase todas as leis foram feitas para barrar a expansão dessas inclinações funestas, ao declarar que essas inclinações são legítimas, segue-se que tais leis são abusivas.
E não faltam pessoas que não recuem diante de conseqüências tão desastrosas. Para elas, o mal está na sociedade e o bem nos indivíduos: o mal está nas leis, e o bem na natureza. Tudo o que conhecemos como socialismo tem aí seu ponto de partida: e é preciso que se diga que sua razão de ser é a ignorância. Um pouco de catecismo bastaria para curar todo o socialismo do mundo.
Não pretendemos que todas as legislações sejam perfeitas: longe disso, nós pensamos que, ao contrário, todas as legislações são passíveis de aperfeiçoamento. Mas acrescentamos que o indivíduo é o pior. A cura do corpo social deve começar pelo indivíduo: e quando os indivíduos se emendarem, a correção da sociedade se dará sem dificuldade nem abalos.
Só a Igreja pode trabalhar para a emenda do indivíduo; é por isso que os Estados desejosos de paz social deveriam se aplicar a atribuir à Igreja toda liberdade de ação: daí se seguiria necessariamente um aperfeiçoamento do estado moral dos povos e todos se beneficiariam invariavelmente. Vê-se com nitidez que ao entravar a liberdade da Igreja, os Estados apenas criam dificuldades para si mesmos e preparam catástrofes, que serão tão mais certas quanto mais a ação salutar da Igreja sobre os indivíduos for impedida.
Não queremos nos alongar mais sobre tais considerações, mas não poderíamos deixar de indicá-las, pois decorrem naturalmente de nossa exposição.
Concluamos então que a noção de pecado original é uma noção não apenas salutar, mas indispensável tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. Vejamos agora em que pé estão as sociedades e os indivíduos no que diz respeito a este dogma capital do Catolicismo.
[1] Ao cair no pecado a alma de Adão ficou manchada pela culpa do seu pecado. Porém, outras consequências se seguiram: a perda dos dons preternaturais, e a ferida da natureza humana, a qual passa do estado de integridade, ao estado de natureza decaída. Ao receber o batismo, a alma tem o pecado original destruído. Mas o batismo age sobre aquela alma em particular, nada acrescentando à natureza humana, a qual continua decaída. Daí as três concupiscências que nos inclinam ao pecado. Vide cap. 8. (Nota da E.)