Nota da Permanência:
No cap. 9 do seu opúsculo sobre o Pecado Original, o Pe. Emmanuel, ao tentar defender a doutrina dogmática do pecado original contra os ataques dos naturalistas, não percebe que mistura duas questões distintas, de onde tira conclusões confusas que gostaríamos de elucidar.
Com razão, o autor critica os que afirmam que as crianças mortas sem batismo não serão punidas, e viverão felizes. É verdade que a doutrina católica afirma que as crianças mortas apenas com o pecado original, mas sem culpa atual, não podendo ingressar no Reino dos Céus, sofrem a pena da danação, que significa que nunca verão a Deus na glória. Daí decorre a ausência da felicidade eterna no Céu.
Porém, mais adiante, o padre critica os que ensinam que existe um lugar intermediário entre o céu e o inferno (“eles imaginam uma felicidade que chamam de natural...”) e entende que essa felicidade natural seria o mesmo erro que criticara com razão no início (que as crianças não seriam punidas nem infelizes). Porém, esses primeiros atribuíam às crianças mortas sem batismo uma felicidade sobrenatural no Céu, o que é condenado pela Igreja. Mas os que afirmam que haverá certa felicidade natural, não caem no erro anterior, sabendo muito bem que haverá a infelicidade de não ver a Deus e de não viver na glória do Céu.
“Se admitirmos que eles foram criados para essa beatitude natural, que estão num estado de natureza pura, seremos obrigados a admitir que estão fora da humanidade redimida por Nosso Senhor” – ora, a doutrina retida pela Santa Igreja, como veremos, mesmo afirmando que a punição da danação não impede certa participação de vida natural, não afirma que foram criados para ela ou que estejam num estado de natureza pura, mas que sofrem punição por não verem a Deus, porque carregam em si o pecado original.
A história do pensamento católico referente à sorte das crianças mortas sem batismo mostra uma época em que os princípios que serão mais tarde desenvolvidos já estavam expostos, e de que maneira essa doutrina será elucidada pelos Padres da Igreja, os teólogos, e depois o próprio Magistério (cf. DTC, verbete Limbes, col. 760, pelo Padre Augustin Gaudel).
São Gregório Nazianzeno, falando do batismo, escreverá: “Nem tudo que não merece o suplício é digno de honra por este fato mesmo, assim como nem tudo que é indigno de honra merece, por isso mesmo, o suplício”. Apresenta-se nesta frase um princípio que estabelece a necessidade do reto juízo de Deus no sentido de um estado intermediário entre o Céu e o Inferno, mas que só será desenvolvido mais tarde.
Santo Agostinho, antes da controvérsia pelagiana, tinha admitido a existência de um estado médio entre o reto agir e o pecado, assim como um juízo intermediário entre a recompensa e o suplício (O Livre Arbítrio, Liv 3, cap. 23, nº 66 – PL T.32, col. 1304). Seu pensamento se tornará mais severo porque os pelagianos diziam que as crianças mortas sem batismo iriam para o céu. E o santo doutor teve toda a razão em reagir contra eles.
O Concílio de Cartago, sob o Papa Zózimo, seguirá o pensamento de Sto. Agostinho, no seu cânon 3.
São Gregório Magno, apesar de afirmar que as crianças irão ao inferno, estabelece um princípio importante, segundo o qual o pecado original não implica as mesmas penas do pecado atual. O santo papa aplica esse princípio aos justos do Antigo Testamento, os quais ficaram no infernus superior, onde não sofriam o suplício do inferno (Moralium, L. 13, cap. 44, col. 1038). Parece justo aplicar o mesmo princípio para as crianças mortas sem batismo, e veremos que é justamente sobre este princípio que a Igreja se baseará pela frente.
Santo Anselmo ensinará que a essência do pecado original é a privação da justiça primitiva. O santo doutor não tira nenhuma conseqüência dessa doutrina no que toca ao nosso assunto, mas ela abre o caminho para o pensamento escolástico sobre o Limbo.
Para Pedro Lombardo, “as criancinhas não sofrerão outra pena, como fogo material ou como verme da consciência, senão o serem privadas da visão de Deus” (II Sent. Dist. 33, nº 5).
O Papa Inocêncio III escreve numa carta ao Arcebispo de Arles (Ep. 9, 5) que foi inserida no Corpus Iuris Decretales, de Gregório IX, liv 3, título 42, c. 3: “Pena originalis peccati est carentia visionis Dei”.
O Padre Augustin Gaudel, autor do artigo do DTC, explica: “A distinção das penas do pecado original e do pecado atual, percebida por S. Gregório Magno, postulada pelos princípios de Santo Anselmo, proposta por Abelardo, nitidamente afirmada pela autoridade de Inocêncio III, implica a distinção dos estados das almas culpadas apenas do pecado original e das culpadas também dos pecados atuais.” Daí Guilherme d´Auvergne escreverá: “são colocadas num lugar que nem é para a pena atual, nem é para a glória”.
Santo Tomás trata sobre o tema nos Comentários às Sentenças de Pedro Lombardo. Afirma o princípio de que a pena deve ser proporcional à natureza do pecado. Afirma a existência de um estado e um lugar especial onde viverão privados da vida eterna, separados de Deus quanto à união da glória, mas unidos pela participação aos bens naturais. Repare que estas afirmações de Santo Tomás estão longe da posição, criticada pelo Pe. Emmanuel, dos que atribuem a felicidade natural como fim último dessas almas.
Ao Pe. Emmanuel pareceu melhor se afastar do pensamento de Santo Tomás, devido a uma interpretação austera do texto do 2º Concílio de Lyon. Na proposta de Profissão de fé feita a Miguel Paleólogo, está afirmado: “Illorum animas qui in actuali mortali peccato vel cum solo originali descedunt, mox in infernum descendere, poenis tamem disparibus puniendas – Definimos que as almas daqueles que morrem em pecado mortal atual, ou tão somente em pecado original, descem logo para o inferno, para aí serem, contudo, punidas com penas desiguais” (DB 464).
Apesar de essa Profissão de fé ter sido elaborada numa época muito próxima à composição do texto de Santo Tomás, a ponto de podermos pensar que o pensamento do Aquinate ainda não fosse conhecido de todos, é certo que o papa e o concílio conheciam as Decretales de Gregório IX, assim como a doutrina de Pedro Lombardo, os quais, distinguindo as duas penas, privavam as crianças da visão beatífica, mas as eximiam do fogo do inferno. Essa deve ser a interpretação correta da frase “poenis disparibus puniendas”, do II Concílio de Lyon.
São Roberto Belarmino vai também afirmar a pena das crianças, mesmo admitindo que não sofriam o fogo. Mas Bossuet tentou obter do papa a condenação da doutrina tomista tal como aparecia no livro do Card. Sfrondate. Porém o papa nunca aceitou condenar a doutrina de Sto. Tomás sobre a sorte das crianças mortas sem batismo. O Pe. Emmanuel insistirá sobre a posição de Bossuet, sem perceber que suas tentativas não tiveram o sucesso esperado. Também o artigo do Pe. Petau será usado pelo Pe. Emmanuel, mas o Pe. Petau ficara muito impressionado pela doutrina de Sto. Agostinho, e não foi seguido em seu pensamento.
No entanto, o Pe. Augustin Gaudel termina sua história do Limbo por um texto do Papa Pio VI condenando o falso Concílio de Pistóia. Ele declara “falsa, temerária, injuriosa ao ensinamento católico a proposição segundo a qual se deve rejeitar como fábula pelagiana o lugar dos infernos chamado Limbo das crianças, onde as almas dos que morrem só com o pecado original são punidas com a pena da danação sem a pena do fogo; (e a proposição de) que seria honrar a fábula pelagiana afirmar que há um lugar e um estado intermediário isento de falta e de pena, entre o Reino dos Céus e a danação eterna” (Da pena dos que morrem só com o pecado original - DB 1526).
Consta ainda das Acta et Decreta Concilii Vaticani (Concílio Vaticano I) o esquema da Constituição Dogmática sobre a Doutrina Católica: “os que morrem só com o pecado original serão privados para sempre da visão beatífica, enquanto que os que morrem com um pecado atual grave sofrerão, além da danação, os tormentos do inferno” (In Collectio Lacensis, Tomo 7, p. 565).
Com toda segurança, Dom Marcel Lefebvre podia ensinar no seu livro “A Vida Espiritual”: “Essas almas se acham privadas da visão beatífica de Deus, mas não sofrem, pois reconhecem sua incapacidade absoluta de tê-la. Esta é a opinião de Santo Tomás e da maioria dos doutores.” (Editora Permanência, 2011, pág. 97.)
O Pe. Emmanuel termina esse capítulo ainda combatendo os textos naturalistas, com a ajuda do Concílio de Lyon, de Florença e de Bossuet. Para nós, por todo o respeito que temos por tão grande teólogo e espiritual, fica a certeza de que o autor combatia, de fato, um funesto erro, mesmo se, no entusiasmo da sua caridade, não tenha percebido que misturava assim duas coisas diferentes, os naturalistas que erram e os católicos que acertaram, vendo na prática da Igreja uma busca de maior definição sobre a diferença entre as penas dos que morrem só com o pecado original e as dos que morrem com pecados atuais.
Dom Lourenço Fleichman OSB