Capítulo segundo
O pecado original nos é igualmente indicado pelas misérias da natureza, as contradições que o homem encontra em si mesmo e sobretudo pela vergonha.
Os geólogos, depois de estudar atentamente o globo terrestre, constataram que ele sofreu grandes revoluções, como o atestam ainda hoje os restos de plantas, animais e mesmo de corpos humanos enterrados em grandes profundidades. O estudo do homem demonstrou igualmente que ele também sofreu uma revolução considerável; e assim como pelo estudo das camadas terrestres podemos constatar a natureza e a extensão das perturbações de nosso planeta, da mesma forma, pelo exame atento do estado de nossa humanidade, somos levados a pensar que ela não é mais o que era ao surgir das mãos do Criador: ela também teve de passar por eventos que modificaram sensivelmente sua natureza e as condições de sua existência.
Tomemos o homem em seu nascimento. Não é doloroso constatar que o rei da criação, o homem, vem ao mundo em condições realmente inferiores às dos animais? O animal assim que nasce já procura a mama de sua mãe e imediatamente sai à luta de sua conservação. O homem, ao contrário, nasce em tal estado de fraqueza e impotência que, sem o socorro de outrem, socorro que sua própria mãe, maltratada pela dor, lhe seria incapaz de dar, ele estaria inexoravelmente condenado a morrer.
Há mais: a impotência desse primeiro instante não cessará logo no primeiro dia de vida: ela se estenderá por muito tempo, certamente para muito além do seu primeiro ano de vida.
Assim é com o corpo. Quanto à alma, o homem está numa condição ainda mais miserável, e será preciso esperar alguns anos até que atinja o pleno uso da razão.
Essas considerações nos conduzem a reconhecer que o homem, superior aos animais em tantas coisas, é inferior a eles em outras tantas, e somos forçados a concluir que as coisas para ele não são mais como devem ter sido primitivamente. O homem não parece estar em seu estado primitivo e normal, ele sofreu uma queda.
Continuemos nosso exame. O homem cresce, e a partir do momento em que adquire consciência de si mesmo, eis que nele se revelam fenômenos inexplicáveis. Há no homem como que dois homens. Um aspira ao alto, outro é atraído pelo baixo. Um é o homem da razão; outro é o homem da paixão. Ele sabe o que é a verdade, mas eis que nele se revela uma inclinação para a mentira. Quem ensinou à criança a arte de mentir? Ela mente uma vez, e para defender sua mentira, precisava mentir uma segunda vez. E se lhe mentem, ela se irrita, reivindicando, como razão, o direito inquestionável de que lhe digam a verdade.
Há no homem um verdadeiro dualismo. Mesmo tendo o conhecimento do bem, e o desejando segundo as melhores tendências de sua natureza, ele sucumbe à atração do mal, embora deteste o mal.
Os próprios pagãos o sublinharam. “Eu vejo o que é bom, dizia Ovídio, eu o vejo e o aprovo. E, no entanto, eu obedeço ao mal.”
Como explicar as contradições de nossa natureza, sem reconhecer que essa pobre natureza sofreu uma grande alteração. E que ela hoje se encontra em uma via que não é senão um desvio?
Ademais, é preciso reconhecer que essa alteração, que esse desvio não é um fato do indivíduo, mas da própria natureza humana, o que é bem mais grave. Pois se fosse um fato do individuo e não da natureza, teríamos ao menos a felicidade de ver indivíduos isentos do mal comum, o que não se dá. A natureza é a mesma em todos, e em todos ela é enferma.
É preciso então ir mais longe em nossa investigação sobre o mal em nós. Para remate do triste quadro de nossas misérias, diremos que o homem traz em si um sentimento inexorável que certamente não é obra de Deus: a vergonha. A vergonha se impõe a todos, ela adere à obra de Deus, e assim como nada saberia fazer com que ela desaparecesse, não há nada que humanamente a possa explicar. Como então ela está lá? Deus não poderia dotar o homem da cruel necessidade de se enrubescer da obra de seu Criador. A vergonha não é então obra de Deus; ela adere ao homem em conseqüência da obra do homem. E aqui é preciso dizer que essa vergonha não é tão-somente do indivíduo, mas da natureza humana. Mais uma vez, é preciso que reconheçamos que não é o homem que é enfermo, mas sua natureza.
Ouçamos as palavras graves e profundamente filosóficas de Pascal:
“As grandezas e misérias do homem são tão visíveis, que é preciso necessariamente que a verdadeira religião nos ensine tanto que haja algum grande princípio de grandeza no homem como algum grande princípio de miséria. Se o homem jamais tivesse se corrompido, ele, em sua inocência, gozaria com segurança da verdade e da felicidade. E se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não teria nenhuma idéia nem da verdade nem da beatitude.
“O que essa avidez e essa impotência clamam, senão que outrora houve no homem uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam, agora, a marca e o vestígio todo vazio, que ele tenta inutilmente preencher com tudo o que o rodeia, porque esse abismo infinito só pode ser preenchido com um objeto infinito e imutável, isto é, com o próprio Deus?
"Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado [original], seja uma coisa sem a qual não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos (…) Sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa condição tira seus contornos e desdobramentos nesse abismo. De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível ao homem.”
(Pensamentos, cap. 15, art. 7).