Category: Santo Tomás de Aquino
O sexto discute–se assim. – Parece que não se distinguem convenientemente os doze graus de humildade, discriminados na Regra de S. Bento. Dos quais o primeiro é mostrarmos sempre humildade de coração e de corpo, com os olhos fixos em terra; o segundo, falarmos pouco e sensatamente, com voz baixa; o terceiro, não sermos de riso pronto e fácil; o quarto, conservarmo–nos calados enquanto não formos interrogados; o quinto, observarmos a regra comum do mosteiro; o sexto, confessarmo–nos e nos crermos indignos e inúteis para tudo; o oitavo, confessar os nossos pecados; o nono, por obediência sofrermos com paciência o que é duro e áspero; o décimo, sujeitarmo–nos por obediência ao superior; o undécimo, não nos comprazermos com a vontade própria; o duodécimo, temermos a Deus e lembrarmo–nos de tudo o que ele mandou.
1. – Pois, há certas destas enumerações, que pertencem a outras virtudes, como a obediência e a paciência. E certas outras parecem incluídas na falsa opinião, que não pode ir com nenhuma virtude; por exemplo, o nos proclamarmos o mais vil de todos o nos–confessarmos e nos crermos indigno e inútil para tudo. Logo, inconvenientemente tais causas são consideradas graus da humildade.
2. Demais. – A humildade, como as outras virtudes, vem do interior para o exterior. Logo, nos graus dessa enumeração coloca–se o que pertence aos atos externos em grau superior ao que pertence aos internos.
3. Demais. – Anselmo enumera sete graus de humildade: o primeiro, conhecermo–nos como desprezível; o segundo, condoermo–nos com isso; o terceiro, confessá–la; o quarto, persuadi–la, isto é, querermos que os outros o creiam; o quinto, suportarmos pacientemente que outrem o diga; o sexto sofrermos que nos tratem com desprezo; o sétimo, amá–la. Logo, parecem inúteis os graus supra referidos.
4. Demais. – Uma glosa diz: A humildade perfeita tem três graus. O primeiro nos sujeitarmos ao superior e não nos preferirmos ao igual, o que é suficiente. O segundo, submetermo–nos ao igual e não nos preferirmos ao menor, o que é abundante. O terceiro, sujeitarmo–nos a um menor, no que consiste toda a justiça. Logo, os referidos graus parece excessivos.
5. Demais. – Agostinho diz: A humildade de cada um se lhe mede conforme a sua grandeza; pois, quanto mais elevados somos tanto mais temos a temer os laços do orgulho. Ora, a medida da grandeza humana não pode ser determinada por graus. Logo, parece que não se podem assinalar à humildade graus determinados.
SOLUÇÃO. – Como do sobre dito resulta, a humildade diz respeito essencialmente ao apetite, e por ela refreamos os desejos da nossa alma de grandezas que lhes são desproporcionadas; mas, a humildade tira a sua regra da razão, que proíbe nos avaliemos em mais do que somos. Ora, o princípio de tudo isso e a raiz é a reverência que prestamos a Deus. Por outro lado, da disposição interior da humildade procedem certos sinais exteriores manifestados por palavras, obras e gestos, reveladores do nosso interior, como aliás se dá com as outras virtudes, pois, como diz a Escritura, pela vista se conhece uma pessoa e pelo rosto se discerne o ar do homem sensato.
Por onde, nos referidos graus da humildade, há um em que consiste a raiz dela, a saber o duodécimo, no qual tememos. a Deus e temos presente todos os seus mandamentos.
Mas também nesses graus há algo de relativo ao apetite, que nos proíbe buscarmos desordenadamente a nossa própria excelência. O que se dá de três modos. – Primeiro, porque o undécimo grau nos proíbe satisfazer a nossa vontade própria. – Segundo, porque o décimo grau a regula em dependência de um arbítrio superior. Terceiro, porque o nono grau fá–la não recuar em face de asperezas e dificuldades.
E, ainda há graus relativos à estima em que nos devemos ter, quando reconhecemos os nossos defeitos. E isto de três modos. – Primeiro, reconhecendo e confessando os nossos próprios defeitos, o que pertence ao oitavo grau. – Segundo, reconhecendo os nossos defeitos, julgandonos indignos de maiores bens, o que pertence ao sétimo. – Terceiro, por isso mesmo preferindo os outros a nós, o que pertence ao sexto.
Também a enumeração inclui certos graus relativos a manifestação externa. Um, quanto aos nossos atos, de modo a não nos afastarmos, nas nossas obras, do procedimento geral e é o quinto. – Os outros dois respeitam às palavras, de modo a não falarmos fora de tempo, e é o quarto. – Nem excedamos a medida no falar, e é o segundo. – Os outros concernem os gestos externos e nos mandam, por exemplo, não levantar os olhos o que pertence ao primeiro. – E nos mandam coibir exteriormente o riso e outros sinais impróprios de alegria, o que pertence ao terceiro.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Podemos, sem falsidade, crermos–nos e nos proclamarmos mais desprezível que todos, levando em conta os defeitos secretos, que reconhecemos em nós, e os dons de Deus ocultos nos outros. Donde o dizer Agostinho: Julgai, que ocultamente vos superam aqueles sobre os quais tendes superioridade aparente. Semelhantemente, também, sem falsidade, podemos nos confessar e nos ter inúteis para tudo e indignos, pelas nossas próprias forças, de modo, a referirmos a Deus toda a nossa capacidade, conforme aquilo do Apóstolo: Não que sejamos capazes de nós mesmos de ter algum pensamento como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus. – Nem há inconveniente em atribuirmos à humildade as matérias das outras virtudes. Pois, assim como um vício nasce de outro, assim, por ordem natural, o ato de uma virtude procede do de outra.
RESPOSTA À SEGUNDA. – De dois modos conseguimos a humildade. – Primeiro e principalmente, pelo dom da graça. E, então, o interior precede o exterior. – Segundo, pelo nosso esforço e então, primeiro, coibimos o exterior para passarmos depois a extirpar a raiz interior. E é segundo essa ordem que a enumeração referida discrimina os graus da humildade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Todos os graus assinalados por Anselmo reduzem–se a opinião, à manifestação e à vontade da própria abjeção. Pois, o primeiro grau é o do conhecimento dos nossos defeitos. – Mas, como seria condenável amar a esses defeitos, o segundo grau no–la proíbe. – No terceiro e no quarto grau se inclui a manifestação de tais defeitos, mandando–nos não só proclamá–las, pura e simplesmente, mas ainda a persuadir deles os outros. – Os três modos seguintes regulam o apetite, levando–nos a buscar a excelência exterior, mas sofrer equânimes a humilhação exterior, por palavras ou por obras. Pois, como diz Gregório, nada tem de grande nos humilharmos perante quem nos honra – qualquer secular assim procede; mas devemos sobretudo nos humilhar perante os que nos mortificam o que pertence ao quinto e ao sexto grau. – Ou ainda, no sétimo grau somos levados a abraçar voluntariamente a humilhação externa. – E assim todos esses graus estão contidos no sexto e no sétimo da enumeração supra.
RESPOSTA À QUARTA. – Esses três graus se consideram, não relativamente à realidade, isto é, à natureza da humildade, mas, às condições de cada qual, conforme é superior, inferior ou igual a outro.
RESPOSTA À QUINTA. – Também essa objeção procede, quanto aos graus da humildade: não segundo a natureza mesma da realidade, na qual se funda a discriminação referida dos graus, mas, conforme as condições de cada um.
O quinto discute–se assim. – Parece que a humildade é a primeira das virtudes.
1. – Pois, Crisóstomo, expondo aquilo do fariseu e do publicano, no Evangelho, diz: Se a humildade, ainda quando de mistura com o pecado, tem tanta força, que sobrepuja a justiça quando acompanhada do orgulho, até onde não iria junta com a justiça? Iria sentar–se no mesmo tribunal de Deus, no meio dos anjos. Por onde é claro que a humildade é preferível à justiça. Ora, a justiça é a preclaríssima das virtudes, ou as inclui todas, como está claro no Filósofo. Logo, a humildade é a máxima das virtudes.
2. Demais. – Agostinho diz: Pensas em construir uma fábrica de grande altura? Pensa primeiro no seu fundamento de humildade. Por onde se vê ser a humildade o fundamento de todas as virtudes e, logo, maior que todas.
3. Demais. – Maior virtude merece maior prémio. Ora, a humildade merece o maior dos prêmios, pois, na frase do Evangelho, quem se humilha será exaltado. Logo, a humildade é a máxima das virtudes.
4. Demais. – Diz Agostinho: Toda a vida de Cristo na terra, onde, por amor do homem, se lhe revestiu da natureza, foi uma escola de disciplina moral. Ora, foi sobretudo a sua humildade, que ele nos exortou a imitar, quando disse: aprendei de mim, manso e humilde de coração. E Gregório nos adverte, que o argumento da nossa redenção descobriu–o Deus na sua humildade. Logo, parece a humildade a máxima das virtudes.
Mas, em contrário, a caridade tem preferência sobre todas as virtudes, segundo o Apóstolo: Sobre tudo isto revesti–vos de caridade. Logo, não é a humildade a máxima das virtudes.
SOLUÇÃO. – O bem da virtude humana está na ordem da razão. – Ora, essa ordem sobretudo se funda no fim. Por onde, as virtudes teologais, cujo objeto é o fim último, são as mais principais. – Mas, em segundo lugar, na ordem da sua dependência do fim, vêm os meios conducentes a esse fim último. Ora, essa ordem essencialmente consiste na razão ordenadora mesmo; e, participativamente, no apetite ordenado pela razão. E essa ordenação, em universal é obra da justiça, sobretudo da legal. Ora, a humildade, em universal, é a que nos torna sujeitos, como convém, à ordenação; ao passo que qualquer outra virtude o faz em relação a uma especial matéria. E portanto, depois das virtudes teologais e das intelectuais relativas à razão mesma; e depois da justiça, sobretudo da legal, vem a humildade, mais elevada que as outras virtudes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A humildade não tem preferência sobre a justiça, mas sobre a justiça acompanhada da soberba, que já por isso deixa de ser virtude. Como, ao contrário, o pecado é perdoado por causa da humildade; assim, o Evangelho diz, que o publicano pelos méritos da sua humildade, voltou justificado para a sua casa. Donde o dizer Crisóstomo: Prepara–me duas bigas – uma da soberba e da justiça e a outra, do pecado e da humildade e verás o pecado subverter a justiça e vencer, não pelas suas próprias forças mas pelas da humildade; e verás o outro par vencido, não pela fragilidade da justiça, mas pela mole da soberba entumecida.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a reunião ordenada das virtudes é comparada, por uma certa semelhança, com um edifício; assim também, o que é primário na aquisição das virtudes é comparado aos fundamentos, que primeiramente se lançam ao edifício. Ora, as virtudes são verdadeiramente infundidas por Deus. Por onde, o que é primário na aquisição delas, pode ser entendido em duplo sentido. – Primeiro como o que remove os obstáculos. E então o primeiro lugar é o da humildade, pois expulsa a soberba, a que Deus resiste, e nos torna submissos e sempre dispostos a receber o auxilio da graça, por eliminar a inflação da soberba. Por isso, diz a Escritura: Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes. E neste sentido a humildade é considerada o fundamento do edifício espiritual. – De outro modo o que é primário, na aquisição das virtudes, o é diretamente, e é o que nos aproxima de Deus. Ora, nós nos aproximamos de Deus, primeiro, pela fé, segundo o Apóstolo: É necessário que o que se chega a Deus creia que há Deus. E então a fé é considerada, de modo mais nobre que a humildade, como fundamento.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Aos que desprezam os bens terrestres são prometidos os celestes, assim como aos que desprezam as riquezas terrenas são prometidos os tesouros do céu, conforme o Evangelho: Não queirais entesourar para vós tesouros na terra, mas entesourai para nós tesouros no céu. E semelhantemente, aos que desprezam as alegrias do mundo são prometidas consolações celestes: Bem–aventurados os que choram porque serão consolados. Do mesmo modo, á humildade é prometida a exaltação espiritual, não que só ela a mereça, mas, por lhe ser próprio desprezar as elevações terrestres. Por isso, diz Agostinho: Não penses que quem se humilha fique sempre abatido; pois, foi dito será exaltado. Nem julgues tratar–se de uma elevação temporal, aos olhos dos homens.
RESPOSTA À QUARTA. – Cristo nos recomendou a humildade sobretudo porque ela é a que remove o impedimento à nossa salvação. Esta consiste em buscarmos os bens celestes e espirituais, de que ficamos privados se procuramos glórias terrenas. Por isso o Senhor, para nos afastar esse obstáculo à nossa salvação, deu–nos, pela humildade, o exemplo, para desprezarmos a exaltação temporal. Assim que a humildade é uma como disposição que nos aproxima dos bens espirituais e divinos. Como, pois, a perfeição se fortifica pela disposição, assim também a caridade e as outras virtudes, que nos movem diretamente para Deus, tornam–se mais fortes pela humildade.
O quarto discute–se assim. – Parece que a humildade não faz parte da modéstia nem da temperança.
1. – Pois, a humildade visa principalmente a reverência com que honramos a Deus, como se disse. Ora, virtude teologal é a que tem Deus por objeto. Logo, a humildade, antes, deve ser considerada uma virtude teologal do que parte da temperança ou da modéstia.
2. Demais. – A temperança tem seu sujeito no concupiscível; ora, a humildade parece que o tem no irascível, como a soberba, que se lhe opõe, cujo objeto é difícil de ser obtido. Logo, parece que a humildade não faz parte da temperança nem da modéstia.
3. Demais. – A humildade e a magnanimidade tem o mesmo objeto, como do sobredito resulta. Ora, a magnanimidade não é considerada parte da temperança, mas antes, da fortaleza, como se estabeleceu. Logo, parece que a humildade não faz parte da temperança nem da modéstia.
Mas, em contrário, diz Orígenes: Se quereis conhecer o nome desta virtude e como os filósofos a denominam, sabei que é a humildade, querida de Deus, chamada por eles metriotes, isto é, medida ou moderação; a qual manifestamente se inclui na modéstia ou temperança. Logo, a humildade faz parte da modéstia ou da temperança.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, quando se determinam as partes das virtudes sobretudo se leva em conta a semelhança, fundada no modo de cada uma. Ora, o modo da temperança, e que sobretudo a torna meritória, consiste em refrear ou reprimir os ímpetos de uma determinada paixão. Por onde, todas as virtudes, que refreiam ou reprimem os ímpetos de certos afetos ou moderam os atos, consideram–se partes da temperança. Ora, assim como a mansidão reprime o movimento da ira, assim a humildade, o da esperança que é um movimento do espírito tendente à prática de grandes atos. Por onde, assim como a mansidão é considerada parte da temperança, assim também a humildade. Por isso, o Filósofo, ao que pratica atos de pequena importância, ao seu modo, chama, não magnânimo, mas, tem perante, o que nós podemos traduzir por humilde. E, entre as outras partes da temperança, pela razão já dada, está contida na modéstia, no sentido em que a entende Túlio, isto é, não sendo a humildade senão uma certa moderação do espírito. Donde o dizer a Escritura: Na incorruptibilidade dum espírito pacífico e modesto.
DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As virtudes teologais, visando o fim último, que exerce o papel de primeiro princípio na ordem prática, são as causas de todas as outras virtudes. Por onde, o ser a humildade causada pela reverência que prestamos a Deus, não exclui seja ela parte da modéstia ou da temperança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Dizemos terem partes as virtudes principais, não por terem um mesmo sujeito ou matéria idêntica. mas por convirem no mesmo modo formal, como estabelecemos. Por onde, embora a humildade tenha no irascível o seu sujeito, contudo é considerada, pelo seu modo, parte da modéstia e da temperança.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora a magnanimidade e a humildade tenham idêntica matéria, diferem contudo pelo modo: em razão do que a magnanimidade é considerada parte da fortaleza ao passo que a humildade o é, da temperança.
O terceiro discute–se assim. – Parece que não devemos por humildade nos sujeitar a todos.
1. – Pois, como se disse, a humildade sobretudo consiste em nos sujeitarmos a Deus. Ora, o que devemos a Deus não devemos prestá–lo aos homens, como o demonstram todos os atos de latria. Logo, por humildade não devemos nos sujeitar aos outros.
2. Demais. – Agostinho diz: A humildade deve se fundar na verdade e não na falsidade. Ora, os que ocupam as posições mais elevadas não poderiam, sem falsidade, sujeitar–se aos que lhes são inferiores. Logo, não devemos por humildade nos sujeitar a todos.
3. Demais. – Não devemos praticar nada que redunde em detrimento da salvação de outrem. Ora, às vezes o nos sujeitarmos a outrem por humildade poderia redundar em detrimento dele, pois, poderia ensoberbecer–se ou nos desprezar; donde o dizer Agostinho, que não devemos desmoralizar a autoridade por queremos praticar uma humildade excessiva. Logo, não devemos por humildade nos sujeitar a todos.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Com humildade tenha cada um aos outros por superiores.
SOLUÇÃO. – Duas coisas podemos distinguir no homem: o que lhe pertence e o que é de Deus. Pertence–lhe tudo quanto é defeituoso; e é de Deus tudo quanto respeita à salvação e à perfeição, segundo a Escritura: A tua perdição, ó Israel, vem de ti; só em mim está o teu auxílio. Ora, a humildade, como se disse, visa propriamente a veneração, que devemos a Deus. Por onde, todo homem, com o que lhe pertence, deve sujeitar–se a qualquer dos seus próximos, considerando o que tem de Deus. – Mas, a humildade não exige submetamos o que há, de Deus, em nós, ao que outrem tenham aparentemente, de Deus. Pois, os que participam dos dons de Deus sabem que os têm, segundo aquilo do Apóstolo: Para sabermos as causas que por Deus nos foram dadas. Por isso, sem prejuízo da humildade, podemos antepor os bens, que recebemos, aos dons de Deus, que parece, foram conferidos a outrem, conforme o diz o Apóstolo: O qual em outras gerações não foi conhecido dos filhos dos homens, assim como agora tem sido revelado aos seus santos apóstolos. – Semelhantemente, também a humildade não exige que nos submetamos, com o que temos, ao que o próximo é, como homem. Do contrário, seria mister nos considerássemos mais pecadores que qualquer outro; e contudo o Apóstolo, sem prejuízo da humildade, diz: Nós somos judeus por natureza e não, pecadores dentre os gentios. – Podemos porem, considerar o próximo como tendo um bem que não temos; ou como tendo nós um mal que ele não tem – o que nos poderá levar a nos sujeitarmos a ele por humildade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Devemos não só venerar a Deus em si mesmo, mas também o que é seu, em quem quer que isso se manifeste; não devemos, porém, neste segundo caso, prestar a mesma reverência que prestamos a Deus. Por onde, devemos por humildade nos sujeitar a todos os próximos, por amor de Deus, conforme a Escritura: submetei–vos a toda humana criatura por amor de Deus; mas, só a Deus devemos prestar o culto de latria.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Não podemos incorrer em falsidade se antepomos o que há de Deus, no próximo, ao que temos nós de próprio. Por isso, àquilo do Apóstolo – Tenha cada um aos outros por superiores – diz a Glosa: Não temos necessidade de estimar nada fingidamente; mas estimemos verdadeiramente um bem oculto que outrem possa ter e que no–lo torna superior, mesmo se o nosso bem, pelo qual a nós mesmo nos parecemos superior, não for oculto.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A humildade, como todas as virtudes, consiste numa atividade interna da alma. Por isso, podemos nos sujeitar a outrem por um ato interno da nossa alma, sem lhe dar ocasião de sofrer, por isso, nada que redunde em detrimento da sua salvação. E é o que diz Agostinho: Pelo temor, na presença de Deus, que o prelado se vos deite aos pés. Mas, nos atos exteriores da humildade, como nos atos das outras virtudes, devemos introduzir a moderação devida, para não redundarem em detrimento de outrem. Se, pois, fazendo o que devemos, outros daí tirarem ocasião de pecado, isso se não pode nos imputar a nós, que agimos com humildade; pois, se eles se escandalizam, não os escandalizamos nós a eles.
O segundo discute–se assim. – Parece que a humildade não regula o apetite, mas antes, o juízo da razão.
1. – Pois, a humildade opõe–se à soberba. Ora, a soberba, sobretudo se manifesta em matéria de conhecimento; assim, como diz Gregório, a soberba, embora se manifeste até exteriormente pelo corpo, revela–se sobretudo pelos olhos. Donde o dizer a Escritura: Senhor, o meu coração não se ensoberbeceu nem os meus olhos se elevaram. Ora, pelos olhos sobretudo é que conhecemos. Logo, parece que a humildade sobretudo se exerce em matéria de conhecimento e nos leva a nos termos em pouca conta.
2. Demais. – Agostinho diz, que a humildade resume quase toda a doutrina cristã. Logo, nada do que a doutrina cristã encerra repugna à humildade. Ora, essa doutrina nos adverte a desejarmos o melhor, segundo o diz o Apóstolo: Aspirai aos dons melhores. Logo, não é próprio da humildade reprimir o desejo das coisas difíceis, mas antes, a estimativa.
3. Demais. – A mesma virtude pertence refrear os movimentos exagerados e fortalecer a alma contra a excessiva retração; assim, é a coragem ela mesma, que refreia a audácia e nos fortifica contra o temor. Ora, a magnanimidade fortalece–nos a alma contra as dificuldades emergentes na prática de ações grandiosas. Logo, se a humildade refreasse o desejo do que é grande, resultaria não ser ela virtude distinta da magnanimidade, o que é evidentemente falso. Logo, a humildade não regula o desejo do que é grande, mas antes, a estimativa.
4. Demais. – Andronico dá como objeto da humildade o ornato externo; assim, diz, a humildade é um hábito que nos faz evitar o excesso nos gastos e no aparato. Logo, não versa sobre o movimento do apetite.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que humilde é quem prefere ser pequeno na casa do Senhor a habitar nas moradas dos pecadores. Logo, a humildade regula o apetite, mais que a estimativa.
SOLUÇÃO – Como dissemos, função própria da humildade é refrear–nos para não nos elevarmos acima do nosso mérito. Ora, para tal é necessário conhecermos a nossa inferioridade aquilo que nos excede à capacidade. Por onde, é próprio da humildade dar–nos o conhecimento da nossa deficiência própria; sendo ela assim de certo modo a regra diretora do apetite. Mas, é no apetite mesmo que ela essencialmente se radica. Por onde, devemos concluir, que a humildade é propriamente diretiva e moderadora dos movimentos do apetite.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A elevação dos olhos é de certo modo sinal de soberba, por excluir a reverência e o temor. Pois, os tímidos e envergonhados são os que sobretudo costumam baixar os olhos, quase não ousando comparar–se aos outros. Mas, nem daqui se segue tenha a humildade como objeto próprio e essencial fazer–nos conhecer a nós mesmo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Buscar o que nos sobrepassa, confiando nas nossas próprias forças, contraria à humildade. Mas, buscar o que nos sobreexcede, confiando no auxílio divino, não é contra a humildade, sobretudo porque nos exaltamos na presença de Deus tanto mais quanto mais a ele nos sujeitamos por humildade. Donde o dizer Agostinho: Uma causa é nos elevarmos para Deus e outra, nos elevarmos contra ele. Quem ante ele se humilha ele o exalta; quem contra ele se levanta ele o abate.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A coragem, por essência, tanto refreia a audácia como nos fortalece a alma contra o temor; pois, a razão de uma e outra coisa é que devemos antepor o bem racional ao perigo da morte. Mas, o refrear a esperança presumida, objeto da humanidade, e fortalecer–nos a alma contra o desespero, objeto da magnanimidade, são cousas diferentes. Pois, a razão de fortalecermos a alma contra o desespero é a consecução do nosso bem próprio, isto é, não nos tornarmos, pelo desespero, indigno do bem que merecíamos. Ao passo que a razão precípua de reprimir a esperança presumida se funda no respeito divino, que nos leva a não nos atribuirmos mais que aquilo que nos cabe, conforme a posição Que Deus nos conferiu. Por onde, a humildade sobretudo implica a nossa sujeição a Deus. E por isso Agostinho atribui a humildade, entendendo por ela a pobreza de espírito, ao dom do temor, pelo qual reverenciamos a Deus. Donde, a fortaleza está para a audácia não como a humildade, para a esperança. Pois, a fortaleza serve–se da audácia mais do que à reprime; por isso, o seu excesso se lhe assemelha mais que o seu defeito. Ao passo que a humildade mais reprime a esperança ou a confiança em nós mesmo, do que a utiliza; por isso, mais que o seu defeito se lhe opõe o seu excesso.
RESPOSTA À QUARTA. – Os gastos exteriores e os aparatos excessivos de ordinário mais os fazemos por jactância, a qual é reprimida pela humildade. E, assim sendo, a humildade tem por objeto secundário regular essas exterioridades, enquanto são sinais do movimento do apetite interior.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a humildade não é uma virtude.
1. – Pois, a virtude implica a ideia do bem. Ora, parece que a humildade implica a ideia do mal da pena, segundo a Escritura: Humilharam com grilhões seus pés. Logo, a humildade não é uma virtude.
2. Demais. – A virtude e o vicio se opõem. Ora, a humildade às vezes representa um vício, como no caso da Escritura: Tal há que se humilha maliciosamente. Logo, a humildade não é virtude.
3. Demais. – Nenhuma virtude se opõe a outra. Ora, parece que a humildade se opõe à virtude da magnanimidade; pois, ao passo que esta busca grandes coisas, a humildade as evita. Logo, parece que a humildade não é uma virtude.
4. Demais. – A virtude é uma disposição do perfeito, como diz Aristóteles. Ora, parece que a humildade é própria dos imperfeitos; por isso, não é possível Deus humilhar–se, que a ninguém pode estar sujeito. Logo, parece que a humildade não é uma virtude.
5. Demais. – Toda virtude moral versa sobre as ações e as paixões, como ensina Aristóteles, Ora, o Filósofo não enumera a humildade entre as virtudes que regulam as paixões; nem está, incluída na justiça, que versa sobre as ações. Logo, parece que não é uma virtude.
Mas, em contrário, Orígenes, expondo aquilo do Evangelho – Pôs os olhos na baixeza da sua escrava – diz: A Escritura louva com razão a humildade como uma das virtudes; assim, diz o Salvador – Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, ao tratar as paixões, o bem difícil tem, por um lado, a propriedade de nos atrair o desejo, pela ideia de bem que encerra; mas, por outro, também, pela dificuldade de ser alcançado, dele nos afasta. Por isso, provoca em nós, pela primeira das suas propriedades, o movimento da esperança e, pela segunda, o do desespero. Ora, como dissemos, os movimentos apetitivos que se comportam impulsivamente, hão de necessariamente ser moderados e refreados por uma virtude moral; e os que causam em nós uma retração precisam de ser reforçados e excitados por uma outra virtude moral. Por onde, há necessariamente duas virtudes que têm por objeto o desejo do bem árduo. Uma, que tempera e refreia a alma para que não busque imoderadamente as coisas elevadas, e este é o papel da humildade. Outra, que a firme contra o desespero e a excite a prática de atos grandiosos, segundo a razão reta, e esta é a magnanimidade. Por onde é claro que a humildade é uma virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como diz Isidoro, humilde se chama quem está por assim dizer inclinado para o chão, isto é, preso às coisas ínfimas. O que pode dar–se de dois modos. – Primeiro, por um princípio extrínseco, por exemplo, quando somos rebaixada por outrem. E, então, a humildade é uma pena. – De outro modo, por um princípio intrínseco. E isto pode dar–se, às vezes, em bom sentido; por exemplo, quando, considerando Os nossos defeitos, colocamo–nos, conforme a nossa condição, em situação ínfima; assim, Abraão disse ao Senhor: Falarei ao Senhor, ainda que eu seja cinza e pó. E, neste sentido, a humildade constitui uma virtude. Mas, outras vezes, pode ser em mau sentido, por exemplo, quando, alguém não compreendendo a sua honra, compara–se aos brutos irracionais e se faz semelhante a eles.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, a humildade, enquanto virtude, implica, por sua natureza, um louvável abatimento para o que ínfimo. Ora, isto às vezes se dá ficticiamente, ou quando se manifesta só por sinais exteriores. E esta é a falsa humildade, da qual Agostinho diz, que é uma grande soberba, porque busca na verdade as excelências da glória. Mas, outras vezes, esse abatimento se radica no íntimo da alma. E então a humildade é propriamente considerada uma virtude, pois, a virtude não consiste em manifestações exteriores, mas, e principalmente, na eleição interna da mente, como está claro no Filósofo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A humildade reprime–nos o apetite para que não busque grandezas, contrariamente à razão. Ao passo que a magnanimidade leva–nos à prática de atos grandiosos, conforme a razão reta. Por onde, é claro que a magnanimidade não se opõe à humildade; ora, ambas convêm em procederem de acordo com a razão reta.
RESPOSTA À QUARTA. – A perfeição pode ser considerada de dois modos. – Primeiro, absolutamente, quando no ser perfeito não há nenhum defeito, nem quanto à sua natureza, nem em relação a outra cousa. Ora, neste sentido, só Deus é perfeito, a cuia natureza divina não cabe a humildade, mas só, pela natureza assumida. Noutro sentido pode chamar–se perfeito um ser, relativamente, a saber, quanto à sua natureza, quanto ao estado ou quanto ao tempo. E neste sentido, o virtuoso é perfeito. Mas, a sua perfeição, comparada com a de Deus, é deficiente, segundo a Escritura: São na sua presença todas as gentes como se não fossemos. E assim, a todos os homens pode convir a humildade.
RESPOSTA À QUINTA. – O Filósofo, no lugar citado, pretende tratar das virtudes enquanto ordenadas à vida civil, na qual a sujeição de um homem a outro é determinada pela ordem da lei e, por isso, está incluída na justiça legal. Ora, a humildade, como virtude especial, visa principalmente a sujeição do homem a Deus, por causa de quem devemos nos sujeitar também aos outros, por humildade.
O segundo discute–se assim. – Parece que o objeto da modéstia são só os atos externos.
1. – Pois, os movimentos internos das paixões não podem ser conhecidos dos outros. Ora, o Apóstolo manda, que a nossa modéstia seja conhecida de todos os homens. Logo, a modéstia tem por objeto só os atos exteriores.
2. Demais. – As virtudes, cujo objeto, são as paixões, distinguem–se da justiça, cuja matéria são os atos. Ora, parece que a modéstia é uma só virtude. Logo, se versa sobre os atos externos, não tem por objeto nenhuma paixão interna.
3. Demais. – Uma mesma virtude não pode ter por objeto o que respeita o apetite, regulado pelas virtudes morais; nem o que respeita o conhecimento, regulado pelas virtudes intelectuais; nem o que respeita o irascível e o concupiscível. Se, pois, a modéstia é uma mesma virtude, não pode ter por objeto tudo o que acaba de ser enumerado.
Mas, em contrário. – Em todos os casos referidos, é mister observar o modo, donde deriva a palavra modéstia. Logo, ela se aplica em todos os casos referidos.
SOLUÇÃO. – Como dissemos a modéstia difere da temperança em ser esta moderadora do que dificilmente refreamos, e aquela, do que nos é fácil dominar. Ora, certos consideraram a modéstia diversamente. Pois, excluem–na em todos os casos em que descobrem uma razão especial no moderar um bem ou uma dificuldade, aplicando a modéstia só a situações fáceis de serem moderadas. Ora, como é manifesto a todos, Implica uma dificuldade especial a moderação dos prazeres do tacto. Por isso, todos distinguem a temperança, da modéstia. Mas, além disso, Túlio notou haver um bem especial na moderação das penas. Por onde, também separou a clemência, da modéstia, deixando a esta a moderação só em casos gerais.
Ora, estes são quatro – Um consistente no movimento da alma em busca de alguma excelência, moderado pela humildade. – O segundo é o desejo em matéria de conhecimento, moderado pela estudiosidade, oposta à curiosidade. O terceiro respeita os movimentos e os atos corpóreos, que devemos fazer conveniente e honestamente, tanto quando procedemos seriamente, que quando nos divertimos. – O quarto concerne à nossa apresentação externa, por exemplo, no vestuário e em cousas semelhantes.
Mas, outros dizem serem certas virtudes especiais as que concernem a alguns desses atos. Assim, Andronico fala na mansidão, na simplicidade, na humildade e noutras semelhantes, de que já tratamos. Aristóteles, por seu lado, considera como o objeto da eutrapélia regular o prazer dos divertimentos. Mas, todas essas virtudes estão contidas na modéstia, no sentido em que Túlio a considera. Por onde, a modéstia concerne não só aos atos externos, mas também aos internos:
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo fala de modéstia com relação às coisas exteriores. Mas também a moderação das atitudes interiores pode manifestar–se por certos sinais exteriores.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A modéstia abrange as diversas virtudes correspondentes às diversas concepções dos autores. Por onde, nada impede versar ela sobre as coisas, que essas diversas virtudes exigem. – E contudo não há tão grande diversidade entre as partes da modéstia, umas para com as outras, como há entre a justiça, que versa sobre os atos, e a temperança, cuja matéria são as paixões. Pois, as ações e as paixões, que não implicam nenhuma dificuldade especial, quanto à matéria delas, mas só quanto à moderação das mesmas, essas não são o fundamento senão de uma virtude, baseada na ideia da moderação.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a modéstia não faz parte da temperança.
1. – Pois, modéstia vem de modo. Ora, toda virtude tem o seu modo, por se ordenar ao bem; e o bem, segundo Agostinho, implica o modo, a espécie e a ordem. Logo, a modéstia é uma virtude geral. E portanto, não deve ser considerada parte da temperança.
2. Demais. – O mérito da temperança parece consistir sobretudo uma certa moderação. Pois, daí é derivado o nome de modéstia. Logo, a modéstia é o mesmo que a temperança e não, parte dela.
3. Demais. – Parece versar, a modéstia sobre a correção do próximo, segunda o Apóstolo: Não convém que o servo de Deus se ponha a altercar; mas que seja manso para com todos capaz de corrigir com modéstia aos que resistem à verdade. Ora, corrigir os delinquentes é ato de justiça ou de caridade, como se estabeleceu. Logo, parece que a modéstia faz parte, antes, da justiça que da temperança.
Mas, em contrário, Túlio considera a modéstia como parte da temperança.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a temperança introduz a moderação em matéria em que é dificílimo nos moderarmos, a saber, nas concupiscências dos prazeres do tacto. Ora, sempre que uma determinada virtude versa especialmente sobre um máximo, há de por força haver outra reguladora do que é medíocre; pois, é necessário a vida do homem ser, em todos os seus aspectos, regulada pela virtude. Assim, como dissemos, a magnificência regula os grandes dispêndios de dinheiro; mas, ao lado dela, a liberalidade é necessária para regular as dispêndios medíocres. Por onde e forçosamente, há de haver uma virtude moderadora de matéria em que não nos é demasiado difícil nos moderarmos. E esta virtude se chama a modéstia e esta anexa à temperança como à principal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os nomes gerais às vezes se apropriam do que é ínfimo; assim, o nome geral de anjo, à ínfima ordem dos anjos. Assim também o modo, geralmente observado em cada virtude, se apropria a uma virtude especial, que o introduz no que é mínimo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Certas coisas precisam ser temperadas por serem demasiado fortes, como, por exemplo, o vinho; mas, tudo exige moderação. Por onde, a temperança regula, antes, as paixões veementes, ao passo que a modéstia, as medíocres.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A modéstia, no lugar aduzido, é tomada em sentido geral, no sentido em que todas as virtudes a exigem.
O segundo discute–se assim. – Parece que a crueldade não difere da sevícia ou feridade.
1. – Pois, a uma mesma virtude, de um mesmo lado, se opõe um só vicio. Ora, à clemência se põe por excesso a sevicia e a crueldade. Logo, parece que sevicia e crueldade não se identificam.
2. Demais. – Isidoro diz, que severo significa como que sevo vero, por aplicar a justiça sem piedade; assim, a sevícia parece excluir a remissão das penas, no juízo, o que constitui a piedade. Ora, um tal procedimento constitui a crueldade. Logo, a crueldade é o mesmo que a sevicia.
3. Demais. – Assim como à virtude se opõe algum vicio, por excesso, assim também, por defeito; o que contraria tanto à virtude, que está no meio, como ao vício por excesso. Ora, é o mesmo vício por defeito, que se opõe tanto à crueldade como à sevícia, a saber, o vício da remissão ou do relaxamento. Pois, diz Gregório: Haja amor, mas não efeminante; vigor, mas não exasperante; zelo, sem ser imoderadamente servo; piedade, sem perdoar mais do que o conveniente. Logo a sevícia é o mesmo que a crueldade.
Mas, em contrário, diz Séneca: Quem pune sem ter sido atendido nem irritado por nenhuma injúria, não se chama cruel, mas, fero ou sevo.
SOLUÇÃO. – Os nomes de sevícia e feridade são aplicados por semelhança com as feras, também chamadas sevas. Pois, esses animais atacam o homem para se lhe nutrirem do corpo; nem por qualquer causa justa, que implica a ponderação racional. Por onde, propriamente raiando, a feridade ou sevícia nos conduzem a aplicar penas a outrem sem levar em conta se têm qualquer culpa, mas só movidos pelo prazer em atormentá–lo. Por onde é claro, que esse proceder está incluído na bestialidade; pois, tal prazer não é humano, mas, bestial, procedente ou de um mau costume ou da corrupção da natureza, como se dá com outros afetos semelhantes. A crueldade, porém, visa a culpa do castigado, mas excede no modo de punir. Por, onde, a crueldade difere da sevícia ou feridade, como a maldade humana difere da bestialidade, segundo o ensina Aristóteles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A clemência é uma virtude humana; por isso diretamente se lhe opõe a crueldade, que é uma maldade humana. Ora, a sevícia ou ferida de está contida na bestialidade. Por onde não se opõe diretamente à clemência, mas, a uma virtude mais excelente, a que o Filósofo chama heroica ou divina, que, segundo nós, pertence aos dons do Espírito Santo. Por isso, podemos dizer, que a sevícia diretamente se opõe ao dom da piedade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O severo não se chama, absolutamente falando, sevo, de modo a despertar a ideia de um vício, mas, sevo em relação à verdade, por uma certa semelhança da sevícia, que não faz diminuir as penas.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A remissão no punir não é um vício, salvo quando posterga a ordem da justiça, que exige a punição do culpado, que a crueldade exagera. Ao passo que a sevícia de nenhum modo leva em conta essa ordem. Por onde, a remissão do castigo se opõe diretamente à crueldade e não, à sevícia.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a crueldade não se opõe à clemência.
1. – Pois, como diz Séneca, chamam–se cruéis aqueles que punem desmesuradamente, o que contraria a justiça. Ora, a clemência não é considerada parte da justiça, mas da temperança. Logo, parece que a crueldade não se opõe à clemência.
2. Demais. – A Escritura diz: É cruel e não terá piedade; donde, parece opor–se a crueldade à misericórdia. Ora, a misericórdia não é o mesmo que a clemência, como se disse. Logo, a crueldade não se opõe à clemência.
3. Demais. – Na clemência consideramos a inflicção das penas, como se disse. Ora, na crueldade levamos em conta a privação dos benefícios, conforme a Escritura: O que é cruel repele até os seus mesmos propínquos. Logo, a crueldade não se opõe à clemência.
Mas, em contrário, Séneca diz, que a crueldade se opõe à clemência, e ela não é senão a atrocidade da alma ao impor a pena.
SOLUÇÃO. – O nome de crueldade é derivado de crudelidade. Ora, assim como as coisas cozidas e condimentadas costumam ser de sabor suave e agradável, assim, as cruas tem horrível e áspero sabor. Ora, como dissemos, a clemência implica uma certa brandura ou lenidade de alma, que nos leva a diminuirmos as penas. Por onde, a crueldade se opõe diretamente à clemência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como, abrandar as penas, racionalmente, é o objeto de epiquéia, se bem que a doçura do sentimento, que a tal nos inclina, constitui a clemência, assim também, o sobreexcesso das penas, manifestado pela ação externa, constitui a injustiça, se bem que a dureza da alma, que nos torna –prontos a aumentar as penas, constitui a crueldade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A misericórdia e a clemência convêm ambas em evitar e aborrecer a – miséria alheia. Mas, de modos diferentes. Pois, à misericórdia é próprio socorrer à miséria, fazendo um benefício, ao passo que à clemência pertence diminuir a miséria eliminando as penas. E como a crueldade implica um excesso no impor a pena, mais diretamente se opõe à clemência que à misericórdia. Mas, pelas semelhanças dessas duas virtudes, tomamos às vezes a crueldade pela imisericórdia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – No lugar citado, a crueldade se toma pela imisericórdia, à qual é próprio não fazer benefícios. – Embora também se possa dizer que a eliminação mesma do benefício é de certo modo uma pena.