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Art. 2 — Se o contempto ou o desprezo é motivo de ira.

O segundo discute-se assim. — Parece que não só o contempto ou o desprezo é motivo da ira.
 
1. — Pois, como diz Damasceno, iramo-nos quando sofremos ou julgamos que sofremos alguma injúria1. Ora, podemos sofrer uma injúria mesmo sem contempto ou desprezo. Logo, nem só o desprezo é motivo de ira.
 
2. Demais — Quem deseja a honra também sofre com o desprezo. Ora, os brutos não desejam a honra. Logo, também não sofrem com o desprezo. E contudo, quando feridos, se lhes excita a ira2, como diz o Filósofo. Logo, nem só o desprezo é motivo da ira.
 
3. Demais — O Filósofo diz que há muitas outras causas da ira, p. ex.: o esquecimento, a exultação no infortúnio, o anúncio dos males, o impedimento de realizar a vontade própria3. Logo, nem só o desprezo é que provoca a ira.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a ira é o desejo da punição, acompanhado da pena, provocada por um ostensivo desprezo, contrário à conveniência4.
 
Solução. — Todas as causas da ira se reduzem ao desprezo. Ora, há três espécies de desprezo, como diz o Filósofo, a saber: o desdém, o epereasmus, i, é, o impedimento de realizarmos a vontade própria e a contumélia. E a estas três se reduzem todos os motivos da ira, podendo-se dar disso dúplice razão.
 
A primeira é que a ira deseja o mal de outrem, enquanto fundada na justiça vindicativa; e por isso, busca a vingança na medida mesma em que esta é considerada justa. Ora, não podemos tirar vingança justa senão daquilo que foi injustamente feito; e, portanto, o que provoca a ira é sempre algo considerado como injusto. Donde o dizer o Filósofo que os homens não haveriam de irar-se se considerassem como justo o que sofreram dos que os lesaram; pois, não há ira contra o que é justo5. Ora, podemos causar mal a outrem de três modos: por ignorância, paixão e eleição. Assim, cometemos a máxima injustiça quando, por eleição, indústria, ou com determinada malícia, causamos mal a outrem, como diz Aristóteles6. Por onde, iramo-nos sobretudo contra aqueles que consideramos como nos tendo feito mal de caso pensado. Não nos iramos porém, ou iramo-nos pouco, contra aqueles que nos fizeram alguma injuria, em nosso sentir, por ignorância ou paixão. Pois, agir por ignorância ou paixão diminui a injúria e provoca, de certo modo, a misericórdia e o perdão. Pois, consideramos como tendo pecado por desprezo os que, por indústria, nos causam mal, e por isso nos irritamos sobretudo contra eles. Por onde, diz o Filósofo, que não nos iramos, ou iramo-nos pouco, contra os que, por cólera, nos fizeram algum mal7, pois não os consideramos como tendo agido por desprezo.
 
A segunda razão é que o desprezo se opõe à excelência do homem; pois desprezamos aquilo a que não damos nenhum valor. Ora, com todos os nossos bens pretendemos a uma certa excelência. Por onde, os que nos ofendem consideramo-los como atacando a nossa excelência e como manifestando, portanto, o desprezo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Quando sofremos uma injúria proveniente de qualquer causa que não o desprezo, essa causa a diminui. Ao passo que só o desprezo ou contempto aumenta a ira, e portanto, é por si mesmo causa de nos irarmos.
 
Resposta à segunda. Embora o bruto não deseje a honra como tal, deseja contudo naturalmente uma certa excelência, e se ira contra o que se opõe a tal excelência.
 
Resposta à terceira. — Todas as causas que a objeção refere se reduzem a um certo desprezo. — Assim, o esquecimento é evidente sinal de desprezo; pois, ao que damos grande valor fixamos mais profundamente na memória. — Semelhantemente, por um certo desprezo é que não tememos penalizar a outrem, anunciando-lhe coisas tristes. — Por outro lado, quem, mesmo no infortúnio de outrem, dá sinais de hilaridade, mostra que pouco se lhe importa com o bem ou o mal. — E por fim, quem nos impede realizarmos o nosso propósito, e não por qualquer utilidade que disso lhe advenha, não demonstra curar muito da nossa amizade. — Por onde, tudo isso significando desprezo, provoca a ira.

  1. 1. Lib. II Orth. Fid., cap. XVI.
  2. 2. III Ethic. (lect. XVII).
  3. 3. II Rhetoric. (cap. II).
  4. 4. II Rhetoric. (cap. II).
  5. 5. II Rhetoric. (cap. III).
  6. 6. V Ethic (lect. XIII).
  7. 7. II Rhetoric. (cap. III).
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