Category: Santo Tomás de Aquino
[1] Deus está em todas as coisas, não, por certo, como parte da essência ou como acidente de cada uma delas, mas como o agente está presente ao que aciona. Ora, tendo Deus a existência idêntica à essência, o ser criado há de necessariamente ser efeito próprio seu, assim como queimar é efeito próprio do fogo. Ora, tal efeito Deus causa nas coisas, não somente quando começam a existir, mas enquanto subsistem; assim como a luz é causada no ar pelo sol, durante todo o tempo em que permanece iluminado. Logo, enquanto subsistir uma coisa, é necessário que Deus lhe esteja presente, conforme o modo de existência próprio dela. Ora, o ser é o que de mais íntimo tem uma coisa e o que de mais profundo existe em todas as coisas; pois, comporta-se como forma em relação a tudo o que na coisa existe. Logo, é necessário que Deus esteja, e intimamente, em todas as coisas.
1o. de agosto
I. ― A infidelidade consiste em não crermos na verdade divina; o ódio de Deus em a nossa vontade contrariar a mesma divina bondade; o desespero, enfim, em não esperarmos participar da bondade de Deus. Por onde, como é claro, a infidelidade e o ódio de Deus se opõem a Deus em si mesmo considerado; o desespero, porém, enquanto a sua bondade é participada por nós. Portanto, maior pecado, absolutamente falando, é não crer na verdade de Deus, ou odiá-lo, do que não esperar alcançar dele a glória.
Dizia João, precursor do Cristo (Jo 1, 27): Esse é o que há de vir depois de mim, ao qual eu não sou digno de desatar a correia das sandálias. Era como se falasse: não julgueis que seja Ele superior a mim em dignidade, do mesmo modo que um homem o possa ser a outro; antes, me é superior de modo tão iminente, que nada sou comparado a ele. Por isso diz não sou digno de desatar a correia das sandálias, que é o mínimo obséquio que se pode fazer a outrem.
[1] Deus não está compreendido no tempo: é eterno. Com razão se diz que Deus é eterno, pois carece de princípio e de fim, e também porque seu ser não se varia no passado ou no futuro. Nada se lhe subtrai, nada lhe pode advir de novo. Por isso disse a Moisés (Ex 3, 14): Sou aquele que sou, pois o ser dele não conhece nem passado nem futuro, mas encontra-se num perpetuo presente.
Em seguida, devemos tratar da lei natural. E nesta questão discutem-se seis artigos:
O sexto discute-se assim. — Parece que nem todas as coisas humanas estão sujeitas à lei eterna.
1. — Pois, diz o Apóstolo (Gl 5, 18): Se vós sois guiados pelo espírito, não estais, debaixo da lei. Ora, os homens justos, filhos de Deus por adoção, são levados pelo espírito de Deus, conforme àquilo da Escritura (Rm 8, 14): Os que são levados pelo espírito de Deus, estes são filhos de Deus. Logo, nem todos os homens estão sujeitos à lei eterna.
2. Demais. — O Apóstolo diz (Rm 8, 7): A sabedoria da carne é inimiga de Deus, pois não é sujeita à lei de Deus. Ora, há muitos homens em quem domina a sabedoria da carne. Logo, à lei eterna, que é a lei de Deus, não estão sujeitos todos os homens.
3. Demais. — Agostinho diz: Pela lei eterna é que os maus merecem a miséria e os bons, a vida feliz. Ora, os homens já bem-aventurados ou condenados não estão mais em estado de merecer. Logo, não estão sujeitos à lei eterna.
Mas, em contrário, Agostinho: De nenhum modo, qualquer ser pode fugir às leis do sumo Criador e Ordenador, que estabelece a paz do universo.
Solução. — Duplo é o modo por que um ser está sujeito à lei eterna, como do sobredito resulta (a. 5). De um modo, enquanto pelo conhecimento participa da lei eterna; de outro, pela ação e pela passividade, participando dela como de princípio motivo interno. Ora, é deste segundo modo que à lei eterna estão sujeitas as criaturas irracionais, como já dissemos (a. 5). Mas a natureza racional tendo, além do que lhe é comum com todas as criaturas, algo de próprio, como racional que é, está sujeita à lei eterna de um e de outro modo. Pois, de um lado, tem de certa maneira a noção da lei eterna, segundo já dissemos (a. 2); e de outro, em toda criatura racional existe uma inclinação natural para o que está de acordo com a lei eterna, pois, é-nos natural possuir as virtudes, como diz Aristóteles.
Ambos esses modos, porém, são nos maus, imperfeitos, e de certa maneira, corruptos. Pois, além de terem a inclinação natural para a virtude depravada pelos hábitos viciosos, o próprio conhecimento natural do bem lhes está entenebrecido pelas paixões e pelos hábitos pecaminosos. Ao contrário, nos bons um e outro modo existe da maneira mais perfeita, porque ao conhecimento natural do bem se lhes acrescenta o da fé e da sapiência; e à inclinação natural para o bem, o motivo interior da graça e da virtude.
Por onde, os bons estão perfeitamente sujeitos à lei eterna, por agirem sempre de acordo com ela. Os maus, por seu lado também lhe estão sujeitos, embora imperfeitamente, pelas suas ações, pela conhecerem imperfeitamente, e deste mesmo modo se inclinarem ao bem. Mas o que lhes falta na ação é-lhes suprido pela paixão, pois, na medida em que deixaram de fazer o que exigia a lei eterna, nessa mesma hão de sofrer o que ela deles demanda. Donde o dizer Agostinho: Penso que os justos agem sujeitos à lei eterna. E, noutra obra: Deus, por justa comiseração das almas que o abandonam, soube ordenar com leis convenientíssimas as partes inferiores da sua criação.
Donde a resposta à primeira objeção. — O lugar citado do Apóstolo pode ser entendido em duplo sentido. Num, aquele que está sujeito à lei está, contra a sua vontade, sujeito à obrigação que ela impõe, como se suportasse um peso. Donde o dizer a Glosa: Está sujeito à lei quem se abstém das más obras, pelo temor do suplício, que a lei comina, e não, pelo amor da justiça. E deste modo, os homens espirituais não estão sujeitos à lei porque, pela caridade, que o Espírito Santo lhes infunde nos corações, cumprem voluntariamente a exigência legal. — Noutro, o lugar citado pode ser entendido como querendo significar, que as obras do homem levado pelo Espírito Santo são consideradas, mais, como do Espírito Santo, que do homem mesmo. Por onde, o Espírito Santo, não estando sujeito à lei, como não o está o Filho, segundo já foi dito (a. 4 ad 2), segue-se que as obras em questão, enquanto do Espírito Santo, não estão sob o império da lei. O que está conforme ao dito do Apóstolo (2 Cor 3, 17): Onde há o Espírito do Senhor aí há liberdade.
Resposta à segunda. — A sabedoria da carne, não pode estar sujeita à lei de Deus, no concernente à ação, pois inclina a ações contrárias à lei divina. Mas lhe está sujeita, no concernente à paixão, porque merece sofrer uma pena segundo a lei da divina justiça. Contudo, em nenhum homem a sabedoria da carne domina a ponto de corromper totalmente o bem da natureza. Por isso, permanece no homem a inclinação para agir de conformidade com a lei eterna. Pois, como já ficou estabelecido (q. 85, a. 2), o pecado não priva totalmente do bem da natureza.
Resposta à terceira. — O que conserva um ser no seu fim, também o move para ele. Assim, o corpo pesado a gravidade falo repousar no lugar inferior, e também o move para esse lugar. Por onde, devemos dizer que, os que, pela lei eterna, merecem a beatitude ou a miséria, também são, pela mesma lei, conservados naquela ou nesta. E assim sendo, os bem-aventurados e os condenados estão sujeitos à lei eterna.
O quinto discute-se assim. — Parece que os contingentes naturais não estão sujeitos à lei eterna.
1. — Pois, a promulgação é da essência da lei, como já se disse (q. 90, a. 4). Ora, a promulgação não pode ser feita senão para criaturas racionais, a que alguma coisa pode ser anunciada. Logo, só as criaturas racionais estão sujeitas à lei eterna, e portanto não o estão os contingentes naturais.
2. Demais. — O que obedece à razão dela participa, de certo modo, como diz Aristóteles. Ora, a lei eterna é a razão suma, como já se disse (a. 1). Logo, como os contingentes naturais não participam de nenhum modo da razão, mas ao contrário, são irracionais, parece que não estão sujeitos à lei eterna.
3. Demais. — A lei eterna é eficacíssima. Ora os contingentes naturais são susceptíveis de deficiências. Logo, não estão sujeitos à lei eterna.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Pr 8, 29): Quando circunscrevia ao mar o seu termo, e punha lei às águas para que não passassem os seus limites.
Solução. — O que se diz da lei humana não é o mesmo que o dito da lei eterna, que é a lei de Deus. Pois, a lei humana se estende somente às criaturas racionais sujeitas ao homem. E a razão é que a lei é diretiva dos atos próprios aos súbditos de um governo; por isso, ninguém, propriamente falando, impõe lei aos próprios atos. Ora, tudo o que o homem faz, usando dos seres irracionais, que lhe estão sujeitos, ele o faz por um ato próprio, que move tais seres. Pois, essas criaturas irracionais não agem por si mesmas, mas são levadas por outras, como já se disse (q. 1, a. 2). Por onde, o homem não pode impor lei aos seres irracionais, embora lhe estejam sujeitos. Mas o pode para os seres racionais, que lhe estão sujeitos, imprimindo-lhes no espírito, por um preceito ou um anúncio qualquer, uma certa regra, que é o princípio do agir.
Ora, assim como o homem, por um enunciado, imprime um princípio interior aos atos de quem lhe está sujeito, assim também Deus imprime a toda a natureza os princípios dos atos próprios dela. E assim sendo, dizemos que Deus põe preceito para toda a natureza, conforme a Escritura (Sl 148, 6): Preceito pôs e não se quebrantará. E por esta mesma razão, todos os movimentos e ações de toda a natureza estão sujeitos à lei eterna. Por onde, é de outro modo que as criaturas irracionais estão sujeitas à lei eterna: enquanto movidas pela Divina Providência e não, pela inteligência do preceito divino, como as criaturas racionais.
Donde a resposta à primeira objeção. — A impressão ativa de um princípio intrínseco está para as coisas naturais, assim como a promulgação da lei está para os homens. Porque a promulgação da lei imprime nos homens um princípio diretivo dos seus atos, como já se disse.
Resposta à segunda. — As criaturas irracionais não participam da razão humana, nem lhe obedecem; participam porém, a modo de obediência, da razão divina. Pois, o poder da razão divina tem maior extensão que o da razão humana. E assim como os membros do corpo humano movem-se pelo império da razão, mas dela não participam, porque não têm nenhuma apreensão ordenada para a razão, assim também as criaturas irracionais são movidas por Deus, sem por isso virem a ser racionais.
Resposta à terceira. — As deficiências ocorrentes nos seres naturais, embora estejam fora da ordem das causas particulares, não escapam contudo, à das causas universais. E principalmente não escapam à ordem da causa primeira, que é Deus, a cuja Providência nada pode fugir, como dissemos na Primeira Parte (q. 22, a. 2). E sendo a lei eterna a razão da Divina Providência, como já dissemos (a. 1), as deficiências dos seres naturais estão sujeitas à lei eterna.
O quarto discute-se assim. — Parece que o necessário e o eterno estão sujeitos à lei eterna.
1. — Pois, tudo o que é racional está sujeito à razão. Ora, a vontade divina, sendo justa, é racional. Logo, está sujeita à razão. Ora, a lei eterna é a razão divina. Portanto, a vontade de Deus está sujeita à lei eterna. E como a vontade de Deus é algo de eterno, resulta que também o eterno e o necessário estão sujeitos à lei eterna.
2. Demais. — Tudo o que está sujeito ao rei, está sujeito à lei do mesmo. Ora, o Filho, no dizer da Escritura (1 Co 15, 28-29), quando lhe tiver entregado o reino, estará sujeito a Deus e ao Padre. Logo, o Filho, que é eterno, está sujeito à lei eterna.
3. Demais. — A lei eterna é a razão da Divina Providência. Ora, muitas coisas necessárias estão sujeitas a ela, como as substâncias incorpóreas e os corpos celestes permanentes. Logo, o necessário também está sujeito à lei eterna.
Mas, em contrário. — O necessário, sendo impossível sofrer mudança, não precisa de coibição. Ora, a lei é imposta ao homem para coibi-lo do mal, como do sobredito resulta (q. 92, a. 2). Logo, o necessário não está sujeito à lei.
Solução. — Como já dissemos (a. 1), a lei eterna é a razão do governo divino. Por onde, tudo o que está sujeito ao governo divino o está também à lei eterna; e o que não está sujeito a esse governo, nem à lei eterna o está. E esta distinção pode se fundar nas coisas que nos circundam. Assim, ao governo humano está sujeito o que pode ser feito pelos homens; o que porém pertence à natureza humana, como ter alma, mãos ou pés, não depende do governo humano. Por onde, à lei eterna estão sujeitas todas as coisas criadas por Deus, quer contingentes, quer necessárias; não está sujeito porém a essa lei o que pertence à natureza ou à essência divina, que constitui realmente a lei eterna mesma.
Donde a resposta à primeira objeção. — A vontade de Deus podemos considerá-la de dois modos. — De um modo, em si mesma. E então, sendo a vontade de Deus a essência mesma dele, não está sujeita ao governo divino, nem à lei eterna, com a qual se identifica. — De outro modo podemos considerá-la em relação àquilo que Deus quer das criaturas, as quais estão sujeitas à lei eterna, por terem a sua razão na sabedoria divina. E por isso dizemos, que a vontade de Deus é racional. Pois, do contrário, em si mesma, deveria ser considerada, antes como a própria razão.
Resposta à segunda. — O Filho não foi feito por Deus, mas é dele naturalmente gerado. Por isso, não está sujeito à Providência Divina, nem à lei eterna; antes, por uma certa apropriação, ele mesmo é a lei eterna, como claramente o diz Agostinho. E dizemos que está sujeito ao Pai, em virtude da natureza humana, pela qual também dizemos que o Pai é maior que ele.
À terceira objeção concedemos. — Por proceder do necessário criado.
Resposta à quarta. — Como diz o Filósofo, certas coisas necessárias têm, a causa da sua necessidade; e assim, a mesma impossibilidade de existirem de outro modo provém-lhes de outro ser; e isso mesmo é uma certa e eficacíssima coibição. Pois, tudo o que é coibido, em geral, dizemos que o é, na medida em que não pode agir diferentemente da disposição que tem.
O terceiro discute-se assim. — Parece que nem toda lei deriva da lei eterna.
1. — Pois, há uma lei do estímulo, como já se disse (q. 91, a. 6). Ora, não deriva da lei divina, que é eterna, porque a ela pertence à prudência da carne, da qual diz o Apóstolo (Rm 8, 7), que não é sujeito da lei eterna.
2. Demais. — Nada de iníquo pode proceder da lei eterna, pois, como já se disse (a. 2 arg. 2), pela lei eterna é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas. Ora, certas leis são iníquas, conforme aquilo da Escritura (Is 10, 1): Ai dos que estabelecem leis iníquas. Logo, nem toda lei procede da lei eterna.
3. Demais. — Agostinho diz: A lei escrita para governar o povo permite, retamente, muitas coisas que são castigadas pela Providência Divina. Ora, a razão da Providência Divina é a lei eterna, como já se disse (q. 93, a. 1). Logo, nem mesmo toda lei reta procede da lei eterna.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Pr 8, 15): Por mim reinam os reis, e por mim decretam os legisladores o que é justo. Ora, a razão da divina sabedoria é a lei eterna, como já se disse (a. 1). Logo, todas as leis procedem da eterna.
Solução. — Como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2), a lei implica uma certa razão diretiva dos atos para um fim. Ora, em todos os motores ordenados, é necessário que a força do motor segundo derive da força do primeiro; pois aquele não move senão enquanto movido por este. E vemos o mesmo se passar com todos os governantes: a razão do governo deriva do primeiro governante para os segundos; assim como a razão do que deve, na cidade, ser feito, deriva do rei, por meio de um preceito, para os administradores subalternos. E também nas artes, a razão dos atos artísticos deriva do mestre de obras para os artífices inferiores, que obram manualmente. Por onde, sendo a lei eterna a razão do governo no supremo governador, é necessário que todas as razões do governo, existentes nos governantes inferiores, derivem dela. Ora, todas essas razões dos governantes inferiores são leis outras que não a lei eterna. Portanto, todas as leis, na medida em que participam da razão reta, nessa mesma derivam da lei eterna. E por isso Agostinho diz: Nada há de justo e legítimo, nas leis temporais, que os homens não tivessem para si ido buscar na lei eterna.
Donde a resposta à primeira objeção. — O estímulo tem no homem natureza da lei, enquanto pena resultante da divina justiça, e sendo assim é manifesto que deriva da lei eterna. Mas enquanto inclina para o pecado, contraria a lei de Deus e não tem natureza de lei, como do sobredito resulta (q. 91, a. 6).
Resposta à segunda. — A lei humana tem natureza de lei, na medida em que é conforme a razão reta; e assim é manifesto, que deriva da lei eterna. Mas, na medida em que se afasta da razão, é considerada lei iníqua; e então, não tem natureza de lei, mas antes, de violência. E contudo, a própria lei iníqua, na medida em que guarda uma semelhança com a lei, pela ordem do poder de quem a fez, nessa mesma medida também deriva da lei eterna; pois, não há potestade que não venha de Deus, no dizer do Apóstolo (Rm 13, 1).
Resposta à terceira. — Diz-se que a lei humana permite certas coisas, não pelas aprovar, mas pelas não poder dirigir. Pois, muitas coisas, das dirigidas pela lei divina, não o podem ser pela lei humana, porque o domínio da lei superior é mais vasto que o da inferior. Por onde, o mesmo não intrometer-se a lei humana naquilo que não pode dirigir, provém da ordem da lei eterna. O contrário se daria se aprovasse o que a lei eterna reprova. Por isso daqui não se conclui, que não derive a lei humana da eterna, mas sim, que não pode ter perfeita conformidade com ela.
(Supra, q. 19, a. 4, ad 3; In Iob, cap. XI, lect. I).
O segundo discute-se assim. — Parece que a lei eterna não é conhecida de todos.
1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Co 2, 11), as coisas de Deus ninguém as conhece senão o Espírito de Deus. Ora, a lei eterna é uma razão existente na mente divina. Logo, é desconhecida de todos, menos de Deus.
2. Demais. — Como diz Agostinho, pela lei eterna é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas. Ora, nem todos sabem como todas as coisas são ordenadissímas. Logo, nem todos conhecem a lei eterna.
3. Demais. — Agostinho diz: A lei eterna é a de que os homens não podem julgar. Ora, no dizer de Aristóteles, cada qual julga bem aquilo que conhece. Logo, a lei eterna de nós não é conhecida.
Mas, em contrário, diz Agostinho: O conhecimento da lei eterna está impresso em nós.
Solução. — De dois modos pode um objeto ser conhecido: em si mesmo; e no seu efeito, onde se encontra alguma semelhança dele. Assim, quem não vê o sol na sua substância conhece-o pela irradiação. Por onde, deve-se dizer que a lei eterna ninguém pode conhecê-la como em si mesma é, senão só os bem-aventurados, que vêem a Deus em essência. Mas toda criatura racional a conhece por alguma maior ou menor irradiação dela. Pois, todo conhecimento da verdade é uma certa irradiação e participação da lei eterna, que é a verdade imutável, como diz Agostinho. Ora, a verdade todos de certo modo a conhecem, pelo menos quanto aos princípios comuns da lei natural. Quanto aos outros, uns participam mais e outros, menos do conhecimento da verdade; e assim também conhecem mais ou menos a lei eterna.
Donde a resposta à primeira objeção. — As coisas de Deus não podem, em si mesmas, ser conhecidas de nós, mas se manifestam pelos seus efeitos, conforme àquilo da Escritura (Rm 1, 20): As coisas invisíveis de Deus se vêem, consideradas pelas obras que foram feitas.
Resposta à segunda. — Embora cada um conheça a lei eterna segundo a sua capacidade, do modo por que acabamos de dizer, ninguém contudo pode compreendê-la, porque ela não pode manifestar-se totalmente pelos seus efeitos. Por onde, não é necessário, que quem conhece a lei eterna, da maneira predita, conheça toda a ordem das coisas, pela qual todas elas são ordenadíssimas.
Resposta à terceira. — O julgar das coisas pode ser entendido em duplo sentido. — De um modo, como a faculdade cognitiva julga do seu objeto próprio, conforme àquilo da Escritura (Jó 12, 11): Porventura o ouvido não julga das palavras e o paladar de quem come não julga do sabor? E conforme a este modo de julgar, o Filósofo diz que cada qual julga bem aquilo que conhece, i. é, julgando se o que lhe é proposto é verdade. — De outro modo, como o superior julga do inferior, por um juízo prático, i. é, se deve ser de tal maneira e não de tal outra. E assim, ninguém pode julgar da lei eterna.