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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Questão 88: Do pecado venial e do mortal.

Em seguida, por se distinguirem entre si, quanto ao reato, o pecado venial e o mortal, devemos tratar deles. E, primeiro, devemos tratar do pecado venial, por comparação com o mortal. Segundo, do venial, em si mesmo.
 
Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 8 — Se alguém pode ser punido pelo pecado de outrem.

(IIª-IIªª, q. 108, a. 4, ad 1; II Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 2; IV, dist. XLVI, q. 2, a. 2, qª 2, a. 3; De Malo, q. 4, a. 8, ad 6, 7, 9, 12, 15; q. 5, a. 4; QuodI. XII, q. 16, a. 1, ad 1: In Ioan., cap. IX, lect. I).
 
O oitavo discute-se assim. — Parece que alguém pode ser punido pelo pecado de outrem.
 
1. — Pois, como diz a Escritura (Ex 20, 5): Eu sou o Deus zeloso, que vinga a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem. E (Mt 23, 35): Para que venha sobre vós todo o sangue dos justos que se tem derramado sobre a terra.
 
2. Demais. — A justiça humana deriva da divina. Ora, a justiça humana pune às vezes os filhos, pelos pais, como é patente no crime de lesa-majestade. Logo, também segundo a divina justiça, um pode ser punido pelo pecado de outro.
 
3. Demais. — Nem se diga que o filho é punido pelo pecado do pai e não, pelo próprio, por imitar a malícia paterna. Pois, tal não se pode dizer, mais dos filhos, que dos estranhos, punidos por pena semelhante à daqueles cujos pecados imitam. Logo, não parece sejam os filhos punidos pelos pecados próprios, mas antes, pelos dos pais.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Ez 18, 20): o filho não carregará com a iniqüidade do pai.
 
Solução. — Se nos referirmos à pena sa­tisfatória, aceita voluntariamente, pode um sofrê-la por outro, enquanto de certo modo uni­ficados, como já se disse (a. 7). Se porém nos referir­mos à pena infligida por causa do pecado, enquanto essencialmente pena, então cada qual só é punido pelo seu pecado, pois o ato pecaminoso, tem cunho pessoal. — Se enfim nos referirmos à pena, como remédio, nesse caso um pode ser punido pelo pecado de outro. Pois, como dissemos, o detrimento sofrido nos bens corpóreos, ou mesmo no próprio corpo, são uns remédios pe­nais ordenados à salvação da alma. Por onde, nada impede seja alguém punido, com tais pe­nas, pelo pecado de outrem, quer por Deus, quer pelos homens. Tal se dá quando os filhos são punidos pelos pais e os súbditos pelo senhor, enquanto são, de algum modo, coisas a eles pertencentes. Mas isso de modo que, se o filho ou o súbdito for participante da culpa, esse pa­decimento penal sê-lo-á essencialmente, tanto em relação ao punido como aquele pelo qual é punido. Se porém não for participante da culpa, será penal, relativamente aquele por quem é punido; mas quanto ao punido, exercerá só o papel de remédio, e só por acidente implicará a pena, em si mesma, se o punido tiver consen­tido no pecado alheio; pois, se a sofrer pacien­temente, a pena se lhe ordenará ao bem da alma.
 
As penas espirituais, por seu lado, não são medicinais, por o bem da alma não se ordenar a outro bem melhor. Por isso, nesses bens nin­guém sofre detrimento sem culpa própria. Por onde, como diz Agostinho, com tais penas nin­guém pode ser punido em lugar do outro; pois, a alma do filho não é nada de pertencente ao pai. E por isso o Senhor, dando a razão disto, diz (Ez 18, 4): Todas as almas são minhas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Ambos os textos citados parece se refiram às penas temporais ou corpóreas, enquanto os filhos pertencem aos pais e os sucessores, aos predeces­sores. Ou, se forem referidos às penas espiri­tuais, sê-lo-ão por causa da imitação da culpa; por onde, no Êxodo, se acrescenta — daqueles que me aborrecem. E o Evangelho: Acabai vós, pois, por encher a medida de vossos pais. Assim, os pecados dos pais são considerados como punidos nos filhos, por serem estes, educados nos pecados daqueles, mais inclinados a pecar, quer pelo costume, quer também pelo exemplo paterno, como que lhes obedecendo à autoridade. E também são dignos de maior pena se, vendo as dos pais, não se corrigem. E quando o texto acrescenta — até a terceira e quarta geração — é por terem os homens à vida prolongada a ponto de verem a terceira e a quarta geração. E assim, tanto podem os filhos presenciar, para os imitar, os pecados dos pais, como os pais, para as sofrerem, as penas dos filhos.
 
Resposta à segunda. — As penas infligidas pela justiça humana a um, pelo pecado de outro, são corporais e temporais. E são de certo modo remédios ou medicinas contra as culpas futuras, de maneira a levar os punidos ou os outros a se coibirem de culpas semelhantes.
 
Resposta à terceira. — Consideram-se os pais mais que os estranhos, como punidos pelos pecados alheios. E isso porque as penas dos pais redundam, de certo modo, nos que pecaram, como já se disse; por ser o filho algo do pai; quer também porque os exemplos e as penas domésticas movem mais. Por onde, quem foi educado nos pecados dos pais, os imitará mais veementemente; e ficará mais obstinado, se não se amedrontar pelas penas por aqueles sofridas; por isso é digno de maior pena.

Art. 7 — Se toda pena tem como causa uma culpa.

(IIª-IIªª, q. 108, a. 4; III, q. 14, a. 1, ad 3; II Sent., dist. XXX, q. 1, a 2; dist. XXXVI, a. 4; IV, dist. XV, q. 1, a. 4, qª 2, ad 3; dist. XLVI, q. 1, a. 2, qª 3 ; III Cont. Gent., cap. CXLI; De Malo, q. 1, a. 4; q. 5, a. 4; In Ioan., cap. IX, lect. I).
 
O sétimo discute-se assim. — Parece que nem toda pena tem como causa uma culpa.
 
1. — Pois, diz o Evangelho, do cego de nascença (Jo 9, 3): Para que nascesse cego, nem este pecou, nem os seus pais. E semelhantemente, ve­mos muitas crianças, mesmo batizadas, sofre­rem graves penas, como febres, opressões dos demônios e muitas outras, apesar de, depois de batizadas, nelas não haver pecado. E antes de batizadas, não há nelas pecado, mais que nas outras crianças, que não sofrem tais penas. Logo, nem toda pena tem como causa o pecado.
 
2. Demais. — Segundo parece, a razão de prosperarem os pecadores é a mesma de serem alguns inocentes punidos. Pois, tanto um fato como o outro freqüentemente se dão na ordem humana. Assim, a Escritura diz, dos maus (Sl 72, 5): Não participam dos trabalhos dos homens, nem com os homens serão flagelados; e ainda (Jó 21, 7): Os ímpios vivem, são exaltados e crescem em riquezas; e por fim (Hab 1, 13): porque razão olhas tu para os que cometem injustiças, e te conservas em silêncio, entretanto que o ímpio, devora os que são mais justos que ele? Logo, nem toda pena é infligida por causa de uma culpa.
 
3. Demais. — De Cristo diz S. Pedro (1 Pd 2, 22): O qual não cometeu pecado, nem foi achado engano na sua boca. E contudo, no mesmo lugar, diz que padeceu por nós. Logo, nem sempre a pena Deus a comina por causa de alguma culpa.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Jó 4, 7 ss): que inocente pereceu jamais? ou quando foram os frutos destruídos? Antes bem tenho visto que os que obram iniqüidade pereceram a um sopro de Deus. E Agostinho: toda pena é justa e infli­gida por causa de algum pecado.
 
Solução. — Como dissemos (a. 6), a pena pode ser considerada à dupla luz: absolutamente, e como satisfatória. — A satisfatória é de certo modo voluntária. E como os que diferem pelo reato da pena podem se unificar, pela vontade, na união do amor, às vezes, quem não pecou pode assumir voluntariamente a pena, em lugar de outrem. Assim vemos, na ordem das coisas humanas, uma pessoa assumir para si a pena devida por outra. — Se porém, considerarmos a pena absoluta e essencialmente então sempre é relativa à culpa própria. Mas umas vezes, à culpa atual, como quando alguém é punido, por Deus ou pelos homens, por um pecado come­tido; outras, é relativa à culpa original. E isto, principal ou conseqüentemente. Principalmente, a pena do pecado original consiste no abandono da natureza humana a si própria, privada do auxílio da justiça original. Donde resultam todas as penalidades procedentes da corrupção da natureza humana.
 
Devemos porém saber que às vezes uma imposição é penal, sem contudo, implicar de modo absoluto a essência da pena. Pois esta é uma espécie de mal, como dissemos na Primeira Parte (q. 48, a. 5); e o mal é a privação do bem. Ora, sendo vários os bens do homem — os da alma, os do corpo e das coisas exteriores — pode ele, às vezes sofrer detrimento num bem menor para aumentar o maior. Assim, quando sofre detrimento no dinheiro, pela saúde do corpo; ou em qualquer desses dois bens, pela saúde da alma e da glória de Deus. E em tal caso, esse detrimento não lhe é ao homem um mal, absolutamente, senão só, relativamente. E portanto, não implica, em absoluto, a essência da pena, mas a de remédio; pois, também os médicos propinam poções austeras aos doentes, para recuperarem a saúde. E como essas não são essencialmente penas, não dependem da culpa, como de causa, senão em parte. Pois, o mesmo ter necessidade de remédios penais a natureza humana lhe provém da sua corrupção, pena do pecado original. Assim, no estado de inocência, não seria necessário estimular ninguém para adiantar na virtude, por meio de comunicações penais. Por isso, o que neste caso haja de penal se reduz à culpa original como à causa.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Esses defeitos, dos que os tem de nascença ou mesmo das crianças, são efeitos e penas do pecado original, como dissemos (q. 85, a. 5). E subsistem mesmo depois do batismo, pela causa já referida. E se não são iguais para todos, isso provém da diversidade da natureza abandonada a si própria, como já estabelecemos (q. 85, a. 5 ad 1). Mas esses defeitos os ordena a Divina Providência à salvação do homem: ou dos que sofrem, ou dos advertidos pelas penas; ou ainda à glória de Deus.
 
Resposta à segunda. — Os bens temporais e corpóreos são por certo bens do homem; mas pequenos. Ao contrário, os bens espirituais são os seus grandes bens. Donde vem a dar a Divina Justiça aos virtuosos os bens espirituais; e dos bens temporais ou dos males, dar-lhes somente o suficiente para a virtude. Pois, como diz Dionísio, é próprio da divina justiça não enfraquecer a fortaleza dos melhores com dons materiais. Ao contrário, aos outros, o mesmo serem galardoados com bens temporais se lhes converte em mal espiritual. Por isso, a Escritura conclui (Sl 72, 6): Portanto os possui a soberba.
 
Resposta à terceira. — Cristo padeceu a pena satisfatória por pecados não seus, mas nossos.

Art. 6 — Se o reato da pena permanece depois do pecado.

(III, q. 86, a. 4; II Sent., .dist. XLII, q. 1, a. 2; Compend. Theol., cap. CLXXXI).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que o reato da pena não permanece depois do pecado.
 
1. — Pois, removida a causa, removido fica o efeito. Ora, o pecado é a causa do reato da pena. Logo, removido o pecado, esse reato cessa.
 
2. Demais. — O pecado fica delido quando o homem volta para a virtude. Ora, ao virtuoso é devida, não a pena, mas o prêmio. Logo, re­movido o pecado, não permanece o reato da pena.
 
3. Demais. — As penas são remédios, como diz Aristóteles. Ora, a quem já está curado de uma doença não se lhe ministra remédio. Logo, delido o pecado, não permanece o débito da pena.
 
Mas em contrário, diz a Escritura (2 Sm 12, 13-14): E Davi disse a Natan: Pequei contra o Senhor. E Natan respondeu a Davi: Também o Senhor transferiu o teu pecado; não morrerás. Todavia, como tu pelo que fizeste deste lugar a que os inimigos do Senhor blasfemem, morrerá certamente o filho que te nasceu. Logo, Deus pune ainda a quem já lhe perdoou o pecado. E portanto, o reato da pena permanece depois de delido o pecado.
 
Solução. — Dois elementos, podemos con­siderar no pecado: o ato da culpa e a mácula subseqüente. Ora, é claro, cessado o ato do pecado, subsiste o reato, em todos os pecados atuais. Pois, o ato pecaminoso torna o ho­mem réu da pena, por transgredir a ordem da justiça divina, à qual só volta por uma certa compensação penal que restabelece a igualdade da justiça. E assim, quem cedeu, com excesso, à vontade própria, agindo contra o mandamento de Deus, sofrerá, espontaneamente ou coagido, conforme a ordem da divina justiça, algo de con­trário àquilo que quis. O que também se dá nas injúrias de um homem para com outro, onde a igualdade da justiça é reintegrada pela compensação da pena. Por onde é claro, cessado o ato ao pecado ou da injúria assacada, ainda permanece o débito penal.
 
Se porém nos referirmos à eliminação do pecado, quanto à mácula, então é manifesto que essa mácula não pode ser delida da alma, senão pela união dela com Deus, o afastamento de quem lhe causava detrimento na própria pureza; e isso constitui a mácula, como já dissemos (q. 86, a. 1). Ora, o homem se une a Deus pela vontade. Por onde, a mácula do pecado nele não pode ser delida, sem a sua vontade se submeter à ordem da divina justiça. E isto de modo a se sujeitar espontaneamente a uma pena, em compensa­ção da culpa incorrida; ou então, sofrendo pa­cientemente a imposta por Deus. Pois, de um e outro modo a pena exige a satisfação.
 
Ora, a pena satisfatória de certa maneira, é menos essencialmente pena, que consiste em contrariar a vontade. Pois, a pena satisfatória, embora, absolutamente considerada, seja con­trária à vontade, não o é enquanto atualmente aceita; e como tal é voluntária. Por onde, absolutamente, é voluntária; relativamente porém, involuntária, como com clareza resulta do já dito sobre o voluntário e o involuntário (q. 6, 6). Donde devemos concluir que, delida a mácula da culpa, pode certamente subsistir o reato, não da pena, em absoluto, mas da pena satisfatória.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Assim como, cessado o pecado, subsiste a má­cula, como dissemos (q. 86, a. 2), assim também pode sub­sistir o reato. Delida porém a mácula, não sub­siste o reato, segundo a mesma acepção, como dissemos.
 
Resposta à segunda. — O virtuoso não incorre na pena, em sentido absoluto; pode con­tudo incorrer na pena satisfatória; pois tam­bém faz parte da virtude o satisfazer por termos ofendido a Deus ou aos homens.
 
Resposta à terceira. — Delida a mácula, está sanada a lesão do pecado, quanto à von­tade. Mas ainda é necessária a pena, para sanar as outras potências da alma, desordenadas pelo pecado precedente; assim serão sanadas pelo que lhes é contrário. E ela também é ne­cessária para reintegrar a igualdade da justiça e reparar o escândalo dos outros, de modo a se edificarem pela pena os que se escandalizaram com a culpa, como o patenteia o exemplo adu­zido, de Davi.

Art. 5 — Se todo pecado implica o reato da pena eterna.

(III, q. 86, a. 4; II Sent., dist. XLII, q. 1, a. 5; IV, dist. XLVI. q. 1, a. 3; III Cont. Gent., cap. CXLIII; De Malo, q. VII, a. 1, ad 24; a. 10, 11; Compend. Theol., cap. CLXXXII).
 
O quinto discute-se assim.  — Parece que todo pecado implica o reato da pena eterna.
 
1. — Pois, como se disse (a. 4), a pena é propor­cionada à culpa. Ora, a pena eterna difere in­finitamente da temporal. Mas nenhum pecado pode diferir de outro infinitamente, porque todo pecado é ato humano, incapaz de ser infinito. Logo, sendo a certos pecados devida uma pena eterna, como se disse (a. 4), a nenhum é devida uma pena somente temporal.
 
2. Demais. — O pecado original é o menor dos pecados; donde o dizer Agostinho: a pena mais branda é a dos punidos só pelo pecado ori­ginal. Ora, ao pecado original é devida uma pena perpétua. Pois, nunca verão o reino de Deus as crianças mortas sem batismo, com o pe­cado original, conforme é claro pelo que diz o Senhor (Jo 3, 3): Não pode ver o reino de Deus senão aquele que renascer de novo. Logo, com maior razão, será eterna a pena de todos os outros pecados.
 
3. Demais. — A um pecado não é devida pena maior, por coexistir com outro; pois, cada um deles recebe a sua pena estabelecida pela jus­tiça divina. Ora, ao pecado venial é devida uma pena eterna, se coexistir, num condenado, com o pecado mortal, pois no inferno não pode haver perdão. Logo, ao pecado venial é devida, abso­lutamente, a pena eterna. Portanto, a nenhum pecado é devida a pena temporal.
 
Mas, em contrário, diz Gregório que certas culpas mais leves são perdoadas depois desta vida. Logo, nem todos os pecados são punidos com pena eterna.
 
Solução. — Como dissemos (a. 3), o pecado causa o reato da pena eterna, enquanto repugna irreparavelmente à ordem da justiça divina, contrariando o fim último, o princípio mesmo da ordem. Ora, é manifesto que alguns pecados implicam certo uma desordem, por encontra­rem não o fim último, mas os meios, quebus­cam mais ou menos devidamente, salva contudo a ordem para o fim último. Assim quando, em­bora afeiçoado em demasia a um determinado bem temporal, o homem nem por isso quer ofen­der a Deus, fazendo seja o que for contra algum preceito seu. Por onde, a tais pecados não é devida uma pena eterna, mas temporal.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Os pecados não diferem infinitamente, pela conversão ao bem mutável, em que consiste a substância do ato; mas, pela aversão de Deus. Pois certos pecados se cometem pela aversão ao fim último; outros, por buscarem desordena­damente os meios. Ora, o fim último difere in­finitamente dos meios.
 
Resposta à segunda. — O pecado original não merece uma pena eterna em razão da sua gravidade; mas em razão da condição do su­jeito, i. é, do homem, privado da graça, que só torna possível o perdão da pena.
 
E semelhantemente se deve responder à terceira objeção, relativa ao pecado venial.  — Pois, a eternidade da pena não corresponde à quantidade da culpa, mas à sua irremissibili­dade, como já se disse (a. 3).

Art. 4 — Se ao pecado é devida uma pena quantitativamente infinita.

(II Sent., dist. XLII, a. 1, a. 5, ad 2; IV, dist. XLVI, q. 1, a. 3).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que ao pecado é devida uma pena quantitativamente infinita.
 
1. — Pois, diz a Escritura (Jr 10, 24): Castiga-me, Senhor; porém seja isto segundo o teu juízo, e não no teu furor, para que não suceda que tu me reduzas a um nada. E a ira ou o furor de Deus significa metaforicamente a vindicta da justiça divina. Ora, ser reduzido ao nada é uma pena infinita, assim como é próprio de um poder infinito fazer uma coisa do nada. Logo, pela vindicta divina, o pecado é punido com pena infinita, quantita­tivamente.
 
2. Demais. — À quantidade da culpa corresponde à da pena, segundo a Escritura (Dt 25, 2): O número dos golpes regular-se-á pela qualidade do pecado. Ora, o pecado cometido contra Deus é infinito. Pois, tanto mais grave é ele quanto maior é a pessoa contra quem se peca; assim, é pecado mais grave ofender o príncipe do que um homem particular. Ora, como a grandeza de Deus é infinita, é devida uma pena infinita ao pecado contra ele cometido.
 
3. Demais. — O infinito pode sê-lo em duração e em quantidade. Ora, pela duração, a pena é infinita. Logo, também pela quanti­dade.
 
Mas, em contrário, se assim fosse, as penas de todos os pecados mortais seriam iguais, pois não pode um infinito ser maior que outro.
 
Solução. — A pena é proporcionada ao pecado. Ora, nestes dois elementos se devem considerar: Um, a aversão do bem imutável, que é infinito; e portanto, por este lado, o pecado é infinito. O outro é a conversão desordenada para o bem mutável. E por aí o pecado é finito, quer por ser finito esse próprio bem mutável, quer por ser também finita a conversão para ele, pois os atos da criatura não podem ser infinitos. Por on­de, no concernente à aversão corresponde-lhe a pena do dano, também infinita, por ser a perda de um bem infinito, Deus. No concernente à conversão desordenada, corresponde-lhes a pena do sentido, finita.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Não se coaduna com a justiça divina reduzir totalmente ao nada o pecador; pois isso re­pugna à perpetuidade da pena, exigida pela di­vina justiça, como já dissemos (a. 3). Mas se dize­mos que é reduzido ao nada quem fica privado dos bens espirituais, conforme aquilo (1 Cor 13, 2): se não tiver a caridade, não sou nada.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção colhe concernente à aversão; pois, por aí, o homem peca contra Deus.
 
Resposta à terceira. — A duração da pena corresponde à da culpa, não certo quanto ao ato, mas quanto à mácula, que, enquanto perdura, permanecerá o reato da pena. Mas a acerbidade da pena corresponde à gravidade da culpa. Ora, como em si mesma, a culpa irre­parável há de perdurar perpetuamente, é-lhe devida uma pena eterna. Mas no concernente à conversão desordenada, não tem infinidade, e portanto não lhe é devido, por aí, uma pena quantitativamente infinita.

Art. 3 — Se algum pecado implica o reato da pena eterna.

(III, q. 86, 8. 4; Sent., dist. XLII, q. 1, a. 5; IV, dist. XXI. q. 1, a 2, qª 3; dist. XLVI, q. 1, a. 3; III Cont. Gent., cap. CXLIII ; De Malo, q. 7. a. 10; Compend. Theol., cap. CLXXXIII ; In Matth., cap. XXV; Ad Rom., cap. II, lect. II).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que nenhum pecado implica o reato da pena eterna.
 
1. — Pois, a pena justa é adequada à culpa, por ser a justiça uma igualdade; donde o dizer a Escritura (Is 27, 8): tu a julgarás contrapondo uma me­dida a outra medida. Ora, o pecado é transi­tório. Logo, não implica o reato da pena eterna.
 
2. Demais. — As penas servem de remédios, como diz Aristóteles. Ora, nenhum remédio deve ser infinito, pois todos se ordenam para um fim; e o que se ordena a um fim não é infinito, como diz o Filósofo. Logo, nenhuma pena deve ser infinita.
 
3. Demais. — Ninguém faz nada senão com o fito de comprazer-se com o que faz. Ora, Deus não se compraz com a perdição dos homens, como diz a Escritura (Sb 1, 13). Logo, não os punirá com pena sempiterna.
 
4. Demais. — Nada do que é acidental é infinito. Ora, a pena é acidental, pois não é conforme à natureza do punido. Logo, não pode durar infinitamente.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Mt 25, 46): Estes irão para o suplício eterno. E ainda (Mc 3, 29): Mas o que blasfemar contra o Espírito Santo nunca jamais terá perdão, mas será réu de eterno delito.
 
Solução.  — Como já dissemos (a. 1), o pecado implica o reato da pena por perverter uma determinada ordem. Ora, permanecendo a causa, permanece o efeito. Portanto, enquanto subsistir a perversão da ordem, há de necessariamente subsistir o reato da pena. Ora, a perversão da ordem é, umas vezes, reparável e, outras, irreparável. Assim, a prevaricação, que elimina o princípio, é irreparável; se porém o princípio ficar salvo, poderá, por sua virtude, ser reparada a prevaricação. Do mesmo modo que, corrupto o princípio da vista, não pode ser recuperada a visão senão pela só virtude divina; se porém, salvo o princípio da vista, ­sobrevierem certos obstáculos à visão, esses podem ser eliminados pela natureza ou pela arte. Ora, toda ordem tem um certo princípio, pelo qual alguém vem a ser participante dela. Por onde, se pelo pecado se corromper o princípio da ordem pelo qual a vontade do homem está sujeita a Deus, haverá desordem, em si mesma, irreparável, embora possa ser reparada pelo poder divino. E como o princípio desta ordem é o fim último, a que o homem adere pela caridade, todos os pecados que afastam de Deus, privando da caridade, em si mesmos implicam o reato da pena eterna.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A pena é, pelo que tem de acerbo, proporcio­nada ao pecado, tanto no juízo divino como no humano, conforme Agostinho. Mas não exige nenhum juízo seja a pena, na sua duração, adequada à culpa. Assim não é por ter sido um adultério ou um homicídio cometido num mo­mento, que há de ser punido com pena momen­tânea. Mas poderá sê-lo, com cárcere perpétuo ou com o exílio; ou, mesmo com a morte, em que se considera a duração da execução, mas antes, a eliminação perpétua, da sociedade dos vivos, representando assim, a seu modo, a eternidade da pena infligida por Deus. Ora, é justo, segundo Gregório, que quem pelo que tem de eterno, pecou contra Deus seja punido na eternidade de Deus. E diz-se que alguém pecou pelo que tem de eterno, não só quanto à continuação do ato, a perdurar durante toda a vida, mas também porque quem constituiu como fim o pecado tem a vontade de pecar eternamente. E por isso, diz Gregório, os maus quereriam viver sem fim para poderem sem fim permanecer na iniqüidade.
 
Resposta à segunda. — Mesmo a pena infligida pelas leis humanas nem sempre é para a correção do punido, mas sim, dos ou­tros. Assim, o ladrão é enforcado, não para emendar-se, mas para os outros se absterem de pecar, ao menos pelo temor da pena, conforme aquilo da Escritura (Pr 19, 25): Castigado o pestilento, faz-­se-á mais sábio o insensato. Assim também as penas eternas dos réprobos, infligidas por Deus, são corretivas para os que, considerando nelas, se abstêm do pecado, conforme aquilo ainda da Escritura (Sl 59, 6): Destes aos que te temem um sinal, para que fugissem da face do arco, e que se livrassem os teus amados.
 
Resposta à terceira. — Deus não se compraz com as penas em si mesmas; mas, em ordem à sua justiça, que as exige.
 
Resposta à quarta. — Embora aciden­talmente, a pena se ordene à natureza, em si mesma contudo se ordena à privação da ordem e à justiça de Deus. Por isso, enquanto perdu­rar a desordem, sempre há de perdurar a pena.

Art. 2 — Se um pecado pode ser pena de outro.

(I Sent., dist. XLVI, a. 2, ad 4; II, dist. XXXVI, a. 3; De Malo, q. 1, a. 4, ad 1 sqq. ; Ad Rom., cap. I, lect. VII).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que um pecado não pode ser pena de outro.
 
1. — Pois, as penas são infligidas para re­duzirem o homem ao bem da virtude, como está claro no Filósofo. Ora, pelo pecado ele não é levado a esse bem, mas, ao oposto. Logo, um pecado não pode ser pena de outro.
 
2. Demais. — As penas justas provêm de Deus, como claramente o diz Agostinho. Ora, o pecado não provém de Deus e é injusto. Logo, um pecado não pode ser a pena de outro.
 
3. Demais. — É da essência da pena con­trariar a vontade. Ora, o pecado procede da vontade, como do sobredito resulta (q. 74, a. 1, 2). Logo, um pecado não pode ser a pena de outro.
 
Mas, em contrário, diz Gregório, que certos pecados são a pena do pecado.
 
Solução. — Podemos considerar o pecado à dupla luz: essencial e acidentalmente. — Ora, essencialmente de nenhum modo um pe­cado pode ser pena de outro. Pois, conside­rado na sua essência, o pecado procede da vontade, implicando por isso a culpa. Ora, é da essência da pena ser contrária à vontade, como já vimos na Primeira Parte (q. 48, a. 5). Por onde é manifesto, que um pecado, considerado na sua essência, não pode ser pena de outro.
 
Pode-o porém, e de três modos, conside­rados acidentalmente. — Primeiro, em relação à causa removente do obstáculo. Pois, as pai­xões, a tentação do diabo e causas semelhantes inclinam ao pecado; e essas causas são eliminadas pelo auxílio da graça divina, de que o pecado priva. Por onde, como a privação mes­ma da graça é uma pena, segundo já provamos (q. 79, a. 3), resulta que, acidentalmente, também o pecado consecutivo a essa privação é denominado pena. E nesse sentido o Apóstolo diz (Rm 1, 24): Pelo que os entregou Deus aos desejos dos seus corações, que são as paixões da alma; pois, abandonados do auxílio da graça divina, os homens são vencidos pelas paixões. E deste modo dizemos, que sem­pre um pecado é pena do pecado precedente. — De outra maneira, em relação à substância do ato, causa da opressão; seja um ato interior, como claramente o demonstram a ira e a inveja; seja exterior, como com clareza o mos­tram os oprimidos de veemente fadiga e dano, ao praticarem o ato pecaminoso, conforme aquilo da Escritura (Sb 5, 7): Nós nos cansamos no ca­minho da iniqüidade. — De um terceiro modo, relativamente ao efeito, considerando-se então um pecado como pena, em relação ao efeito con­seqüente. — Mas, destes dois últimos modos um pecado é pena, não só do pecado precedente, mas também de si mesmo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O mesmo ser punido por Deus, quando permite caiamos em certos pecados, encaminha-se para o bem da virtude. E às vezes mesmo para o bem dos pecadores, fazendo-os se levantarem mais hu­mildes e cautos, depois do pecado. Sempre porém para a emenda dos outros que, vendo certos se precipitarem de pecado em pecado, concebem maior temor de pecar. Quanto aos outros dois modos, é manifesto que a pena se ordena à emenda; pois, é natural que os homens se afastem do pe­cado por sofrerem detrimento e pena pecando.
 
Resposta à segunda. — A objeção colhe no atinente ao pecado, essencialmente considerado.
 
E o mesmo se deve responder à terceira objeção.

Art. 1 — Se o reato da pena é efeito do pecado.

(II Sent., dist. XXXII, q. 1, a. 1; IV, dist. XIV, q. 2, a. 1, qª 2; III Cont. Gent., cap. CXL: De Malo, q. 7, a. 10).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que o reato da pena não é efeito do pecado.
 
1. — Pois o acidente não pode ser efeito próprio da sua substância. Ora, o reato da pena é um acidente do pecado, por estar fora da intenção do pecador. Logo, esse reato não é efeito do pecado.
 
2. Demais. — O mal não pode ser a causa do bem. Ora, a pena, sendo justa e infligida por Deus, é boa. Logo, não é efeito do pecado, que é um mal.
 
3. Demais. — Agostinho diz: toda alma desordenada é a sua própria pena. Ora, uma pena não pode causar o reato de outra, pois isso leva­ria ao infinito. Logo, o pecado não causa o reato da pena.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 2, 9): A tribulação e a angustia virá sobre toda a alma do homem que obra mal. Ora, obrar mal é pecar. Logo, o pecado implica a pena, designada pelo nome de tribulação e de angústia.
 
Solução. — Como na ordem natural, tam­bém na humana, uma coisa que se opõe a outra sofre detrimento por parte desta. Assim, vemos, naquela ordem, que um contrário age mais vee­mentemente quando sobrevém o outro; e isso explica que a água aquecida se congela mais com­pactamente, como diz Aristóteles. Assim tam­bém, vemos se dar o mesmo com os homens, por natural inclinação reprimimos a quem se insurge contra nós.
 
Ora, como é manifesto, tudo o que está contido numa certa ordem se unifica, de algum modo, em dependência do princípio da ordem. Por onde e conseqüentemente, o que se insurge contra uma ordem determinada será reprimido por ela e por quem é o seu princípio. Ora, sendo o pecado um ato desordenado, é manifesto que quem peca age contra uma determinada ordem. Por onde é conseqüente seja reprimido por ela própria. E essa repressão constitui uma pena. Por isso, o homem pode ser punido por uma tríplice pena, relativa à tríplice ordem a que está sujeita a vontade humana.Pois primeiramente, a natureza humana está sujeita à ordem da própria razão; depois, à de quem nos governa as ações externas, espiritual ou temporalmente, política ou domesticamente; em terceiro lugar, à ordem universal do governo divino. Ora, qualquer destas ordens fica pervertida pelo pecado, porque o pe­cador encontra a razão, a lei humana e a divina. Daí o incorrer em tríplice pena: a proveniente de si mesmo, que é o remorso da consciência; a outra, proveniente do homem; e, a terceira, de Deus.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A pena é consecutiva ao pecado, enquanto este é um mal em razão da sua desordem. Por onde, assim como o mal é acidental, no ato do peca­dor, estando-lhe fora da intenção, assim também o reato da pena.
 
Resposta à segunda. — Uma pena justa pode ser infligida tanto por Deus como pelo ho­mem; por isso, a pena não é um efeito do pe­cado, diretamente, mas só dispositivamente. Ora, o pecado torna o homem réu da pena, que é um mal; pois, como diz Dionísio, mal é, não o ser punido, mas tornar-se digno de pena. Por isso, o reato da pena é, diretamente conside­rado, efeito do pecado.
 
Resposta à terceira. — Essa pena da alma desordenada é devida ao pecado por perverter ele a ordem da razão. Mas também se torna réu de outra pena, por perverter a ordem da lei divina ou humana.

Questão 87: Do reato da pena.

Em seguida devemos tratar do reato da pena. E, primeiro, do reato em si mesmo. Segundo, do pecado mortal e do venial, que se distinguem entre si pelo reato. E, na primeira questão discutem-se oito artigos:

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