Category: Santo Tomás de Aquino
O quarto discute-se assim. — Parece que a lei antiga não devia ter sido dada só ao povo judeu.
1. — Pois, a lei antiga dispunha da salvação, que viria de Cristo, como se disse (a. 2, a. 3). Ora, essa salvação não havia de vir só para os judeus, mas para todas as gentes, conforme a Escritura (Is 49, 6): Pouco é que tu sejas meu servo para suscitar as tribos de Jacó e converter as fezes de Israel; eu te estabeleci para Luz das gentes, a fim de seres tu a salvação que eu envio até a última extremidade da terra. Logo, a lei antiga devia ter sido dada a todas as gentes e não só ao povo judeu.
2. Demais. — Como diz a Escritura (At 10, 34-35), Deus não faz acepção de pessoas; mas em toda a nação aquele que o teme e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Logo, não devia ter aberto o caminho da salvação a um povo de preferência a outro.
3. Demais. — A lei foi dada pelos anjos, como se disse (a. 3). Ora, o ministério dos anjos Deus sempre o deu, não só aos judeus, mas a todas as gentes, conforme a Escritura (Sr 17, 14): Ele estabeleceu a cada nação seu príncipe que a governasse. E todas as gentes também são favorecidas por bens temporais, de que Deus cura menos que dos espirituais. Logo, também devia ter dado a lei a todos os povos.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 3, 1-2): Que tem, pois, demais o Judeu? Muita vantagem logra em todas as maneiras; principalmente porque lhes foram por certo confiados os oráculos de Deus. E noutro lugar (Sl 147, 9): Não fez assim a toda outra nação, e não lhes manifestou os seus juízos.
Solução. — Poder-se-ia dar uma razão de a lei ter sido outorgada antes ao povo judeu, do que aos outros povos, e é a seguinte. Enquanto os outros caíam na idolatria, só o povo judeu conservava o culto do Deus único; por isso eram aqueles indignos de receberem a lei, para não se darem as coisas santas aos cães.
Mas esta razão não pode ser considerada conveniente. Porque o povo judeu, mesmo depois de a lei lhe ter sido dada, caiu na idolatria, o que era mais grave, conforme está claro na Escritura (Ex 32; Am 5, 25-26): Porventura, ó casa de Israel; oferecestes-me vós algumas hóstias e sacrifícios no deserto onde estivestes quarenta anos? e levastes o tabernáculo ao vosso Moloch, e a imagem dos vossos ídolos, o astro do vosso Deus, coisas que fizestes por vossas mãos. E, noutro lugar, diz expressamente (Dt 9, 6): Sabe, pois, que não é pela tua justiça que o Senhor teu Deus te fará possuir esta terra tão excelente, pois que tu és um povo de cerviz duríssima.
Mas a razão está exposta no mesmo lugar: Porque o Senhor queria cumprir o que tinha prometido com juramento a teus pais Abraão, Isaac e Jacó. E qual fosse essa promessa o Apóstolo a indica (Gl 3, 16): as promessas foram ditas a Abraão e a sua semente. Não diz: E às sementes, como de muitos, senão como de um: E à tua semente, que é Cristo. Portanto, Deus deu ao povo judeu a lei e os outros benefícios especiais, por causa da promessa que lhes fora feita aos pais, para que deles nascesse Cristo. Pois convinha que o povo, donde Cristo haveria de nascer, fosse distinguido com uma santificação especial, conforme aquilo da Escritura (Lv 19, 2): Sede santos, porque eu sou santo. Nem foi pelo mérito de Abraão, que a promessa lhe foi feita, de Cristo haver de nascer da sua semente, mas por escolha e vocação gratuita de Deus. Donde o dizer a Escritura (Is 41, 2): Quem suscitou do Oriente o justo e o chamou para que o seguisse?
Por onde é claro que só por eleição gratuita os Patriarcas receberam a promessa e o povo, deles oriundo, recebeu a lei, segundo àquilo da Escritura (Dt 4, 36-37): tu ouviste as suas palavras do meio do jogo, porque amou a teus pais e escolheu depois deles a sua posteridade.
Se porém ainda se objetar a escolha de tal povo, e não outro, para Cristo nascer dele, é boa a resposta de Agostinho, onde diz: Porque chama a um e não a outro, não o queiras decidir se não queres errar.
Donde a resposta à primeira objeção. — Embora a salvação futura estivesse preparada para todos por Cristo, contudo era necessário nascesse ele de um povo, que por isso teve acima de todos, prerrogativa, conforme a Escritura (Rm 9, 4): os judeus, dos quais é a adoção de filhos, e a aliança, e a legislação, cujos pais são os mesmos de quem descende de Cristo segundo a carne.
Resposta à segunda. — A acepção de pessoas tem lugar em relação ao que é dado por dívida; no que porém é conferido por vontade gratuita, não tem lugar. Assim, não faz acepção de pessoas quem por liberalidade dá do seu a um e não a outro; mas se fosse dispensador dos bens comuns e não os distribuísse equitativamente, segundo os méritos das pessoas, então haveria acepção delas. Ora, os seus benefícios salutares Deus os confere ao gênero humano gratuitamente. Por onde, não faz acepção de pessoas, se os confere a uns de preferência a outros. Por isso, Agostinho diz: Todos os que Deus ensina, misericordiosamente os ensina; e os que não ensina, pelo seu juízo o faz; o que procede da danação do gênero humano, por causa do pecado do primeiro pai.
Resposta à terceira. — Os benefícios da graça são subtraídos ao homem por causa da culpa; mas os benefícios naturais não o são. Entre os quais estão os ministérios dos anjos; pois a ordem mesma das naturezas exige, que as ínfimas sejam governadas pelas médias. E também os auxílios materiais, que Deus confere, não só aos homens, mas também aos brutos, conforme àquilo da Escritura (Sl 35, 7): Tu, Senhor, salvarás os homens e as bestas.
(In Isaiam, cap. VI; Ad Galat., cap. III, lect. VII; Ad. Coloss., cap. II, lect. IV; Ad Hebr., cap. II, lect. I).
Parece que a lei antiga não foi dada pelos anjos, mas imediatamente por Deus.
1. — Pois, anjo significando núncio, esse nome implica um ministério e não domínio, conforme àquilo da Escritura (Sl 102, 20-21): Bendizei ao Senhor, todos os anjos dele. Ora, a mesma Escritura diz, que a lei antiga foi dada pelo Senhor (Ex 33, 11): Falou o Senhor todas estas palavras; e acrescenta: Eu sou o Senhor teu Deus. E o mesmo modo de falar é freqüentemente repetido no Êxodo e nos livros seguintes da lei. Logo, a lei foi imediatamente dada por Deus.
2. Demais. — A Escritura diz (Jo 1, 17): A lei foi dada por Moisés. Ora, este a recebeu de Deus, imediatamente, conforme ainda a Escritura (Ex 33, 11): O Senhor falava a Moisés cara a cara, bem como um homem costuma falar ao seu amigo. Logo, a lei antiga foi imediatamente dada por Deus.
3. Demais. — Só o chefe pode legislar, como se disse (q. 90, a. 3). Ora, só Deus é o chefe, no atinente à salvação das almas; os anjos são apenas espíritos administradores, como diz a Escritura (Heb 1, 14). Logo, a lei antiga não devia ser dada pelos anjos, pois se ordenava à salvação das almas.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 3, 19): a lei foi dada pelos anjos na mão dum Mediador; e ainda (At 7, 53): recebestes a lei por ministério dos anjos.
Solução. — A lei foi dada por Deus, por meio dos anjos. E além da razão geral assinalada por Dionísio, que as coisas divinas devem ser transmitidas aos homens por meio dos anjos, há uma razão especial pela qual era necessário fosse a lei antiga dada por meio deles. Pois, como já dissemos (a. 1, a. 2), a lei antiga era imperfeita, mas dispunha para a salvação perfeita do gênero humano, que haveria de vir de Cristo. Ora, vemos que em todas as faculdades e artes ordenadas, o superior pratica por si mesma o ato principal e perfeito, e, pelos seus ministros, os disponentes à perfeição última. Assim, o construtor de um navio o compõe por si mesmo; mas prepara o material diante artífices, trabalhando sob suas ordens. Por isso foi conveniente a lei perfeita do Novo Testamento ter sido dada imediatamente por Deus mesmo; e que a lei antiga fosse dada aos homens pelos ministros de Deus, i. é, pelos anjos. E deste modo o Apóstolo mostra a eminência da lei nova sobre a antiga; porque, em o Novo Testamento, Deus nos falou pelo Filho; ao passo que, no antigo, falou pelos anjos.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como diz Gregório, o anjo que se descreve como tendo aparecido a Moisés, é tido, ora, como anjo, ora, como o Senhor. Anjo porque, falando, exteriormente, servia; Senhor, por outro lado, porque, presidindo interiormente, dava eficácia à linguagem. E por isso, também o anjo representava a pessoa de Deus.
Resposta à segunda. — Como explica Agostinho, o Êxodo diz: O Senhor falava a Moisés cara a cara; e pouco depois, acrescenta: Mostra-me a tua glória. Logo, sentia o que via e desejava o que não via. Logo, não via a essência mesma de Deus, e portanto não era instruído imediatamente por ela. Por onde, o dito da Escritura — falava com ele cara a cara — é de acordo com a opinião do povo, que pensava que Moisés falava cara a cara com Deus, por aparecer-lhe Deus e falar-lhe por meio de uma sua criatura, como o anjo e a nuvem. Ou, por essa visão da face se entende uma certa contemplação eminente e familiar, inferior à essência da visão divina.
Resposta à terceira. — Só o chefe pode, por sua autoridade, instituir a lei; mas às vezes promulga instituída por outros. Assim, Deus institui a lei por sua autoridade, mas a promulgou pelos anjos.
(Ad Hebr., cap. VII, lect. III).
O segundo discute-se assim. — Parece que a lei antiga não procedia de Deus.
1. — Pois, diz a Escritura (Dt 32, 4): As obras de Deus são perfeitas. Ora, a lei antiga era imperfeita, como se disse (a. 1). Logo, não procedia de Deus.
2. Demais. — A Escritura diz (Ecle 3, 14): Eu aprendi que todas as obras que Deus fez perseveram para sempre. Ora, a lei antiga não perseverou para sempre; pois, diz o Apóstolo (Heb 7, 18): O mandamento primeiro é na verdade abrogado pela fraqueza e inutilidade. Logo, a lei antiga não procedia de Deus.
3. Demais. — Do legislador sábio é próprio extirpar não só os males, como as suas ocasiões. Ora, a lei antiga era ocasião de pecado, como já se disse (a. 1 ad 2). Logo, não convinha a Deus, a quem nenhum é semelhante entre os legisladores, no dizer da Escritura (Jó 36, 22), impor tal lei.
4. Demais. — A Escritura diz (1 Tm 2, 4): Deus quer que todos os homens se salvem. Ora, a lei antiga não bastava para a salvação dos homens, como já se disse (a. 1). Logo, a Deus não convinha dar tal lei, e portanto a lei antiga não procedia de Deus.
Mas, em contrário, diz o Senhor, falando dos Judeus, a quem foi dada a lei antiga (Mt 15, 6): vós tendes feito vão o mandamento de Deus pela vossa tradição. E pouco antes tinha dito (Mt 15, 4): Honra a teu pai e a tua mãe, o que, manifestamente, está contido na lei antiga (Ex 20, 12; Dt 5, 16). Logo, esta procedia de Deus.
Solução. — A lei antiga foi dada pelo Deus de bondade, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, a lei antiga ordenava os homens para Cristo, de dois modos. — De um modo, dando testemunho de Cristo. Por isso, o Evangelho diz (Lc 24, 44): é necessário cumprir-se tudo o que de mim estava escrito na lei, nos Salmos e nos Profetas; e ainda (Jo 5, 46): Porque se vós crêsseis a Moisés, certamente me creríeis também a mim, porque ele escreveu de mim. — De outro modo, por uma como disposição, enquanto que, retraindo os homens do culto da idolatria, encerrava-os no culto do Deus único, que, por meio de Cristo, devia salvar o gênero humano. Por onde, diz o Apóstolo (Gl 3, 23): Antes que a fé viesse, estávamos debaixo da guarda da lei, encerrados para aquela fé que havia de ser revelada. Ora, é manifesto, que quem dispõe para o fim também conduz para ele; quero dizer que conduz por si mesmo, ou por meio de seus subordinados. Ora, o diabo não iria fazer uma lei, conducente dos homens a Cristo, por quem ele havia de ser lançado fora, conforme àquilo da Escritura (Mt 12, 26): se Satanás lança fora a Satanás, está ele dividido contra si mesmo. Logo, a lei antiga foi dada por Deus mesmo, donde veio a salvação aos homens, pela graça de Cristo.
Donde a resposta à primeira objeção. — Nada impede o temporalmente perfeito não o ser, absolutamente. Assim, diz-se que uma criança é perfeita, não absolutamente, mas conforme a sua condição no tempo; e portanto, os preceitos impostos às crianças são perfeitos, não absolutamente, mas segundo a condição delas. E tais foram os preceitos da lei. Por isso o Apóstolo diz (Gl 3, 24): a lei nos serviu de pedagogo que nos conduziu a Cristo.
Resposta à segunda. — Perseveram eternamente as obras de Deus, que ele fez para assim perseverarem; e essas são as obras perfeitas. Ora, a lei antiga foi rejeitada no tempo da perfeição da graça, não por má, mas como insuficiente e inútil para esse tempo; porque, como acrescenta o mesmo lugar, a lei nenhuma coisa levou à perfeição. Por onde, diz o Apóstolo (Gl 3, 24): Depois que veio a fé, já não estamos debaixo de pedagogo.
Resposta à terceira. — Como já dissemos (q. 79, a. 4), Deus às vezes permite certos caírem em pecado para desse modo se humilharem. Assim também, quis dar uma lei tal que, por suas próprias forças, os homens não pudessem cumprir, para, presumindo de si mesmos e reconhecendo-se pecadores, recorrerem, humilhados, ao auxílio da graça.
Resposta à quarta. — Embora a lei antiga não bastasse para salvar os homens, contudo, simultaneamente com ela, Deus deu outro auxílio aos homens, com o qual poderiam salvar-se. E esse foi a fé no Mediador, pela qual se justificaram os padres antigos, como também nós nos justificamos. E assim, Deus não abandonava os homens, deixando-os sem os auxílios da salvação.
(Art. seq., ad 1, 2; Ad Rom., cap. VII, lect. II, III; Ad Galat., cap. III, lect. VII, VIII; I Tim., cap. I, lect. II).
O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga não era boa.
1. — Pois, diz a Escritura (Ez 20, 25): Eu lhes dei uns preceitos não bons, e umas ordenanças nas quais eles não acharam a vida. Ora, uma lei não é considerada boa senão pela bondade dos preceitos que contém. Logo, a lei antiga não era boa.
2. Demais. — Pela sua bondade é que a lei é útil para o bem público, como diz Isidoro. Ora, a lei antiga não era salutar, mas antes, mortífera e nociva. Pois, diz o Apóstolo (Rm 7, 8): Sem a lei o pecado estava morto. E eu nalgum tempo vivia sem lei; mas quando veio o mandamento reviveu o pecado; e eu sou morto. E ainda (Rm 5, 20): Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Logo, a lei antiga não era boa.
3. Demais. — Pela sua bondade é que a lei é de observância possível, quanto à natureza e quanto ao costume humano. Ora, tal não era a lei antiga, conforme diz Pedro (At 15, 10): Porque tentais pôr um jugo sobre as cervizes dos discípulos, que nem nossos pais nem nós pudemos suportar. Logo, parece que a lei antiga não era boa.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 7, 12): Assim que, a lei é na verdade santa, e o mandamento é santo, e justo, e bom.
Solução. — Sem nenhuma dúvida, a lei antiga era boa. Pois, assim como se manifesta verdadeira uma doutrina, por estar de acordo com a razão; assim, mostra ser boa uma lei, por estar de acordo com a razão reta. Ora, a lei antiga estava de acordo com a razão, pois reprimia a concupiscência, que lhe é contrária a ela, como o prova aquele mandamento (Ex 20, 17): Não cobiçaras os bens do teu próximo. E também proibia todos os pecados contrários à razão. Por onde é manifesto, que era boa. E esta é a razão do Apóstolo, quando diz (Rm 7, 22): Eu me deleito na lei de Deus, segundo o homem interior; e ainda (Rm 7, 16): consinto com a lei, tendo-a por boa.
Devemos porém notar que a bondade tem diversos graus, como diz Dionísio. Assim há uma bondade perfeita e outra, imperfeita. A perfeita relativamente aos meios consiste em ser um meio tal, que por si mesmo é conducente ao fim. A imperfeita consiste em praticarmos algum ato para a consecução do fim, mas não bastante a atingi-lo. Assim, o remédio perfeitamente bom nos cura; o imperfeito ajuda, mas não pode curar.
Ora, como sabemos um é o fim da lei humana, e outro, o da divina. O fim da lei humana é a tranqüilidade temporal da cidade. E esse fim a lei o consegue coibindo os atos exteriores, excluindo os males capazes, de perturbar a paz civil. Ao passo que a lei divina visa levar o homem ao fim da felicidade eterna, fim que todo pecado impede; e não só por atos externos, como também por internos. Portanto, o bastante à perfeição da lei humana, que é proibir os pecados e cominar a pena, não o é à perfeição da lei divina, que há de tornar o homem totalmente capaz de participar da felicidade eterna. Ora, isto não pode ser senão por graça do Espírito Santo, pela qual se difunde a caridade nos nossos corações, que cumpre a lei; pois, a graça de Deus é a vida eterna, como diz o Apóstolo (Rm 5, 5). Mas, esta graça a lei antiga não a podia conferir, pois isso estava reservado a Cristo. Porque, como diz João, a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Donde vem, que a lei antiga era, por certo boa, mas imperfeita, conforme àquilo (Heb 7, 19): a lei nenhuma coisa levou à perfeição.
Donde a resposta à primeira objeção. — No lugar citado o Senhor fala dos preceitos cerimoniais, chamados não bons por não conferirem a graça, que purifica os homens do pecado, embora por eles os homens se mostrassem pecadores. Por isso assinaladamente diz: e umas ordenanças nas quais eles não achavam a vida, i. é, pelas quais não podem obter a vida da graça. E depois acrescenta: E permiti que eles se manchassem nos seus dons, i. é, mostrei-os manchados, quando para expiação dos seus pecados ofereciam lodo o que rompe o claustro materno.
Resposta à segunda. — Diz-se que a lei matava, não certo efetiva, mas, ocasionalmente, por causa da sua imperfeição, por não conferir a graça, pela qual os homens pudessem cumprir o que ela mandava e evitar o que proibia. E assim, essa ocasião não era dada, mas tomada pelos homens. E por isso o Apóstolo diz, no esmo lugar (Rm 5, 11): o pecado, tomando ocasião do mandamento, me enganou, e me matou pelo mesmo mandamento. E por esta razão diz: sobreveio a lei para que abundasse o pecado; onde se deve considerar a expressão — para que — não consecutiva, mas causalmente, i. é, porque os homens, tomando ocasião da lei, pecaram mais intensamente. Quer por ser o pecado mais grave, depois da proibição da lei; quer ainda porque a concupiscência aumentasse, pois, maior é a nossa concupiscência quando se trata do proibido.
Resposta à terceira. — O jugo da lei não podia ser suportado sem a graça coadjuvante, que a lei não dava. Pois, diz o Apóstolo (Rm 9, 16): querer e correr nos preceitos de Deus não depende do que quer, nem do que corre, mas de usar Deus da sua misericórdia. Donde o dizer a Escritura (Sl 118, 32): Corri pelo caminho dos teus mandamentos, quando dilataste o meu coração, i. é, pelo dom, da graça e da caridade.
Em seguida devemos tratar da lei antiga. E, primeiro, da lei em si mesma. Segundo, dos seus preceitos.
Na primeira questão discutem-se seis artigos:
26 de dezembro
Enviou Deus seu Filho em carne semelhante à do pecado (Rm 8, 3)
Não foi conveniente que Deus assumisse uma carne impassível e imortal, mas antes uma carne passível e mortal.
Primeiro porque foi necessário aos homens conhecerem o benefício da Encarnação para que, por esse motivo, se inflamassem do amor divino. E foi conveniente que assumisse uma carne semelhante à dos outros homens, passível e mortal, para manifestar a veracidade da Encarnação. Porém, se tivesse assumido uma carne impassível e imortal, aos homens, que desconheciam essa carne, pareceria que fosse um fantasma, e não verdadeira carne.
Segundo, porque foi necessário que Deus assumisse a carne para satisfazer pelo pecado do gênero humano. Ora, um satisfaz pelo outro, quando um assume voluntariamente para si a pena devida ao pecado do outro, mas não devida a si. Ora, a pena devida ao pecado do gênero humano são a morte e os sofrimentos da presente vida. Por isso, foi conveniente que Deus assumisse a carne passível, mortal e sem pecado, para que, sofrendo e morrendo, satisfizesse por nós e afastasse o pecado.
Terceiro, porque, pelo fato de que teve uma carne passível e mortal, nos deu exemplos mais eficazes de virtude, de mais fortemente superar as paixões da carne e utilizá-las para fim virtuoso.
Quarto, porque somos mais confortados na esperança da mortalidade, por ter ele se transferido do estado de carne passível e mortal para o de carne impassível e imortal. E isto nós também podemos esperar para nós, que carregamos agora uma carne passível e mortal. Se, porém, tivesse desde o início assumido carne impassível e imortal, nenhuma esperança de imortalidade teria sido dada aos que experimentam em si a mortalidade e a corrupção.
A Encarnação, como se realizou, foi ainda conveniente ao ofício de mediador, que conosco tem de comum a carne passível e mortal e, com Deus, a virtude e a glória. Sendo assim, podia tirar de nós o que de comum conosco tinha, isto é, a passividade e a morte, e nos conduzir ao que tinha de comum com Deus. Com efeito, foi mediador unindo-nos com Deus.
(Suma Contra Gentios, 4, 55)
(Supra, q. 96. a. 6; infra, q. 100. a. 8; IIª-IIªª, q. 88, a. 10; q. 89. a. 9; q. 717, a. 4; III Sent., dist. XXXVII, a. 4; IV. dist. XV, q. 3, a. 2, qª 1; dist. XXVII, q. 3, a. 3, ad 4; III Cont. Gent., cap. CXXV).
O quarto discute-se assim. — Parece que os chefes do povo não podem dispensar nas leis humanas.
1. — Pois, a lei é estabelecida para a utilidade geral, como diz Isidoro. Ora, o bem comum não pode ser preterido em benefício da utilidade particular de ninguém. Porque, no dizer do Filósofo, o bem da nação é mais divino que o de um só homem. Logo, parece que não se deve dispensar ninguém de modo a poder contrariar o bem comum.
2. Demais. — Aos constituídos como chefes a Escritura preceitua (Dt 1, 17): Do mesmo modo ouvireis o pequeno que o grande, nem tereis acepção de pessoa alguma, porque este é o juízo de Deus. Ora, conceder a um o que se nega a todos, comumente, é fazer acepção de pessoas. Logo, sendo isto contra o preceito da lei divina, os chefes do povo não podem conceder tais dispensas.
3. Demais. — A lei humana, quando reta, há de estar de acordo com a lei natural e a divina; do contrário não estaria de acordo com a religião, nem conviria com a disciplina, o que entretanto a lei exige, como diz Isidoro. Ora, na lei natural e divina ninguém pode dispensar. Logo nem na lei humana.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (1 Cor 9, 17): A dispensação me veio só a ser encarregada.
Solução. — A dispensa, propriamente, implica a comensuração entre o comum e o particular. Por onde, também o chefe de família se chama dispensador, por distribuir a cada membro dela, com peso e medida, as obras e o necessário à vida. Assim também, em qualquer povo, diz-se que dispensa quem ordena como cada preceito geral há de ser cumprido pelos particulares.
Ora, pode acontecer que um preceito correspondente, na maior parte dos casos, à utilidade da multidão, não convenha a uma determinada pessoa ou a um determinado caso. E isso, quer por ser impedimento do melhor, quer por provocar algum mal, como do sobredito se colhe (q. 96, a. 6). Ora, seria perigoso cometer tal dispensa ao juízo de qualquer, salvo se houver perigo evidente e súbito, como antes se disse (q. 96, a. 6). Por onde, quem tem o múnus de governar a multidão tem o poder de dispensar na lei humana, que se lhe apóia na autoridade. De modo que, nas pessoas ou nos casos em que a lei é deficiente, dê licença para não se observar o preceito dela.
Se porém, der tal licença, sem a mencionada razão, e só por sua vontade, não será fiel na dispensação, ou será imprudente. Infiel, se não visar intencionalmente o bem comum; imprudente, se ignorar a razão de dispensar. Pelo que diz o Senhor (Lc 12, 42): Quem crês que é o dispenseiro fiel e prudente que faz o senhor sobre a sua família?
Donde a resposta à primeira objeção. — Não deve ser em prejuízo do bem comum que alguém seja dispensado de observar a lei geral; mas com a intenção de isso aproveitar a tal bem.
Resposta à segunda. — Não há acepção de pessoas se não se estabelecem situações iguais para pessoas desiguais. Por onde, quando a condição de uma pessoa exige que racionalmente se observe para com ela alguma disposição especial,não há acepção de pessoas, se lhe fizer uma graça especial.
Resposta à terceira. — A lei natural, por conter preceitos gerais, que nunca falham, não é susceptível de dispensa. Mas às vezes o homem pode dispensar nos outros preceitos, que são umas quase conclusões dos preceitos comuns. Por exemplo, que não se restitua o mútuo ao traidor da pátria, ou coisa semelhante. Quanto à lei divina, cada homem está para ela, como uma pessoa privada, para a lei pública, a que está sujeito. Por onde, assim como ninguém pode dispensar na lei pública humana, senão aquele de quem ela tira a sua autoridade, ou quem dele receber permissão para tal, assim, ninguém, a não ser Deus, ou quem Ele especialmente determinar, pode dispensar nos preceitos do direito divino, procedentes de Deus.
(IIª-IIªª, q. 79, a 2; ad 2; IV Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 1, ad 1; Quodl. II, q. 4, a. 3; IX, q. 4, a. 2).
O terceiro discute-se assim. — Parece que o costume não pode obter força de lei nem abrogar a lei.
1. — Pois, a lei humana deriva da lei da natureza e da lei divina, como do sobredito resulta (q. 93, a. 3; q. 95, a. 2). Ora, o costume dos homens não pode mudar a lei da natureza, nem a lei divina. Logo, também não pode mudar a humana.
2. Demais. — Muitos males não podem fazer um bem. Ora, quem primeiro começou a agir contra a lei fez mal. Logo, a multiplicação de atos semelhantes nada poderá fazer de bom. Ora, a lei, sendo regra dos atos humanos, é um bem. Portanto, o costume não pode abrogar a lei, de modo que obtenha força de lei.
3. Demais — Legislar é próprio de pessoas públicas, a quem pertence governar a comunidade; por isso pessoas particulares não podem fazer leis. Ora, o costume se avigora por atos de particulares. Logo, o costume não pode obter força tal que abrogue a lei.
Mas, em contrário, Agostinho diz: o costume do povo de Deus e as instituições dos maiores devem ser considerados como lei. E assim como os prevaricadores contra as leis divinas, assim também os contentores dos costumes eclesiásticos devem ser reprimidos.
Solução. — Toda lei procede da razão e da vontade do legislador: a divina e a natural, da vontade racional de Deus; a humana, da vontade do homem, regulada pela razão. Ora, a razão e a vontade se manifestam, não só pela palavra, quanto aos atos que o homem vai praticar, mas também pelos próprios atos. Pois, cada um pratica o que considera bom. Ora, é claro, pela palavra humana a lei não só pode ser mudada, mas também exposta, manifestando o movimento interior e o conceito da razão humana. Por onde, também atos, sobretudo multiplicados, e geradores do costume podem mudar e expor a lei, e mesmo produzir uma disposição com força de lei. Pois por atos exteriores e multiplicados revela-se eficacìssimamente o movimento interior da vontade e o conceito da razão. Porque se considera proveniente do juízo deliberado da razão o que se faz mui repetidamente. E sendo assim, o costume tanto pode ter força de lei, como abrogá-la e interpretá-la.
Donde a resposta à primeira objeção. — A lei natural e a divina procedem da vontade divina, como já se disse. Por isso não pode ser mudada pelo costume procedente da vontade humana, mas só por autoridade divina. Por onde, nenhum costume pode ter força de lei contra a lei divina ou a natural. Pois, diz Isidoro: Ceda o uso à autoridade; o mau uso estirpe a lei e a razão.
Resposta à segunda. — Como já dissemos (q. 96, a. 6), as leis humanas são deficientes em certos casos. Por isso é possível às vezes, em caso de deficiência da lei, agir fora dos seus termos, sem ser mau o ato assim praticado. Ora, a multiplicação de tais casos, por alguma mudança existente nos homens, manifesta, pelo costume, que a lei já não é útil, assim como isso mesmo se manifestaria se uma lei contrária fosse verbalmente promulgada. Se, porém ainda permanecer a mesma razão, pelo qual a primeira lei era útil, não é o costume que suplanta a lei, mas a lei, o costume. Salvo talvez se a lei for considerada como inútil só por não ser exeqüível, de acordo com o costume pátrio, o que era uma das condições dela. Pois, é difícil remover o costume do povo.
Resposta à terceira. — O povo, em que se realiza o costume, pode ter dupla condição. — Se for livre e capaz de legislar, vale mais o consenso de toda a multidão, para o fim de se observar alguma disposição manifestada pelo costume, do que a autoridade do chefe, que não tem o poder de legislar senão enquanto representa a personalidade do povo. Por onde, embora pessoas singulares não possam legislar, contudo a totalidade do povo o pode. — Outro caso é o do povo que não tem poder livre de legislar para si ou de remover a lei estabelecida por um poder superior. Em tal caso, contudo, o próprio costume, que prevalece na multidão, obtém força de lei, por ser tolerado por aqueles a quem pertence impor a lei ao povo. Pois, por isso mesmo são considerados como tendo aprovado o que o costume introduziu.
(II Polit., lect. XII).
O segundo discute-se assim. — Parece que a lei humana há de sempre ser mudada quando aparecerem melhores instituições.
1. — Pois, as leis humanas são fundadas na razão humana, assim como também as demais artes. Ora, nestas, muda-se o que estava estabelecido, se aparecer algo de melhor. Logo, o mesmo se deve fazer com as leis humanas.
2. Demais. — Pelo passado podemos prever o futuro. Ora, se as leis humanas não mudassem com a superveniência de melhores instituições, daí resultariam muitos inconvenientes, porque segundo parece, as leis antigas eram muito rudes. Logo, as leis hão-se de mudar, sempre que for possível fazer melhores instituições.
3. Demais. — As leis humanas são feitas para governar atos particulares dos homens. Ora, na ordem dos atos particulares, não podemos alcançar conhecimento perfeito senão pela experiência, que exige tempo, como diz Aristóteles. Logo, parece que, no decurso do tempo, pode ser que ocorra algo de melhor a ser estatuído.
Mas, em contrário, dizem as Decretais: É ridículo e desonra bastante abominável sofrer a destruição das tradições que recebemos, desde a antiguidade, dos nossos antepassados.
Solução. — Como já dissemos (a. 1), a lei humana pode ser retamente mudada, na medida em que essa mudança responda a uma utilidade pública. Mas a mudança, em si mesma, da lei, acarreta um certo detrimento para o bem da comunidade. Porque para a observância da lei contribui muito o costume; a ponto de o que se faz contra o costume geral, embora em si mesmo leve, ser, na verdade, grave. Por onde, mudada, a lei perde da sua força obrigatória, na medida em que se destrói o costume. Portanto, nunca deve ser mudada a lei humana, a menos que, por outro lado, haja compensação, para o bem comum, correlativa à parte de rogada da lei. E isto se dá: ou porque, da nova disposição legal, provém alguma utilidade máxima e evidentíssima; ou porque havia máxima necessidade de mudança; ou porque a lei costumeira continha manifesta iniqüidade ou a sua observância era nociva para muitos. Por isso, o jurisperito diz: No constituir uma nova ordem de coisas deve ser evidente a utilidade para nos afastarmos da lei tida diuturnamente como justa.
Donde a resposta à primeira objeção. — O que pertence à arte tem uma eficácia fundada só na razão; e portanto, sempre que ocorrer qualquer melhora, deve-se mudar o que antes estava estabelecido. Ora, as leis tiram do costume a sua máxima virtude, como diz o Filósofo. De aí o não deverem ser facilmente mudadas.
Resposta à segunda. — A objeção conclui, que as leis se devem mudar; não porém para darem lugar a qualquer melhoria; mas por causa de alguma grande utilidade ou necessidade, como já se disse.
E semelhantemente se deve responder à terceira objeção.