Dizia João, precursor do Cristo (Jo 1, 27): Esse é o que há de vir depois de mim, ao qual eu não sou digno de desatar a correia das sandálias. Era como se falasse: não julgueis que seja Ele superior a mim em dignidade, do mesmo modo que um homem o possa ser a outro; antes, me é superior de modo tão iminente, que nada sou comparado a ele. Por isso diz não sou digno de desatar a correia das sandálias, que é o mínimo obséquio que se pode fazer a outrem.
Do que se faz evidente que João muito avançara no conhecimento de Deus, uma vez que, pela consideração da infinita magnitude de Deus, vilipendiava-se totalmente, e dizia que era um nada. Do mesmo modo, Abraão, tendo conhecido a Deus, dizia (Gn 18, 27): uma vez que comecei, falarei ao meu Senhor, ainda que eu seja pó e cinza. E Jó, tendo visto o Senhor, disse (Jó 42, 5-6): Os meus ouvidos haviam escutado falar de ti, mas agora os meus próprios olhos te vêem. Por isso, acuso-me a mim mesmo, e faço penitência no pó e na cinza. Isaias, depois que viu a glória de Deus, disse (Is 40, 17): Todos os povos na sua presença são como se não existissem. Escreveu Gregório: quanto mais perfeitamente a inteligência humana conhece os bens celestes, mais se humilha. E todo santo homem, quanto mais se ergue na contemplação da divindade, tanto mais se abaixa dentro de si mesmo.
Disse ainda Gregório que, pelas sandálias, feitas de peles de animais, compreende-se a natureza humana que Cristo assumiu (Sl 59, 10): Posarei o meu calçado sobre Edom. As correias da sua sandália significam a própria união da divindade e da humanidade, a qual nem João nem qualquer outro pode desatar, nem plenamente penetrar, uma vez que fizera um Homem-Deus e um Deus-Homem. Por isso disse João: ao qual eu não sou digno de desatar a correia das sandálias, isto é, não sou digno de explicar o mistério da Encarnação. Isso deve-se entender de uma explicação completa e perfeita, pois tanto João como os demais pregadores explicam-no de certo modo, ainda que imperfeito, e desatam a correia das sandálias.
(In Joan, I)
Da obra do Pe. Mézard, O.P., "Meditações tiradas da obra de S. Tomas", tradução: Permanência