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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 — Se a lei eterna é a razão suma existente em Deus.

(Supra, q. 91, a. 1).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que não é a lei eterna a razão suma existente em Deus.
 
1. — Pois, a lei eterna é uma só. Ora, as razões das coisas na mente divina são várias; assim, Agostinho diz, que Deus fez todas as coisas com razões próprias. Logo, parece que a lei eterna não é o mesmo que a razão existente na mente divina.
 
2. Demais. — É da natureza da lei ser promulgada verbalmente, como já se disse (q. 90, a. 4). Ora, em Deus o Verbo é considerado pessoalmente, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 34, a. 1); ao passo que a razão o é essencialmente. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão divina.
 
3. Demais. — Agostinho diz: A lei, que é chamada verdade, aparece como estando acima da nossa mente. Ora, a lei existente como superior à nossa mente é a lei eterna. Logo, a verdade é a lei eterna. Mas a verdade e a razão não têm a mesma essência. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão suma.
 
Mas, em contrário, Agostinho diz: A lei eterna é a razão suma, a que sempre devemos obedecer.
 
Solução. — Assim como em todo artífice preexiste à razão do que ele faz, com a sua arte, assim também, em todo governante é necessário preexista à razão da ordem daquilo que devem fazer os que lhe estão sujeitos ao governo. E como a razão das coisas, que devem ser feitas pela arte, chama-se arte ou exemplar das coisas artificiadas, assim a razão de quem governa os atos dos súbditos assume a natureza de lei, salvo tudo quanto já foi dito a respeito da essên­cia da lei (q. 90). Ora, Deus, com sua sabedoria, é o criador da universidade das coisas, para as quais está como o artífice, para as coisas arti­ficiadas, conforme na Primeira Parte foi esta­belecido (q. 14, a. 8). Pois, também é o governador de todos os atos e moções de cada criatura, segundo tam­bém se estabeleceu na Primeira Parte (q. 103, a. 5). Por onde, assim como a razão da sabedoria divina tem, como criadora de todas as coisas, natureza de arte, exemplar ou idéia; assim a razão dessa mesma sabedoria, que move todas as coisas para o fim devido, tem natureza de lei. E sendo assim, a lei eterna não é mais que a razão da sabedoria divina, enquanto diretiva de todos os atos e moções.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Agostinho se refere, no passo aduzido, às razões ideais, que respeitam às naturezas próprias de cada coisa. Por isso há nelas uma certa distin­ção e pluralidade, conforme as diversas relações com as coisas, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 15, a. 2). Porém a lei é considerada como diretiva dos atos em relação ao bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, coisas entre si diversas consideram-se como unificadas, quando se ordenam para algo de comum. Portanto, a lei eterna é uma, ela que é a razão da referida ordem.
 
Resposta à segunda. — Duas considera­ções podem ser feitas a propósito de qualquer palavra: sobre a palavra mesma, e o que ela exprime. Ora, a palavra vocal é proferida pela boca humana; e por ela se exprimem as coisas significadas pelas palavras humanas. E a mesma é a essência do verbo mental humano, que não é senão um conceito da mente, pela qual o homem exprime mentalmente aquilo que pensa. Por onde, em Deus, o Verbo, que é o conceito do intelecto paterno, significa uma pessoa; mas tudo o que está na ciência do Pai, seja o que é essencial, ou pessoal, ou ainda as obras de Deus, exprime-se por esse Verbo, como está claro em Agostinho. E entre outras expressões, por esse Verbo também se exprime a lei eterna. Mas daqui não se segue que a lei eterna seja consi­derada como algo de pessoal, em Deus. Pois ela é apropriada ao Filho, por causa da conveniência que a razão tem com o Verbo.
 
Resposta à terceira. — A razão do inte­lecto divino tem com as coisas uma relação dife­rente da que com elas tem a do intelecto humano. Pois, o intelecto humano é medido pelas coisas, de modo que um conceito humano não é verda­deiro em si mesmo, senão pela sua conformidade com as coisas. Porque segundo uma coisa é ou não, a nossa opinião é verdadeira ou falsa. Ao contrário, o intelecto divino é a medida das coisas; porque cada uma delas é verdadeira na medida em que imita o intelecto divino, como na Primeira Parte se disse (q. 16, a. 1). E portanto, o intelecto divino é verdadeiro em si mesmo. Por onde, a sua razão é a verdade mesma.

Questão 93: Da lei eterna.

Em seguida devemos tratar das leis, em particular. E primeiro, da lei eterna. Segundo, da lei natural. Terceiro, da lei humana. Quarto, da lei antiga. Quinto, da lei nova, que é a lei do Evangelho. E quanto à sexta lei, que é a do estímulo, basta o que já foi dito quando tratamos do pecado original.
 
Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 2 — Se os atos da lei estão convenientemente assinalados na expressão: são atos da lei ordenar, proibir, permitir e punir.

O segundo discute-se assim. — Parece que os atos da lei não estão convenientemente assi­nalados na expressão: são atos da lei ordenar, proibir, permitir e punir.
 
1. — Pois, toda lei é um preceito geral, como diz o jurisconsulto. Ora, ordenar é a mesma coisa que preceituar. Logo, os três outros membros da enumeração tornam-se su­pérfluos.
 
2. Demais. — O efeito da lei é levar os súb­ditos para o bem, como já se disse (a. 1). Ora, o con­selho visa um bem melhor que o do preceito. Logo, à lei pertence, antes aconselhar que mandar.
 
3. Demais. — Assim como o homem é inci­tado ao bem pelas penas, também o é pelos prê­mios. Logo, se punir é considerado efeito da lei, também o premiar deve sê-lo.
 
4. Demais. — A intenção do legislador é tornar bons os homens, como já se disse (a. 1). Ora, quem só por medo das penas obedece à lei não é bom. Pois embora pelo temor servil, que é o temor das penas, alguém possa fazer o bem, não o faz contudo bem, como diz Agostinho. Logo, parece não ser próprio da lei punir.
 
Mas, em contrário, diz Isidoro: Toda lei ou permite alguma coisa, p. ex., que o homem forte busque o prêmio; ou proíbe, p. ex., que a ninguém é lícito desposar uma virgem consagrada; ou pune, p. ex., com pena capital quem cometeu uma morte.
 
Solução. — Como um enunciado é um ditame da razão expresso pela enunciação, assim a lei o é, expresso a modo de preceito. Ora, é próprio à razão passar de uma proposição para outra. Por onde, assim como nas ciências de­monstrativas a razão leva a assentirmos na con­clusão, em virtude de certos princípios, assim também leva a assentirmos no preceito de lei, por alguns princípios.
 
Ora, as ordens da lei regulam atos humanos, que ela dirige, como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2; q. 91, a. 4), e que são de diferentes espécies. Pois, segundo já ficou dito (q. 18, a. 8), certos atos são genericamente bons, e são os das virtudes. E em relação a estes se diz que é ato da lei preceituar ou ordenar, porque a lei preceitua todos os atos das virtudes, como diz Aristóteles. — Outros atos são genericamente maus, como os atos viciosos. E estes a lei os proíbe. — Outros ainda são genericamente indi­ferentes; e estes ela os permite. Também podem considerar-se indiferentes todos os atos que são pouco bons ou pouco maus. — Enfim, o meio pelo qual a lei se faz obedecer é o temor da pena. E por aqui se considera como efeito dela punir.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Assim como cessar o mal é de certo modo bem; assim, a proibição tem de certo modo natureza de preceito. E a esta luz, tomando em sentido lato a palavra preceito, a lei é universalmente chamada preceito.
 
Resposta à segunda. — Aconselhar não é ato próprio da lei, e pode pertencer mesmo a um particular, que não pode legislar. Por isso, o próprio Apóstolo, ao dar um conselho, disse: Eu é que digo, não o Senhor. Por isso, não é considerado como efeito da lei.
 
Resposta à terceira. — Também o pre­miar pode pertencer a qualquer pessoa, ao passo que punir não cabe senão ao ministro da lei, por cuja autoridade a pena é aplicada. Por isso, premiar não é considerado como ato da lei, mas só punir.
 
Resposta à quarta. — Começando alguém a acostumar-se a evitar o mal e a fazer o bem, pelo temor da pena, é levado às vezes a praticá-lo por vontade própria e com prazer. E assim, a lei, mesmo punindo, leva os homens a se tornarem bons.

Art. 1 — Se o efeito da lei é tornar os homens bons.

(II Cont. Gent., cap. CXVI: X Ethic., Irect., Iect. XIV).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que o efeito da lei não é tornar os homens bons.
 
1. — Pois, os homens são bons pela virtude, que torna bom quem a tem, como diz Aristóteles. Ora, a virtude do homem vem-lhe de Deus, que a produz em nós, sem nós, como se disse a pro­pósito da definição da virtude (q. 55, a. 4). Logo, não compete à lei tornar os homens bons.
 
2. Demais. — A lei não é útil ao homem se ele não lhe obedecer. Ora, já é por bondade que o homem obedece à lei. Logo, antes da lei, é-lhe necessária a bondade. Logo, não é ela que torna os homens bons.
 
3. Demais. — A lei se ordena para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, certos, que pro­cedem retamente no atinente ao bem comum, não o fazem em relação ao próprio. Logo, não pertence à lei tornar os homens bons.
 
4. Demais. — Certas leis são tirânicas, como diz o Filósofo. Ora, o tirano não busca o bem dos súbditos, mas a utilidade própria. Logo, não pertence à lei tornar os homens bons.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo: A vontade de todo legislador é tornar os cidadãos bons.
 
Solução. — Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2; a. 3, a. 4), a lei não é senão o ditame da razão do chefe, que governa os súbditos. Ora, a virtude de todo súbdito está em submeter-se bem àquele por quem é gover­nado; assim como a virtude do irascível e do concupiscível consiste em serem bem obedientes à razão. E assim, a virtude de qualquer súbdito está em sujeitar-se bem ao que governa, como diz o Filósofo. Pois, toda lei é estabelecida para ser obedecida pelos súbditos. Por onde é manifesto, que é próprio da lei levar os súbditos a serem virtuosos. Ora, como é a virtude que torna bom quem a tem, segue-se que é efeito próprio da lei tornar bons, absoluta ou relativamente, aqueles para os quais foi dada. Assim, se a intenção do legislador visar o verdadeiro bem, que é o bem comum; regulado pela justiça divina, resulta que, pela lei, os homens se tornarão absoluta­mente bons. Se for, porém, a intenção do legis­lador o bem não absoluto, mas o útil, o deleitável ou o que repugna à justiça divina, então a lei tornará os homens bons, não absoluta, mas rela­tivamente, em ordem a um determinado regime. Por onde, existe bem, ainda nos que são, em si mesmos, maus; assim, chama-se bom ladrão o que age bem em vista dos seus fins.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Dupla é a virtude, como do sobredito se colhe (q. 63, a. 2): a adquirida e a infusa. Ora, para uma e outra contribui o agir costumeiro, mas diversamente; pois, causa a virtude adquirida, dispõe para a infusa, e conserva e promove a já adquirida. E como a lei é dada para dirigir os atos humanos, na medida em que eles levam para a virtude, nessa mesma a lei torna bons os homens. Donde o dizer o Filósofo: Os legisladores tornam os cidadãos bons, imprimindo-lhes bons hábitos.
 
Resposta à segunda. — Nem sempre obe­decemos à lei pela bondade de uma virtude per­feita; mas umas vezes, pelo temor da pena, outras, pelo só ditame da razão, que é um prin­cípio de virtude, como já estabelecemos (q. 63, a. 1).
 
Resposta à terceira. — A bondade da parte é considerada relativamente à do todo; por isso, diz Agostinho, é má toda parte que não se coaduna com o todo. Sendo pois cada homem parte da cidade, é impossível seja bom sem ser bem proporcionado ao bem comum; nem o todo pode ter boa consistência senão pelas partes, que lhe sejam proporcionadas. Por onde, é impossível manter-se o bem comum da cidade sem os ci­dadãos serem virtuosos, ao menos aqueles a quem cabe governar. Pois basta, para o bem da comu­nidade, que os cidadãos sejam virtuosos na me­dida em que obedecem às ordens do chefe. E por isso o Filósofo diz: A virtude do chefe e a do bom cidadão é a mesma; mas não é a mesma que a do bom cidadão a virtude de um cidadão qualquer.
 
Resposta à quarta. — A lei tirânica, não estando de acordo com a razão, não é, absolu­tamente falando, lei; antes, é uma perversão dela. E contudo, na medida em que participa da essência da lei, tende a tornar bons os cida­dãos. Ora, da essência da lei não participa, senão na medida em que é um ditame de quem go­verna os seus súbditos e tende a que eles sejam obedientes à lei. O que é torná-los bons, não absolutamente, mas em relação ao regime.

Questão 92: Dos efeitos da lei.

Em seguida devemos tratar dos efeitos da lei. E nesta questão dois artigos se discutem:

Art. 6 — Se há uma lei constituída pelo estímulo da sensualidade.

(Infra. q. 93. a. 3; Ad Rom., cap. VII. lect. IV).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que não há uma lei constituída pelo estímulo da sensualidade.
 
1. — Pois, como diz Isidoro, a lei consiste na razão. Ora, o estímulo da sensualidade, longe de consistir na razão, desvia dela. Logo, não tem a natureza de lei.
 
2. Demais. — Toda lei é obrigatória, de modo que são considerados transgressores os que não a observam. Ora, não é transgressor quem não se submete ao estímulo da sensualidade, mas, ao contrário, quem lhe obedece. Logo, ele não tem natureza de lei.
 
3. Demais. —A lei se ordena para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, o estimulo da sensualidade não inclina para esse bem, mas antes, para o particular. Logo, não tem natureza de lei.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 7, 23): Sinto nos meus membros outra lei, que repugna à lei do meu espírito.
 
Solução. — Como já dissemos (a. 2; q. 90, a. 1 ad 1), a lei está essencialmente no sujeito que regula e mede; e, participativamente, no que é medido e regu­lado. De modo que toda inclinação ou ordena­ção, existente em quem está sujeito à lei, chama­-se lei participativamente, como do sobredito resulta (a. 2; q. 90, a. 1 ad 1). Ora, de duas maneiras pode existir uma inclinação nos súbditos da lei, provinda do legis­lador. Ou porque este neles causa diretamente uma inclinação e inclina, às vezes, diversos para atos diversos; podendo-se, deste modo, dizer que uma é a lei dos soldados e outra, a dos mer­cadores. Ou, indiretamente, quando o legislador, destituindo um seu súbdito de uma digni­dade, falo, por conseqüência, passar para outra ordem, ficando como que sujeito a outra lei. Assim, o soldado, destituído da milícia, ficará sujeito à lei dos lavradores ou dos mercadores.
 
Assim, pois, sob Deus legislador, criaturas diversas têm inclinações naturais diversas, de modo que aquilo que para uma é, de certo modo, lei, para outra é contrário à lei. Por exemplo, ser bravo é de certo modo a lei do cão; mas é contra a lei da ovelha ou de outro animal de índole mansa. Ora, a lei do homem, que lhe coube por ordenação divina, de acordo com a sua condição, é obrar de conformidade com a razão. E tanta força tinha essa lei, no estado primitivo, que nada de preterracional ou de irra­cional podia surpreender o homem. Mas quando ele se afastou de Deus, incorreu na pena de ser arrastado pelo ímpeto da sensualidade. O que se dá com cada um em particular, quanto mais se afastar da razão; que, assim, de certo modo se assemelha aos brutos, levados pelo ímpeto da sensualidade, conforme àquilo da Escritura (Sl 48, 21):O homem, quando estava na honra, não o entendeu: foi comparado aos brutos irracionais, e se fez semelhante a eles. Por onde, a inclinação mesma de sensuali­dade, chamada estímulo, tem nos brutos, absolutamente, natureza de lei; do modo, porém, porque, em relação a eles se pode falar em lei no sentido de inclinação direta. Ao contrário, relativamente ao homem, essa inclinação não tem natureza de lei, sendo antes, um desvio da lei da razão. Mas, por ter sido o homem, pela justiça divina, destituído da justiça original, e perdido o vigor da razão, o ímpeto mesmo da sensualidade, que o arrasta, tem natureza de lei, mas penal e, por lei divina, inseparável do ho­mem, destituído da dignidade que lhe era própria.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção procede quanto ao estímulo da sen­sualidade, em si mesmo considerado, e como inclinação para o mal. Pois, em tal sentido, não tem natureza de lei, como já se disse, ao passo que a terá enquanto resultante da justiça da lei divina. Tal como se disséssemos ser lei que a um nobre, por sua culpa, se permitisse ser submetido a obras servis.
 
Resposta à segunda. — A objeção colhe quanto à lei como regra e medida; pois, assim, os que dela desviam vêem a ser transgressores. Mas, nesse sentido, o estímulo da sensualidade não é uma lei mas, sim, por uma certa partici­pação, como já se disse.
 
Resposta à terceira. — A objeção colhe relativamente ao estímulo da sensualidade, quanto à sua inclinação própria; não porém, quanto à sua origem. E contudo, considerada a inclinação da sensualidade, tal como existe nos brutos, ela se ordena para o bem comum, i. é, para a conservação da natureza da espécie ou do indivíduo. O que também se dá com o homem, desde que a sensualidade esteja sujeita à razão. — Mas se chama estímulo da sensualidade na medida em que foge à ordem da razão.

Art. 5 — Se há só uma lei divina.

(Infra, q. 107, a. I; Ad Galat., cap. I, lect. II).
 
O quinto discute-se assim. — Parece que a lei divina é uma só.
 
1. — Pois, no mesmo reino, só uma é a lei do rei. Ora, todo o gênero humano está para Deus como para um rei, conforme àquilo da Escritura (Sl 46, 8): Deus é o rei de toda a terra. Logo, há uma só lei divina.
 
2. Demais. — Toda lei se ordena ao fim que o legislador visa relativamente aqueles para os quais legisla. Ora, em relação aos homens, Deus visa uma mesma coisa, segundo a Escritura (1 Tm 2, 4): Quer que todos os homens se salvem, e que cheguem a ter o conhecimento da verdade. Logo, só uma é a lei divina.
 
3. Demais. — A lei divina parece estar mais próxima da lei eterna, que é una, do que a lei natural, por ser mais elevada a revelação dá graça do que o conhecimento da natureza. Ora, a lei natural é a mesma para todos os homens. Logo, Com maior razão, a lei divina.
 
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 7, 12): Mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça também mudança da lei. Ora, como no mesmo lugar se diz, duplo é o sacerdócio: o levítico e o de Cristo. Logo, também dupla há de ser a lei divina; a antiga e a nova.
 
Solução. — Como já dissemos na Primeira Parte (q. 30, a. 3), a distinção é a causa do número. Ora, de dois modos podem as coisas se distinguir. — De um, quando absoluta e especificamente diversas, como o cavalo e o boi. — De outro, como o per­feito se distingue do imperfeito, dentro da mes­ma espécie; assim, a criança, do homem. Ora, é deste modo que a lei divina se distingue em lei antiga e nova. Por onde, o Apóstolo (Gl 3, 24-25) compara o estado da lei antiga ao da criança dirigida por um mestre; e o da lei nova, ao do homem per­feito, que já não precisa de mestre.
 
Ora, a perfeição e imperfeição da lei se fun­dam nas suas três funções, já antes expostas. — Assim, primeiramente, pertence à lei ordenar para o bem comum, como para o fim, segundo já dissemos (q. 90, a. 2). E esse bem pode ser duplo. Um é o bem sensível e terreno, ao qual ordenava dire­tamente a lei antiga. Por isso, logo no princípio dela, o povo é convidado ao reino terrestre dos cananeus. O outro é o bem inteligível e celeste, ao qual ordena a lei nova. Por isso, Cristo, logo no princípio da sua pregação, convida para o reino dos céus, dizendo (Mt 4, 17): Fazei penitência, porque está próximo o reino dos céus. Donde o dizer Agostinho, que as promessas das coisas tempo­rárias estão contidas no Antigo Testamento, que, por isso, se chama antigo; ao passo que a promessa da vida eterna pertence ao Novo Testamento. Em segundo lugar, à lei pertence dirigir os atos humanos conforme à ordem da justiça. No que também a lei nova extravaga da antiga, ordenando os atos internos da alma, conforme àquilo da Escritura (Mt 5, 20): Se a vossa justiça não for maior e mais perfeita do que a dos Escribas e dos Fariseus, não entrareis no reino dos céus. E, por isso se diz, que a lei antiga coíbe as mãos, a nova, a alma. — Em terceiro lugar, à lei pertence levar os homens à observância dos mandamentos. E isto, que a lei antiga fazia, pelo temor das penas, a nova o faz pelo amor, infundido em nossos corações pela graça de Cristo, conferida na lei nova, e figurada apenas, na antiga. Donde o dizer Agostinho: O temor e o amor, eis a breve diferença entre a Lei e o Evangelho.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Na casa o pai de família propõe uma ordem aos filhos e outra, aos adultos. Assim também o mesmo rei, Deus, dá, no seu reino, uma lei aos homens, que ainda vivem na imperfeição, e outra, mais perfeita, aos que pela lei anterior chegaram à capacidade maior das coisas divinas.
 
Resposta à segunda. — A salvação dos homens não podia vir senão de Cristo, conforme à Escritura (At 4, 12): Nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual nós devamos ser salvos. Por onde, a lei, que perfeitamente conduz todos à salvação, não podia ser dada senão depois do advento de Cristo. Mas antes dela, era necessário fosse dada ao povo, do qual Cristo havia de nascer, uma lei preparatória para recebê-lo, em que já se achas­sem contidos certos rudimentos da justiça sal­vífica.
 
Resposta à terceira. — A lei natural di­rige o homem por certos preceitos gerais, em que convêm tanto os perfeitos como os imperfeitos. Por isso é a mesma para todos. Ao passo que a lei divina o dirige mesmo em certas particula­ridades, em que os perfeitos não se comportam do mesmo modo que os imperfeitos. Por isso, a lei tinha que ser dupla, como ficou dito.

Art. 4 — Se é necessário haver uma lei divina.

(I, q. 1. a. 1; IIª-IIªª, q. 22, a. I, ad 1; III, q. 60, a. 5, ad 3; III Sent., dist. XXXVII, a. 1; In Psalm. XVIII; Ad Galat., cap. III, lect. VII).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que não é necessário haver nenhuma lei divina.
 
1. — Pois, como já se disse (a. 2), a lei natural é uma participação da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna é a lei divina, como se disse (a. 1). Logo, não é necessário haver uma lei divina, além da natural e das leis humanas dela derivadas.
 
2. Demais. — A Escritura diz (Sr 15, 14): Deus deixou o homem na mão do seu conselho. Ora, o conselho é ato de razão, como já se estabeleceu (q. 14, a. 1). Logo, o homem foi deixado ao governo da sua razão. Ora, o ditame da razão humana é a lei humana, como já se disse (a. 3). Logo, não é necessário seja o homem governado por nenhuma lei divina.
 
3. Demais. — A natureza humana é mais capaz do que a das criaturas irracionais. Ora, as criaturas irracionais não estão sujeitas a ne­nhuma lei divina, além da inclinação natural, que lhes é inerente. Logo, com maior razão, não deve a criatura racional estar sujeita a qualquer lei divina, além da natural.
 
Mas, em contrário, David pede a Deus que lhe imponha uma lei, dizendo (Sl 118, 33): Impõe-me por lei, Senhor, o caminho das tuas justificações.
 
Solução. — Além da lei natural e da huma­na, é necessário, para a direção da vida humana, haver uma lei divina. E isto por quatro razões. — Primeiro, porque pela lei o homem dirige os seus atos em ordem ao fim último. Ora, se ele se ordenasse só para um fim que lhe não excedesse a capacidade das faculdades naturais, não teria necessidade de nenhuma regra racional, superior à lei natural e à humana desta derivada. Mas como o homem se ordena ao fim da beatitude eterna, excedente à capacidade natural das suas faculdades, como já estabelecemos (q. 5, a. 5), é necessário que, além da lei natural e da humana, seja tam­bém dirigido ao seu fim por uma lei imposta por Deus. — Segundo, da incerteza do juízo humano, sobretudo no atinente às coisas contingentes e particulares, originam-se juízos diversos sobre atos humanos diversos;donde, por sua vez, procedem leis diversas e contrárias. Portanto, para poder o homem, sem nenhuma dúvida, saber o que deve fazer e o que deve evitar, é necessário dirija os seus atos próprios pela lei estabelecida por Deus, que sabe não poder errar. — Terceiro, porque o homem só pode legislar sobre o que pode julgar. Ora, não pode julgar dos atos internos, que são ocultos, mas só dos externos, que apa­recem. E contudo, a perfeição da virtude exige que ele proceda retamente em relação a uns e a outros. Portanto, a lei humana, não podendo coibir e ordenar suficientemente os atos inter­nos, é necessário que, para tal, sobrevenha a lei divina. — Quarto, porque, como diz Agostinho, a lei humana não pode punir ou proibir todas as malfeitorias. Pois, se quisesse eliminar todos os males, haveria conseqüentemente de impedir muitos bens, impedindo assim a utilidade do bem comum, necessário ao comércio humano. Por onde, afim de nenhum mal ficar sem ser proibido e permanecer impune, é necessário so­brevir a lei divina, que proíbe todos os pecados. — E essas quatro causas estão resumidas no salmo, que diz o seguinte (Sl 118, 8): A lei do Senhor que é imaculada, i. é, que não permite a torpeza de nenhum pecado; converte as almas, porque regula, não só os atos externos, mas também os internos; o testemunho do Senhor é fiel, por causa da certeza da verdade e da retitude; e dá sabe­doria aos pequeninos, ordenando o homem a um fim sobrenatural e divino.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Pela lei natural, o homem participa da lei eterna, proporcionalmente à capacidade da sua natureza. Mas importa que, de modo mais alto, seja levado ao fim último e sobrenatural. E por isso se lhe acrescenta a lei dada por Deus, pela qual a lei eterna é participada de modo mais elevado.
 
Resposta à segunda. — O conselho é uma perquisição e, portanto, há de proceder de certos princípios. Não basta porém que proceda de princípios naturalmente ínsitos, que são os da lei natural, pelas razões já expostas. Mas é necessário que outros se lhes acrescentem e tais são os preceitos da lei divina.
 
Resposta à terceira. — As criaturas irra­cionais não se ordenam a um fim mais elevado do que o proporcionado à capacidade natural delas. Logo, a comparação não colhe.

Art. 3 — Se há uma lei humana.

(Infra, q. 95, a. 1).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que não há nenhuma lei humana.
 
1. — Pois, a lei natural é uma participação da lei eterna, como já se disse (a. 2). Ora, pela lei eterna, todas as coisas são ordenadíssimas, como diz Agostinho. Logo, a lei natural basta para ordenar todas as coisas humanas, e portanto, não há necessidade de nenhuma lei humana.
 
2. Demais. — A lei é essencialmente me­dida, como se disse (q. 90, a. 1). Ora, a razão humana não é a medida das coisas, mas antes inversamente, como diz Aristóteles. Logo, nenhuma lei pode proceder da razão humana.
 
3. Demais. — A medida deve ser certíssi­ma, como está em Aristóteles. Ora, o ditame da razão humana, no concernente à direção das coisas, é incerto, conforme àquilo da Escritura (Sb 9, 14): Os pensamentos dos mortais são tímidos, e incertas as nossas providências. Logo, nenhuma lei pode proceder da razão humana.
 
Mas, em contrário, Agostinho ensina que há duas leis: uma eterna, e outra temporal, a que chama humana.
 
Solução. — Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2), a lei é um ditame da razão prática. Ora, dá-se que o modo de proceder da razão prática é semelhante ao da especulativa, pois ambas procedem de certos princípios para certas conclusões, como antes ficou estabelecido. Por onde devemos concluir que, assim como a razão especulativa, de princípios indemonstráveis e evidentes tira as conclusões das diversas ciências, cujo conhecimento não existe em nós naturalmente, mas são des­cobertos por indústria da razão; assim também, dos preceitos da lei natural, como de princípios gerais e indemonstráveis, necessariamente a razão humana há de proceder a certas disposições mais particulares. E estas disposições particulares, descobertas pela razão humana, observadas as outras condições pertencentes à essência da lei, chamam-se leis humanas como já dissemos (q. 90, a. 2, a. 3, a. 4). E por isso, Túlio, na sua Retórica, diz que a origem do direito está na natureza; daí, em razão da utilidade, nasceram certas disposições costumeiras; depois, o medo e a religião sancionaram essas disposições oriundas da natureza e aprovadas pelo costume.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A razão humana não pode participar plenamente do ditame da razão divina; mas o pode ao seu modo e imperfeitamente. Por onde, pela razão especulativa, por uma participação natural da sabedoria divina, temos o conhecimento de certos princípios comuns, mas não o conheci­mento próprio de qualquer verdade, como a contém a sabedoria divina. Assim também, pela razão prática, o homem naturalmente participa da lei eterna relativamente a certos princípios comuns, mas não quanto a direções particulares de determinados atos, que contudo estão con­tidos na lei eterna. Por onde, é necessário, ulte­riormente, que a razão humana proceda a certas disposições particulares das leis.
 
Resposta à segunda. — A razão humana, em si mesma, não é a regra das coisas; mas os princípios, que lhe são naturalmente inerentes, são certas regras gerais, e medidas de tudo o que o homem deve fazer; do que a razão natural é a regra e a medida, embora não seja a medida do que é natural.
 
Resposta à terceira. — A razão prática versa sobre os atos, que são particulares e contingentes; não porém, sobre o que é necessário, como a razão especulativa. Por onde, as leis humanas não podem ter aquela infalibilidade que têm as conclusões demonstrativas das ciências. Nem é necessário seja toda medida absolutamente infalível e certa, mas deve sê-lo enquanto isso lhe é genericamente possível.

Art. 2 — Se há em nós uma lei natural.

(IV Sent., dist. XXXIII: q. 1, a. 1).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que não há em nós nenhuma lei natural.
 
1. — Pois, o homem é suficientemente go­vernado pela lei eterna. Assim, Agostinho diz, que pela lei eterna torna-se justo o serem todas as coisas ordenadíssimas. Ora, a natureza não abunda no supérfluo, assim como não falha no necessário. Logo, não há no homem nenhuma lei natural.
 
2. Demais. — Pela lei o homem ordena os seus atos para o fim, como já se estabeleceu (q. 90, a. 2). Ora, a ordenação dos atos humanos para o fim não se faz por natureza, como se dá com as cria­turas irracionais que buscam o fim pelo só apetite natural. Pois, o homem busca o fim pela razão e pela vontade. Logo, não há nenhuma lei natu­ral no homem.
 
3. Demais. — Quanto mais somos livres, tanto menos estamos sujeitos à lei. Ora, o homem é mais livre que todos os animais, por causa do livre arbítrio que, ao contrário deles, possui. Por onde, não estando eles sujeitos à lei natural, nem o está o homem.
 
Mas, em contrário, àquilo da Escritura (Rm 2, 14) – Porque quando os gentios, que não tem lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei – diz a Glosa: Embora sem a lei escrita, tem contudo a Lei natural, pela qual todos tem entendimento e consciência do bem e do mal.
 
Solução. — Como já dissemos (q. 90, a. 1), sendo a lei regra e medida, pode de dois modos estar num sujeito: como no que regula e mede, e como no regulado e medido; pois, na medida em que um ser participa da regra ou da medida, nessa mes­ma é regulado ou medido. Ora, todas as coisas sujeitas à Divina Providência são reguladas e medidas pela lei eterna, como do sobredito resulta (a. 1). Por onde é manifesto, que todas parti­cipam, de certo modo, da lei eterna, enquanto que por estarem impregnadas dela se inclinam para os próprios atos e fins. Ora, entre todas as criaturas, a racional está sujeita à Divina Providência de modo mais excelente, por parti­cipar ela própria da providência, provendo a si mesma e às demais. Portanto, participa da razão eterna, donde tira a sua inclinação natural para o ato e o fim devidos. E a essa participação da lei eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural. Por isso, depois do Salmista ter dito (Sl 4, 6) – Sacrificai sacrifício de justiça – continua, para como que responder aos que perguntam quais sejam as obras da justiça: Muitos dizem – quem nos patenteará os bens? A cuja pergunta dá a resposta: Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto, querendo assim dizer que o lume da razão natural, pelo qual discernimos o bem e o mal, e que pertence à lei natural, não é senão a impressão em nós do lume divino. Por onde é claro, que a lei natural não é mais do que a participação da lei eterna pela criatura racional.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção procederia se a lei natural fosse algo diverso da lei eterna;ora, ela não é mais do que uma participação desta, como dissemos.
 
Resposta à segunda. — Toda operação da nossa razão e da nossa vontade deriva do que é segundo a natureza, como dissemos (q. 10, a. 1). Pois, todo raciocínio deriva de princípios evidentes; e todo desejo dos meios deriva do desejo natural do fim último. Por onde e necessariamente, a di­reção primeira dos nossos atos para o fim há de depender da lei natural.
 
Resposta à terceira. — Mesmo os ani­mais irracionais participam, a seu modo, da razão eterna, como a criatura racional. Mas como esta dela participa intelectual e racional­mente, por isso essa participação da lei eterna pela criatura racional chama-se propriamente lei;pois, a lei é algo de racional, como já disse­mos (q. 90, a. 1). Ora, a lei eterna não é participada racio­nalmente pela criatura irracional; portanto, só por semelhança pode-se chamar lei a essa parti­cipação.

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