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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 — Se a alma intelectiva é causada pelo sêmen.

(Supra. q. 90, a. 2; II Sent., dist. XVIII, q. 2, a. I; II Cont. Gent., cap. LXXXVI, LXXXVIII, LXXXIX; De Pot., q. 3, a. 9; Quodl. XI, q. 5, ad I, 4; XII, q. 7, a . 2; Compend. Theol., cap. XCIII; Ad Rom., cap. V. Iect. III).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que a alma intelectiva é causada pelo sêmen.
 
1. — Pois, diz a Escritura: Todas as pes­soas que tinham saído da coxa de Jacó eram ao todo sessenta e seis. Ora tudo o que é gerado do homem o é pelo sêmen. Logo, também a alma intelectiva.
 
2. Demais. — Como já se demonstrou, o homem tem uma mesma alma substancial in­telectiva, sensitiva e nutritiva. Ora, a alma sen­sitiva do homem, bem como a dos animais, é gerada do sêmen; por onde, diz o Filósofo, que o animal não é feito simultaneamente com o homem, mas antes, é feito o animal, com alma sensitiva. Logo, também a alma intelectiva é causada pelo sêmen.
 
3. Demais. — É de um e mesmo agente a ação que termina na forma e na matéria; do contrário a matéria e a forma não constituiriam, em si, uma unidade. Ora, a alma intelectiva é forma do corpo humano, constituído por virtu­de do sêmen. Logo, também a alma intelectiva é causada por essa mesma virtude.
 
4. Demais. — O homem gera o seu especi­ficamente semelhante. Ora, a espécie humana é constituída pela alma racional. Logo, esta provém do gerador.
 
5. Demais. — É inadmissível dizer que Deus coopera com os pecadores. Ora, se as al­mas racionais fossem criadas por Deus, ele às vezes cooperaria com os adúlteros, cujo coito ilícito pode ser fecundo. Logo, as almas racio­nais não são criadas por Deus.
 
Mas, em contrário, diz um autor: as almas racionais não são geradas pelo coito.
 
Solução. — É impossível a virtude ativa, existente na matéria, estender a sua ação até a produção de um efeito imaterial. Ora, é ma­nifesto que o princípio intelectivo do homem, transcende a matéria, pois, tem uma operação sem nada de comum com o corpo. E portanto, é impossível que a virtude do sêmen produza esse princípio. Também, semelhantemente, porque a dita virtude age pela alma do gera­dor, a qual é um ato do corpo, que usa deste, para operar. Ora, pela operação do intelecto, a alma nada tem de comum com o corpo. Por onde, a virtude do princípio intelectivo, como tal, não pode provir do sêmen. E por isso, diz o Filósofo: Conclui-se que o intelecto só pode vir de fora. E semelhante mente, a alma intelec­tiva, cuja operação vital é independente do corpo, é subsistente, como já se estabeleceu; e portanto, deve ter existência e ser feita. Mas, como é uma substância imaterial, não pode ser causada por geração, senão só por criação de Deus. Ensinar, pois, que a alma intelectiva é gerada, é considerá-la não subsistente, e por conseqüência, como havendo de corromper-se com o corpo. Por onde, é herético dizer que a alma intelectiva é gerada do sêmen.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O passo citado emprega, por sinédoque, a parte pelo todo, i. é, a alma, por todo o homem.
 
Resposta à segunda. — Alguns disseram, que as operações vitais, do embrião não provêm da alma deste, mas da alma da mãe, ou da virtude do sêmen. — Mas, tudo é falso. Pois, as operações vitais, como sentir, nutrir-se e crescer, não podem provir de princípio extrínseco. Por onde, deve-se dizer, que a alma preexiste no embrião, sendo, a prin­cípio, nutritiva; depois, sensitiva e, enfim, intelectiva.
 
Dizem porém alguns, que à alma vegeta­tiva, existente a princípio, sobrevém a sensiti­va; a esta, a intelectiva. E assim, há no ho­mem três almas, sendo uma potencial em re1a­ção à outra. — O que já se refutou antes.
 
Por onde, dizem outros, que a mesma alma, a princípio somente vegetativa, em seguida, por ação da virtude do sêmen, transforma-se em sensitiva; e por fim, transforma-se em intelec­tiva, não por virtude ativa do sêmen, mas pela de um agente superior, Deus, que ilumina de fora. Sendo por isso que o Filósofo diz que o intelecto vem de fora. — Mas esta opinião pode subsistir. — Porque nenhuma forma substancial é susceptível de aumento nem de diminuição; mas a superadição de uma perfeição maior produz outra espécie, assim como adição da unidade causa outra espécie numérica. Ora, não é possível que uma mesma forma pertença a diversas espécies. — Segundo, porque havia de se seguir que a geração do animal é um movimento contínuo, procedendo, paulati­namente, do imperfeito para o perfeito, como acontece na alteração. — Terceiro, porque re­sultaria que a geração do homem ou do ani­mal não é em si geração, por ser o sujeito dela um ser atual. Se, pois, desde o princípio há na matéria da geração uma alma vegetal, que depois é paulatinamente levada até à perfeição, haverá sempre a adição de uma perfeição super­veniente, sem corrupção da precedente, o que vai contra a essência da geração, em si mesma. — Quarto, porque o causado pela ação de Deus é algo de subsistente — e então, há-de ser dife­rente, necessária e essencialmente, da forma preexistente, que não era subsistente, voltando, por conseqüência, a opinião dos que admitem várias almas no corpo; ou não é nada de sub­sistente, mas uma perfeição da alma preexis­tente — e então, necessariamente se segue que a alma intelectiva há de corromper-se uma vez corrupto o corpo, o que é impossível.
 
Há ainda outra opinião: a daqueles que dizem terem todos um só intelecto. E esta já foi refutada antes.
 
Por onde, deve dizer-se que, sendo a gera­ção de um ser a corrupção de outro, necessário é admitir que, tanto no homem como nos ani­mais, advindo uma mais perfeita forma, corrom­pe-se a anterior; de modo que a forma conseqüente tem tudo o que tinha a antecedente, e ainda mais. E assim, depois de muitas gera­ções e corrupções, é que vem a existir a última forma substancial, tanto no homem como nos animais. O que aparece sensivelmente nos ani­mais gerados da putrefação. Por onde, deve-se dizer que a alma intelectiva é criada por Deus, no último termo da geração humana, e é simultaneamente sensitiva e nutritiva, uma vez cor­ruptas as formas preexistentes.
 
Resposta à terceira. — A objeção colhe relativamente aos diversos agentes não ordenados entre si. Mas se forem muitos os agentes orde­nados, nada impede que a virtude do agente superior alcance até a última forma; alcançando as virtudes dos agentes inferiores só al­guma disposição da matéria. Assim, ao passo que a virtude do sêmen dispõe a matéria, a da alma dá a forma, na geração do animal. Ora, é manifesto, pelo que já ficou estabelecido, que toda a natureza corpórea age como instrumento da virtude espiritual, e sobretudo de Deus. Por onde, nada impede que a formação corpo resulte de alguma virtude corpórea, sendo a alma intelectiva produzida só por Deus.
 
Resposta à quarta. — O homem gera o seu semelhante, dispondo, pela virtude do seu sêmen, a matéria, a receber tal forma deter­minada.
 
Resposta à quinta. — Na ação dos adúl­teros, com o que é da natureza, e portanto bom, Deus coopera. Com o que porém é pro­veniente da volúpia desordenada, e portanto mau, Deus não coopera.

Art. 1 — Se a alma sensitiva é transmitida com o sêmen ou por criação de Deus.

O primeiro discute-se assim. — Parece que a alma sensitiva não é transmitida com o sêmen, mas por criação de Deus.
 
1. — Pois, como nada é gerado, senão da matéria, a substância perfeita, não composta de matéria e forma, não pode ser gerada, mas cria­da. Ora, a alma sensitiva é uma substância perfeita; do contrário não poderia mover o corpo; e sendo a forma deste, não é composta de matéria e forma. Logo, começa a existir, não por geração, mas, por criação.
 
2. Demais. — O princípio da geração, nos seres vivos, está na potência geratriz, que, sendo uma das virtudes da alma vegetativa, é inferior à alma sensitiva. Ora, como nada pode ul­trapassar a ação da sua espécie, a alma sensi­tiva não pode ser causada por virtude geratriz do animal.
 
3. Demais. — Como o gerador gera o seu semelhante, necessário é que a forma do gerado esteja atualmente na causa da geração. Ora, nem a alma sensitiva, em si, nem nenhuma parte sua, está atualmente no sêmen; porque qualquer parte dessa alma só pode estar em alguma parte do corpo e, não há no sêmen ne­nhuma partícula do corpo, porque não há nenhuma que não seja gerada do sêmen e por virtude dele. Logo, a alma sensitiva não é causada pelo sêmen.
 
4. Demais. — Se há no sêmen algum prin­cípio ativo da alma sensitiva, esse princípio permanece ou não, depois do animal gerado. Ora, não pode permanecer. Pois, ou se identificaria com á alma sensitiva do animal gerado, o que é impossível, porque então identificar-­se-ia o gerador com o gerado, e o que faz com o que é feito, ou seria diferente, o que também é impossível, porque, como já se demonstrou, um animal não pode ter senão um principio formal, que é a alma. Mas também, é impos­sível não permanecer, porque o é que um agente atue para a corrupção de si mesmo. Logo, a alma sensitiva não pode ser gerada do sêmen.
 
Mas, em contrário. — A virtude do sêmen está para os animais dele gerados, como a dos elementos do mundo, para os animais deles pro­duzidos — p. ex., os gerados da putrefação. Ora, nestes últimos as almas são produzidas pela virtude dos elementos, conforme a Escritura: Produzam as águas répteis de alma vivente. Logo, as almas dos animais gerados do sêmen são produzidas pela virtude deste.
Solução. — Certos disseram que as almas sensitivas dos animais são criadas por Deus; opinião admissível, se a alma sensitiva fosse um ser subsistente, com existência e operação próprias; e então, teria que ser feita. E como o ser simples e subsistente não pode ser feito se­não por criação, essa alma existiria, criada. — Mas, como resulta do que já se estabeleceu, é falso o ponto de partida, que a alma sensitiva tenha existência e operação próprias; porque então não se corromperia com a corrupção do corpo.
 
Por onde, não sendo forma subsistente, existe como as outras formas corpóreas às quais em si mesmas, não é devida a existência; diz-se que existem porque fazem existir os compostos subsistentes. Por onde, estes é que devem ser feitos. E como o gerador é semelhante ao ge­rado, necessário é que naturalmente a alma sensitiva e formas semelhantes tenham a exis­tência produzida por certos agentes corpóreos, que transmutam a matéria, da potência para o ato, por alguma virtude corpórea neles exis­tentes. Ora, quanto mais potente é o agente, tanto mais pode difundir a sua ação a maior distância; assim, quanto mais quente for um corpo tanto mais longe alcançará a sua calefa­ção. Por onde, os corpos não-vivos, sendo infe­riores, na ordem da natureza, geram o seme­lhante, certo, não por meio de outro corpo, mas por si mesmos; assim, o fogo gera por si mes­mo o fogo. Mas os corpos vivos, mais potentes, geram o semelhante sem e com intermédio de outro corpo. Sem intermédio na operação nu­tritiva, pela qual a carne gera a carne; com intermédio, no ato da geração, porque da alma geratriz deriva a virtude ativa do sêmen, mesmo do animal, ou da semente da planta, assim corno, do agente principal, deriva, a virtude mo­tora do instrumento. E assim corno não difere dizer que algo é movido pelo instrumento ou pelo agente principal, assim, não difere, que a alma do gerado seja causada pela do gerador ou pela virtude desta derivada, existente no sêmen.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A alma sensitiva não é uma substância perfeita subsistente por si. E como já se tratou disto antes, não é necessário repetir aqui.
 
Resposta à segunda. — A virtude geratriz não gera somente por virtude própria, mas pela de toda a alma, da qual é potência. E por isso, a virtude geratriz da planta gera a planta, e a do animal, o animal. Pois, quanto mais per­feita for a alma tanto mais a virtude geratriz se ordena para a perfeição dos efeitos.
 
Resposta à terceira. — A virtude ativa do sêmen, derivada da alma geratriz, é por as­sim dizer moção dessa alma, não sendo alma, ou parte da alma, senão virtualmente; assim como na serra ou no machado não está a forma do leito, mas uma certa moção para tal forma. Por onde, não é necessário que essa virtude ativa tenha um órgão atual, mas funda-se no pró­prio espírito incluso no sêmen, que é espumoso, como o atesta a sua brancura. E nesse espírito há também certo calor, por virtude dos corpos celestes, por cuja virtude também os agentes inferiores agem, tendendo para a espécie, como já se disse. E como nesse espírito concorre a virtude da alma com a celeste, diz-se que o ho­mem, com o sol, gera o homem. O calor ele­mentar porém comporta-se instrumentalmente em relação à virtude da alma, como também em relação à virtude nutritiva, segundo diz Aristóteles.
 
Resposta à quarta. — Nos animais perfei­tos, gerados pelo coito, a virtude ativa está no sêmen do macho, conforme o Filósofo; e a fê­mea ministra a matéria do feto. E nesta, logo, desde o princípio, existe a alma vegetal, por ato não segundo, mas, primeiro; assim como a alma sensitiva existe nos adormecidos. Pois, quando começa a alimentar-se, já opera atualmente. Por onde, essa matéria se transmuta pela virtude existente no sêmen do macho até que seja levada ao ato da alma sensitiva; e não que a virtude mesma, que existe no sêmen, ve­nha a ser a alma sensitiva, porque então iden­tificar-se-ia o gerador com o gerado e haveria, antes, nutrição e crescimento, do que geração, como diz o Filósofo. Porém, depois que, por virtude do princípio ativo, que existia no sêmen, foi produzida a alma sensitiva do gerado, quanto à parte principal, então a alma sensi­tiva do ser gerado começa a operar, como com­plemento do corpo próprio, nutrindo-se e crescendo. Porém, a virtude ativa, existente, no sêmen, deixa de existir com a dissolução deste e como o evanesci mento do seu espírito. Nem é isto inconveniente, porque essa virtude não é o agente principal, mas o instrumental; ora, a moção instrumental cessa com a existência do efeito.

Questão 118: Da geração da alma humana.

Em seguida deve-se tratar da geração do homem. E primeiro, quanto à alma. Segundo, quanto ao corpo.
 
Sobre a primeira questão três artigos se discutem:

Art. 5 — Se o anjo possuiu a beatitude imediatamente depois de um ato meritório.

O quinto discute-se assim. — Parece que o anjo não possuiu a beatitude imediatamente depois de um ato meritório.
 
1. — Pois é mais difícil ao homem do que ao anjo obrar bem. Ora, o homem não é premiado imediatamente depois de cada ato. Logo, nem o anjo.
 
2. Demais. — O anjo imediata e instantaneamente, desde o princípio da sua criação, já era ativo, pois, mesmo os corpos naturais começam a mover-se no instante mesmo da sua criação; e se o movimento do corpo pudesse ser instantâneo, como a operação do intelecto e da vontade, teria ele o movimento desde o primeiro instante da sua geração. Se, portanto, o anjo mereceu a beatitude por um movimento da sua vontade, mereceu-a no primeiro instante da sua criação. Logo, se a beatitude dos anjos não sofre demora, foram bem-aventurados imediatamente, desde o primeiro instante.
 
3. Demais. — Entre corpos muito distantes uns dos outros deve haver muitos meios. Ora, o estado de beatitude dos anjos muito dista do estado de natureza dos mesmos. Ora, o meio entre um e outro estado é o mérito. Logo, é necessário tenha o anjo chegado à beatitude por muitos méritos.
 
Mas, em contrário. A alma do homem e o anjo se ordenam semelhantemente à beatitude, sendo por isso prometida aos santos a igualdade com os anjos. Ora, à alma separada do corpo, se mereceu a beatitude, imediatamente a consegue, não havendo nenhum impedimento. Logo, por igual razão também o anjo. Ora, este, pelo primeiro ato de caridade, ganhou o mérito da beatitude. Logo, como não havia nenhum impedimento, o anjo chegou à beatitude por um só ato meritório.
 
Solução. — O anjo, imediatamente depois do primeiro ato de caridade, pelo qual mereceu a beatitude, foi bem-aventurado. E a razão está em que a graça aperfeiçoa a natureza ao modo desta, assim como toda perfeição é recebida pelo perfectível ao modo deste. Ora, o próprio à natureza angélica é o adquirir a perfeição natural, não sucessivamente, mas por natureza e imediatamente, como antes se demonstrou. Assim, pois, como o anjo por natureza se ordena à perfeição natural, assim pelo mérito se ordena à glória. Por onde, imediatamente depois do mérito, conseguiu a beatitude. Ora, o mérito da beatitude, não só no anjo, como também no homem, pode existir por um único ato; pela merecer o homem por qualquer ato informado da caridade. Donde se conclui que, imediatamente depois de um ato informado pela caridade, o anjo tornou-se bem-aventurado.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O homem, por natureza, não foi criado para alcançar imediatamente a última perfeição, como o anjo. E por isso foi-lhe traçada uma via mais longa, para merecer a beatitude, do que ao anjo.
 
Resposta à segunda. — O anjo está fora do tempo que mede as coisas corpóreas. Por isso os instantes diversos, no atinente aos anjos, não se compreendem senão pela sucessão dos atos dos mesmos. Ora, não podiam simultaneamente ter o ato meritório da beatitude e o ato desta, que é a fruição, por pertencer aquele à graça imperfeita e este, à consumada. Donde se conclui que se devem admitir diversos instantes, num dos quais mereceu o anjo a beatitude e, noutro, tornou-se beato.
 
Resposta à terceira. — É da natureza do anjo conseguir a perfeição à qual se ordena, imediatamente. Por onde, não se requer senão um só ato meritório, que pode ser chamado meio, por se ordenar o anjo, por ele, à beatitude.

Art. 4 — Se a alma humana separada pode mover os corpos, ao menos localmente.

(De Malo, q. 16, a. 10, ad 2).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que a alma humana separada pode mover os corpos, ao menos localmente.
 
1. — Pois, o corpo obedece naturalmente à substância espiritual, quanto ao movimento local, como já se disse. Ora, a alma separada é uma substância espiritual. Logo, pode pelo seu império mover os corpos exteriores.
 
2. Demais. — No Itinerário de Clemente se diz conforme a narração de Nicetas a Pedro, que Simão Mago, com artes mágicas, conservava a alma de um menino, que matara, pela qual fazia operações mágicas. Mas isto não poderia se dar sem alguma transmutação dos corpos, pelo menos local. Logo, a alma separada tem a virtude de mover localmente os corpos.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a alma não pode mover nenhum outro corpo, a não ser o próprio.
 
Solução. — A alma separada, por virtude natural sua, não pode mover nenhum corpo. Pois, é manifesto que, estando unida ao corpo, não move senão o corpo vivo; por onde, qual­quer membro morto do corpo não obedece à alma, quanto ao movimento local. Ora, sendo claro que nenhum corpo é vivificado pela alma separada, resulta que nenhum obedece a esta, quanto à virtude da sua natureza, relativa­mente ao movimento local, para o que algo pode lhe ser concedido, pela virtude divina.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Há certas substâncias espirituais, cujas virtudes não são determinadas a nenhum corpo, como os anjos, naturalmente separados de corpos; e por isso muitos corpos podem lhes obedecer ao movi­mento. Porém a virtude motiva de uma substância separada, que for naturalmente determi­nada a mover algum corpo, poderá mover um corpo menor, mas não um maior. Assim, segundo o Filósofo, o motor do céu inferior não pode mover o céu superior. Por onde, a alma, que por natureza está determinada a mover o corpo, do qual é forma, não pode mover nenhum outro, por virtude natural.
 
Resposta à segunda. — Como diz Agosti­nho e Crisóstomo, os demônios simulam freqüentemente que são almas de mortos, para confirmarem o erro dos Gentios, que tal acreditavam. Por onde, é crível que Simão Mago fosse iludido por algum demônio, que simulava ser a alma da criança que aquele matara.

Art. 3 — Se o homem, por virtude da alma, pode imutar a matéria corpórea.

(Ad Galat., cap. III. Lect. I).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que o homem, por virtude da alma, pode imutar a substância corpórea.
 
1. — Pois, diz Gregório, que os santos fa­zem milagres, às vezes pela oração, às vezes pelo poder; assim Pedro, orando, ressuscitou Tabita morta e, increpando-os, fez morrerem Ananias e Safira, que haviam mentido. Ora, a obra miraculosa opera certa imutação na ma­téria corpórea. Logo, os homens, por virtude da alma, podem imutar a matéria corpórea.
 
2. Demais. — Aquilo da Escritura — quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade? ­diz a Glossa: alguns têm olhos ardentes, que só pelos fixar infectam os outros, e sobretudo as crianças. Ora, tal não se daria, se a virtude da alma não pudesse imutar a matéria corpórea. Logo, o homem, por virtude da alma, pode imutar tal matéria.
 
3. Demais. — O corpo humano é mais no­bre que os corpos inferiores. Ora, por apreensão da alma humana, este corpo é imutado, quanto ao calor e o frio, como o demonstram nos irados e pavorosos; e às vezes essa imutação chega até a doença e à morte. Logo, com maior razão, a alma pode, pela sua virtude, imutar a matéria corpórea.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: a maté­ria corpórea obedece só à vontade de Deus.
 
Solução. — Como já se disse, antes, a ma­téria corpórea não é imutada, para receber a forma, senão por algum agente composto de matéria e forma, ou por Deus mesmo, em quem, como na causa primordial, ambas existem virtualmente. E, por isso, como já se disse, os anjos não podem, por virtude natural, imutar a ma­téria corpórea, senão aplicando os agentes cor­póreos à produção de certos efeitos. Logo, com maior razão, a alma, por natural virtude, não pode imutar a matéria corpórea, senão me­diante certos corpos.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Diz-se que os santos fazem milagres por poder da graça e não da natureza. O que é claro pelo que Gregório diz, no mesmo lugar: Os que são filhos de Deus, pelo poder, como diz João, que há de admirar possam fazer milagres, por esse poder?
 
Resposta à segunda. — Avicena ensina que a causa da fascinação está em ser natural à ma­téria corpórea obedecer, antes, à substância espiritual, do que aos agentes contrários natu­rais. E por isso, quanto mais forte for à ima­ginação da alma, tanto mais poderá imutar a matéria corpórea; e tal é, diz, a causa da fascinação dos olhos. — Mas, como já se demonstrou, a matéria corpórea não obedece à vontade da substância espiritual, mas só à do Criador. Por onde, melhor é dizer-se que a forte imaginação da alma imuta o espírito do corpo, que lhe está unido. E essa imutação dos espíritos se dá, principalmente, nos olhos, onde chegam os es­píritos mais subtis. Os olhos, porém, infectam o ar contínuo, até um determinado espaço; e por esse modo, os espelhos, sendo novos e puros, contraem certa impureza da imagem da mulher menstruada, como diz Aristóteles. Assim, pois, da alma, veementemente agitada pela malícia, como acontece sobretudo com as velhas, resulta, pelo modo supradito, o olhar venenoso e nocivo, sobretudo para as crianças, que têm corpo tenro e facilmente impressionável. Mas, também é possível que, por permissão de Deus, ou ainda, por qualquer pato oculto, coopere para tal a malícia dos demônios, com os quais têm aliança as velhas adivinhas.
 
Resposta à terceira. — A alma está unida ao corpo humano, como forma; e o apetite sen­sitivo, que de certo modo obedece à razão, como antes se disse, é o ato de um órgão corpóreo. Por onde, é necessário que, para a alma humana apreender, seja movido o apetite sensitivo, por alguma operação corpórea. A apreensão da alma humana não basta porém para imutar os corpos exteriores, senão mediante a imutação do próprio corpo, como já foi dito.

Art. 2 — Se os homens podem ensinar os anjos.

(II Sent., dist. XI, part. II, a. 4; Opusc. I, Contra ERR. Graec., cap. XXVI; Ad Ephes., cap. III, lect. III).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que os homens podem ensinar os anjos.
 
1. — Pois, diz o Apóstolo: Para que a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada por meio da Igreja aos principados e potestades nos céus. Ora, a Igreja é a reunião dos fiéis. Logo, os anjos aprendem alguma coisa, dos homens.
 
2. Demais. — Os anjos superiores, imedia­tamente iluminados por Deus, sobre as coisas divinas, podem instruir os inferiores, como já se disse. Ora, certos homens, e sobretudo os Apóstolos, são imediatamente instruídos pelo Verbo de Deus, sobre as coisas divinas, con­forme a Escritura: Ultimamente, nestes dias, falou-nos por meio de seu Filho. Logo, certos homens puderam ensinar certos anjos.
 
3. Demais. — Os anjos inferiores são ins­truídos pelos superiores. Ora, certos homens são superiores a certos anjos, pois, como diz Gregório, num lugar, aqueles serão elevados às ordens supremas destes. Logo, certos anjos inferiores podem ser instruídos, sobre as coisas divinas, por certos homens.
 
Mas, em contrário, diz Dionísio, que todas as iluminações divinas são trazidas aos homens, pelos anjos. Logo, estes não são instruídos por aqueles, sobre as causas divinas.
 
Solução. — Como já se estabeleceu, os an­jos inferiores podem falar com os superiores, ma­nifestando-lhes os seus pensamentos; mas, sobre as coisas divinas, os superiores não são nunca iluminados pelos inferiores. Ora, é manifesto, que os mais elevados dos homens estão sujeitos, mesmo aos ínfimos dos anjos, do mesmo modo porque os anjos inferiores estão sujeitos aos su­periores. O que é claro pelo dito do Senhor, no Evangelho: Entre os nascidos de mulheres não se levantou outro maior que João Baptista; mas o que é menor no reino dos céus, é maior do que ele. Assim, pois, os anjos não são nunca iluminados pelos homens, sobre as causas divi­nas. Contudo, podem manifestar a estes, fa­lando, as cogitações do coração, porque os segredos dos corações só Deus conhece.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Agostinho expõe do modo seguinte o passo aduzido, do Apóstolo. Este já havia dito antes: A mim, o mínimo dentre todos os santos, foi-me dada esta graça de iluminar a todos, sobre a economia do sacramento oculto, desde a origem dos séculos, em Deus; e digo de tal modo oculto, para que os Principados e as Potestades, nos céus, conheçam, pela Igreja, a multiforme sabe­doria de Deus. Que é como se dissesse: Este sacramento era oculto aos homens; de modo tal porém que fosse conhecido da Igreja celeste, representada pelos Principados e Potestades, desde os séculos, e não antes; porque primitiva­mente, a Igreja estava onde, depois da ressurrei­ção, também será congregada a Igreja dos ho­mens. — Mas, também se pode dizer, de outro modo, como acrescenta o mesmo Agostinho, que o que está oculto os anjos não o conhecem tanto em Deus, mas, antes, é-lhes manifesto quando se realiza e propala, neste mundo. E assim, quando foram completados, pelos Apóstolos, os mistérios de Cristo e da Igreja, algo de tais mistérios, que antes lhes estava oculto, foi mani­festado. E deste modo, pode-se entender o dito de Jerônimo, que os anjos conheceram certos mis­térios pela pregação dos Apóstolos; porque, com essa predicação apostólica, tais mistérios se completaram, relativamente aos objetos mes­mos deles; assim, com a pregação de Paulo os gentios se converteram, assunto de que trata o Apóstolo no passo aduzido.
 
Resposta à segunda. — Os Apóstolos fo­ram instruídos imediatamente pelo Verbo de Deus, porque lhes falou, não a divindade do Verbo, mas a humanidade. Por onde, a objeção não colhe.
 
Resposta à terceira. — Certos homens, mesmo em vida, são maiores que alguns anjos, não em ato, mas por virtude, i. é, enquanto têm caridade tão intensa, que podem merecer maior grau de beatitude, que o de certos anjos. Assim, como se disséssemos que a semente de lima grande árvore tem maior virtude que a de lima pequena árvore, embora seja tal se­mente muito menor, atualmente.

Art. 1 — Se um homem pode ensinar a outro.

(II Sent., dist. IX, a. 2, ad 4; dist. XXVIII, a. 5. ad. 3; II Cont. Gent., cap. LXXV; De Verit., q. II a. I; Opusc. XVI, De Unit. Intell., cap. V).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que um homem não pode ensinar a outro.
 
1. — Pois, diz o Senhor, no Evangelho: Não queirais ser chamados mestres; ao que a Glossa de Jerônimo: Para que não atribuais aos homens a honra divina. Portanto, ser mestre é propriamente honra divina. Ora, ensinar é próprio do mestre. Logo, o
homem não pode ensinar, mas só de Deus isso é próprio.
 
2. Demais. — Um homem ensina causando, pela sua ciência, a ciência de outro. Ora, é por uma qualidade ativa que fazemos o que nos é semelhante. Donde se segue que a ciência é uma qualidade ativa, como o calor.
 
3. Demais. — A ciência requer o lume inte­ligível e a espécie da coisa inteligida. Ora, na­da disto um homem pode causar em outro. Logo, não pode, ensinando, causar a ciência de outro.
 
4. Demais. — O mestre age sobre o discí­pulo somente propondo-lhe certos sinais vocais ou gestos, para exprimir alguma causa. Ora, por sinais ninguém pode ensinar, causando em outro a ciência; pois, esses sinais são de coisas conhecidas ou desconhecidas. Se de conhecidas, aquele a quem são feitos já possui a ciência e, logo, não a recebe do mestre. Se de desconhe­cidas, tais sinais nada ensinam; assim, se al­guém propusesse, a um latino palavras gregas, cuja significação este ignora, não poderia en­siná-lo. Logo, ninguém pode, ensinando, cau­sar a ciência em outrem.
 
Mas, em contrário, diz o Apóstolo: Eu fui constituído pregador e Apóstolo, doutor das gentes na fé e na verdade.
 
Solução. — Sobre este assunto são várias as opiniões. — Assim, Averróis ensina que há um só intelecto possível para todos os homens, co­mo já se disse; donde resulta que todos têm a mesma espécie inteligível. E então, diz que um homem, ensinando, não causa em outro ciência diversa da que tem; mas comunica-lhe a mesma que tem, movendo-o a ordenar os fan­tasmas da sua alma, para que se disponham convenientemente à apreensão inteligível. E tal opinião é verdadeira, quanto a ser a ciência do mestre igual à do discípulo, considerando-se a identidade relativamente à unidade da coisa sabida; pois, a mesma verdade conhecem dis­cípulo e mestre. Mas, como já se viu, é falsa essa opinião quando ensina que todos os ho­mens têm o mesmo intelecto possível, e as mes­mas espécies inteligíveis só diferentes pela di­versidade dos fantasmas.
 
Outra é a opinião dos Platônicos, para os quais a ciência é ínsita, desde o princípio, nas nossas almas, por participação das formas sepa­radas, como já se disse; mas a alma, pela união com o corpo, fica impedida de considerar livre­mente aquilo de que tem ciência. E segundo esta opinião, o discípulo não recebe de novo, a ciência, do mestre; mas este o exercita na con­sideração daquilo de que já tem ciência; e en­tão aprender não é mais do que lembrar-se. Do mesmo modo, ensinam que os agentes naturais só dispõem para o recebimento das formas, que a matéria corpórea adquire por participação das espécies separadas. Mas, contra esta opi­nião já se estabeleceu antes, de conformidade também com Aristóteles, que o intelecto possí­vel da alma humana é potência pura, relativa­mente aos inteligíveis. E, portanto, deve-se, diferentemente e conforme Aristóteles, dizer que o mestre causa a ciência no discípulo, con­duzindo-o da potência ao ato. O que se evi­dencia considerando que, dos efeitos provenien­tes de um princípio exterior, uns procedem somente desse princípio; assim, a forma da casa é causada na matéria só pela arte. Outras po­rém procedem, ora de princípio exterior, ora, de interior; assim, a saúde é causada no enfer­mo, ora por um princípio exterior, a saber, a arte médica; ora, por um princípio interior, como quando alguém sara por virtude da natureza. Ora, em tais efeitos, a duas coisas se devem atender. Primeiro, que a arte, na sua operação, imita a natureza; pois, assim como esta cura um enfermo, alterando, digerindo e expulsando a matéria que causa a doença, assim também a arte. Segundo, o princípio exterior, que é a arte, não opera como agente principal, mas como coadjutor deste, que é o princípio interno, reforçando-o e ministrando-lhe os instrumentos e auxílios, de que se sirva a natureza para pro­duzir o efeito; assim, o médico reforça a natu­reza e lhe fornece os alimentos e remédios de que ela necessita para o fim a que tende. Ora, o homem adquire a ciência pelo princípio in­terno, como bem se vê naquele que a adquire por invenção própria; e pelo externo, como claramente o mostra quem aprende. Pois, é ínsito em cada homem um certo princípio de ciência, a saber, a luz do intelecto agente, pelo qual conhece, logo, inicial e naturalmente,cer­tos princípios universais de todas as ciências. Por onde, quando alguém aplica esses princí­pios universais a casos particulares, dos quais o sentido lhe ministram a memória e a experiên­cia, adquire, por invenção própria, a ciência do que ignorava, partindo do conhecido para o desconhecido. E assim, qualquer docente con­duz o discípulo, do que este conhece, para o que ignora, conforme Aristóteles, que diz, que toda doutrina e toda disciplina parte do conhe­cimento preexistente. Ora, o mestre conduz o discípulo, do conhecido ao desconhecido, de dois modos. Primeiro, ministrando-lhe certos auxílios ou instrumentos de que use o intelecto, para adquirir a ciência; assim, quando lhe propõe certas proposições menos universais, das quais entretanto o discípulo, pelo que sabe, pode julgar. Ou quando lhe propõe certos exemplos sensíveis — semelhantes, opostos, ou outros — pelos quais o intelecto do discente é le­vado ao conhecimento da verdade desconhecida. De outro modo, reforçando o intelecto do dis­cente, não por qualquer virtude ativa, como de natureza superior conforme já se disse quando se tratou da iluminação angélica — pois, todos os intelectos humanos são do mesmo grau, na ordem da natureza; mas, propondo a ordem dos princípios, relativamente às conclusões, ao discípulo, que talvez não tenha tal virtude re­flexiva, que possa, daqueles, deduzir estas. E, por isso, diz Aristóteles, que a demonstração é um silogismo, que faz saber; e assim, quem de­monstra faz o ouvinte saber.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Como já se disse, o mestre, ensinando, usa so­mente do ministério externo, como o médico, curando; mas assim como a natureza interior é a causa principal do sarar, assim o lume inte­rior do intelecto é a causa principal da ciência. E ambas essas coisas vêm de Deus. Por onde, assim como a Escritura diz de Deus — que sara todas as tuas enfermidades — assim, também diz — que ensina ao homem a ciência, enquanto o lume do seu rosto está gravado sobre nós, pelo qual todas as coisas nos são ensinadas.
 
Resposta à segunda. — O mestre não causa a ciência no discípulo, ao modo de agente na­tural, como objeta Averróis; por onde, não é necessário que a ciência seja uma qualidade ativa. Mas é o princípio pelo qual quem en­sina se dirige, assim como a arte e o princípio pelo qual se dirige quem opera.
 
Resposta à terceira. — O mestre não causa o lume inteligível no discípulo, nem diretamente as espécies inteligíveis; mas, com a sua doutrina, move-o a que forme, pelo intelecto, os conceitos inteligíveis, cujos sinais o mestre lhe propõe exteriormente.
 
Resposta à quarta. — Os sinais que o mes­tre apresenta ao discípulo, são de coisas conhe­cidas, universal e como confusamente, mas des­conhecidas em particular e como distintamente. Por onde, não se pode dizer que quem adquire a ciência por si mesmo a si mesmo se ensine, ou seja mestre de si, porque não tem preexis­tente a ciência completa, como se exige para mestre.

Questão 117: Do que respeita a ação do homem.

Em seguida deve-se tratar do que respeita à ação do homem, composto de criatura espi­ritual e corpórea. E primeiro deve-se tratar da ação do homem. Segundo, da propagação da espécie humana.
 
Sobre a primeira questão quatro artigos se discutem:

Art. 4 — Se o anjo bem-aventurado mereceu a sua beatitude.

O quarto discute-se assim. — Parece que o anjo bem-aventurado não mereceu a sua beatitude.
 
1. — Pois, o mérito provém da dificuldade do ato meritório. Ora, o anjo não teve nenhuma dificuldade em obrar bem. Logo, a boa obra não lhe foi meritória.
 
2. Demais. — Nós não merecemos pelo que nos é natural. Ora, natural ao anjo era que se convertesse a Deus. Logo, por isso não mereceu a felicidade.
 
3. Demais. — Se o anjo bem-aventurado mereceu a sua beatitude ou a mereceu antes de a ter, ou depois de a ter tido. Ora, antes, não, pois, segundo a opinião de muitos, antes não teve a graça, sem a qual não há nenhum mérito. Nem depois, porque então, ainda continuaria a merecer, o que é falso; pois, se assim fosse, um anjo menor, merecendo, poderia chegar ao grau do anjo superior, e não seriam estáveis as distinções dos graus da glória, o que é inadmissível. Logo, o anjo bem-aventurado não mereceu a sua beatitude.
 
Mas, em contrário. Diz a Escritura, que a medida do anjo, na celeste Jerusalém, é a medida do homem. Ora, o homem não pode alcançar a beatitude senão pelo mérito. Logo, nem o anjo.
 
Solução. — Só a Deus é natural a beatitude perfeita, porque nele se identifica a essência com a beatitude. Porém, a qualquer criatura a beatitude não é natural, mas é o fim último. Ora, qualquer ser, alcança, pela sua operação, o seu último fim. E essa operação conducente ao fim ou é factiva do fim, quando este não excede a virtude do que opera,visando-o, e assim a medicação é factiva da saúde;ou é meritória do fim, quando este excede a virtude do que opera, visando-o, e então o fim é esperado como dom alheio.Ora, a beatitude última excede tanto a natureza angélica como a humana, conforme resulta do já dito. Donde se conclui que, tanto o anjo como o homem mereceram a sua beatitude.
 
E se o anjo, pois, foi criado em graça, sem a qual não há nenhum mérito, podemos dizer sem dificuldade que mereceu a sua beatitude; e semelhantemente, se alguém dissesse que o anjo teve, de algum modo, a graça antes da glória. —Se porém o anjo não teve a graça antes de ser bem-aventurado, então devemos dizer que alcançou a beatitude sem mérito, como nós, a graça.O que todavia é contra a natureza da beatitude, que exerce a função de fim e é o prêmio da virtude, como também ensina o Filósofo. —Ou se deve dizer que os anjos merecem a beatitude pelo que, já bem-aventurados operam nos divinos ministérios, como outros sentiram. O que contudo é contra a natureza do mérito; pois, sendo como a via para o fim, e a quem já está no termo não cabendo mover-se para este, ninguém merece o que já tem. —Ou se deve dizer que o mesmo ato de conversão para Deus é meritório, enquanto promana do livre arbítrio; e é a fruição bem-aventurada enquanto atinge o fim. Mas também esta opinião é inadmissível, por não ser o livre arbítrio a causa suficiente do mérito, e portanto o ato não poder ser meritório, enquanto livre, sem que seja informado pela graça. Ora, não pode ser informado simultanteamente pela graça imperfeita, princípio do mérito e pela perfeita, princípio da fruição. Por onde, não é possível, simultaneamente, fruir e merecer a fruição.
 
Por onde, melhor diremos que o anjo teve a graça, antes de ser beatificado, e por ela mereceu a beatitude.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A dificuldade de bem obrar aos anjos não lhes provém de nenhuma contrariedade ou impedimento da virtude natural; mas de qualquer obra boa superar a virtude da natureza.
 
Resposta à segunda. — Não pela conversão natural o anjo mereceu a beatitude, mas pela conversão da caridade, que procede da graça.
 
Resposta à terceira. — A resposta resulta claro do já dito.

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