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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 4 — Se tudo está sujeito ao fado.

 (Supra, a. 1)
 
O quarto discute-se assim. — Parece que tudo está sujeito ao fado.
 
1. — Pois, diz Boécio: A série do fado move o céu e os astros, tempera os elementos entre si e os transforma por alternada comutação; os próprios seres que nascem e morrem, a todos renova por progressos semelhantes dos fetos e do sêmen; ela mesma abrange os atos e as fortunas dos homens, pela indissolúvel conexão das causas. Logo, nenhum exceção há que se não contenha na série do fado.
 
2. Demais. — Agostinho diz, que o fado existe na medida em que é referido à vontade e ao poder de Deus. Ora, a vontade de Deus é a causa de tudo o que se faz, como o mesmo diz. Logo, tudo está sujeito ao fado.
 
3. Demais. — O fado, segundo Boécio, é a disposição inerente às causas mutáveis. Ora, todas as criaturas são mutáveis, e só Deus é verdadeiramente imutável, como já se disse. Logo, há fado para todas as criaturas.
 
Mas, em contrário, diz Boécio, que coisas, colocadas sob a Providência, superam a série do fado.
 
Solução. — Como já se disse, o fado é a ordenação das causas segundas, em relação a efeitos divinamente previstos. Logo, tudo o que está sujeito a essas causas, está sujeito ao fado. Se porém há coisas feitas imediatamente por Deus, essas, não estando sujeitas às causas se­gundas, também não o estão ao fado; assim, a criação das coisas, a glorificação das substân­cias espirituais, e outras semelhantes. E é isto o que diz Boécio: as coisas próximas da divindade suprema, estavelmente fixadas, excedem a ordem da fatal mutabilidade. Donde também resulta claro, que quanto mais uma causa es­tiver afastada da mente primeira, tanto mais está implicada nos maiores nexos do fado, por­que mais está sujeita à necessidade das causas segundas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Tudo ao que aí se alude é feito por Deus, me­diante as causas segundas, e portanto, está con­tido na série do fado. Mas de todas as demais causas, não se pode dizer o mesmo, como já se estabeleceu.
 
Resposta à segunda. — O fado depende da vontade e do poder de Deus, como no princí­pio primeiro. Por onde, não é necessário que tudo o sujeito à vontade ou ao poder divinos esteja sujeito ao fado, como já se disse.
 
Resposta à terceira. — Embora todas as criaturas sejam, de certo modo, mutáveis, con­tudo algumas delas não procedem das causas criadas mutáveis. E portanto não estão sujeitas ao fado, como já se disse.

Art. 3 — Se o fado é imutável.

 (Opusc. XXVIII, De Fato, cap. II, III).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que o fado não é imutável.
 
1. — Pois, diz Boécio: Assim como o in­telecto está para o raciocínio; o que é, para o que é gerado; o tempo, para a eternidade; o círculo, para o ponto central; assim está a série mutável do fado para a estável simplicidade da providência.
 
2. Demais. — Como diz o Filósofo, quando nos movemos, move-se tudo o que está em nós. Ora, o fado é uma disposição inerente às coisas móveis, como diz Boécio. Logo o fado é imutável.
 
3. Demais. — Se o fado é imutável, as coisas que lhe estão submetidas se realizarão imutável e necessàriamente. Ora, as coisas atribuídas ao fado são as mais contingentes. Logo, nada haverá de contingente mas tudo se realizará necessariamente.
 
Mas, em contrário, diz Boécio: o fado é uma disposição imutável.
 
Solução. — A disposição das causas segundas, a que chamamos fado, pode ser dupla­mente considerada. Em relação a si mesmas, de tal modo, dispostas ou ordenadas, e em relação ao princípio primeiro, pelo qual são ordenadas que é Deus. — Ora, certos ensinam que a série mesma ou disposição das causas é em si necessá­ria; de modo que tudo se realiza necessàriamen­te, porque qualquer efeito tem a sua causa e, pos­ta esta, aquele necessàriamente se segue. Mas esta opinião é claramente falsa, em virtude do que já se disse. — Outros porém, contràriamente, dizem que o fado é mutável, mesmo no que depende da divina Providência. Por isso os Egípcios diziam que o fado pode ser mudado, por, certos sacrifícios, como refere Gregório Nisseno. Mas, esta opinião já foi excluída an­tes, porque repugna à imutabilidade divina.
 
E portanto deve-se dizer que o fado relati­vamente à consideração das causas segundas, é mutável; mas enquanto sujeito à divina Provi­dência, participa da imutabilidade, não por ne­cessidade absoluta, mas condicionada. Ê assim que consideramos esta condicional verdadeira ou necessária: Se Deus prevê que tal coisa há-de ser, ela será. Por onde, depois de ter dito que a série do fado é mutável, Boécio acrescen­tou, após poucas palavras: a qual, originando-se da imutável Providência, também há-de neces­sàriamente ser imutável.
 
Donde se deduzem as respostas às objeções.

Art. 2 — Se há fado nas coisas criadas.

 (I Sent., dist. XXXIX, q. 2. a. 1, ad. 5; III Cont. Gent., cap. XCIII; De Verit., q. 5. a. 1, ad I; Quodl. XII, q. 3, a. 2; Compend. Theol., cap. CXXXVIII; Opusc. XXXVIII. De Fato, cap. II).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que não há fado, nas coisas criadas.
 
1. — Pois, diz Agostinho, que é a vontade mesma ou o poder mesmo de Deus que se cha­ma fado. Ora, a vontade e poder de Deus não está nas criaturas, mas em Deus. Logo, o fado não está nas coisas criadas; mas em Deus.
 
2. Demais. — O fado não é causa do fatal, como o próprio modo de falar o mostra. Ora, a causa, em si, universal das coisas acidental­mente feitas neste mundo, é só Deus, como já se disse. Logo, o fado está em Deus e não, nas coisas criadas.
 
3. Demais. — Se o fado está nas criaturas, é substância ou acidente; e quer um ou outro, é necessário se multiplique, com a multidão das criaturas. Ora, sendo o fado considerado como um só, resulta que não está nas criaturas, mas em Deus.
 
Mas, em contrário, diz Boécio: o fado é a disposição inerente às causas humanas.
 
Solução. — Como resulta claro do que já foi dito, a Providência divina executa, por causas médias, os seus efeitos. Ora, a ordena­ção mesma dos efeitos pode ser considerada de duplo modo. De um, enquanto está em Deus, e então, se chama Providência. Enquanto, po­rém, a referida ordenação é considerada nas causas médias, ordenadas por Deus à produção de certos efeitos, então ela assume a natureza do fado. E é isto que diz Boécio: A série fatal há-se de urdir, quer o lado se realize por certos espíritos, servos da Providência divina, ou pela alma, ou por toda a natureza, que é serva, ou pelos movimentos celestes dos astros, ou pela angélica virtude, ou pela variada solércia dos demônios, ou por um só destes meios, ou por todos, de cada um dos· quais já se tratou nos artigos precedentes. Assim, pois, é manifesto que o fado está nas coisas criadas mesmas, en­quanto ordenadas por Deus a produzirem cer­tos efeitos.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A ordenação mesma das causas segundas, a que Agostinho chama série das causas, não tem a natureza de fado, senão enquanto dependente de Deus. E portanto, o poder ou a vontade de Deus pode se chamar fado, causalmente; essen­cialmente, porém, fado é a ordenação mesma, ou a série, i. é, a ordem das causas segundas.
 
Resposta à segunda. — O fado exerce a função de causa na mesma medida em que a exercem as camas segundas, cuja ordenação se chama fado.
 
Resposta à terceira. — Diz-se que o fado é a disposição, não no gênero da qualidade, mas designativa da ordem, que não é substância, mas relação. E essa ordem, considerada em re­lação ao seu princípio, sendo uma, diz-se que só há um fado. Se porém for considerada em relação aos efeitos, ou às causas médias mesmas, então ela se multiplica; e deste modo é que o poeta disse: Os teus fados te arrastam.

Art. 1 — Se há fado.

(III Cont. Gent., cap. XCIII; Compend. Theol., cap. CXXXVIII; Quodl. XII, q. 3, a. 2; Opusc. XXVIII, De Fato, cap. I; In Matth., cap. II; I Perihem., Iect. XIV; VI Metaphys., lect. III).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que não há fado.
 
1.  — Pois, diz Gregório: Esteja longe da mente dos fieis dizer que há fado.
 
2. — Coisas acontecidas por fado não são improvisadas, pois, como diz Agostinho, com­preendemos o fado como originado de dizer, isto é, falar; de modo que se considera aconte­cido por fado aquilo que é de antemão e determinadamente falado por alguém. Ora o que é previsto não é fortuito nem casual. Se pois há coisas fatais, fica excluído o acaso e a fortuna, das coisas.
 
Mas, em contrario. — O que não existe não tem definição. Ora, Boécio define o fado as­sim: o fado é uma disposição inerente às coisas móveis, pela qual a Providência sujeita tudo às suas ordens. Logo, o fado existe.
 
Solução. — Vemos que na ordem das coisas inferiores, certas acontecem por fortuna ou acaso. Ora, às vezes, uma coisa, relativamente às causas inferiores, é fortuita ou casual, e relativamente a uma causa superior, é intencional. Assim, se dois servos do mesmo senhor forem mandados para o mesmo lugar, sem que um saiba do outro, o encontro deles, a eles mesmos relativo, é casual, porque se dá fora da intenção de ambos; relativamente porém ao se­nhor, que tal predeterminou, não é casual, mas intencional.
Ora, certos não querem reduzir a nenhuma causa superior o casual e fortuito nas coisas inferiores deste mundo. E estes negam o fado e a Providência, como, de Túlio, refere Agos­tinho. O que é contrário ao que já se disse, da Providência.
 
Outros porém pretendem reduzir a uma causa superior, que são os corpos celestes, todo o fortuito e casual, quer nas coisas naturais, quer nas humanas. E segundo estes o fado não é senão a disposição dos astros, sob os quais fomos concebidos ou nascidos. — Mas esta opi­nião não pode subsistir, por duas razões. — Primeira, quanto às causas humanas. Pois, co­mo já se demonstrou, os atos humanos não estão sujeitos à ação dos corpos celestes, senão acidental e indiretamente. Ora, a causa fatal, de que dependem as coisas fatais, há-de neces­sàriamente ser causa direta e por si do que é realizado. — A segunda, quanto a tudo o que é acidentalmente feito. Pois, como se disse an­tes, o acidental não é propriamente ser uno. Ora, toda ação da natureza termina em algu­ma unidade. Por onde, é impossível o aciden­tal ser, em si, efeito de um princípio agente natural. Assim, não está no poder de nenhuma natureza, em si mesma, cavar um sepulcro e achar um tesouro. Logo, é manifesto que o corpo celeste age como princípio natural, e por­tanto os seus efeitos, neste mundo, são naturais. E por conseqüência, é impossível que qualquer virtude ativa desse corpo seja causa do que neste mundo se realiza acidentalmente, pelo acaso ou pela fortuna.
 
E portanto, deve-se dizer que o que se rea­liza acidentalmente neste inundo, quer em rela­ção às causas naturais, quer às humanas, reduz-­se a alguma causa preordenada, que é a Pro­vidência divina. Pois nada impede que o acidental seja considerado como uno, por algum intelecto; do contrário, o intelecto não poderia formar esta proposição: o que cavava um se­pulcro encontrou um tesouro. E assim como o intelecto pode apreender tal, também pode rea­lizá-lo; p. ex., alguém ciente do lugar em que há um tesouro escondido, instigasse algum rús­tico, que o ignorasse, a cavar aí um sepulcro. Por isso nada impede que as causas feitas acidentalmente, neste mundo, como fortuitas ou casuais, sejam reduzidas a uma causa ordena­dora, que age por meio do intelecto, e sobretu­do do intelecto divino. Pois, só Deus pode imutar a vontade, como já, se estabeleceu. E por conseqüência, a ordenação dos atos huma­nos, cujo princípio é a vontade, deve ser atribuída só a Deus.
 
Assim, pois, estando todas as coisas feitas neste mundo sujeitas à Providência divina por serem por elas preordenadas e como que de antemão faladas, podemos admitir o fado; em­bora os santos Doutores se recusassem empre­gar esse nome, por causa dos que o aplicavam em relação à virtude da posição dos astros. Por onde, diz Agostinho: Quem atribuir ao fado as coisas humanas, porque dá esse nome à von­tade ou ao poder de Deus mesmo, conserve a sua opinião, mas corrija o modo de falar. E nesse sentido também Gregório nega que haja fado.
 
Donde se deduz clara a resposta à primeira objeção.
 
Resposta à segunda. — Nada impede que uma coisa seja fortuita ou casual por compa­ração às causas próximas, e não, por compara­ção à divina Providência; e é assim que nada se faz no mundo ao acaso, como diz Agostinho.

Questão 116: Se há fado.

Em seguida deve-se tratar do fado.
 
E sobre esta questão, quatro artigos se discutem:

Art. 3 — Se os anjos foram criados em graça.

O terceiro discute-se assim. — Parece que os anjos não foram criados em graça.
 
1. — Pois, Agostinho diz: A natureza angélica foi primeiro criada informe e era chamada céu; porém, depois, recebeu forma e se chamou luz. Ora, esta formação se realizou pela graça. Logo, os anjos não foram criados em graça.
 
2. Demais. — A graça inclina a criatura racional para Deus. Se, portanto, o anjo tivesse sido criado em graça, nenhum se teria desviado de Deus.
 
3. Demais. — A graça é um meio termo entre a natureza e a glória. Ora, os anjos não foram bem-aventurados desde a sua criação. Logo, também não foram criados em graça, mas primeiro só tiveram a natureza; depois alcançaram a graça e, por último, foram beatificados.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: Quem estabeleceu os anjos na sua vontade boa, senão aquele que os criou com a sua vontade, i. é, com o casto amor a que eles aderem, constituindo-os simultaneamente em a sua natureza e repartindo-lhes a graça?
 
Solução. — São diversas as opiniões nesta matéria. Embora uns dissessem que os anjos foram criados com os seus dons naturais somente; e outros, que o foram em graça, contudo, como mais provável e consentâneo aos ditos dos santos, deve-se admitir que foram criados em graça santificante. Assim, pois, vemos que todas as coisas criadas no decurso do tempo, por obra da divina providência, e produzidos pela operação de Deus, foram produzidas na primeira condição delas mediante certas razões seminais, como diz Agostinho; assim as árvores, os animais, e seres semelhantes. Ora, é manifesto que a graça santificante está para a beatitude, como a razão seminal, em a natureza, para o efeito natural; por onde, a graça é chamada na Escritura, a semente de Deus. Como pois, segundo a opinião de Agostinho, se ensina que imediatamente, desde a primeira criação da criatura corpórea, foram-lhe infundidos as razões seminais de todos os efeitos naturais; assim também, imediatamente, desde o princípio, os anjos foram criados em graça.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Essa informidade do anjo pode-se compreender por comparação com a formação da glória e, então, a informidade precedeu temporalmente a formação; ou por comparação com a formação da graça e, assim, aquela precedeu a esta não temporal, mas naturalmente, como também Agostinho o ensina a respeito da formação corporal.
 
Resposta à segunda. — Toda forma inclina o seu sujeito ao modo da natureza deste. Ora, o modo natural da natureza intelectual é que se conduza ao que quer, livremente. Por onde, a inclinação da graça não impõe necessidade, mas quem tem a graça pode não usar dela e pecar.
 
Resposta à terceira. — Embora a graça seja o meio termo entre a natureza e a glória, na ordem da natureza; todavia, na ordem do tempo, não deviam simultaneamente existir, em a natureza criada, a glória e a natureza, pois a glória é o fim da operação da natureza mesma, ajudada pela graça. A graça, porém, não se comporta como fim da operação, porque não resulta das obras, mas é o princípio de bem operar. E portanto, era conveniente dar a graça imediatamente, com a natureza.

Art. 2 — Se o anjo precisava da graça para se converter a Deus.

O segundo discute-se assim. — Parece que o anjo não precisava da graça para se converter a Deus.
 
1. — Pois, não precisamos da graça para o que podemos naturalmente fazer. Ora, o anjo, amando naturalmente a Deus, como já vimos, naturalmente a ele se converte. Logo, o anjo não precisava da graça para se converter a Deus..
 
2. Demais. — Precisamos de auxílio só para o que é difícil. Ora, converter-se a Deus não era difícil para o anjo, pois neste nada existia que a tal conversão repugnasse. Logo, o anjo não precisava do auxílio da graça para se converter a Deus.
 
3. Demais. — Converter-se a Deus é preparar-se para a graça e, por isso, diz a Escritura: Convertei-vos a mim, e eu me converterei a vós. Ora, nós não precisamos da graça para nos prepararmos para ela, pois então iríamos ao infinito. Logo, o anjo não precisava da graça para se converter a Deus.
 
Mas, em contrário. Convertendo-se a Deus, o anjo chega à beatitude. Portanto, se não precisasse da graça, para se converter a Deus, resulta que dela não precisaria para ter a vida eterna, o que é contra a Escritura, dizendo: A graça de Deus é a vida eterna.
 
Solução. — Os anjos precisava da graça para se converterem a Deus, objeto da beatitude. Pois, como já dissemos antes, o movimento natural da vontade é o princípio de tudo o que queremos. Ora, a inclinação natural da vontade é para o que lhe é naturalmente conveniente. Portanto, para o que lhe é naturalmente superior a vontade não pode tender senão levada por algum princípio sobrenatural, que a ajude. Assim, é claro que o fogo tem inclinação natural para aquecer e para gerar o fogo; mas gerar a carne está acima da virtude natural do fogo; por isso, para gerá-la, o fogo não tem nenhuma inclinação, salvo se for movido, como instrumento, pela alma nutritiva. Mas, já ficou demonstrado, quando se tratou do conhecimento de Deus, que ver a Deus por essência, no que consiste a última beatitude da criatura racional, está acima da natureza de qualquer intelecto criado. Por isso, nenhuma criatura racional pode ter o movimento da vontade ordenado para essa beatitude, sem ser movida por um agente sobrenatural; e é a isto que chamamos auxílio da graça. Logo, deve-se dizer que o anjo a essa felicidade não se pode converter, senão pelo auxílio da graça.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O anjo naturalmente ama a Deus como ao princípio natural da sua existência. Aqui porém falamos da conversão a Deus, enquanto Ele beatifica pela visão da sua essência.
 
Resposta à segunda. Difícil é o que transcende o poder do agente; e isso de duplo modo pode dar-se. De um primeiro modo, transcende esse poder em respeito à ordem natural do agente. E então, se pode atingir o fim, com algum auxílio, chama-se difícil; se, porém, de nenhum modo o pode, chama-se impossível; p. ex., é impossível ao homem voar. De outro modo, transcende o poder, não em respeito à ordem natural deste, mas em virtude de algum impedimento adjunto ao mesmo. Assim, subir não é contra a ordem natural da potência da alma motora, porque à alma, em si mesma, é natural mover-se para qualquer parte; mas, ficando impedida disso, pelo peso do corpo, é difícil ao homem subir. Ora, por certo, difícil é ao homem converter-se à felicidade última, tanto por lho ser superior à natureza como por haver um impedimento proveniente da corrupção do corpo e da infecção do pecado. Ao anjo, porém, lho é difícil somente por ser uma atividade sobrenatural.
 
Resposta à terceira. — Qualquer movimento da vontade para Deus podendo chamar-se conversão, tríplice é essa conversão. — Uma, pela dileção perfeita, e é a da criatura que já goza de Deus. E, tal conversão requer a graça consumada. — Outra é o merecimento da beatitude; e essa requer a graça habitual, princípio do merecimento. — Pela terceira, preparamo-nos a ter a graça. E essa não exige nenhuma graça habitual, mas a operação de Deus que converte a alma para si, segundo a Escritura: Converte-nos Senhor, a ti, e nós nos converteremos. Por onde se vê que não se procede até o infinito.

Art. 6 — Se os corpos celestes impõem necessidade ao que lhes está sujeito à ação.

(II Sent., dist. XV. q. I, a. 2, ad 3; a. 3. ad 4; III Cont. Gent., cap. LXXXVI; De Verit., q. 5, a. 9, ad I, 2; De Malo, q. 6, ad 21; q. 16, a. 7. ad 14, 16; I Perihem., lect. XIV; VI Metaphys., lecl. III).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que os corpos celestes impõem necessidade ao que lhes está sujeito à ação.
 
1. — Pois, posta a causa suficiente, necessariamente segue-se o efeito. Ora, os corpos ce­lestes são causa suficiente dos seus efeitos. E como esses corpos, com os seus movimentos e disposições, são considerados seres necessários, conclui-se que os efeitos deles se seguem necessariamente.
 
2. Demais. — O efeito do agente resulta, na matéria, necessariamente, quando a virtude daquele for tal que possa submeter esta a si totalmente. Ora, a matéria total dos corpos in­feriores está sujeita à virtude dos corpos celestes, como sendo mais excelente. Logo, o efeito desses corpos é recebido, necessariamente, pela matéria corpórea.
 
3. Demais. — Se os efeitos do corpo celes­te não se produzirem necessariamente, há-de ser por alguma causa impediente. Mas qualquer causa corpórea, que possa impedir o eleito do corpo celeste, há-de necessariamente reduzir-se a algum princípio celeste, porque os corpos ce­lestes são a causa de tudo o que neste mundo se faz. Logo, como esse princípio é necessário, segue-se que necessariamente fica impedido o efeito de outro corpo celeste, e assim tudo, neste mundo acontece necessariamente.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo: não há inconveniente em que deixem de produzir-se muitas daquelas coisas corpóreas, como as águas e os ventos, que são sinais celestes. As­sim, pois, nem todos os efeitos dos corpos celes­tes realizam-se necessariamente.
 
Solução. — A questão presente já está em parte resolvida pelo que ficou estabelecido; em parte, porém, encerra alguma dificuldade. Pois, como já se demonstrou, embora, por impressão dos corpos celestes, realizam-se certas inclina­ções em a natureza corpórea, a vontade contudo não obedece a essas inclinações necessariamente. E portanto nada impede que, pela eleição voluntária, fique impedido o efeito dos corpos ce­lestes, não só em relação ao homem, mas também em relação a outras coisas a que se es­tende a operação humana. Ora, nenhum prin­cípio semelhante existe nos seres naturais, pelo qual tenham a liberdade de obedecer ou não ás impressões celestes. Donde resulta, que em relação a tais seres, pelo menos, tudo se realiza necessariamente, segundo a opinião antiga de certos que, supondo que tudo o que existe tem causa e que, introduzida a causa, o efeito se se­gue necessariamente, concluíam que tudo se pro­duz necessariamente.
 
Mas essa opinião Aristóteles a rejeita re­futando os dois princípios mesmos donde os adversários partem. — Primeiro, não é verdade resulte o efeito, necessariamente, de qualquer causa suposta; assim, certas causas se ordenam aos seus efeitos, não necessariamente, mas quase sempre; e por isso, às vezes falham, em alguns casos. Mas se falham às vezes, por efeito de alguma outra causa impediente, não fica de pé a refutação proposta porque esse impedimento mesmo, se dá necessariamente. — E por isso, deve-se dizer que, tudo o existente por si tem causa; não a tem porém o que é acidental, por­que não tendo verdadeira unidade, não é ver­dadeiro ente. Assim, o branco tem causa; e se­melhantemente, o músico; mas não, músico branco, porque, não e verdadeiro ente, nem tem verdadeira unidade. Ora, é manifesto que a causa impediente da ação de qualquer outra causa ordenada, na maior parte das vezes, ao seu efeito, concorre com esta, às vezes acidental­mente; e, tal concurso, sendo acidental, não tem causa. Por onde, o que resulta desse concurso não se reduz a nenhuma causa preexis­tente, da qual haja necessariamente de resultar. Assim, é alguma causa celeste que faz um corpo terrestre ígneo ser gerado na parte superior do ar e cair; semelhantemente, a existência na su­perfície da terra de qualquer matéria combus­tível pode se reduzir a algum princípio celeste.
 
Mas nenhum corpo celeste é causa de que o fogo cadente encontre essa matéria e a queime — fato acidental. Por onde, é claro que nem to­dos os efeitos dos corpos celestes são necessários.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Os corpos celestes são causa dos efeitos inferio­res mediante as causas particulares inferiores, que às vezes podem falhar.
 
Resposta à segunda. — A virtude do corpo celeste não é infinita e por isso exige uma deter­minada disposição na matéria, para produzir o seu efeito, tanto em relação à distância local como em relação às outras condições. E por­tanto, assim como a distância local impede o efeito do corpo celeste — pois o sol não produz o mesmo efeito calorífico na Dácia e na Etió­pia — assim também a espessura, a frigidez, a calidez e outras disposições semelhantes da ma­téria podem impedir o efeito desse corpo.
 
Resposta à terceira. — Embora a causa impediente do efeito de outra causa seja redutível a algum corpo celeste, como à causa; con­tudo o concurso de duas causas, sendo aciden­tal, não se reduz à causa celeste, como já se disse.

Art. 5 — Se os corpos celestes podem causar impressões sobre os demônios.

 (De Pot., q. 6: a. 10).
 
O quinto discute-se assim. — Parece que os corpos celestes podem causar impressões sobre os demônios.
 
1. — Pois, os demônios, em dependência de certos crescentes da lua, Vexam os homens, que por isso se chamam lunáticos, como se lê na Escritura. Ora, tal não se daria se os demônios não estivessem sujeitos aos corpos celestes. Logo, eles o estão.
 
2. Demais. — Os nigromantes observam certas constelações para invocar os demônios. Ora, estes não seriam invocados, por meio dos corpos celestes, se a eles não estivessem sujeitos. Logo, estão sujeitos às ações de tais corpos.
 
3. Demais. — Os corpos celestes têm maior virtude que os inferiores. Ora, os demônios são afastados por certos corpos inferiores, como ervas, pedras e animais; por certos sons determi­nados; e por vezes, figurações e fingimentos, como diz Porfírio, citado por Agostinho. Logo, com maior razão, estão sujeitos à ação dos corpos celestes.
 
Mas, em contrário, os demônios são supe­riores, na ordem da natureza, aos corpos celes­tes. Pois, o agente é superior ao paciente, como diz Agostinho. Logo, os demônios não estão sujeitos à ação dos corpos celestes.
 
Solução. — Sobre os demônios há tríplice opinião. — A primeira é a dos Peri patéticos, que ensinam a não existência deles; e o que a arte nigromântica lhes atribui faz-se por virtu­de dos corpos celestes. E neste sentido é que Agostinho cita o dito de Porfírio: na terra são fabricadas pelos homens, potestades aptas a obe­decerem aos vários efeitos dos astros. Mas esta opinião é manifestamente falsa. Pois, a expe­riência ensina que, por meio dos demônios, são feitas muitas coisas, para o que de nenhum modo bastaria a virtude dos corpos celestes. Assim, o falarem os possessos língua que desconhecem; citarem versos e passos de autores que nunca conheceram; fazerem os nigromantes com que estátuas falem e se movam, e coisas semelhantes.
 
Isto levou os Platônicos a dizer que os demônios são animais de corpo aéreo e espírito passivo, conforme Apuleio, citado por Agosti­nho. E esta é a segunda opinião, de acordo com a qual os demônios estão sujeitos aos cor­pos celestes, do mesmo modo pelo qual, como já se estabeleceu, o estão os homens. Mas, pelo que ficou exposto, esta opinião é evidentemen­te falsa. Pois, como já dissemos, os demônios são substâncias intelectuais não unidas a cor­pos. — Por onde é claro que não estão sujeitos à ação dos corpos celestes; nem em si mesmos, nem acidental, nem direta, nem indiretamente.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Por duas razões é que os demônios podem vexar os homens, conforme certos crescentes da lua. — Primeira, para infamarem uma criatura de Deus, como o é a lua, segundo dizem Jerônimo e Crisóstomo. — A segunda está em que, po­dendo operar só mediante as virtudes naturais, como antes se disse, consideram, nas suas obras, as aptidões dos corpos para os efeitos intencio­nados. Ora, é manifesto que o cérebro é a mais úmida de todas as partes do corpo, como diz Aristóteles; e por isso está sujeito em má­ximo grau à ação da lua, que tem a proprie­dade de mover o humor. E como no cérebro é que têm o seu complemento as virtudes ani­mais, por isso os demônios, conforme certos crescentes da lua, perturbam a fantasia do ho­mem, quando descobrem que o cérebro está dis­posto para isso.
 
Resposta à segunda. — Os demônios invo­cados sob certas constelações, acodem por duas razões. — Primeira, para fazerem os homens er­radamente crer que há, nas estrelas, algum nome. — Segunda, porque vêm que, sob certas constelações, a matéria corpórea está mais disposta aos efeitos para os quais foram invocados.
 
Resposta à terceira. — Como diz Agos­tinho, os demônios são aliciados por vários gêneros de pedras, ervas, vegetais, animais, versos e ritos, não como os animais, pelos alimentos, mas como os espíritos, pelos sinais, a saber, en­quanto tais coisas lhes são exibidas como sinal da honra divina, que para si desejam.

Art. 4 — Se os corpos celestes são causa dos atos humanos.

(IIª IIae, q. 95, a. 5; II Sent., dist.. XV, q. I, a. 3; XXV, a. 2, ad 5; III Cont. Gent., cap. LXXXIV, LXXXV. LXXXVII; De Verit., q. 5, a. 10; Compend. Theol., cap. CXXVII, CXXVIII; I Pheriherm., Iect. XIV; III De Anima, lect: IV; VI Metaphys., Iect. III; In Matth., capo II).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que os corpos celestes são causa dos atos humanos.
 
1. — Pois, esses corpos, sendo movido: pelas substâncias espirituais, como já se disse, agem como instrumentos, pela virtude delas. Ora, tais substâncias são superiores às nossas almas. Donde resulta, que podem causar im­pressão nestas e, portanto, serem causa dos atos humanos.
 
2. Demais. — Tudo o que é multiforme depende de princípio uniforme. Ora, os atos humanos são vários e multiformes. Logo, de­pendem dos movimentos uniformes dos corpos celestes, como do princípio.
 
3. Demais. — Os astrólogos freqüentemente vaticinam sobre os acontecimentos bélicos e outros atos humanos, cujos princípios são o intelecto e a vontade. Ora, tal não poderiam fazer se os corpos celestes não fossem causa dos atos humanos. Logo, eles são tal causa.
 
Mas em contrário, diz Damasceno: os cor­pos celestes não são de nenhum modo causa dos atos humanos.
 
Solução. — Os corpos celestes podem dire­tamente e por si impressionar os outros corpos, como já se disse; nas potências da alma hu­mana, porém, que são atos de órgãos corpó­reos, causam impressão, direta, mas acidental­mente; pois, os atos dessas potências são necessariamente obstruídos pelo obstáculo dos órgãos; assim, os olhos torvos não vêm bem.
 
Por onde, se o intelecto e a vontade fossem vir­tudes ligadas a órgãos corpóreos, como ensina­ram alguns, dizendo que o intelecto não difere do sentido, daí necessariamente resultaria que os corpos celestes são causa das eleições e dos atos humanos. E, por conseqüência o homem agiria por instinto natural, como os animais, que lhe são inferiores e que. tendo as virtudes da alma ligadas a órgãos corpóreos, sempre agem naturalmente, por impressão dos corpos celestes. E dai a conclusão que o homem não teria livre arbítrio, mas seria determinado nas suas ações, como os outros seres naturais. Con­clusões manifestamente falsas e contrárias à linguagem humana.
 
Deve-se pois saber que, indiretamente e por acidente, as impressões dos corpos celestes po­dem influir sobre o intelecto e a vontade, en­quanto aquele e esta recebem algo das virtudes inferiores, ligadas a órgãos corpóreos. Mas, relativamente a isso, o intelecto se comporta diferentemente da vontade. Pois, recebe os seus dados, necessariamente, das virtudes infe­riores; por onde, turbadas as virtudes imagina­tiva, cogitativa ou memorativa, necessariamente há-de turbar-se a ação do intelecto. A von­tade porém não segue necessariamente a incli­nação do apetite inferior. Pois, embora as paixões do irascível e do concupiscível, exerçam certa influência para inclinar a vontade, con­tudo esta conserva o poder de as seguir ou com­bater. Por onde, a impressão dos corpos celes­tes, na medida em que podem imutar as virtu­des inferiores, alcança menos a vontade, causa próxima dos atos humanos, que o intelecto. Admitir, pois, que os corpos celestes são causa dos atos humanos, é opinião própria dos que dizem que o intelecto não difere dos sentidos. Assim, um deles dizia: a vontade dos homens é tal qual o pai dos homens e dos deuses a causa, cada dia. Ora, como é certo que o intelecto e a vontade não são atos de órgãos corpóreos, impossível é sejam os corpos celestes a causa dos atos humanos.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — As substâncias espirituais, que movem os cor­pos celestes, agem por certo sobre as corpóreas, mediante tais corpos; mas sobre o intelecto hu­mano agem imediatamente, iluminando, embora não possam imutar a vontade, como já se estabeleceu.
 
Resposta à segunda. — Assim como a mul­tiformidade dos movimentos corpóreos se reduz, como à causa, à uniformidade dos movimentos celestes, assim a multiformidade dos atos do intelecto e da vontade se reduz ao princípio uniforme, que são o intelecto e a vontade de Deus.
 
Resposta à terceira. — A maior parte dos homens seguem as paixões, movimentos sensiti­vos do apetite, para as quais podem concorrer os corpos celestes; ao passo que são poucos os prudentes, que resistem a tais paixões. E por isso os astrólogos, na maioria dos casos, podem predizer a verdade; e, sobretudo, em comum. Não porém em especial, porque nada impede que um homem, com o livre arbítrio, resista às paixões. Por onde, os próprios astrólogos di­zem, que o homem prudente domina os astros, na medida em que domina as paixões próprias.

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