Category: Santo Tomás de Aquino
(Qu. De Anima, a. 13, ad 10).
O quarto discute-se assim. ― Parece que não há nenhuma ordem entre as potências da alma.
1. ― Pois, entre coisas compreendidas na mesma divisão não há anterior nem posterior, mas simultaneidade. Ora, as potências da alma se compreendem na mesma divisão. Logo, não há entre elas, nenhuma ordem.
2. Demais. ― As potências da alma se referem aos objetos e à alma mesma. Mas, por parte da alma, que é una, não há entre elas nenhuma ordem; do mesmo modo, nem por parte dos objetos, que são diversos e completamente diferentes uns dos outros, como se vê pela cor e pelo som. Logo, não há uma ordem entre as potências da alma.
3. Demais. ― Em potências ordenadas, a operação de uma depende da de outra. Ora, o ato de uma potência da alma não depende do ato de outra j pois, a visão pode se atualizar sem a audição e vice-versa. Logo, não há uma ordem entre as potências da alma.
Mas, em contrário, o Filósofo compara as partes ou potências da alma com as figuras: Ora, estas têm uma ordem entre si. Logo, também aquelas.
Solução. ― Sendo a alma una, e as potências, várias; e sendo numa certa ordem que se passa da unidade para a multidão, necessário é que haja uma ordem entre as potências da alma. Ora, descobre-se entre elas, tríplice ordem, das quais, duas dizem respeito à dependência de uma potência da outra; e a terceira diz respeito à ordem dos objetos. Ora, de dois modos se pode considerar a dependência de uma faculdade, de outra: segundo a ordem de natureza, pela qual os seres perfeitos são naturalmente anteriores aos imperfeitos; e segundo a ordem da geração e do tempo, pela qual se passa do imperfeito para o perfeito. ― Conforme, pois, a primeira ordem das potências, as intelectivas são anteriores às sensitivas e, por isso, dirigem-nas e governam-nas. E semelhantemente,as sensitivas, conforme esta mesma ordem, são anteriores às potências da alma vegetativa; Conforme, porém, a segunda ordem, as coisas se passam inversamente. Pois, as potências da alma vegetativa são anteriores, na via da geração, às da alma sensitiva e, por isso, preparam o corpo para as atividades destas. E, semelhantemente, o mesmo se passa com as potências sensitivas em relação às intelectivas. ― Por fim, conforme a terceira ordem, certas forças sensitivas se ordenam umas para as outras, a saber, a visão, a audição e o olfato. Pois, o visível é naturalmente o que é primeiro, por ser comum aos corpos superiores e aos inferiores; ao passo que o som é perceptível no ar, o qual é naturalmente anterior à mistura dos elementos, de que depende o odor.
Donde a resposta à primeira objeção. ― As espécies de um gênero estão entre si por anterioridade e posterioridade, como os números e as figuras, quanto ao ser; embora se considerem simultâneas enquanto recebem a predicação do gênero comum.
Resposta à segunda. ― A ordem entre as potências da alma provém da alma que, segundo certa ordem, se inclina para diversos atos, embora seja una por essência; e também procede dos objetos, bem como dos atos, conforme já se disse.
Resposta à terceira. ― A objeção procede, só quanto às potências entre as quais há ordem conforme ao terceiro modo. Porém as potências ordenadas conforme os outros dois modos, comportam-se entre si de modo que o ato de uma depende da outra.
(Qu. De Anima, a. 13; II De Anima, lect IV).
O terceiro discute-se assim. ― Parece que as potências ativas não se distinguem pelos seus atos e objetos.
1. ― Pois, nada do que é posterior ou extrínseco pode determinar um ser especificamente. Ora, o ato é posterior à potência; e o objeto é extrínseco. Logo, não podem determinar especificamente as potências ativas.
2. Demais. ― Os contrários diferem em máximo grau. Se, pois, as potências ativas se distinguissem pelos seus objetos, resultaria não terem os contrários à mesma potência ativa, o que, de ordinário, é evidentemente falso quase sempre; assim, a mesma potência visiva vê o branco e o preto, o mesmo gosto sente o doce e o amargo.
3. Demais. ― Removida a causa, removido fica o efeito. Se, pois, a diferença das potências ativas resultasse da dos objetos, o mesmo objeto não pertenceria a diversas potências, o que, evidentemente é falso, pois, o mesmo que a potência cognoscitiva conhece, a apetitiva deseja.
4. Demais. ― O que por si causa alguma coisa causa-a totalmente. Mas, certos objetos diversos há que, pertencendo a diversas potências, pertencem também a uma só potência; p. ex., o som e a car pertencem à visão e à audição, potências ativas diversas; e contudo pertencem também à potência una do senso comum. Logo as potências ativas se não distinguem pela diferença dos objetos.
Mas, em contrário. ― O que é posterior se distingue pelo que é anterior. Ora, o Filósofo diz, que os atos e as operações são, por natureza anteriores às potencias; e, além disso, anteriores aos atos são os seus opostos ou objetos. Logo, as potencias se distinguem pelos seus atos e objetos.
Solução. ― A potência, como tal, sendo ordenada para o ato, é necessário que a noção dela seja deduzida do ato para o qual está ordenada; e, por conseqüência, é forçoso que a noção de potência se diversifique pela da do ato. Ora, a noção de ato se diversifica pela noção diversa de objeto. Mas, toda ação ou é de uma potência ativa ou de uma passiva. Ora, o objeto está para o ato da potência passiva como princípio e causa motora; assim a cor, enquanto move a vista é princípio da visão. Porém o objeto está para o ato da potencia ativa como termo e fim; assim, objeto da virtude aumentativa é o todo completo que é o fim do aumento. Ora, estes dois fatores, a saber o princípio e fim ou termo, é que especificam a ação. Assim, a calefação difere do resfriamento em que, aquela passa do cálido, i. é., ativo para o cálido, e, este do frio para o frio. Por onde, é forçoso que as potências se diversifiquem pelos seus atos e objetos.
Mas, todavia, deve considerar-se que o acidental não diversifica a espécie. Não é porque o animal pode ter uma certa cor, que as espécies animais se diversificariam por essa diferença. Mas diversificam-se pela diferença que é essencial ao animal, i. é., pela da alma sensitiva, ora dotada de razão, ora sem ela; e, por isso, racional e irracional são as diferenças que separam os diferentes animais, constituindo-os em diversas espécies. Assim, pois, não é uma diversidade qualquer dos objetos que diversifica as potências da alma, mas a diferença do objeto ao qual a potência, em si, se refere. Assim, o sentido, em si, diz respeito à qualidade passível que, em si, se divide em cor, som e qualidades semelhantes; por onde, uma é a potência sensitiva da cor, a saber, a visão, e outra a do som, a saber, a audição. Mas à qualidade passiva, p. ex., a de um ser colorido, pode acidentalmente convir ser músico ou gramático, grande ou pequeno homem ou pedra. E, portanto, por semelhantes diferenças as potências da alma se não distinguem.
Donde a resposta à primeira objeção. ― Embora o ato seja, pelo ser, posterior a potencia, é-lhe contudo anterior pelo ato cognitivo e pela noção, como o fim, no agente. Porém o objeto, embora seja extrínseco, é contudo o princípio ou o fim da ação. Ora, tudo quanto for intrínseco a uma ação deve se proporcionar ao princípio e ao fim.
Resposta à segunda. ― Se uma potência tivesse em si, um dos contrários, como seu objeto, seria necessário que outra tivesse outro. As potências da alma porém não dizem respeito, em si, à noção própria de contrário, mas à comum de cada um deles; assim, a visão não diz respeito, em si, à noção de branco, mas à de cor. E isto, porque um dos contrários encerra de certo modo a noção do outro, estando um para o outro como o perfeito para o imperfeito.
Resposta à terceira. ― Nada impede que um mesmo objeto seja relativo a noções diversas, podendo, portanto, pertencer a potências diversas da alma.
Resposta à quarta. ― A potência superior abrange uma noção mais universal do objeto do que a potência inferior; pois, quanto mais superior é a potência tanto maior extensão tem, em relação aos objetos. Por onde, muitos objetos sobre os quais se estende, em si, a potência superior, entram na mesma noção e, todavia, diferem pelas noções sobre as quais se exercem, por si, as potências inferiores. Donde vem o pertencerem objetos diversos a diversas potências inferiores, os quais, todavia, estão sujeitos à potência superior.
O segundo discute-se assim. ― Parece que não há várias potências ativas da alma.
1. ― Pois, a alma intelectiva é a que maior semelhança tem com Deus. Ora, em Deus, a potência é una e simples. Logo, também na alma intelectiva.
2. Demais. ― Mais a virtude é superior e mais é unificada. Ora, a alma intelectiva excede, pela virtude, todas as outras formas. Logo, deve, em máximo grau, ter uma só virtude ou potência ativa.
3. Demais. ― Operar é próprio do que existe em ato. Ora, é pela mesma essência da alma que o homem tem o ser, segundo os diversos graus de perfeição, como antes já se demonstrou (q. 76, a. 3, 4). Logo, pela mesma potência ativa da alma opera as diversas operações dos diversos graus.
Mas, em contrário, o Filósofo admite várias potências ativas da alma.
Solução. ― É necessário admitirem-se várias potências ativas da alma; o que se evidencia considerando, como diz o Filósofo, nos seres ínfimos, que não podem, com poucos movimentos, conseguir a bondade perfeita, mas só algumas das imperfeitas. Porém, os seres superiores a estes alcançam a bondade perfeita, com muitos movimentos. E são ainda superiores a estes últimos os que a alcançam com poucos. Mas, a suma perfeição é a dos seres que, sem movimento, possuem a bondade perfeita. Do mesmo modo, é infimamente dotado para a saúde quem não pode conseguí-la perfeitamente, mas só parcialmente, com o uso de poucos remédios; melhor dotado é quem pode conseguir a saúde perfeita, mas com muitos remédios; ainda melhor quem a consegue com poucos remédios; e otimamente dotado quem a tem sem nenhum remédio. Por onde, devemos admitir que os seres inferiores ao homem alcançam certos bens particulares e, portanto, exercem algumas poucas e determinadas operações e virtudes. Porém o homem pode conseguir a bondade universal e perfeita, porque pode alcançar a beatitude. Estando, porém, no último grau dos seres, que, por natureza, são capazes da beatitude, necessita a alma humana de muitas e diversas operações e virtudes. Ao passo que, nos anjos, há menor diversidade de potências ativas; e em Deus não há nenhum potência, ou ação além da essência. ― Mas há ainda outra razão por que a alma humana abunda em diversidade de potências, a saber, por estar nos confins das criaturas espirituais e corporais; e, por isso, nela concorrem às virtudes de umas e de outras.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A alma intelectiva se aproxima da semelhança com Deus, mais do que as criaturas inferiores, pelo fato mesmo de poder conseguir a bondade perfeita, embora por muitas e diversas operações; sendo por aí, inferior às criaturas superiores.
Resposta à segunda. ― A virtude unificada é superior se se aplicar a coisas iguais; mas a virtude multiplicada é superior se mais coisas lhe estiverem sujeitas.
Resposta à terceira. ― O mesmo ente tem um só ser substancial, embora possa exercer operações diversas. Por onde, é Uma só a essência da alma, mas são várias as potências ativas.
(Supra, q. 54, a. 3: I Sent., dist. III. q, 4, a. 2; Se Spirit. Creat., a. 11; Quodl. X. q. 3, a. 1; Qu. De Anima, a. 12).
O primeiro discute-se assim. ― Parece que a essência mesma da alma não é potência ativa desta.
1. ― Pois, diz Agostinho: o espírito, o conhecimento e o amor estão, na alma, substancialmente, ou, por assim dizer, essencialmente; e ainda: a memória, a inteligência e a vontade são uma só vida, uma só inteligência e uma só essência.
2. Demais. ― A alma é mais nobre que a matéria prima. Ora, esta é potência de si mesma. Logo, com maioria de razão, a alma.
3. Demais. ― A forma substancial é mais simples que a acidental; e a prova é que ela não aumenta nem diminui, mas permanece indivisível. Ora, a forma acidental é virtude de si mesma. Logo, com maioria de razão, a substancial, que é a alma.
4. Demais. ― Pela potência sensitiva, sentimos; e, pela intelectiva, inteligimos. Ora é pela alma que, primariamente, sentimos e inteligimos, segundo o Filósofo. Logo, a alma é potência de si mesma.
5. Demais. ― O que não pertence à essência de uma coisa é acidente. Se, pois, a potência da alma é ulterior à essência da mesma, segue-se que é acidente; o que vai contra Agostinho, quando diz, que as qualidades preditas não estão na alma como sujeito, ao modo da cor ou da figura, no corpo, ou doutra qualquer qualidade ou quantidade; pois, tudo o que é desta natureza não excede o sujeito em que está. Ora, o espírito pode também conhecer e amar outras coisas.
6. Demais. ― A forma simples não pode ser sujeito. Ora, a alma, não sendo composta de matéria e forma, como já se demonstrou antes (q. 75, a. 5), é forma simples. Logo, a potência da alma não pode estar em si mesma como num sujeito.
7. Demais. ― O acidente não é princípio substancial da diferença. Ora, o sensível e o racional são diferenças substanciais e se radicam no sentido e na razão, potências da alma. Logo, estas não são acidentes e, portanto, são a essência da mesma.
Mas, em contrário, diz Dionísio: os espíritos celestes se dividem em essências, virtude e operação. Portanto, com maioria de razão, na alma, uma coisa é a essência e outra, a virtude ou potência.
Solução. ― É impossível admitir que a essência da alma seja potência da mesma, embora alguns assim o ensinassem. O que se demonstra de duplo modo, quanto ao ponto em discussão. ― Primeiro, porque, dividindo-se o ser e qualquer gênero do ser em potência e ato, necessário ê que a potência e o ato sejam referidos ao mesmo gênero; por onde, se o ato não pertencer ao gênero da substância, a potência, que a ele se refere, não pode pertencer a esse gênero. Ora, a operação da alma não está no gênero da substância, salvo em Deus, do qual a operação é a própria substância. Por onde, a potência de Deus, princípio da operação, é a essência mesma dele. O que não pode ser verdadeiro, nem da alma, nem de qualquer criatura, como já antes se disse também do anjo (q. 54, a. 3). ― Segundo, tal é também impossível, quanto à alma, que é, por essência, ato. Se, pois, a essência mesma da alma fosse princípio imediato de operação, quem tivesse sempre alma, exerceria em ato as operações da vida; assim como, quem sempre têm alma é vivo em ato. Como forma, pois, a alma não é um ato ordenado a outro ato ulterior, mas é o último termo da geração. Por onde, não é pela essência, enquanto quanto forma, mas pela potência, que a alma é potencial em relação a outro ato. E assim, enquanto submetida à sua potência, ela se chama ato primeiro, ordenado ao ato segundo; pois, como se verifica, quem tem alma nem sempre exerce, em ato, as operações da vida. Por onde, na definição da alma se diz que é o ato do corpo tendo a vida em potência, cuja potência, todavia, não exclui a alma. Logo, conclui-se que a essência da alma não é potência da mesma, pois nada que seja ato pode estar em potência atual.
Donde a resposta à primeira objeção. ― Agostinho se refere ao espírito enquanto se conhece e se ama. Assim, pois, o conhecimento e o amor, enquanto referidos à alma, como conhecida e amada, nela estão substancial ou essencialmente; porque a substância mesma ou essência da alma é que é conhecida e amada.E do mesmo modo se deve entender o que diz, noutro passo, que são a mesma vida, o mesmo espírito, a mesma essência. ― Ou, como dizem alguns, essa maneira de falar é verdadeira quanto ao modo pelo qual o todo potencial, meio entre o todo universal ti o integral, se predica das suas partes. Pois, o todo universal está, na sua essência e virtude totais, em qualquer das partes, como p. ex., animal, no homem e no cavalo; e, por isso, ele se predica propriamente, de cada parte. Porém, o todo integral não está em qualquer das partes, nem quanto à essência nem quanto à virtude totais; e, portanto, de nenhum modo se predica de cada parte; mas de certo modo, embora impropriamente, de todas simultaneamente; como se p. ex., dissermos que a parede, o teto e os alicerces são a casa. O todo potencial, enfim, está em cada uma das partes quanto à essência total, mas não quanto à virtude total; e, portanto, pode, de certo modo, predicar-se de qualquer das partes, mas não tão propriamente como o todo universal. E deste modo Agostinho diz, que a memória, a inteligência e a vontade são a essência mesma da alma.
Resposta à segunda. ― O ato, em relação ao qual a matéria prima é potencial, é a forma substancial; por onde, a potência da matéria não difere da essência da mesma.
Resposta à terceira. ― A ação, bem como o ser, é próprio do composto; pois, age o que existe. Ora, o composto tem pela forma substancial, o ser, substancialmente; e pela virtude, resultante da forma substancial, opera. Por onde, a forma acidental ativa, p. ex., o calor, está para a forma substancial do agente, a forma do fogo, assim como a potência da alma está para a alma.
Resposta à quarta. ― O fato mesmo de ser a forma acidental princípio de ação, resulta da forma substancial; por onde, esta é o princípio primeiro, embora não próximo da ação. E neste sentido o Filósofo diz que a alma é que nos faz inteligir e sentir.
Resposta à quinta. ― Se se entende por acidente o que se opõe, na divisão, à substância, então não pode haver entre eles nenhum termo médio; pois, se dividem relativamente à afirmação e à negação, i. é., relativamente ao estar e ao não estar num sujeito. E, deste modo, não sendo a potência da alma a essência da mesma, necessário é seja acidente e se compreenda na segunda espécie da qualidade. Se, porém, se se considerar o acidente como um dos cinco universais, então, haverá entre ele e a substância um termo médio. Porque, à substância pertence tudo o que é essencial à coisa. Ora, nem tudo o que for exterior à essência se poderá considerar como acidente, neste sentido, mas só o que não for causado pelos princípios essenciais da espécie. Assim, o próprio não é da essência da coisa, mas é causado pelos princípios essenciais da espécie; e, por isso, é meio termo entre a essência e o acidente, no sentido presente. E, deste modo, as potências da alma podem ser consideradas médias entre a substância e acidente, sendo como que propriedades naturais à alma. ― E o dito de Agostinho, que o conhecimento e o amor não estão na alma como os acidentes no sujeito, entende-se ao modo supra-referido, enquanto se comparam com a alma, sendo esta, não amante e conhecente, mas amada e conhecida. E, neste sentido, a sua prova é procedente; porque, se o amor estivesse na alma amada como num sujeito, seguir-se-ia que o acidente transcenderia o seu sujeito, pois, há ainda outras coisas amadas pela alma.
Resposta à sexta. ― A alma, embora não composta de matéria e forma, tem, contudo, algo de mistura com a potencialidade, como já se disse antes (q. 75, a. 5 ad 4). E, por isso, pode ser considerada sujeito do acidente. Porém, a proposição aí empregada realiza-se em Deus, ato puro; e nesta matéria é que Boécio a usou.
Resposta à sétima. ― O racional e o sensível, como diferenças, não se radicam nas potências do sentido e da razão, mas na alma sensitiva e racional mesma. Como, porém, as formas substanciais, em si, desconhecidas de nós, são conhecidas pelos acidentes, nada impede tomemos, por vezes, os acidentes pelas diferenças substanciais.
Em seguida deve-se tratar do que se refere às potências da alma. Primeiro, em geral. Segundo, em especial.
Sobre o primeiro ponto, oito artigos se discutem:
O nono discute-se assim. — Parece que os anjos beatos podem progredir na beatitude.
1. — Pois, a caridade é o princípio do mérito. Ora, os anjos têm a caridade perfeita. Logo, os anjos beatos podem merecer. Ora, crescendo com o mérito o prêmio da beatitude, os anjos beatos podem progredir nesta.
2. Demais. — Agostinho diz que Deus usa de nós para a nossa utilidade e para a sua bondade; e semelhantemente, dos anjos, dos quais usa nos ministérios espirituais, pois eles são espíritos administradores, mandados ao ministério por causa dos que recebem a herança da salvação, conforme a Escritura. Ora, isso em nada lhes seria útil, se por aí não merecessem nem progredissem na beatitude. Conclui-se, portanto, que os anjos beatos podem merecer e progredir na beatitude.
3. Demais. — Só por imperfeição não pode progredir aquele que não está no sumo grau. Ora, neste grau não estão os anjos. Logo, se não podem progredir, resulta que há neles imperfeição e defeito, o que é inconveniente.
Mas, em contrário, merecer e progredir é próprio do estado do viandante. Ora, os anjos não são viandantes, mas compreensores. Logo, os anjos beatos não podem merecer e nem progredir na beatitude.
Solução. — Em qualquer momento, a intenção do motor visa um fim determinado, ao qual pretende conduzir o móvel; pois, a intenção visa o fim, ao qual repugna o processo ao infinito. Ora, é manifesto, não podendo a criatura racional atingir a beatitude, consistente na visão de Deus, pela sua virtude, como resulta do supradito, ela necessita ser conduzida por Deus à beatitude. Logo, é forçoso haver algo de determinado ao que qualquer criatura racional seja dirigida, como ao último fim. Mas, esse algo determinado não pode se referir, na visão divina, ao objeto mesmo visto, pois a sua verdade é contemplada, em graus diversos, por todos os bem-aventurados. Porém, quanto ao modo da visão, o termo é de diversos modos prefixado, segundo a intenção do dirigente ao fim. Pois, por ser a criatura racional levada a ver a suma essência, não é possível seja levada ao sumo modo da visão, que é a compreensão, modo que só a Deus pode convir, como resulta do sobredito. Mas, sendo necessária eficácia infinita para compreender a Deus, e a eficácia da criatura na visão, não podendo ser senão finita, de infinitos modos, mais ou menos claramente, pode a criatura racional inteligir a Deus, dado que qualquer finito diste, em infinitos graus, do infinito. E como a beatitude consiste na visão mesma, assim o grau daquela consiste num certo modo desta. Portanto, toda criatura racional é conduzida por Deus ao fim da beatitude, de modo a alcançar um certo grau desta, por predestinação divina; e conseguido esse grau, não pode atingir outro mais elevado.
Donde a resposta à primeira objeção. — O merecer é próprio do que se move para um fim. Ora, a criatura racional move-se para um fim, não somente padecendo, mas também operando. E se esse fim estiver ao alcance da sua operação, esta se considera aquisitiva do fim; assim o homem, meditando, adquire a ciência. Se porém o fim não lhe estiver ao alcance, mas for esperado em virtude de outro, a operação será meritória do fim. Mas, ao que está no último termo não lhe convém o mover-se, mas o ser movido. Por onde, da caridade imperfeita, que é a da via, é próprio o merecer; porém, da perfeita é o próprio, não o merecer, mas fruir do prêmio. Do mesmo modo que, nos hábitos adquiridos, a operação precedente ao hábito é aquisitiva deste; porém, a proveniente do hábito já adquirido é a operação perfeita acompanhada do prazer. E semelhantemente, o ato da caridade perfeita não tem a natureza do mérito, mas, antes, pertence à perfeição do prêmio.
Resposta à segunda. — De dois modos se diz que uma coisa é útil. De um, como via para o fim; assim é útil o mérito da beatitude. De outro, como a parte é útil ao todo; assim as paredes, à casa; e deste modo, os ministérios dos anjos são úteis aos anjos beatos, enquanto parte da beatitude deles; pois é da natureza do perfeito, como tal, difundir em outros a perfeição adquirida.
Resposta à terceira. — Embora o anjo beato não esteja, no sumo grau da beatitude absoluta, está todavia no último, quanto a si mesmo, por predestinação divina. Contudo, a alegria dos anjos pode ser aumentada por causa da salvação dos salvos, pelo ministério deles, conforme a Escritura: Haverá júbilo entre os anjos de Deus por um pecador que faz penitência. Mas essa alegria respeita o prêmio acidental, que certamente pode aumentar até o dia do juízo. De onde vem o dizerem certos que os anjos também podem merecer, quanto ao prêmio acidental. Melhor, porém é dizer-se que o bem-aventurado de nenhum modo pode merecer, a menos que não seja simultaneamente viador, como Cristo que, único, foi viador e compreensor. Ora, a alegria predita é, antes, adquirida do que merecida em virtude da beatitude.
(I Sent., dist. VIII, q. 5, a. 3; II Cont. Gent., cap. LXXII; De Spirit Creat., a. 4; Qu. De Anima, a. 10).
O oitavo discute-se assim. ― Parece que a alma não está toda em qualquer parte do corpo.
1. ― Pois, o Filósofo diz: não é necessário que a alma esteja em cada parte do corpo; mas, existindo num certo princípio do mesmo, faz viver as outras partes; pois, é-lhes simultaneamente natural executarem o movimento próprio, pela natureza.
2. Demais. ― A alma está no corpo de que é ato. Ora, é ato do corpo orgânico. Logo, só neste pode estar. E como não é qualquer parte do corpo humano que é corpo orgânico, a alma não está toda em qualquer parte do corpo.
3. Demais. ― Aristóteles diz, que uma parte da alma está para uma parte do corpo assim como o sentido da vista para a pupila; e assim, a alma toda, para o corpo todo do animal. Se, portanto, toda ela está em qualquer parte do corpo, resulta que qualquer parte do corpo é animada.
4. Demais. ― Todas as potências da alma fundam-se na essência mesma da alma. Se, pois, a alma está toda em qualquer parte do corpo, resulta que todas as potências da alma estão em qualquer parte do corpo; e assim, a visão estará nos ouvidos e a audição nos olhos, o que é inadmissível.
5. Demais. ― Se em qualquer parte do corpo estivesse toda a alma, qualquer delas dependeria imediatamente da alma. Logo, uma parte não dependeria de outra, nem seria mais importante uma que outra, o que é manifestamente falso. Logo, a alma não está toda em qualquer parte do corpo.
Mas, em contrário, diz Agostinho: a alma, em qualquer corpo, está toda em todo ele e toda em qualquer das partes dele.
SOLUÇÃO. ― Como já se disse em outros artigos, se a alma estivesse unida ao corpo só como motor, poder-se-ia dizer que não estaria em qualquer parte do corpo, mas só numa, pela qual movesse as outras. ― Mas, estando unida ao corpo corno forma, necessário é que esteja no todo e em qualquer parte do corpo, pois, não é forma acidental do corpo, mas substancial. Ora, esta é a perfeição não só do todo, mas de qualquer das partes. E como o todo consiste em partes, a forma daquele, que não der o ser a cada uma destas, é um todo de composição e ordem, como a forma de uma casa; e tal forma é acidental. Ora, sendo a alma forma substancial, necessário é que seja a forma e o ato, não só do todo, mas de cada parte. Por onde, separada a alma, assim corno já não se poderá falar de animal ou homem, senão equivocamente, como se fala de um animal pintado ou de pedra; assim também não se poderá dizer tal das mãos, dos olhos, da carne ou dos ossos, segundo o Filósofo. E a prova está em que, separada a alma, nenhuma parte do corpo tem ação própria, porque tudo o que conserva a espécie conserva-lhe a operação. Ora, o ato está no ser de que é ato. Por onde, é necessário que a alma esteja em todo o corpo e em qualquer parte dele.
E que em qualquer dessas partes está toda, pode-se deduzir das considerações seguintes. Sendo todo o que se divide em partes, há uma tríplice totalidade correspondendo a tríplice divisão. Assim, há um todo que se divide em partes quantitativas, como toda a linha ou todo o corpo. Há outro que se divide nas partes da noção e da essência, como o definido, nas partes da definição, e o composto se resolve na matéria e na forma. Há ainda um terceiro todo, potencial, que se divide em partes virtuais.
Ora, o primeiro modo de totalidade só por acidente poderá convir às formas; e só àquelas formas que tenham inclinação indiferentemente para o todo quantitativo e suas partes; assim, à brancura, por natureza, é igualmente indiferente o estar em toda a superfície e em qualquer parte da mesma; e portanto, dividida esta, a brancura se divide por acidente. Mas a forma corno a alma, sobretudo a dos animais perfeitos, que requer a diversidade das partes, não se relaciona igualmente com o todo e com as partes; por onde, não se divide por acidente, i. é., pela divisão da quantidade. Logo, a totalidade quantitativa não pode ser atribuída à alma, nem em si, nem por acidente. Mas, a totalidade da segunda espécie considerada segundo a perfeição da noção e da essência, convém propriamente e por si às formas. Semelhantemente, também a totalidade virtual, pois, a forma é princípio de operação.
Se, portanto, se perguntasse se a brancura está toda na superfície e em qualquer parte desta, seria necessário distinguir; porque, se se trata da totalidade quantitativa que a brancura têm por acidente, então, não estaria toda em qualquer parte da superfície. E o mesmo se deve dizer da totalidade virtual; pois, mais pode ferir a vista a brancura que está em toda a superfície, do que a que está em alguma partícula dela. Mas se se trata da totalidade da espécie e da essência, toda a brancura está em qualquer parte da superfície.
Mas como a alma não têm totalidade quantitativa, nem em si nem por acidente, como já se disse, basta dizer que a alma está toda em qualquer parte do corpo, quanto à totalidade da perfeição e da essência; não, porém, quanto à totalidade da virtude, porque está em qualquer parte do corpo, não por qualquer potência sua, mas, pela visão, nos olhos, pela audição, nos ouvidos e assim por diante.
Contudo, deve-se considerar que a alma, requerendo diversidade de partes, não se compara, do mesmo modo, com o todo e com as partes; mas, com o todo, primariamente e por si, como com o perfectível próprio e proporcionado; com as partes, porém, por posterioridade, enquanto elas se ordenam para o todo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― O Filósofo trata da potência motora da alma.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― A alma é o ato do corpo orgânico, como do perfectível primeiro e proporcionado.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― O animal se compõe da alma e de todo o corpo, que é o seu perfectível primeiro e proporcionado. Ora, assim, a alma não está na parte e não é necessário que à parte do animal seja o animal.
RESPOSTA À QUARTA. ― Da potências da alma, umas excedem toda a capacidade do corpo, a saber, a inteligência e a vontade; e de tais potências não se diz que estejam em alguma parte do corpo. Porém, outras potências são comuns à alma e ao corpo; e não é necessário que qualquer dessas potências esteja em toda parte onde está a alma, mas só na parte do corpo que for proporcionada à operação de tal potência.
RESPOSTA À QUINTA. ― Diz-se que uma parte do corpo é mais importante que outra, por causa das potências diversas de que são órgãos partes do corpo; assim, o órgão da potência mais importante é parte mais importante do corpo; ou ainda, é parte mais importante aquela que a essa mesma potência serve de maneira mais importante.
(II Sent., dist. I, q. 2, a. 4, ad 3; II Cont. Gent., cap. LXXI; De Spirit.Creat., a. 3; Qu. De Anima, a. 9; II De Anima, lect. I; VIII Metaphys., lect.V).
O sétimo discute-se assim. ― Parece que a alma está unida ao corpo do animal mediante algum outro corpo.
1. ― Pois, diz Agostinho, a alma governa o corpo pela luz, i. é, pelo fogo e pelo ar, corpos os mais semelhantes ao espírito. Ora, sendo corpos o fogo e o ar, a alma está unida ao corpo humano mediante outro corpo.
2. Demais. ― Aquilo que, eliminado, dissolve a união de dois seres unidos, deve ser considerado como o termo médio entre eles. Ora, faltando o espírito, a alma separa-se do corpo. Logo, o espírito, que é um corpo sutil, é o termo médio entre a união do corpo e da alma.
3. Demais. ― Seres muito distantes entre si não se unem senão por um ser médio. Ora, a alma intelectiva dista muito do corpo, tanto por ser incorpórea como por ser incorruptível. Logo, resulta que com ele está unida, mediante algum corpo incorruptível, considerado como sendo uma luz celeste, que concilia os elementos e os reduz à unidade.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, não se deve perguntar nem se o corpo e a alma são um só ser, nem se o são a cera e a sua forma. Mas, assim como a forma se une à cera, sem a mediação de nenhum corpo, assim a alma ao corpo.
SOLUÇÃO. ― Se a alma, segundo os Platônicos, estivesse unida ao corpo somente como motor, seria necessário admitir entre a alma do homem, ou de qualquer animal, e o corpo, a intervenção de outros corpos médios; pois, é da natureza do motor mover um corpo distante por outros médios, mais próximos. ― Se, porém, a alma se une ao corpo como forma, segundo já foi dito (a. 1), é impossível se faça essa união, mediante qualquer outro corpo. E a razão é que um ser é uno do mesmo modo pelo qual é ser. Ora, a forma, sendo essencialmente ato, atualiza por si mesma um ser, sem precisar de nenhum meio. Por onde, a unidade da coisa, composta de matéria e forma, provém da forma mesma que, em si, se une à matéria como ato desta. Nem há nenhum outro ser que una, senão o agente, que atualiza a matéria, como diz Aristóteles.
Donde resulta a falsidade das opiniões daqueles que supuseram corpos médios entre a alma e o corpo do homem. ― Desses, certos Platônicos ensinavam que a alma intelectiva está naturalmente unida a um corpo incorruptível do qual nunca se separa e, mediante esse, se une ao corpo corruptível do homem. Outros, porém, diziam que se une ao corpo mediante o espírito corpóreo. ― Outros, ainda, que se une mediante a luz que consideravam com corpo e com a natureza da quinta essência; de modo que, a alma vegetativa se une ao corpo, mediante a luz do céu sidéreo; a sensível, mediante a do céu cristalino; a intelectual, mediante a do céu empíreo. Coisas que são fictícias e ridículas; porque a luz não é corpo; porque, a quinta essência, sendo inalterável, não entra materialmente, mas só virtualmente, na composição do corpo misto; e porque a alma, como a forma à matéria, une-se imediatamente ao corpo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Agostinho se refere à alma enquanto move o corpo e, por isso, usa da palavra governo. E é verdade, que ela move as partes mais grosseiras do corpo pelas mais sutis; e o primeiro instrumento da virtude motora é o espírito, como diz o Filósofo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― Faltando o espírito, desaparece a união da alma e do corpo; não que, por isso, ele seja médio entre ambos, mas porque desaparece a disposição pela qual o corpo está preparado para tal união. E, contudo, o espírito é meio no mover, como primeiro instrumento do movimento.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A alma dista muito do corpo se se considerarem separadamente as condições de um e de outro. Por onde, se cada qual tivesse existência separada, seria necessária a intervenção de muitos corpos médios. Mas, como forma do corpo, a alma não têm o ser separado do ser do corpo, mas une-se imediatamente, pelo seu ser, com ele. Assim, pois, também qualquer forma, considerada como ato, dista imenso da matéria, ente somente potencial.
(II Cont. Gent., cap. LXXI; De Spirit. Creat., a. 3; Qu. De Anima, a. 9; II De Anima, lect. I; VIII Metaphs., lect. V).
O sexto discute-se assim. ― Parece que a alma intelectiva está unida ao corpo, mediante certas disposições acidentais.
1. ― Pois, toda forma está em matéria para si própria e disposta. Ora, as disposições para a forma são acidentes. Logo, é necessário se preintelijam, na matéria, certos acidentes, antes da forma substancial e, portanto, antes da alma, que é urna forma substancial.
2. Demais. ― Diversas formas da mesma espécie exigem partes diversas da matéria. Ora, estas não podem ser inteligidas, senão pela divisão das quantidades dimensivas. Logo, é necessário se intelijam dimensões, na matéria, antes das formas substanciais, que são muitas da mesma espécie.
3. Demais. ― O espiritual se une ao corpóreo pelo contacto de virtude. Ora, a virtude da alma é a sua potência. Logo, está unida ao corpo mediante a potência, que é um acidente.
Mas, em contrário, o acidente é posterior à substância, temporal e racionalmente, como diz Aristóteles. Logo, não se pode compreender haja na matéria alguma forma acidental anterior à alma, que é a forma substancial.
SOLUÇÃO. ― Se a alma estivesse unida ao corpo só como motor, nada impediria, antes, seria necessário existir certas disposições médias entre a alma ,e o corpo, a saber: a potência, por parte da alma, com a qual moveria o corpo; e certa disposição, por parte do corpo, que o fizesse movido da alma. ― Mas se a alma intelectiva está unida ao corpo, como forma substancial, segundo ficou dito antes (a. 1), é impossível haver qualquer disposição acidental entre o corpo e a alma, ou entre qualquer forma substancial e a sua matéria. E a razão disto é que, sendo a matéria potencial, em relação a todos os atos, numa certa ordem, é necessário que se suponha, em primeiro lugar, na matéria, aquele, dentre os atos, que for o primeiro absolutamente. Ora, o primeiro de todos os atos é o ser. Logo, é impossível supor a matéria como cálida ou quantitativa, antes de ter o ser em ato. Ora, este ela o tem pela forma substancial, que dá o ser absolutamente, como já ficou dito (a. 4). Por onde, é impossível a preexistência, na matéria, de quaisquer disposições acidentais, anteriores à forma substancial e, por conseguinte à alma.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. . Como resulta do que já foi dito (a. 3, 4), a forma que é mais perfeita contém, virtualmente, tudo o que pertence às formas inferiores; e, portanto, existindo una e a mesma, aperfeiçoa a matéria segundo os diversos graus de perfeição. Ora é uma e essencialmente a mesma a forma pela qual o homem é ser atual, corpo, vivo, animal, homem. Pois, é manifesto, de cada gênero resultam os seus acidentes próprios. Por onde, como se supõe a matéria perfeita, quanto ao ser, antes de se lhe supor a corporeidade, e assim por diante; também se supõem os acidentes próprios ao ser, antes de supor-lhes a corporeidade. E, assim, pressupõem, na matéria, disposições anteriores à forma, não quanto ao seu efeito total, mas só quanto ao efeitos posteriores.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― As dimensões quantitativas são acidentes resultantes da corporeidade, que é própria a toda matéria. Por onde, a matéria já incluída na corporeidade e nas dimensões pode ser compreendida como distinta em partes diversas, recebendo, assim, formas diversas, segundo os graus ulteriores de perfeição. Pois, embora seja essencialmente a mesma a forma que atribui à matéria os diversos graus de perfeição, como já se disse, todavia difere, quanto à consideração da razão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― A substância espiritual, unida ao corpo só como motor, unida está só pela potência e pela virtude; mas a alma intelectiva está unida ao corpo, como forma, pelo seu ser; pois, governa-o e move-o pela sua potência e virtude.
(II. Sent., dist. 1, q. 2, a. 5; De Malo, q. 5, a. 5; Qu. De Anima, a. 8).
O quinto discute-se assim. ― Parece que a alma intelectiva não deve estar unida a um corpo humano.
1. ― Pois, a matéria deve ser proporcionada à forma. Ora, a alma intelectiva é forma incorruptível. Logo, não deve estar unida a um corpo corruptível.
2. Demais. ― A alma intelectiva é uma forma imaterial em sumo grau; e a prova é que tem operações que não participam da matéria corpórea. Ora, quanto mais sutil é o corpo tanto menos tem de material. Logo, a alma deveria estar unida a um corpo sutilíssimo, como o fogo, e não a um corpo misto e, sobretudo, terrestre.
3. Demais. ― Sendo a forma o princípio da espécie, de uma só forma não podem provir diversas espécies. Ora, a alma intelectiva é forma una. Logo, não deve estar unida a um corpo composto de partes de espécies dessemelhantes.
4. Demais. ― Uma forma mais perfeita deve estar unida a um corpo mais perfeito. Ora, a alma intelectiva é a mais perfeita das almas. Se pois, os corpos dos outros animais têm proteções naturais, como os pêlos, que lhes servem de vestes, e as unhas, de calçado; e se têm, também, armas naturais, como as unhas, os dentes e os chifres; conclui-se que a alma intelectiva não deveria estar unida a um corpo tão imperfeito, privado de tais auxílios.
Mas, em contrário, diz o Filósofo: a alma é o ato do corpo físico orgânico tendo a vida em potência.
SOLUÇÃO. ― Não existindo a forma pela matéria, mas, antes, a matéria pela forma, deve-se buscar, na forma, a razão de existir a matéria de tal ou tal modo, e não inversamente. Ora, a alma intelectiva, como já se estabeleceu antes (q. 55, a. 2), tem por ordem da natureza, o grau ínfimo, entre as substâncias intelectuais; pois, não tendo naturalmente infuso o conhecimento da verdade, como os anjos, deve hauri-la nas coisas divisíveis, por via dos sentidos, como diz Dionísio. Ora, a natureza não falta com o necessário a nenhum ser. E, por isso, a alma intelectiva deve ter não só a faculdade de inteligir, mas também a de sentir. E, como a ação dos sentidos não se realiza sem o instrumento corpóreo, é necessário esteja a alma intelectiva unida a um corpo, que possa ser o órgão conveniente dos sentidos. Ora, é necessário que o órgão do tacto seja o meio entre os contrários que ele apreende, a saber, o cálido e o frio, úmido e o seco e semelhantes; por isso, o tacto é potencial em relação a eles e pode senti-los. Donde, quanto maior igualdade de compleição tiver, tanto mais capaz de perceber será. Mas, a alma intelectiva tem, da maneira a mais completa, a virtude sensitiva, porque o inferior preexiste, mais perfeitamente, no superior, como diz Dionísio. Por onde, é necessário seja misto o corpo ao qual está unida a alma intelectiva, e possuindo, entre todos os outros, maior unidade de compleição. E é por isso que, entre todos os outros animais, o homem tem o melhor tacto; e, dentre os homens, os que têm melhor tacto têm melhor intelecto, sendo a prova que, os que são delicados de carne vemos serem bem dotados de inteligência, como diz o Filósofo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. . Talvez alguém quisesse responder a esta objeção, dizendo que o corpo do homem era incorruptível, antes do pecado. ― Mas essa resposta não seria suficiente; porque o corpo do homem era imortal, antes do pecado, não por natureza, mas pela graça divina; pois, do contrário, o pecado não o privaria da imortalidade, como não privou os demônios. ― E, portanto, deve-se responder diferentemente, que, na matéria, há uma dupla condição: uma escolhida para torná-la apta à forma, outra resultante necessariamente da disposição anterior. Assim, o artífice, para a forma da serra, escolhe matéria férrea, apta para cortar corpos duros; mas resulta necessariamente da matéria, que os dentes da serra possam embotar-se e ser roídos pela ferrugem. Assim, pois, à alma intelectiva é necessário um corpo de compleição uniforme. E, quanto a ser corruptível, isso resulta necessariamente da matéria. ― E, se alguém dissesse que Deus poderia ter evitado essa necessidade, responde-se que, na constituição das coisas naturais, não se considera o que Deus poderia fazer, mas sim o que exige a natureza das coisas, como diz Agostinho. Contudo, Deus proviu, ministrando, com o dom da graça, remédio contra a morte.
RESPOSTA À SEGUNDA. ― À alma intelectiva não é necessário o corpo para a operação intelectual em si mesma, mas para a virtude sensitiva, que exige um órgão de compleição uniforme. Por onde, é necessário seja a alma intelectiva unida ao corpo humano e não ao simples elemento ou ao corpo misto, no qual seria excessivo, quantitativamente, o fogo e não poderia haver uniformidade de compleição, por causa dessa virtude ígnea excessiva. Ora, o corpo humano, de uniforme compleição, tem uma certa dignidade, por estar longe dos contrários; e, por aí, assimila-se, de algum modo, ao corpo celeste.
RESPOSTA À TERCEIRA. ― As partes do animal, como os olhos, as mãos, a carne, os ossos e semelhantes, não estão especificamente no animal, mas sim o todo; e, por isso, propriamente falando, não se pode dizer que pertençam a espécies diferentes mas sim, a disposições diferentes. Ora, sendo a alma intelectiva, embora una em essência, múltipla em virtudes; por causa da sua perfeição, precisa, para as suas diversas operações, de disposições diversas, nas partes do corpo ao qual está unida. Por isso, vemos que a diversidade das partes é maior nos animais perfeitos do que nos imperfeitos e, nestes, que nas plantas.
RESPOSTA À QUARTA. ― A alma intelectiva, sendo compreensiva dos universais, tem faculdade para infinitas causas. E, por isso, a natureza não lhe podia estabelecer determinados conhecimentos naturais, ou ainda, determinados auxílios de defesa ou de proteção, como para os outros animais, cujas almas tem apreensão e virtudes determinadas para causas particulares. Mas, em lugar de tudo isso, o homem tem naturalmente a razão; e as mãos, órgãos dos órgãos, e com elas pode preparar para si instrumentos de modos infinitos e com infinitos efeitos.