Category: Revista Permanência 268
Pe. Luis Cláudio Camargo - FSSPX
“Naquele dia os montes destilarão doçura e das colinas manará leite e mel. Porque virá o grande Profeta que renovará Jerusalém. E tu, Belém, terra de Judá, não serás a menor, pois de ti sairá o Rei que virá para reger meu povo Israel”.
“Na Igreja latina – diz Dom Guéranger em seu livro “O ano litúrgico” – dá-se o nome de Advento ao tempo destinado pela Igreja à preparação dos fiéis para a celebração da Festa do Natal, aniversário do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. O mistério deste grande dia merecia, sem dúvida, um prelúdio de oração e penitência. Contudo, é impossível assinalar com precisão a instituição primeira deste tempo de preparação, que recebeu mais tarde o nome de Advento”.
O Advento é, então, o tempo da preparação para a vinda de Nosso Senhor. Tempo de preparação, de espera, de penitência curiosamente misturada com alegria.
Santo Tomás, em um sermão que pronunciou no 1º Domingo de Advento, em Paris, por volta de 1270, comentando as palavras do profeta Malaquias – “Eis que teu Rei vem a ti com mansidão” – diz: “Para não cair em nenhuma ambigüidade, deveis saber que a vinda de Cristo pode entender-se de quatro maneiras: Sua vinda à carne ou Encarnação; Sua vinda a nossa alma; Sua vinda no momento da morte dos justos; Sua vinda final para julgar todos os homens”.
Na liturgia apresentam-se todos estes aspectos de modo muito profundo. Dizia também Santo Tomás que por cada uma destas vindas de Cristo, a Igreja celebra os quatro domingos do Advento. (Continue a ler)
Marcel de Corte
Com esse título abrangente e ambicioso demais, gostaria de falar com a maior simplicidade possível sobre coisas conhecidas e, principalmente, sobre coisas desconhecidas, que só se tornaram desconhecidas por causa do mundo moderno. Hoje conhecemos muitas coisas que nossos pais ignoravam. A civilização atual, que é essencialmente uma civilização do livro ou do impresso, a cada dia introduz nos cérebros uma massa de conhecimentos que digerimos mais ou menos bem, ou melhor, nem tão bem assim. Estendem-se tais conhecimentos a objetos tão numerosos que a multidão deles amedrontaria as gerações que nos precederam. Para tanto, comparem-se os estudos que se exigiam dos médicos há trinta ou quarenta anos, com os que se exigem atualmente – e isso vale para todas as profissões. Em contrário, segundo uma lei bem simples, expressa no provérbio “um prego empurra o outro”, esse afluxo de informações submergiu certas evidências elementares e as relegou ao esquecimento. Os leigos e os cientistas já não conhecem, por ex., os nomes das quatro virtudes cardeais que outrora o comum do povo conseguia apontar nos vitrais ou nas estátuas das catedrais. Recobriu-se de sombras uma área imensa do saber; em todo lugar regrediu o saber moral, o saber propriamente humano. (Continue a ler)
Pe. Pierpaolo Maria Petrucci, FSSPX
Alguns afirmam que o ensinamento atual, que chamam de magistério vivo, temo poder de interpretar de modo a modificar a Tradição. Mas o que a Igreja já ensinou de maneira infalível é imutável.
O motivo de embate entre a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) e as autoridades romanas é a oposição daquela ao ensinamento atual na Igreja, que funda raízes no último concílio. Essa oposição é motivada pelo fato de que são agora ensinadas novas doutrinas contrárias ao ensinamento do passado.
O Vaticano nos acusa por isso de ter uma concepção errônea da Tradição e do Magistério da Igreja.
Segundo João Paulo II, a posição da FSSPX tem origem no fato de não considerar a Tradição como algo vivo, permanecendo fixados no passado. Assim se exprimiu em 1988, por ocasião da consagração de nossos quatro bispos: “A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não leva em suficiente consideração o caráter vivo da Tradição(...)” .
Por sua vez, Bento XVI acusa a FSSPX de se ter fixado no Magistério pré-conciliar e não reconhecer, na verdade, o magistério do concílio e do pós-concílio: “Não se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962 – isso deve estar bem claro para a Fraternidade”.
A Tradição deveria ser viva, isto é, interpretada pelo magistério atual que nos diria hoje aquilo que é conforme ou menos conforme à Fé. Quem quisesse opor a Tradição de ontem ao magistério de hoje se arvoraria de juiz da Igreja e de seu ensinamento, substituindo-o, de fato, por seu juízo pessoal.
Para examinar o problema, responder a essa objeção e compreender em que consiste essa oposição que parece ser fundamental resolver, antes de poder chegar a uma solução jurídica entre a FSSPX e Roma, é necessário definir e esclarecer os conceitos de Tradição e de Magistério. (Continue a ler)
Jean Sévillia
Professor substituto de história e doutor em letras, Sylvain Gouguenheim ensina história medieval na prestigiosa École normale supérieure de Lyon. Até pouco tempo, era ele um professor sem história. Estimado pelos estudantes, reconheciam-no os seus pares como um especialista em Idade Média alemã. As suas doutas publicações e livros — sobre Hidelgarda de Bingen, mística da região da Renânia no século XII, sobre o terror do ano mil ou sobre os cavaleiros teutônicos[1] — granjeavam respeito para este medievalista que também é germanista.
Em 2008 a curiosidade o levou a pesquisar a transmissão da cultura helênica na Idade Média. Desempenharam os árabes um papel no processo, ninguém o ignora, mas em que medida? Um lugar comum reza que o conhecimento antigo, depois de desaparecer da Europa em razão da queda do Império Romano, refugiou-se no mundo muçulmano que, ao traduzir para o árabe os textos gregos, transmitiram-nos ao Ocidente – transmissão que possibilitou o florescimento da cultura ocidental.
Dom Lourenço Fleichman, OSB
A Permanência nasceu das aulas de Gustavo Corção. Nasceu da necessidade de dar continuidade ao trabalho de formação intelectual iniciado no Centro Dom Vital, onde Corção ensinou a doutrina Tomista durante muitos anos. Da decomposição dos princípios e intenções do seu fundador, Jackson de Figueiredo, devido às inclinações marxistas do então presidente, Alceu Amoroso Lima, não restou outra solução a Corção e a seus alunos senão abandonar aquele alto lugar de estudos católicos. Estávamos em tempos do Concílio Vaticano II. Alguns anos mais tarde seria fundada a nossa Permanência. Tinha sede em Laranjeiras, onde o Cardeal Dom Jaime Câmara celebrou a missa inaugural, em 29 de setembro de 1968. Os trabalhos foram iniciados com o lançamento da Revista Permanência, modesta no tamanho, grande no conteúdo, e que levou a todo o Brasil ao longo de 22 anos, a doutrina da Tradição católica, segura, apaziguadora, infalível. Como nossos leitores sabem, retomamos a publicação da Revista no Natal de 2011.
No último mês de novembro foi realizada numa fazenda perto de Taubaté, S.P., a Jornada de Formação, organizadas pela Fraternidade São Pio X, com a colaboração da Permanência, e que reuniu cerca de oitenta pessoas, entre jovens e adultos. O tema desse ano foi, justamente, a formação intelectual do católico, seus estudos, a necessidade de se aprofundar o catecismo para respondermos aos questionamentos constantes das pessoas que nos cercam, no trabalho, na escola, nas ruas da cidade.
As conferências estiveram a cargo dos padres que trabalham no Brasil, mas foram enriquecidas pela vinda do Pe. Alvaro Calderón, professor no Seminário N. Sra Corredentora, em La Reja, Argentina, um dos principais teólogos da Fraternidade S. Pio X.
Sua conferência tratou de interessante paralelo entre as quatro Notas da Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica, e a família católica. Por esta analogia mostrou com clareza a diferença entre a família católica e a família liberal.
Se nossas famílias da Tradição não estiverem atentas com o modo de interagir com o mundo liberal, serão contaminadas e porão em risco os fundamentos da sua essência, perdendo, em seguida, o caminho para alcançar o seu fim último, que é a salvação dos seus membros.
Para evitar a contaminação com o espírito liberal e os erros modernos, devemos considerar com toda a atenção o que está acontecendo hoje com a humanidade, em termos civilizacionais.
No seu livro Dois Amores Duas Cidades, Gustavo Corção explica o aparecimento, no século XIV, do principal personagem dos tempos modernos, após a quebra da Idade Média católica:
“Entra em cena agora o personagem que desempenha o papel mais importante dos tempos modernos; ou melhor, o personagem cujo tipo, cuja índole, cujos códigos, em resumo, cujo espírito constitui um dos mais característicos fatores da nova civilização. Trata-se do “burguês”, que é o invasor dos tempos modernos pelas forças da Renascença e da Reforma, como os bárbaros foram os invasores do Império Romano. (...) Queremos dizer que surgiu um novo ideal coletivo, que diferenciou-se um novo super-ego, ou que ascendeu ao firmamento da mitologia do tempo um novo arquétipo.”
A força civilizacional do espírito burguês, característica da quebra da civilização do homem interior, do homem católico, produziu a civilização do homem exterior, do homem moderno, como explica Corção. Esse homem burguês produzirá na sociedade uma vida voltada para o enriquecimento e para a boa aparência; a moral burguesa estabelecerá suas regras de conduta, seu comportamento estereotipado, rígido e falso, isento de Deus, mas ainda envolvido em um ambiente estoico de domínio de si e desprezo das fraquezas humanas.
Mais tarde, nos séculos XVIII e XIX, o espírito burguês não conseguirá mais manter as aparências de uma falsa moralidade sem Deus, e deixará transparecer sem maiores escrúpulos o mundanismo sensual que culminará, no final do século XIX, na manifestação de homens importantes da cultura e da política, mergulhados no homossexualismo e no adultério generalizado.
Apesar da reação antimodernista de São Pio X e do crescimento, na primeira metade do século XX, do catolicismo tradicional, a Revolução triunfou no Concílio Vaticano II, derrubando as muralhas espirituais e morais que a Igreja Católica representava na tentativa de manter viva a Civilização Católica Ocidental. Ainda não se conseguiu medir com precisão a gravidade e o alcance civilizacional dos desmandos dos papas e bispos que atacaram com força total a Tradição da Igreja, precipitando-a na mais grave crise de toda a sua história, e abandonando seu papel de represar a decadência da humanidade caminhando para o inferno.
Mas o tempo passa inexorável e insistente, deixando para trás os séculos que se reputavam grandiosos e inovadores. O novo século, o nosso eletrônico e digital século XXI, modificou profundamente o homem em seus interesses e em seu comportamento. Deu a ele ferramentas novas que moldaram a humanidade no que talvez seja seu derradeiro estado.
O espírito burguês surgido no século XIV iniciou uma civilização fundada na concupiscência dos olhos, na busca das riquezas e das aparências enganadoras; mesmo as grandes navegações, que tanto nos encantam por diversos aspectos, não deixaram de ser uma busca intensa pelas riquezas do oriente e pelas novidades do mundo lá fora. Mercantilismo dominante, produção do dinheiro e aparecimento do Capitalismo materialista, que mistura à liberdade própria do espírito humano, a ganância das paixões isentas da Lei de Deus.
O enriquecimento brutal das nações não podia deixar de ser seguido por certo conforto e deleites da vida. O espírito mundano será um passo a mais, a conseqüência natural do dinheiro fácil. Por isso a civilização nova será movida agora também pela concupiscência da carne.
Nesse início de século XXI, estamos assistindo ao aparecimento de um novo homem, de uma nova civilização, ou, se preferirem, do acabamento dessa civilização moderna iniciada há mais de setecentos anos atrás. Depois de estabelecer na cultura e nas artes, nas casas e nas tabernas, nas cidades e no campo, um mundo marcado pelas riquezas e pelos prazeres, o homem respira, hoje, por todos os poros, a soberba da vida; a última concupiscência que faltava como força de civilização, como preparação para o Anti-Cristo. Com ela termina a formação desse homem sem Deus, sem família, sem Pátria.
Este é o principal aspecto do que estamos vivendo hoje. Impregnou-se nas almas uma nova mitologia, como falava Corção acima; não mais homens isolados que vivem do orgulho ou do egoísmo, mas a própria civilização que erigiu a soberba da vida como sistema, completando assim o quadro em que aparece o Adão terminal, o terceiro Adão, o autor do que Corção chamou de “pecado terminal”, fonte do século do desamor.
Esta civilização fundamentada no Amor-próprio, depois de ter desviado seus olhos e interesses das coisas do alto para buscar as riquezas da terra; depois de ter desviado seus atos da fortaleza e pureza da vida para mergulhar nos prazeres da carne, volta-se agora para a destruição de toda e qualquer autoridade, para o achincalhe do 4º Mandamento.
“Vêem-se tendências contestatárias, torrentes de recusa e de protesto atiradas contra o passado, contra a tradição, contra o pai. As novas gerações são solicitadas a manifestarem sua maioridade com a bofetada na mãe e a morte do Pai”...
“O mundo moderno, nos seus pruridos revolucionários, é anticristão porque é todo orientado por uma soberba rejeição do Pai. E para maior escárnio inventaram uma fraternidade revolucionária baseada na decapitação do Rei, já que não tinham à mão a própria cabeça do Pai que está no Céu.”
No advento das grandes Revoluções, o desprezo pela autoridade do pai era assunto dos salões e dos livros de filósofos iluministas; tornou-se lei quando os revolucionários ocuparam o poder; hoje está presente no ar que se respira e ocupou as almas de modo universal. Mesmo nas melhores famílias católicas, formadas em torno das Capelas tradicionais, reina este espírito de soberba que se manifesta pela completa autonomia de pensamento, de decisões e de gostos.
Jovens dos dois sexos, às vezes crianças, adultos e velhos, todos partem do princípio de que cada um tem sua opinião, que todos têm o direito de manifestá-la livremente, e que as tradicionais instituições reguladoras e orientadoras das almas: a família, a paróquia, a escola, já não podem mais se manifestar.
O amor-próprio manifesta-se, em primeiro lugar, na nossa inteligência, estabelecendo o reino da opinião. Seria útil que o leitor retorne à leitura de alguns capítulos do livro A Descoberta do Outro, onde Gustavo Corção explica o processo da opinião na alma humana. A inteligência fica cega e não consegue enxergar a verdade.
Em seguida, o amor-próprio age na nossa vontade inclinando-a a tomar decisões baseadas em suas próprias opiniões, causando equívocos e erros difíceis de serem revertidos.
Finalmente, o amor-próprio excita nossa sensibilidade, causando paixões exageradas que nos impedem de perceber o erro das decisões da vontade e o vazio da argumentação das opiniões.
Os prodígios do Anti-Cristo foram então oferecidos a esta geração, filhos do orgulho. Abriu-se para o homem atual grande quantidade de ferramentas modernas, digitais, suficientes para que a civilização da soberba se manifestasse de modo integral e completo. Esse ambiente generalizado de blogs e facebooks era tudo o que o homem dessa civilização precisava para vomitar suas opiniões sobre tudo e sobre todos.
Não há mais regras, não há mais leis, não há mais espírito de obediência ou de humildade. Cada um encontra em sua casa, em sua vida, no trabalho ou na condução, o meio de estar conectado em tempo integral, ocupando sua mente e seus interesses com o mais superficial, raso e vazio oceano de mediocridades. Sente o prazer irresistível da força fictícia e enganadora, da aparência de autonomia de pensamento, de liberdade de escolhas, de impressão de erudição, falsa cultura de uma alma inebriada do seu próprio nada.
Trazemos um exemplo marcante ocorrido recentemente no ambiente da Tradição e que ainda incendeia as almas. Advertimos o caro leitor para o fato de não estarmos ocupados com o mérito da questão, mas tão somente com o método adotado pelo homem do orgulho e da soberba no caso vertente. Pela primeira vez desde a sua fundação, a Fraternidade São Pio X atravessou uma crise interna sem ter conseguido guardar um único segredo. Diante da exposição constante na internet, dos mais sigilosos documentos, se enganaria o leitor que imaginasse a existência de um sussurro que fosse, soprado ao pé do ouvido, e que não tivesse sido revelado. Não houve. Como se a casa de Monsenhor Marcel Lefebvre tivesse virado um botequim ou uma rua de vila, tornou-se proibido guardar segredo; uma espécie de “permissão” parecida dada para que cada um tirasse suas conclusões apressadas, totalmente fora do alcance de qualquer autoridade sobre esta terra, e mesmo no céu.
Não é difícil entender por que este ano ficou famoso pela enxurrada de falsos doutores, cada qual ocupado na estranha tarefa de tornar pública e notória sua própria opinião, exposta na vitrine da internet de blogs e facebooks. Em cada um desses casos não se encontra nenhum vínculo verdadeiro com uma autoridade qualquer. Ei-lo o homem pós-moderno, o homem sem limites, sem leis, sem freios. Desembestou pelas ladeiras e curvas desse mundo e já não consegue mais parar. Em algum lugar será encontrado meio morto, levado pela fúria do seu falso saber, enganado por suas próprias decisões. E quando um anjo se aproximar, ouvirá da sua boca cheia de terra, num último sorriso, a confissão do seu pecado: “eu sou um gênio”.
“A alma que se conhece a si mesma se humilha. Nada vê, com efeito, de que possa se orgulhar. Ela alimenta dentro de si o doce fruto de uma ardente caridade, conhecendo nela a bondade sem limites de Deus.” (Santa Catarina de Sena, Carta ao Papa Gregório XI)
“A humildade recomenda a pequenez dos meios, sem recomendar a pequenez dos fins. Quanto aos fins, é tão magnânima como a magnanimidade. Santa Teresinha do Menino Jesus escolheu a pequena Via, porque queria ir mais longe e mais alto” (Gustavo Corção, Dois Amores Duas Cidades, Vol. II, parte I, cap. 3, pag. 109-110)
(Editorial da Revista Permanência 268)
Pe. Gustavo Camargo, FSSPX
Objeção:
Quando escutamos o canto gregoriano pela primeira vez, a impressão que nos causa talvez seja negativa. Pode ser que nos impressione não tanto por que nele há, senão por que nele não há. Sentimos a ausência de harmonia ou de acompanhamento de apoio; ou bem sentimos a falta de valores de tempo definidos claramente e de acentos regulares; ou bem advertimos que a linha melódica por vezes toma giros estranhos, que muitas vezes não concluem na nota esperada; ou bem desgosta-nos o não intentar essa música tocar-nos os sentimentos ou mover-nos as emoções.
Em nossas capelas muitas vezes é difícil que se dê lugar merecido ao canto gregoriano. Há certo rechaço da parte dos fiéis, que o acham “demasiado simples, sem ornato, maçante, que alarga muito a cerimônia etc”, e mesmo também da parte dos sacerdotes, que lhe sentem uma desconfiança instintiva.
André Charlier, em um de seus artigos sobre o canto gregoriano, traz a citação de um sacerdote que escrevera as seguintes palavras em “Semaine religieuse de Paris”, em 1965, as quais muitos de nós poderíamos talvez subscrever (lamentavelmente).
“O gregoriano é inaceitável, a não ser quando bem cantado, por religiosos ou por escola paroquial bem formada. Em toda parte, porém, ele é impraticável e não interessa a ninguém. O ouvido dos jovens, que estudam solfejo desde a escola primária com as tonalidades clássicas e com a notação musical moderna, já não intui nem pode captar quanto há de religioso no gregoriano. (…) Essas melopeias não incidem mais nas sensibilidades contemporâneas; bastante já durou essa experiência. Por que, então, tentar prolongá-la? Conservemos o gregoriano para os santuários como Solesmes, Saint-Wandrille e alguns cenáculos da cristandade. (…) Mesmo onde se canta com arte e conforme as regras, somente os da “Schola” cantam. A multidão permanece inerte e contenta-se com escutar. É este, acaso, o objetivo que se busca?”.
A essa desconfiança soma-se o desprezo a toda a Tradição da Igreja, que as reformas do Concílio Vaticano II difundiram universalmente, e que fizeram, entre muitas outras coisas, que o gregoriano se extinguisse em quase todas as paróquias.
Na prática, o resultado é que em nossas capelas se canta muito pouco o gregoriano, estuda-se menos, e o povo desconhece-o e até sente por ele certa repulsa.
Argumentos de autoridade:
Sem embargo, vendo o que os papas disseram constantemente, durante toda a história da Igreja, ficamos em situação incômoda. São Pio X, por exemplo, que iniciou magna obra de restauração do canto gregoriano, afirmou o seguinte, fazendo eco de toda a Tradição: “Essas qualidades (santidade, bondade de forma e universalidade) encontram-se em sua medida maior no canto gregoriano, e por isso ele é o único canto autêntico da Igreja romana. É o único que os padres da antigüidade legaram-nos; manteve-se com o maior esmero através dos séculos nos manuscritos litúrgicos. As últimas investigações lograram restaurá-lo felizmente em sua antiga integridade e pureza. Por isso, o canto gregoriano considera-se em certo modo como o mais elevado ideal da música sacra, podendo assentar-se como universalmente válida a seguinte regra: a música que seja apropriada para o uso religioso é tanto mais sagrada e litúrgica, quanto mais, por sua posição, espírito e irradiação, acerque-se do ‘melos’ gregoriano. Ao contrario, é menos adequada para o serviço divino se se afasta deste modelo. Destarte, o primitivo canto gregoriano deve ser de aplicação no âmbito dos serviços religiosos, e deve ter-se o convencimento de que uma cerimônia sagrada não perde brilho algum por vincular-se a esta arte musical” .
Pio XII não é menos absoluto: “Este canto, por causa da união íntima da melodia e do texto sagrado, não somente se lhe adapta perfeitamente, senão que igualmente parece expressar toda sua grandeza e eficácia, e penetra com sua doçura no espírito de quem o escuta. Tudo isso com meios musicais muito simples e fáceis, mas que, inspirados de arte sublime e muito santa, suscitam sincera admiração e convertem-se, para os mestres e conhecedores de música sacra, em fonte inesgotável de novas harmonias. Todos a quem Cristo Nosso Senhor confiou a custódia e dispensa das riquezas de sua Igreja devem conservar cuidadosamente o precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo cristão participar dele profusamente” .
São Pio X faz referência à autoridade da própria liturgia quando diz: “manteve-se com o maior esmero através dos séculos nos manuscritos litúrgicos”. Recorde-se que a liturgia é uma escola de santidade. Todas as rubricas, gestos, mínimos detalhes foram guardados com sumo cuidado, muitos deles recebidos das mãos de Nosso Senhor mesmo e dos apóstolos, e transmitidos com tanto cuidado através dos séculos, que se chegou a constituir o que poderíamos chamar “a perfeita inserção do sagrado no material”, ou seja, o equilíbrio justo do uso do sensível no culto de Deus, permitindo-lhe ser perfeito instrumento ao fim próprio da liturgia. Exatamente nesse equilíbrio perfeito e inserção do sagrado no material, entra o canto gregoriano, parte constitutiva da Sagrada Liturgia. Trataremos adiante sobre este ponto importante.
São conhecidas as belas palavras de Santo Agostinho em seu livro Confissões: “Confesso que ainda agora encontro algum descanso nos cânticos que as vossas palavras vivificam, quando são entoadas com suavidade e arte. Não digo que fique preso por eles. Mas custa-me deixá-los quando quero. (…) Sinto que todos os afetos da alma encontram, na voz e no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas próprias modulações, vibrando em razão dum parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe. Mas o deleite da minha carne, ao qual se não deve dar licença de enervar a alma, engana-me muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente atrás da razão, negam-se a acompanhá-la. Só porque, graças a razão, mereceram ser admitidos, já se esforçam por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem consentimento, mas advirto depois. (...) Quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cantos da vossa Igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume.” .
Corpus:
Antes de responder às objeções, tratemos de aprofundar o tema. Que é o canto gregoriano? Como se constitui? Por que é tão apto para elevar nossas almas? Como entender e apreciá-lo?
Para responder a essas perguntas, evitemos um pouco o tema de sua história (formação, decadência e restauração) e centremo-nos em sua constituição íntima, com algumas mínimas noções musicais necessárias para entendê-la.
Quando escutamos distintos tipos de música, como por exemplo música medieval, renascentista, barroca, e mesmo músicas orientais, damo-nos conta (talvez sem poder defini-lo) de que cada uma tem um “ar” distinto. Esse “ar” chama-se “modo” e faz referência à relação das notas entre si. Se pomos lado a lado as notas de um “modo” particular, formamos a sua escala. A música moderna, nesse aspecto, é relativamente pobre, porque conservou apenas dois modos: o maior e o menor. Constrói-se sobre a base da escala diatônica (por tons e semitons) e possui somente essas duas variantes. A música oriental usa os ¼ de tom, intervalo difícil de captar e que lhe dá “ar” mais confuso.
Qual é o “ar” do canto gregoriano?
O “ar” do canto gregoriano deriva de seus modos, ou seja, da maneira como se dispõem as notas e os intervalos que formam a sua “estrutura interna”.
Há quatro notas iniciais de escala: Ré, Mi, Fá e Sol. Cada uma das notas dá origem a uma escala, que pode estar em registro superior (modo autêntico) ou inferior (modo plagal), e, conseqüentemente, aos oito modos gregorianos. Cada um dos modos tem uma “corda de recitação” ou “tenor”, que é uma nota dominante (este é o termo que se usa em música moderna) em redor da qual se desenvolve a melodia.
Tudo isto possibilita grande variedade de estruturas modais, cada uma com suas características, seus recursos próprios, para expressar um “ar” particular, um “ethos”, estado de alma ou ideia. A palavra “ethos” usavam-na os gregos para definir o caráter moral dos modos musicais.
Muitas vezes se disse e acreditou, e segundo isso se interpretou, que o gregoriano fosse canto totalmente impessoal, frio, sem sentimento. No entanto, sem deixar de afirmar a sobriedade, o canto gregoriano usa freqüentemente de recursos musicais para reforçar ideias e sentimentos. Alguns exemplos:
No responsório do Ofício de Trevas da Sexta-Feira da Paixão, a letra diz: “exclamou Jesus com grande voz: Deus meu, por que me abandonaste?”. Justamente nesse grito, “Deus meu”, o autor da melodia gregoriana põe notas muito altas - as mais altas registradas no gregoriano. Quer, obviamente, reproduzir e ilustrar musicalmente o grito de Nosso Senhor na Cruz.
Mais alguns exemplos (que são abundantes).
O intervalo de semitom, por suas características musicais, é bastante usado para indicar sentimento de tristeza, lamento. Em si mesmo, não tem a inteireza e estabilidade do tom inteiro, e, usando-se no final de frase ou inciso, produz instabilidade, como algo não concluído. É até muito usado por alguns autores (Bach, entre outros, e, em minha opinião, também dá-se no canto gregoriano) como recurso onomatopeico que se assemelha ao gemido. Todas essas características encontram-se no responsório penitencial “Media vita” (Cantus selecti, p. 41* ou 39). A letra diz: “Eis que chegamos ao meio da vida e encontrou-nos a morte: em quem buscaremos ajuda, senão em Ti, Senhor? Em Ti esperaram nossos pais, esperaram e Tu livraste-os; a Ti clamaram e não foram confundidos”.
Etc etc (há muitos exemplos na peça).
Como último exemplo, é muito interessante o jogo de alternância do tom inteiro e do semitom (usando o si bemol), no introito “Laetare” do 4.º Domingo de Quaresma. E nele, quando, exatamente, a letra diz “qui in tristitia fuistis”, insiste-se no si bemol (semitom), querendo, assim, ilustrar musicalmente a palavra “tristitia” (tristeza).
Tudo isso dá-nos ideia do que é o “ethos” do gregoriano.
Dentre os capitéis conservados no “celeiro” de Cluny, dois ilustram, sobre suas quatro fachadas, os oito tons gregorianos; cada destes com uma figura que simboliza o tom musical e uma pequena frase que o descreve.
1.º tom: “Eis aqui o primeiro tom, ordenador dos sons musicais”.
2.° tom: “Segue o tom que é o segundo por nome e lei”.
3.º tom: “O terceiro salta e mostra que Cristo ressuscitou”.
4.º tom: “Segue o 4.º tom, que é semelhante a poema de lamento” (justamente esse tom de lamento usa-se no “Media Vita”, canto penitencial).
5.º tom: “Mostra quanto é humilhado quem quer se inflar (por orgulho)”.
6.º tom: “Se buscas o sentimento de piedade, olha o sexto tom”.
7.º tom: “O sétimo introduz o Sopro benéfico (Espírito Santo) com seus dons”.
8.º tom: “O oitavo ensina que todos os santos são bem-aventurados”.
Além disso, os antigos assinavam um “ar” especial para cada tom.
1.º : Gravis (serenidade, nobreza, solenidade)
2.º : Tristis (recolhido, interior)
3.º : Mysticus (contemplativo, rico, extático, ardente)
4.º : Harmonicus (o modo que não termina; a oração contínua; interior; queixoso)
5.º : Laetus (alegria humana; corresponde ao modo maior moderno)
6.º : Devotus (piedade filial, candidez, alegria espontânea, equilíbrio, paz)
7.º : Angelicus (entusiasmo, juvenil, ligeireza, vivacidade)
8.º : Perfectus (plenitude; solene e cheio de fineza)
No quadro seguinte, podem ver-se resumidas todas essas características.
Modos antigos
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Terminologia
|
Dominante
Corda de recitação ou tenor
|
Final
tônica
|
Escala
|
Qualificativo
|
Ethos
|
Referências
Exemplos
|
Moderna
|
Antiga
|
Protus
RÉ
|
1º
|
Autêntico
Agudo
|
LÁ
|
RÉ
|
Ré-Lá-Ré
|
Gravis
|
Modos ditos “menores” por sua “seriedade”.
|
Madurez adquirida.
Modo da paz, serenidade, nobreza, solenidade.
|
Intr. Statuit
Intr. Rorate
Grad. Ecce quam
|
2º
|
Plagal
Grave
|
FÁ
|
Lá-Ré-Lá
|
Tristis
|
Subjetivo.
Recolhido e um pouco fechado em si mesmo.
|
Intr. Cibavit
Intr. Dominus dixit
Resp. Emendemus
Ofert. Dne. Jesu Christe
|
Deuterus
MI
|
3º
|
Autêntico
Agudo
|
SI
|
MI
|
Mi-Si-Mi
|
Mysticus
|
Místico-contemplativo
Rico, um pouco desordenado, extático, ardente.
|
Intr. Vocem jucundit.
Ofert. Sperent in te
Kyrie II
Comm. Scapulis
|
4º
|
Plagal
Grave
|
LÁ
|
Si-Mi-Si
|
Harmonicus
|
Interior.
Modo “que não termina”; a oração contínua; lastimoso.
|
Intr. Reminiscere
Credo I
Resp. Subvenite
Grad. Dne. praevenisti
|
Tritus
FÁ
|
5º
|
Autêntico
Agudo
|
DÓ
|
FÁ
|
Fá-Dó-Fá
|
Laetus
|
Modos ditos “maiores” por sua alegria.
|
Alegre.
Alegria “humana”; “maior” moderno.
|
Intr. Laetare
Grad. Omnes de Saba
Comm. Domus mea
Grad. Constitues eos
|
6º
|
Plagal
Grave
|
LÁ
|
Dó-Fá-Dó
|
Devotus
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Piedade filial.
A candidez da infância espiritual. Alegria espontânea.
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Intr. In medio
Intr. Quasimodo
Intr. Requiem
Alle. Dne in virtute
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Tetrardus
SOL
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7º
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Autêntico
Agudo
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RÉ
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SOL
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Sol-Ré-Sol
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Angelicus
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Entusiasmo juvenil
Ligeireza, alegria, vivacidade.
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Com. Factus est repente
Intr. Puer natus
Alle. Pascha nostrum
Grad. Dirigatur
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8º
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Plagal
Grave
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DÓ
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Ré-Sol-Ré
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Perfectus
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Plenitude
Cômodo em todas as partes. Solene e sonoro, mas também cheio de delicadeza.
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Intr. Jubilate
Intr. Spiriuts Dni.
Alle. Venite ad me
Offert. Ave Maria
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Respostas às objeções:
Mencionamos a crítica de que o canto gregoriano seria “fastidioso”, demasiado sóbrio, sem apelo à sensibilidade. Em primeiro lugar, a compreensão de suas características, do “ethos” de cada modo, como vimos acima, nos ajuda a apreciá-lo melhor. Ademais, entra aqui um tema muito importante e delicado, que diz respeito à música, e chega mesmo a relacionar-se com a arte em geral. Há na arte o [chamado] elemento material. No caso da música, poderíamos assinalar como exemplo, talvez, a combinação de sons, o modo escolhido etc. Há também o elemento formal, que poderíamos chamar (não com estrito rigor filosófico) a “mensagem” que a arte quer passar ou transmitir; seria a ideia central que ela intenta transmitir, algo de ordem intelectual. Ora, a arte verdadeira deve encontrar o equilíbrio entre os dois. Muitas vezes, o excesso de elemento material “afoga” a mensagem, pois traz o foco para si mesmo e dificulta a compreensão do elemento formal. Na pintura, por exemplo, os renascentistas chegaram a uma grande perfeição do elemento material, mas isso nem sempre ajudou a arte como um todo. Se compararmos uma “Virgem com o Menino Jesus” de Leonardo da Vinci, admiramos, sem dúvida, a perfeição técnica e material; mas talvez não nos inspire tanta piedade como um ícone bizantino, muito mais tosco e imperfeito tecnicamente. A economia de meios materiais e a sobriedade ajuda muitas vezes a transmitir melhor o elemento formal.
O gregoriano, podemos dizer, representa o equilíbrio perfeito dos dois elementos da arte musical, sendo assim mais apropriado ao canto litúrgico. Sua simplicidade não é pobreza, mas elevação. Custa-nos apreciá-lo, não porque seja muito pobre; custa-nos, na verdade, por ser assaz rico. Quando escutamos o gregoriano em nossas capelas, não sentimos o impacto sensível de uma polifonia. E, provavelmente, é essa a razão por que nos ajuda a elevar nossas almas, cumprindo assim sua função, sem deixar de ser arte verdadeira. Em lugar de deter-nos no gozo estético, a música sagrada deve elevar nossas almas a Deus.
A respeito disso dizia Charlier: “Deste modo, o artista (gregoriano) vai além da natureza. Isso não significa que ele a despreze; ao contrário, sobrepassa-a para dar-lhe o seu verdadeiro sentido. Priva-se de certos meios, que consideramos indispensáveis para a arte, e somos nós, no entanto, que nos equivocamos julgando-o pobre: ele é capaz de dar-nos mais do que lhe pedimos. Esses meios entorpecê-lo-iam. O objetivo da arte não é remover as paixões; é comover aquela parte de nós que a vida diária não é capaz de alcançar e que é feita para a contemplação”.
Outra crítica, que creio mais fácil de responder, é a de que sua execução seja difícil. “Melhor não cantá-lo que cantá-lo mal”. Ora, isso vale para qualquer canto, mesmo o polifônico. Se fosse verdade teríamos de calar-nos completamente na Igreja. Demais, a experiência diz-nos o contrário. Diz-nos que, em todos os lugares em que um capelão consciencioso se propõe a cultivar o canto gregoriano, os resultados são sempre satisfatórios. Leiamos mais uma vez o testemunho interessante de Charlier:
“Durante vinte anos dirigi uma ‘Schola” composta de jovens. No começo, poucos tinham alguma cultura musical; os outros só conheciam as notas musicais. Estavam acostumados, naturalmente, às tonalidades da música moderna (...); nada os dispunha a gostar da música gregoriana (...) todavia, compreenderam mui prontamente o caráter melódico de cada modo (...) eu seguia os progressos desta adaptação, pelas expressões de admiração que lhes escapava ante tal e qual frase melódica; achavam-se perfeitamente capacitados para sentir a beleza de tom de um salmo”.
Do mesmo modo, quando se diz que o gregoriano não foi feito para o povo das paróquias, afirma-se falsidade tão patente como seria o dizer que a arte românica não foi feita para o povo das paróquias, [afirmação] a que tantas e tantas igrejas de povos e aldeias testemunham contrariamente. A multidão [no passado] cantava o ordinário da missa e toda a salmodia, e reservava-se à Schola somente o próprio da missa.
Na aldeia em que habito, ainda não faz dez anos, todos sabem cantar a missa dos domingos ordinários, a missa “De Angelis”, a do Advento, a da Quaresma, e até a do tempo pascal. Em verdade, o gregoriano praticou-se nas paróquias, desde a reforma de São Pio X, em toda parte onde se encontrasse um sacerdote que verdadeiramente cresse na importância da adoção do gregoriano, em vista da fulguração religiosa que provoca nas almas ou, dito de outro modo, por ser o gregoriano simplesmente uma escola de santidade.
Conclusão:
Tratemos, pois, de entrar como crianças nesta escola de santidade da liturgia católica. A Mestra provou-se sempre idônea, e seus frutos são patentes, ao longo dos séculos. Aprofundemos o conhecimento deste canto sagrado e cultivemo-no em nossas capelas e igrejas.
“Homens perversos e depravados usam a música como excitante para entregar-se aos gozos terrenos, em vez de levantar-se beatificamente por seu meio a Deus e à contemplação das coisas divinas. De minha parte, (...) trabalho, graças a Deus, unicamente para conseguir que a modulação das vozes seja dedicada exclusivamente ao fim para que fora inventada no princípio, isto é: ‘Deo optimo clarissimo laudibusque suis’ (a Deus ótimo e glorioso e para seu louvor)” (Tomás Luis de Victoria).
(Revista Permanência 268 - Tradução: Permanência)
Júlio Fleichman
A maior parte dos que compõem o grupo de “Permanência”, pelo menos os que residem no Rio de Janeiro, sabem-se membros de uma escola reunidos em torno de um mestre espiritual.
Ao longo de cerca de 30 anos, menos tempo para alguns, os ensinamentos que recebemos resultaram, sobretudo, da Santa Doutrina da Igreja e da exposição dos pontos principais da serva desta doutrina, a filosofia aristotélico-tomista. Mas, sobretudo, ao longo de todos esses anos, o ensino e o exemplo do mestre que Deus nos deu, mais do que de abstrato professor, não deixaram nunca de fazer incursões retificadoras ou enriquecedoras da mentalidade comum em face dos problemas do momento, que se desenvolviam e desabrochavam em cursos de formação de uma espiritualidade, digamos seu nome próprio, em cursos de teologia ascética e mística. Sim, porque não há de haver necessariamente pretensões maiores do professor ou dos alunos em aprender esta ciência quando tomamos conhecimento da primeira lição fundamental que ali se ensinava: o amor sobrenatural sem medidas e sem limites, acima de tudo o mais impõe como preceito e não como sonho a obrigação — que é elementar e comum a todos os católicos — de buscar a perfeição, de procurar a santidade. Evidentemente não a santidade eminente, a santidade dos altares, mas aquela que, proporcionalmente à nossa pequenez, como ensinam Santa Terezinha, é ardentemente desejada pelo Pai que nos quer perfeitos como Ele é perfeito. Mesmo porque, prossegue a longa lição, longamente ensinada, longamente aprendida anos a fora, a vida espiritual não conhece parada ou descanso. “Quem não progride, regride”.
O progresso, o adiantamento, o crescimento da alma de cada homem se processa em sentido diametralmente oposto ao crescimento, ao progresso no plano natural. Progredir, para os seres vivos do gênero animal — inclusive para o homem —, significa caminhar para uma autonomia crescente e uma crescente iniciativa própria quanto aos atos de pura natureza. Progredir no plano do crescimento espiritual importa em caminhar por desertos e trevas para deixar de lado as iniciativas próprias e a própria vontade e alcançar uma crescente dependência, uma entrega cada vez maior Àquele que nos quer tomar em Suas mãos e fazer-nos caminhar para Ele, como Ele quer e por onde Ele manda. Pela estrada que é chamada com o belo nome de Estrada Real da Santa Cruz, na “Imitação de Cristo”. Tomai sobre vós a vossa cruz e segui-me, diz o Senhor.
Tudo aquilo que aprendemos nas aulas de Dogmática ou que praticamos em termos de virtude e penitência; os atos de religião e culto feitos em termos de oração vocal; a Missa e os Sacramentos, especialmente a Sagrada Eucaristia; a vida monástica e os exercícios espirituais, tudo isso se dirige, encontra seu sentido próprio na preparação e encaminhamento de cada alma para a busca da porta a que bater, para a presença diante do Senhor em que, com mansidão e humildade conforme Ele nos quer, coloquemo-nos, em verdade e singeleza, em Suas mãos. Mas, a verdade manda que se diga que já é Ele que nos trouxe até esta porta e já foi por obra de Sua graça que ouvimos e guardamos o que nos era pedido. O que importa aqui dizer e o que importa que não esqueçamos é que tudo o que possamos querer em matéria de aprendizado de doutrina, de atos de mortificação ou de busca de virtude só tem sentido se nos favorecer na alma a aspiração de um relacionamento pessoal, interior e direto com Nosso Senhor, Ele mesmo, por obra de Sua graça.
É verdade que este empreendimento é não só difícil, mas perigoso e requer, em princípio, a assistência, o socorro de um diretor espiritual que nos acompanhe em nosso itinerário pessoal e não apenas nos ajude como mestre. É verdade que, em tempos normais, a Igreja sempre recomendou que não nos lançássemos a tal empreitada sem direção de um confessor ou, pelo menos, de um homem sábio e virtuoso que nos pudesse assistir em termos pessoais. Mas hoje, sabemos todos, é quase impossível encontrar este tipo de assistência e, por isso, é imprescindível que em nossas orações e nas aspirações que nossa alma dirige ao Senhor, lembremos esta dificuldade e peçamos a Ele que nos socorra, que providencie, como Ele mesmo sabe que precisamos e como Ele mesmo quer. Porque, o fato é que o preceito continua de pé e a sede do Senhor pelas almas que se lhe entregam pessoalmente, na intimidade do coração de cada um, não diminui nem fica suspensa. Por outro lado, o Senhor espera que não nos conformemos com “qualquer um” pseudo-sacerdote ou pseudo-bispo que nos virá falar de “campanhas de fraternidade” ou de outros tipos de corrupção espiritual com que consiga afastar-nos de Deus. Quem nos fala hoje, entre os bispos, uma linguagem que nos lembre, pelo menos nos lembre, a procura de santidade e o preceito correspondente? Quem ainda nos dirá que procure na “Imitação de Cristo” ou em São João da Cruz ou em Santa Terezinha d’Ávila exemplos de ascensão mística que a todos nos é pedida? Mudou nossa religião? Se mudou, se é outra, então nós não a queremos. A nossa religião, a católica, mantém a mesma linguagem, a mesma exigência e o mesmo ardente desejo da parte de Deus.
Não precisamos ter medo de esquecermo-nos das obrigações que os tempos difíceis nos trazem, da necessidade do combate dos deveres de estado, das aflições e dos sofrimentos nossos e alheios. Ninguém perde por esperar. Aquilo que aqui chamamos “nossa cruz” inclui tudo isso. A nós, que recebemos aquelas grandes lições lembradas acima e que procurarmos segui-las, nunca nos faltaram combates, trabalhos, deveres de estado, sofrimentos e aflições. Temos filhos, temos irmãos, temos a visão do que se passa no mundo. Mas, sobretudo, não nos falte, acima de tudo, não nos abandone, a lembrança da necessidade de procura de vida interior; a reiterada e constante aspiração de vivermos na presença de Deus em oração permanente como nos diz S. Paulo que devemos querer; a referência a Deus e de todos os nossos atos, nossos desejos, nossa consideração das coisas do mundo. Se, do alto dessa visão que em Deus tudo centraliza e a Ele tudo refere podemos ver melhor (e sabemos que vemos melhor); se a Ele tudo referindo buscamos, sobretudo, a Sua glória e não a nossa e, com isso, sabemos que todas as coisas, do universo dos homens e de nossa vida particular, ganham dimensões próprias e com elas um enriquecimento proporcionado que o pecador desconhece, não deixemos nunca de aspirar a um crescimento incessante na santidade a que fomos chamados para, esquecidos de nós mesmos e de tudo mais, vivermos permanentemente, crescentemente, a vida da caridade que já é um começo do céu. Pois, com temor e tremor, lembrando-nos de que quem não progride, regride, podemos suspeitar que foi por ignorarem ou terem esquecido tudo isso; foi, talvez, por se terem habituado a uma maneira prevalentemente exteriorizada de praticarem a religião; foi, quem sabe, por um vazio quanto àquilo que o próprio Senhor chamou “o único necessário” que tantos bispos e tantos padres e tantos fiéis, tão fácil e tragicamente se deixaram envolver e desencaminhar pela corrupção que invadiu os átrios da Igreja e, nela, nos meios católicos, nas mais altas cúpulas como em quase todas as paróquias ou colégios católicos ou Ordens Religiosas ou associações ou instituições que já foram ditas “da Igreja”, em toda parte, fez tantos estragos, desviou tanta gente e perdeu tantas almas, talvez.
Permanência, n° 90/91, maio/junho de 1976.
ÍNDICE DA REVISTA (282 - Natal 2012) 152 págs