Dom Lourenço Fleichman, OSB
A Permanência nasceu das aulas de Gustavo Corção. Nasceu da necessidade de dar continuidade ao trabalho de formação intelectual iniciado no Centro Dom Vital, onde Corção ensinou a doutrina Tomista durante muitos anos. Da decomposição dos princípios e intenções do seu fundador, Jackson de Figueiredo, devido às inclinações marxistas do então presidente, Alceu Amoroso Lima, não restou outra solução a Corção e a seus alunos senão abandonar aquele alto lugar de estudos católicos. Estávamos em tempos do Concílio Vaticano II. Alguns anos mais tarde seria fundada a nossa Permanência. Tinha sede em Laranjeiras, onde o Cardeal Dom Jaime Câmara celebrou a missa inaugural, em 29 de setembro de 1968. Os trabalhos foram iniciados com o lançamento da Revista Permanência, modesta no tamanho, grande no conteúdo, e que levou a todo o Brasil ao longo de 22 anos, a doutrina da Tradição católica, segura, apaziguadora, infalível. Como nossos leitores sabem, retomamos a publicação da Revista no Natal de 2011.
No último mês de novembro foi realizada numa fazenda perto de Taubaté, S.P., a Jornada de Formação, organizadas pela Fraternidade São Pio X, com a colaboração da Permanência, e que reuniu cerca de oitenta pessoas, entre jovens e adultos. O tema desse ano foi, justamente, a formação intelectual do católico, seus estudos, a necessidade de se aprofundar o catecismo para respondermos aos questionamentos constantes das pessoas que nos cercam, no trabalho, na escola, nas ruas da cidade.
As conferências estiveram a cargo dos padres que trabalham no Brasil, mas foram enriquecidas pela vinda do Pe. Alvaro Calderón, professor no Seminário N. Sra Corredentora, em La Reja, Argentina, um dos principais teólogos da Fraternidade S. Pio X.
Sua conferência tratou de interessante paralelo entre as quatro Notas da Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica, e a família católica. Por esta analogia mostrou com clareza a diferença entre a família católica e a família liberal.
Se nossas famílias da Tradição não estiverem atentas com o modo de interagir com o mundo liberal, serão contaminadas e porão em risco os fundamentos da sua essência, perdendo, em seguida, o caminho para alcançar o seu fim último, que é a salvação dos seus membros.
Para evitar a contaminação com o espírito liberal e os erros modernos, devemos considerar com toda a atenção o que está acontecendo hoje com a humanidade, em termos civilizacionais.
No seu livro Dois Amores Duas Cidades, Gustavo Corção explica o aparecimento, no século XIV, do principal personagem dos tempos modernos, após a quebra da Idade Média católica:
“Entra em cena agora o personagem que desempenha o papel mais importante dos tempos modernos; ou melhor, o personagem cujo tipo, cuja índole, cujos códigos, em resumo, cujo espírito constitui um dos mais característicos fatores da nova civilização. Trata-se do “burguês”, que é o invasor dos tempos modernos pelas forças da Renascença e da Reforma, como os bárbaros foram os invasores do Império Romano. (...) Queremos dizer que surgiu um novo ideal coletivo, que diferenciou-se um novo super-ego, ou que ascendeu ao firmamento da mitologia do tempo um novo arquétipo.” 1
A força civilizacional do espírito burguês, característica da quebra da civilização do homem interior, do homem católico, produziu a civilização do homem exterior, do homem moderno, como explica Corção. Esse homem burguês produzirá na sociedade uma vida voltada para o enriquecimento e para a boa aparência; a moral burguesa estabelecerá suas regras de conduta, seu comportamento estereotipado, rígido e falso, isento de Deus, mas ainda envolvido em um ambiente estoico de domínio de si e desprezo das fraquezas humanas.
Mais tarde, nos séculos XVIII e XIX, o espírito burguês não conseguirá mais manter as aparências de uma falsa moralidade sem Deus, e deixará transparecer sem maiores escrúpulos o mundanismo sensual que culminará, no final do século XIX, na manifestação de homens importantes da cultura e da política, mergulhados no homossexualismo e no adultério generalizado.
Apesar da reação antimodernista de São Pio X e do crescimento, na primeira metade do século XX, do catolicismo tradicional, a Revolução triunfou no Concílio Vaticano II, derrubando as muralhas espirituais e morais que a Igreja Católica representava na tentativa de manter viva a Civilização Católica Ocidental. Ainda não se conseguiu medir com precisão a gravidade e o alcance civilizacional dos desmandos dos papas e bispos que atacaram com força total a Tradição da Igreja, precipitando-a na mais grave crise de toda a sua história, e abandonando seu papel de represar a decadência da humanidade caminhando para o inferno.
Mas o tempo passa inexorável e insistente, deixando para trás os séculos que se reputavam grandiosos e inovadores. O novo século, o nosso eletrônico e digital século XXI, modificou profundamente o homem em seus interesses e em seu comportamento. Deu a ele ferramentas novas que moldaram a humanidade no que talvez seja seu derradeiro estado.
O espírito burguês surgido no século XIV iniciou uma civilização fundada na concupiscência dos olhos, na busca das riquezas e das aparências enganadoras; mesmo as grandes navegações, que tanto nos encantam por diversos aspectos, não deixaram de ser uma busca intensa pelas riquezas do oriente e pelas novidades do mundo lá fora. Mercantilismo dominante, produção do dinheiro e aparecimento do Capitalismo materialista, que mistura à liberdade própria do espírito humano, a ganância das paixões isentas da Lei de Deus.
O enriquecimento brutal das nações não podia deixar de ser seguido por certo conforto e deleites da vida. O espírito mundano será um passo a mais, a conseqüência natural do dinheiro fácil. Por isso a civilização nova será movida agora também pela concupiscência da carne.
Nesse início de século XXI, estamos assistindo ao aparecimento de um novo homem, de uma nova civilização, ou, se preferirem, do acabamento dessa civilização moderna iniciada há mais de setecentos anos atrás. Depois de estabelecer na cultura e nas artes, nas casas e nas tabernas, nas cidades e no campo, um mundo marcado pelas riquezas e pelos prazeres, o homem respira, hoje, por todos os poros, a soberba da vida; a última concupiscência que faltava como força de civilização, como preparação para o Anti-Cristo. Com ela termina a formação desse homem sem Deus, sem família, sem Pátria.
Este é o principal aspecto do que estamos vivendo hoje. Impregnou-se nas almas uma nova mitologia, como falava Corção acima; não mais homens isolados que vivem do orgulho ou do egoísmo, mas a própria civilização que erigiu a soberba da vida como sistema, completando assim o quadro em que aparece o Adão terminal, o terceiro Adão, o autor do que Corção chamou de “pecado terminal”, fonte do século do desamor.
Esta civilização fundamentada no Amor-próprio, depois de ter desviado seus olhos e interesses das coisas do alto para buscar as riquezas da terra; depois de ter desviado seus atos da fortaleza e pureza da vida para mergulhar nos prazeres da carne, volta-se agora para a destruição de toda e qualquer autoridade, para o achincalhe do 4º Mandamento.
“Vêem-se tendências contestatárias, torrentes de recusa e de protesto atiradas contra o passado, contra a tradição, contra o pai. As novas gerações são solicitadas a manifestarem sua maioridade com a bofetada na mãe e a morte do Pai”...
“O mundo moderno, nos seus pruridos revolucionários, é anticristão porque é todo orientado por uma soberba rejeição do Pai. E para maior escárnio inventaram uma fraternidade revolucionária baseada na decapitação do Rei, já que não tinham à mão a própria cabeça do Pai que está no Céu.” 2
No advento das grandes Revoluções, o desprezo pela autoridade do pai era assunto dos salões e dos livros de filósofos iluministas; tornou-se lei quando os revolucionários ocuparam o poder; hoje está presente no ar que se respira e ocupou as almas de modo universal. Mesmo nas melhores famílias católicas, formadas em torno das Capelas tradicionais, reina este espírito de soberba que se manifesta pela completa autonomia de pensamento, de decisões e de gostos.
Jovens dos dois sexos, às vezes crianças, adultos e velhos, todos partem do princípio de que cada um tem sua opinião, que todos têm o direito de manifestá-la livremente, e que as tradicionais instituições reguladoras e orientadoras das almas: a família, a paróquia, a escola, já não podem mais se manifestar.
O amor-próprio manifesta-se, em primeiro lugar, na nossa inteligência, estabelecendo o reino da opinião. Seria útil que o leitor retorne à leitura de alguns capítulos do livro A Descoberta do Outro, onde Gustavo Corção explica o processo da opinião na alma humana. A inteligência fica cega e não consegue enxergar a verdade.
Em seguida, o amor-próprio age na nossa vontade inclinando-a a tomar decisões baseadas em suas próprias opiniões, causando equívocos e erros difíceis de serem revertidos.
Finalmente, o amor-próprio excita nossa sensibilidade, causando paixões exageradas que nos impedem de perceber o erro das decisões da vontade e o vazio da argumentação das opiniões.
Os prodígios do Anti-Cristo foram então oferecidos a esta geração, filhos do orgulho. Abriu-se para o homem atual grande quantidade de ferramentas modernas, digitais, suficientes para que a civilização da soberba se manifestasse de modo integral e completo. Esse ambiente generalizado de blogs e facebooks era tudo o que o homem dessa civilização precisava para vomitar suas opiniões sobre tudo e sobre todos.
Não há mais regras, não há mais leis, não há mais espírito de obediência ou de humildade. Cada um encontra em sua casa, em sua vida, no trabalho ou na condução, o meio de estar conectado em tempo integral, ocupando sua mente e seus interesses com o mais superficial, raso e vazio oceano de mediocridades. Sente o prazer irresistível da força fictícia e enganadora, da aparência de autonomia de pensamento, de liberdade de escolhas, de impressão de erudição, falsa cultura de uma alma inebriada do seu próprio nada.
Trazemos um exemplo marcante ocorrido recentemente no ambiente da Tradição e que ainda incendeia as almas. Advertimos o caro leitor para o fato de não estarmos ocupados com o mérito da questão, mas tão somente com o método adotado pelo homem do orgulho e da soberba no caso vertente. Pela primeira vez desde a sua fundação, a Fraternidade São Pio X atravessou uma crise interna sem ter conseguido guardar um único segredo. Diante da exposição constante na internet, dos mais sigilosos documentos, se enganaria o leitor que imaginasse a existência de um sussurro que fosse, soprado ao pé do ouvido, e que não tivesse sido revelado. Não houve. Como se a casa de Monsenhor Marcel Lefebvre tivesse virado um botequim ou uma rua de vila, tornou-se proibido guardar segredo; uma espécie de “permissão” parecida dada para que cada um tirasse suas conclusões apressadas, totalmente fora do alcance de qualquer autoridade sobre esta terra, e mesmo no céu.
Não é difícil entender por que este ano ficou famoso pela enxurrada de falsos doutores, cada qual ocupado na estranha tarefa de tornar pública e notória sua própria opinião, exposta na vitrine da internet de blogs e facebooks. Em cada um desses casos não se encontra nenhum vínculo verdadeiro com uma autoridade qualquer. Ei-lo o homem pós-moderno, o homem sem limites, sem leis, sem freios. Desembestou pelas ladeiras e curvas desse mundo e já não consegue mais parar. Em algum lugar será encontrado meio morto, levado pela fúria do seu falso saber, enganado por suas próprias decisões. E quando um anjo se aproximar, ouvirá da sua boca cheia de terra, num último sorriso, a confissão do seu pecado: “eu sou um gênio”.
“A alma que se conhece a si mesma se humilha. Nada vê, com efeito, de que possa se orgulhar. Ela alimenta dentro de si o doce fruto de uma ardente caridade, conhecendo nela a bondade sem limites de Deus.” (Santa Catarina de Sena, Carta ao Papa Gregório XI)
“A humildade recomenda a pequenez dos meios, sem recomendar a pequenez dos fins. Quanto aos fins, é tão magnânima como a magnanimidade. Santa Teresinha do Menino Jesus escolheu a pequena Via, porque queria ir mais longe e mais alto” (Gustavo Corção, Dois Amores Duas Cidades, Vol. II, parte I, cap. 3, pag. 109-110)
(Editorial da Revista Permanência 268)