Skip to content

As grandes lições que recebemos

Júlio Fleichman

 

A maior parte dos que compõem o grupo de “Permanência”, pelo menos os que residem no Rio de Janeiro, sabem-se membros de uma escola reunidos em torno de um mestre espiritual.

Ao longo de cerca de 30 anos, menos tempo para alguns, os ensinamentos que recebemos resultaram, sobretudo, da Santa Doutrina da Igreja e da exposição dos pontos principais da serva desta doutrina, a filosofia aristotélico-tomista. Mas, sobretudo, ao longo de todos esses anos, o ensino e o exemplo do mestre que Deus nos deu, mais do que de abstrato professor, não deixaram nunca de fazer incursões retificadoras ou enriquecedoras da mentalidade comum em face dos problemas do momento, que se desenvolviam e desabrochavam em cursos de formação de uma espiritualidade, digamos seu nome próprio, em cursos de teologia ascética e mística. Sim, porque não há de haver necessariamente pretensões maiores do professor ou dos alunos em aprender esta ciência quando tomamos conhecimento da primeira lição fundamental que ali se ensinava: o amor sobrenatural sem medidas e sem limites, acima de tudo o mais impõe como preceito e não como sonho a obrigação — que é elementar e comum a todos os católicos — de buscar a perfeição, de procurar a santidade. Evidentemente não a santidade eminente, a santidade dos altares, mas aquela que, proporcionalmente à nossa pequenez, como ensinam Santa Terezinha, é ardentemente desejada pelo Pai que nos quer perfeitos como Ele é perfeito. Mesmo porque, prossegue a longa lição, longamente ensinada, longamente aprendida anos a fora, a vida espiritual não conhece parada ou descanso. “Quem não progride, regride”.

O progresso, o adiantamento, o crescimento da alma de cada homem se processa em sentido diametralmente oposto ao crescimento, ao progresso no plano natural. Progredir, para os seres vivos do gênero animal — inclusive para o homem —, significa caminhar para uma autonomia crescente e uma crescente iniciativa própria quanto aos atos de pura natureza. Progredir no plano do crescimento espiritual importa em caminhar por desertos e trevas para deixar de lado as iniciativas próprias e a própria vontade e alcançar uma crescente dependência, uma entrega cada vez maior Àquele que nos quer tomar em Suas mãos e fazer-nos caminhar para Ele, como Ele quer e por onde Ele manda. Pela estrada que é chamada com o belo nome de Estrada Real da Santa Cruz, na “Imitação de Cristo”. Tomai sobre vós a vossa cruz e segui-me, diz o Senhor.

Tudo aquilo que aprendemos nas aulas de Dogmática ou que praticamos em termos de virtude e penitência; os atos de religião e culto feitos em termos de oração vocal; a Missa e os Sacramentos, especialmente a Sagrada Eucaristia; a vida monástica e os exercícios espirituais, tudo isso se dirige, encontra seu sentido próprio na preparação e encaminhamento de cada alma para a busca da porta a que bater, para a presença diante do Senhor em que, com mansidão e humildade conforme Ele nos quer, coloquemo-nos, em verdade e singeleza, em Suas mãos. Mas, a verdade manda que se diga que já é Ele que nos trouxe até esta porta e já foi por obra de Sua graça que ouvimos e guardamos o que nos era pedido. O que importa aqui dizer e o que importa que não esqueçamos é que tudo o que possamos querer em matéria de aprendizado de doutrina, de atos de mortificação ou de busca de virtude só tem sentido se nos favorecer na alma a aspiração de um relacionamento pessoal, interior e direto com Nosso Senhor, Ele mesmo, por obra de Sua graça.

É verdade que este empreendimento é não só difícil, mas perigoso e requer, em princípio, a assistência, o socorro de um diretor espiritual que nos acompanhe em nosso itinerário pessoal e não apenas nos ajude como mestre. É verdade que, em tempos normais, a Igreja sempre recomendou que não nos lançássemos a tal empreitada sem direção de um confessor ou, pelo menos, de um homem sábio e virtuoso que nos pudesse assistir em termos pessoais. Mas hoje, sabemos todos, é quase impossível encontrar este tipo de assistência e, por isso, é imprescindível que em nossas orações e nas aspirações que nossa alma dirige ao Senhor, lembremos esta dificuldade e peçamos a Ele que nos socorra, que providencie, como Ele mesmo sabe que precisamos e como Ele mesmo quer. Porque, o fato é que o preceito continua de pé e a sede do Senhor pelas almas que se lhe entregam pessoalmente, na intimidade do coração de cada um, não diminui nem fica suspensa. Por outro lado, o Senhor espera que não nos conformemos com “qualquer um” pseudo-sacerdote ou pseudo-bispo que nos virá falar de “campanhas de fraternidade” ou de outros tipos de corrupção espiritual com que consiga afastar-nos de Deus. Quem nos fala hoje, entre os bispos, uma linguagem que nos lembre, pelo menos nos lembre, a procura de santidade e o preceito correspondente? Quem ainda nos dirá que procure na “Imitação de Cristo” ou em São João da Cruz ou em Santa Terezinha d’Ávila exemplos de ascensão mística que a todos nos é pedida? Mudou nossa religião? Se mudou, se é outra, então nós não a queremos. A nossa religião, a católica, mantém a mesma linguagem, a mesma exigência e o mesmo ardente desejo da parte de Deus.

Não precisamos ter medo de esquecermo-nos das obrigações que os tempos difíceis nos trazem, da necessidade do combate dos deveres de estado, das aflições e dos sofrimentos nossos e alheios. Ninguém perde por esperar. Aquilo que aqui chamamos “nossa cruz” inclui tudo isso. A nós, que recebemos aquelas grandes lições lembradas acima e que procurarmos segui-las, nunca nos faltaram combates, trabalhos, deveres de estado, sofrimentos e aflições. Temos filhos, temos irmãos, temos a visão do que se passa no mundo. Mas, sobretudo, não nos falte, acima de tudo, não nos abandone, a lembrança da necessidade de procura de vida interior; a reiterada e constante aspiração de vivermos na presença de Deus em oração permanente como nos diz S. Paulo que devemos querer; a referência a Deus e de todos os nossos atos, nossos desejos, nossa consideração das coisas do mundo. Se, do alto dessa visão que em Deus tudo centraliza e a Ele tudo refere podemos ver melhor (e sabemos que vemos melhor); se a Ele tudo referindo buscamos, sobretudo, a Sua glória e não a nossa e, com isso, sabemos que todas as coisas, do universo dos homens e de nossa vida particular, ganham dimensões próprias e com elas um enriquecimento proporcionado que o pecador desconhece, não deixemos nunca de aspirar a um crescimento incessante na santidade a que fomos chamados para, esquecidos de nós mesmos e de tudo mais, vivermos permanentemente, crescentemente, a vida da caridade que já é um começo do céu. Pois, com temor e tremor, lembrando-nos de que quem não progride, regride, podemos suspeitar que foi por ignorarem ou terem esquecido tudo isso; foi, talvez, por se terem habituado a uma maneira prevalentemente exteriorizada de praticarem a religião; foi, quem sabe, por um vazio quanto àquilo que o próprio Senhor chamou “o único necessário” que tantos bispos e tantos padres e tantos fiéis, tão fácil e tragicamente se deixaram envolver e desencaminhar pela corrupção que invadiu os átrios da Igreja e, nela, nos meios católicos, nas mais altas cúpulas como em quase todas as paróquias ou colégios católicos ou Ordens Religiosas ou associações ou instituições que já foram ditas “da Igreja”, em toda parte, fez tantos estragos, desviou tanta gente e perdeu tantas almas, talvez.

 

Permanência, n° 90/91, maio/junho de 1976.

AdaptiveThemes