Jean Sévillia
Professor substituto de história e doutor em letras, Sylvain Gouguenheim ensina história medieval na prestigiosa École normale supérieure de Lyon. Até pouco tempo, era ele um professor sem história. Estimado pelos estudantes, reconheciam-no os seus pares como um especialista em Idade Média alemã. As suas doutas publicações e livros — sobre Hidelgarda de Bingen, mística da região da Renânia no século XII, sobre o terror do ano mil ou sobre os cavaleiros teutônicos[1] — granjeavam respeito para este medievalista que também é germanista.
Em 2008 a curiosidade o levou a pesquisar a transmissão da cultura helênica na Idade Média. Desempenharam os árabes um papel no processo, ninguém o ignora, mas em que medida? Um lugar comum reza que o conhecimento antigo, depois de desaparecer da Europa em razão da queda do Império Romano, refugiou-se no mundo muçulmano que, ao traduzir para o árabe os textos gregos, transmitiram-nos ao Ocidente – transmissão que possibilitou o florescimento da cultura ocidental.
Essa interpretação está fundada na ciência ou obedece a motivações ideológicas? A fim de responder a essa pergunta, Gouguenheim leu os especialistas e das conclusões chegou a uma síntese que — explicita ele — se dirige a um público “tão grande quanto possível”. Com o título de Aristóteles no Monte Saint-Michel, o livro saiu publicado pela Seuil — uma editora renomada e rotulada como de esquerda — na coleção “L’Univers historique”, cuja legitimidade universitária é indiscutível[2].
Resumamos a obra. O Ocidente, na Idade Média, nunca se desligou das suas fontes helênicas; antes de tudo, porque ilhotas de cultura grega ainda subsistiam na Europa. No interior do continente, nos monastérios, as escolas de tradutores trabalhavam com os textos originais ou recopiavam as traduções: era o caso do Monte Saint-Michel. Ademais, o Império Romano do Oriente era o repositório da cultura helênica: nunca se romperam os laços entre o mundo latino e Constantinopla. Na mesma época, continua Gouguenheim, na Espanha ou no Oriente Próximo, nas regiões que caíram sob o domínio islâmico, os pensadores da antiguidade grega estavam traduzidos, mas amiúde graças aos árabes cristãos. Os comentadores muçulmanos de Aristóteles decerto iriam exercer influência no Ocidente, mas a helenização do mundo árabe era mais restrita do que se poderia crer. No final das contas, se a civilização muçulmana contribuiu para a transmissão do conhecimento antigo, não foi em caráter exclusivo; de fato a contribuição foi até menor do que a das fileiras cristãs. “A imagem tendenciosa de uma cristandade à reboque de um ‘Islã das Luzes’, conclui Gouguenheim, evidencia antes uma prevenção ideológica que uma análise científica.”
A obra nem ao longe é um panfleto: pontuado de notas e referências, está acompanhada de uma extensa bibliografia que remete a inúmeras publicações eruditas[3].
Aristóteles no Monte Saint-Michel foi publicado em março de 2008. Em 4 de abril, Le Monde des livres consagra a ele uma recensão assinada pelo filósofo Roger-Pol Droit. Para além da proeminência do artigo na página do jornal, estava ele encabeçado com um título que sabia à provocação: “E se a Europa não devesse os seus conhecimentos ao islã?”. Após uma apresentação elogiosa da obra de Gouguenheim, o articulista termina com estas palavras: “Em suma, ao contrário do que se repete em crescendo desde os anos 1960, a história e o desenvolvimento da cultura europeia não devem grande coisa ao islã — ao menos, nada de essencial. Preciso e circunstanciado, este livro que resgata a tempo a história é de uma coragem ímpar.” É espantoso ler um artigo assim no suplemento literário do Monde, com título, entonação e conclusão de tal quilate. Esse texto iria acender um rastilho de pólvora.
O caso Gouguenheim
O meio universitário, alertado pelo artigo do Mondes des livres, se mobiliza contra Gouguenheim. Começa a circular uma petição, que logo reúne as assinaturas de quarenta “historiadores e filósofos das ciências” que estigmatizam como “proposta de ideólogo” a proposição segundo a qual “a Europa não deve nada ao mundo árabe (ou árabico-islâmico)”. Entretanto uma alegação tão grosseira não figura em Aristóteles no Monte Saint-Michel.
Em 25 de abril o Monde de Livres dedica de novo uma página inteira ao que se tornaria o caso Gouguenheim. Concederam-lhe um pouco a palavra, em uma entrevista telefônica de véspera: o jornalista comunicou que o livro estava sendo atacado, mas não lhe deu muitos pormenores; o historiador não pode ler os textos dos acusadores. Declarando-se “espantado”, justifica-se o acusado: “Impingem-me intenções que eu não tenho”. Na mesma página, vê-se uma citação da petição contra o autor, bem como extratos de um texto de Alain de Libera, autoridade em filosofia medieval cujas teses o Aristóteles no Mont Saint-Michel critica. E finalmente, com o título de “Uma demonstração suspeita”, dois universitários, Gabriel Martinez-Fros e Julien Loiseau, consagram-se à demolição metódica do livro de Gouguenheim e da crônica de Roger-Pol Droit, que aquele jornal publicara três semanas antes. Desancando a obra, porque estabelecia uma “hierarquia das civilizações”, o artigo encerra com um veredito, cujas palavras traduzem o espírito do tempo: “O panfleto de Sylvain Gouguenheim se extravia dos caminhos do verdadeiro historiador, a fim de se perder nos rastros de uma proposta ditada pelo medo [do desconhecido] e pela tacanhez.”
O programa de TV Télérama, de 28 de abril, foi o tribunal onde Alain de Libera denunciou o livro de Gouguenheim como “um divertido exercício de ficção científica”. Entre raciocínios e ironias, o signatário assume ares de superioridade: “A hipótese do Monte Saint-Michel, ‘elo perdido na história da passagem da filosofia aristotélica do mundo grego ao mundo latino’, celebrada com altivez em razão da islamofobia ordinária, tem tanta importância quanto a revalorização da verdadeira Mãe Poulard na história da omelete.”
Em tempos normais, a solução de uma desinteligência entre universitários seria a submissão da tese adversária ao crivo da revisão dos pares. Na situação presente, o caso foi levado a público, via imprensa, apresentando-se não como debate, mas como o início de uma especialidade bem francesa: a máquina de exclusão. Na primavera de 2008, com efeito, começou contra Sylvain Gouguenheim uma campanha de violência inaudita, que almejava não somente desacreditá-lo enquanto historiador, mas também lhe impor a interdição profissional.
O subtítulo do livro, As raízes gregas da Europa cristã, parece que é um motivo agravante aos olhos daqueles para quem o conceito de “raízes” é suspeito, a fortiori do conceito de “Europa cristã”. E porque citara – apenas uma vez na obra, entre centenas de referências – René Marchand, que escreve ensaios sobre o mundo árabe e cuja opinião sobre o islã é demasiado severa, o historiador é acusado de extremista. “Islamofobia”, proferiu Alain de Libera. Diante de um tal libelo de acusação, não há discussão possível: Gouguenheim estava classificado na categoria dos inconsultáveis.
Em Lyon, a École normale supérieure sofre pressões para que condene o transviado. Ademais, entra em campo mais uma petição: “Nós, professores pesquisadores, calouros e veteranos da École normale supérieure Lettres et Sciences humaines, afirmamos solenemente que as posições ideológicas de Sylvain Gouguenheim não são compartilhadas pelos membros da escola a qual pertence. [...] Requeremos que se tomem todas as medidas necessárias, a fim de preservar a serenidade pedagógica e a reputação científica da ENS-LSH.” 200 pessoas assinaram este apelo ao linchamento; a maioria delas, saber-se-á mais tarde, sequer abriram o Aristóteles no Monte Saint-Michel.
Em 30 de abril o Libération publica outra petição (já é a terceira) assinada por “um grupo internacional de 56 pesquisadores de história e filosofia da Idade Média”. “Sim, o Ocidente cristão é devedor do mundo islâmico, afirma o texto. Aristóteles no Monte São Miguel se baseia em alegadas descobertas, conhecidas ou falsas. O esforço de Sylvain Gouguenhiem não é científico, mas se revela um projeto ideológico com conotações políticas inaceitáveis.” Ainda neste caso muitos dos signatários não leram o livro: o editor admitiu que alguns deles lhe pediram a obra após assinarem a petição. Demais a mais, havia dois peticionários estrangeiros que sequer sabiam francês.
Em 5 de maio de 2008 aconteceu uma reunião pública na École normale supérieure de Lyon. Sylvain Gouguenheim, que não estava presente, foi acorrentado ao pelourinho, porém alguns colegas e a maioria dos alunos presentes o defenderam. Em 19 de junho o conselho científico da École lança uma moção lamentando que “as teses apresentadas na obra não tenham sido objeto de exame dentro da École”, e apelando para o restabelecimento de um “clima de confiança na seção de história medieval”.
Le Figaro littéraire, Le Figaro Magazine e Valeurs actuelles publicaram algumas resenhas favoráveis ao livro. Esses periódicos são rotulados como de direita, agravando o caso Gouguenheim; e a polêmica aumenta as vendas do livro, exasperando os detratores. As hostilidades recomeçam após o verão: em 4 de outubro de 2008 acontece na Sorbonne um colóquio acerca das teses de Gouguenheim. “Este não é um processo contra um indivíduo nem o seu pensamento”, é o que asseguram sem rir os organizadores; no entanto, os seus defensores sequer convidaram o interessado . Os mediadores reunidos estavam lá para jogar ao fogo a obra escarmentada: Max Lejbowicz chama de “bestas-quadradas”[4] os leitores que apreciaram Aristóteles no Monte Saint-Michel... Alguns dias mais tarde sobrevieram os Encontros de história de Blois, um encontro anual dos professores pesquisadores e editores de história. Naquela ocasião organizaram um debate – de novo à ausência do autor –, em que se vilipendiava a obra como “um livro falsificado” e “um panfleto disfarçado de livro de história”.
Mas ainda não acabou. De 11 a 13 de março de 2009, dá-se um segundo colóquio com a participação de uns trinta oradores franceses e estrangeiros. A manifestação ocorreu na École normale supérieure de Lyon. Desta vez Gouguenheim foi convidado, mas só depois de consolidados os tópicos das comunicações: todos os conferencistas lhe eram hostis. Em setembro do mesmo ano sai uma obra coletiva, em nome de vários professores universitários. Neste livro o historiador é novamente acusado de “islamofóbico[5]”. A obra é tão virulenta — chegaram a brandir a palavra “negacionismo” — que o editor teve de mostrá-la aos advogados para eliminar várias injúrias e difamações. Os autores objetam não apenas Sylvain Gouguenheim, mas também a “filosofia da história sarkozista”, as “raízes cristãs da Europa” e Bento XVI... Quem havia falado em ideologia?
Depois do surgimento do livro, Sylvain Gouguenheim passou a ser excluído de cada um dos colóquios universitários dos quais participava outrora; deste modo, diminuiram-lhe as possibilidades de publicação de artigos científicos, o que para um pesquisador é grave. Embora fosse especialista de cultura teutônica, reconhecido entre os seus pares alemães e poloneses e convidado com regularidade para encontros, em França já o não chamavam para as raras bancas de monografias e teses defendidas sobre o tema. Vítima de uma caça às bruxas, trataram de colocá-lo no escaninho das ideias erradas.
Apesar de tudo o historiador também recebeu apoio; em primeiro lugar, dos estudantes: quarenta deles subscreveram um texto em que denunciavam os métodos de perseguição ao professor. Em segundo lugar, de alguns especialistas: os maiores medievalistas ainda estavam de fora da discussão. Declarou Jacques de Goff que o livro de Gouguenheim era “interessante, embora discutível”. Do lado dos expertos em assuntos árabes, Christian Jambet, especialista do islã xiita, e Gérard Troupeau, eminente conhecedor do siríaco, deram pareceres favoráveis. Quando dos Encontros de história de Blois, Dominique Urvoy – professor de pensamento e civilização árabes na Universidade de Toulouse, regalou o autor com um desagravo: “Desde o século XIX, impôs-se a ideia de que o Ocidente devia o seu desenvolvimento às traduções árabes. Foi contra essa doxa que reagiu Sylvain Gouguenheim.”
Convidado por Alain Finkielkraut para um debate na radio France Culture, Rémi Brague, professor de filosofia árabe medieval da Sorbonne e da Universidade de Monique, sublinhava que Gouguenheim tinha o mérito de atrair a atenção do grande público para questões reservadas aos especialistas; contudo, esclarecia que nem todas as observações da obra eram da lavra do autor: por ex., um dos capítulos de Aristóteles no Monte Saint-Michel estabelecia uma ligação entre as dificuldades do mundo árabico-muçulmano em receber uma parte da filosofia helênica e as características da língua grega. Gouguenheim, neste ponto seguindo as análises de René Marchand, aponta as incompatibilidades lingüísticas entre o árabe — língua semítica, qualificada de “língua de religião”, propícia à poesia — e o grego – língua indo-europeia, mais indicada para a filosofia. Curiosamente o autor não enxerga nenhuma contradição entre esta ideia e o papel que reconhece aos árabes cristãos – veremos isso mais adiante — na transmissão da cultura grega. Os críticos menos maliciosos enfatizaram que a passagem não era o que havia de mais convincente no livro, e lembraram que Abelardo, Alberto o Grande, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham também não sabiam grego, o que lhes não impediu de serem grandes filósofos.
Em um extenso artigo da revista Commentaire, Rémi Brague volta a comentar os problemas de Aristóteles no Monte Saint-Michel: “Este livro não é a obra definitiva e exaustiva com a qual sonharíamos, mas tem a vantagem de contestar algumas certezas acatadas com demasiada pressa”[6]. A pesquisa de Gouguenheim abrange a primeira metade da Idade Média, do século VI ao XII. A proposta de pesquisa seria mais equilibrada e compreensível, observa Brague, se o autor recordasse do que ocorreu no século XIII: existe uma parcela crucial da herança grega que os árabes transmitiram, cuja influência determinante se deu após o período estudado em Aristóteles no Monte Saint-Michel. A transmissão islâmica dos conhecimentos antigos não é de pouca valia, por isso é necessário pô-la no devido lugar, quer quanto à cronologia, quer quanto ao conteúdo.
Já no prólogo, Sylvain Gouguenheim se insurge contra um clichê: não, a Alta Idade Média não constituiu um parêntese na história da Europa, nem uma época obscurantista, nem uma “idade das sombras”. Se houve ruptura cultural no Ocidente, situada entre o fim da civilização antiga e o começo do período medieval, foi ela breve e de alcance limitado. É certo que depois do colapso do Império Romano do Ocidente a cultura se tornou o apanágio de círculos restritos: perdeu-se o conhecimento do grego, rarearam-se os livros e o saber antigo só estava disponível em fragmentos. Seria longa a reapropriação dessa herança.
Entretanto os elementos de continuidade atenuaram as causas de ruptura. Durante as Grandes Invasões, as tribos bárbaras que se instalaram na Europa não se conservaram todas rebeldes à romanidade: é o caso dos francos que, após a conversão de Clóvis, assimilam a cultura galo-romana. Quando o cristianismo se espalhava, levava consigo, ao fio e à medida que se enraizava na Europa, referências oriundas do universo greco-romano: os Pais da Igreja Ocidental — Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo ou Gregório o Grande — estão impregnados de literatura e filosofia helênicas. A Grécia e a sua cultura ainda são, segundo a expressão de Gouguenheim, “um horizonte para a Europa latina”.
Os soberanos do Ocidente desempenham o papel de motores do processo. Para a biblioteca da abadia de Saint-Denis, Pepino o Breve — pai de Carlos Magno — solicita livros gregos ao Papa Paulo I. Na corte de Carlos Magno, lê-se Aristóteles; no século IX um texto carolíngio afirma que “a glória dos gregos é a melhor”. Ao renascimento carolíngio seguir-se-ão outras fases de revivescência cultural alimentadas pela antigüidade: o renascimento no Império Germânico, de Otão I em 962; renascimento do ano mil (quando apelidou-se Liège de “Atenas do Norte”); renascimento do século XII. “O progresso da cultura europeia, observa Gouguenheim, prosseguiu com os olhos voltados para o passado antigo, que a influenciava cada vez mais, ao ponto de que até a religião cristã[7] se originara dele.[8]”
Após a queda do Império do Ocidente em 476, o Império Romano ainda subsistiria no Oriente durante quase um milênio – até os otomanos invadirem Constantinopla em 1453. Recorda o historiador Jacques Heers que o termo “Bizâncio”, que empregamos a fim de designar o Império Romano do Oriente, só surgiu no século XVII. A palavra acentua, de modo artificial, o caráter oriental de Constantinopla; ao tempo da Alta Idade Média, esta cidade não era a herdeira de Roma mas a sua sobrevivência. Os gregos de Constantinopla se inculcavam romanos, como romanos os consideravam os seus vizinhos. Ora nos anos 550, à época da dinastia justiniana, os bizantinos retomam dos bárbaros grandes porções da antiga África romana, do sul da Espanha, a Sicília e a Itália[9]. Por mais de duzentos anos, Ravena foi uma cidade grega. A Romagna é a terra dos romanos, i. e., dos bizantinos. O Império Romano do Oriente é um abrigo da cultura grega, a começar pela capital — Constantinopla — onde no século X o imperador Constantino Porfirogeneta se acerca de cientistas, enciclopedistas e humanistas.
Em despeito das diferenças entre gregos e latinos, o cristianismo – até o cisma entre a Igreja do Ocidente e a igreja do Oriente, em 1054 — é indiviso. A unidade permite intercâmbios entre europeus e bizantinos: as peregrinações à Terra Santa, os concílios ecumênicos e as viagens a Constantinopla perpetuam os laços por onde passa a cultura. É em Constantinopla que os intelectuais latinos vão aperfeiçoar o conhecimento da antigüidade. Além disso, do século VI ao XII, os textos antigos transitam nas rotas que ligam Bizâncio ao Ocidente. Os comerciantes das cidades litorâneas da Itália, da Provence ou da Catalunha, que fazem a rota de Constantinopla trazem de lá manuscritos antigos. Burgundio de Pisa, que montou praça na capital do Império do Oriente de 1135 a 1140, trouxe de lá um exemplar dos Pandectas: tratava-se de uma compilação das leis de Roma, que o imperador Justiniano reuniu – peça rara que ajuntar-se-ia ao tesouro dos Médicis. Esse helenista traduziu os tratados de medicina de Hipócrates e de Galeno, e propôs ao imperador Frederico Barba-Roxa a tradução de outros autores.
Na Itália do Sul e na Sicília, o grego também serve de língua de comunicação. Desde o século VI, traduzem-se ali os manuscritos do grego ao latim. Já no século X, depois de trezentos anos de integração com o império do Oriente, a Sicília é conquistada pelos árabes. Tal domínio não acabou com o uso do grego entre os cristãos letrados. No século XI, os normandos expulsam os árabes, e no século XII o reino da Sicília passa à dinastia dos Hohenstaufen. Durante esse tempo, o grego continua a ser a língua da literatura, gramática e medicina, e os escritos antigos ainda estão em processo de tradução.
No Ocidente, não obstante o deslocamento do Império Romano, os arquivos de textos gregos e latinos permanecem no lugar. A tradução de manuscritos antigos acontece no curso de toda a Alta Idade Média. A Espanha visogótica, onde estavam conservados os escritos gregos e romanos, serve de entreposto da via marítima que leva à Armórica e à Irlanda, ilha onde havia inúmeros monges estudiosos de textos antigos. Em Roma, a biblioteca de Latrão alimenta de cópias os monastérios, as bibliotecas episcopais (Reims, Laon, Le Puy), a corte dos Plantagenetas e as dos duques de Saxe e dos condes de Champanhe. A abadia de Monte Cassino, na Itália, e a de Saint-Gall, na Suíça, são centros de tradução.
Assim também no Monte Saint-Michel, de onde o trabalho dos copisas se alastra por toda a Europa do Norte, de Oxford aos monastérios da Renânia. No Monte Saint-Michel são conhecidíssimas desde 1128 as traduções de Jacopo de Veneza, um letrado da cidade dos Doges ou do bairro veneziano de Constantinopla, onde viveu entre os anos de 1120 a 1145; em 1136 participa de um debate teológico em oposição a dois bispos. Que devemos a Jacopo de Veneza? Devemos a ele a primeira tradução de Aristóteles do grego ao latim, notadamente os Analíticos, os tratados Da alma e Da memória, a Física e a Metafísica. Os seus manuscritos — conservados até hoje na biblioteca municipal de Avranches — são copiados e difundidos, já naquele tempo, por toda a cristandade latina: São Tomás de Aquino e Alberto o Grande se valem de suas traduções.
Gouguenheim chama Jacopo de Veneza de “o elo perdido da história da passagem da filosofia aristotélica do mundo grego ao mundo latino[10]”. É hiperbólica a afirmação? Em todo caso, ela não merece a ironia desdenhosa de Alain de Libera nem a alusão à omelete da Mãe Poulard... É fato que no século XII os circuitos de tradução no interior da cristandade estavam em funcionamento; não significa, porém, que a transmissão do conhecimento antigo nada deva aos tradutores de alhures.
Filosofia ocidental e falsafa muçulmana
A expansão do islã começa em 634, dois anos após a morte de Maomé. Em pouco mais de dez anos os cavaleiros árabes conquistam a Síria, o Egito e a Pérsia; na década seguinte, a marcha prosseguiu pelo Cáucaso até a Índia. Cerca de 660 começou a dinastia dos Omíadas, que reinou em Damasco até 750. De 660 a 710 se empreende a conquista do Magreb. A invasão da Espanha começa em 711, provocando a queda da monarquia visigótica. Constantinopla foi sitiada pela primeira vez em 717. Em 750 os Omíadas dão lugar aos Abássidas, dinastia que faz de Bagdá a sua capital e há de reinar até o século XIII. Mas o império abássida, vastíssimo, acabará por se desmembrar. A partir de 755, o califado de Córdoba, que abrange a maior parte da Espanha, se torna independente.
No Oriente Próximo, na África e na Espanha, o islã se irradia para regiões evangelizadas nos primeiros séculos da nossa era. As populações cristãs dessas regiões se veem confrontadas com uma destas situações: ou se convertem — voluntariamente ou não — à religião do vencedor, ou se mantêm cristãs sob o estatuto da dhimma — palavra árabe que significa ao mesmo tempo proteção e submissão. Esse estatuto está reservado às pessoas do Livro, i. e., aos cristãos e aos judeus cuja liberdade é tolerada mas limitada: devem eles pagar um tributo especial e respeitar inúmeras restrições sociais que a eles se impõem.
No mundo muçulmano não restam apenas os cripto-cristãos: no Oriente Próximo, por volta do ano 1000, os árabes cristãos e os cristãos arabizados constituem cerca da metade da população. Essas zonas cristãs abrigam bolsões de vida intelectual, que ainda continuam embebidos de cultura antiga.
É o caso de Toledo, capital do reino dos visigodos de 576 a 711; a cidade episcopal acolhe os sábios que lidam com os textos antigos. Mesmo depois que Toledo se torna o principal centro de uma das províncias do califado de Córdoba, a cidade ainda figurava como um centro de tradução: os textos de início traduzidos do grego em árabe são retranscritos ao latim. Os intelectuais que se consagram a este lavor — são os cristãos, mas cristãos dhimmis.
O mito do al-Andalus, que dura até hoje, silencia essa realidade incômoda. A Espanha muçulmana teria sido uma terra onde resplandecia a tolerância e o bom entendimento entre os povos e as religiões, e cuja harmonia teria acabado a partir da Reconquista e do reinado dos reis católicos, artífices do fanatismo e do obscurantismo no século XV. Se é verdade que a discriminação vitimava os não-cristãos na Espanha dos reis católicos, ela será análoga àquela que afetava os não-muçulmanos durante o regime islâmico. A liberdade de consciência ou a liberdade de religião — conceitos modernos — são desconhecidas na Idade Média, em todas as civilizações. Mas é curioso que a queixa anacrônica dirigida à Espanha católica — o desrespeito à liberdade religiosa — já não vale se se fala da Espanha muçulmana.
Na região de Edessa (atualmente Urfa, na Turquia), durante três ou quatro séculos, os árabes cristãos e os cristãos arabizados, na maioria nestorianos, falam o siríaco — que é uma variante aramaica que sobreviveu ao islã e que só desapareceria no século XIII, embora ainda se conserve como língua litúrgica; estes árabes também preservaram o uso do grego, que era a língua cultural e administrativa dos bizantinos. Quem traduz a maioria dos textos helênicos — nos domínios da filosofia, das ciências e da medicina — são os cristãos siríacos. Hunayn ibn Ishaq (809-873), apodado de o mestre dos tradutores, é um cristão nestoriano que percorre a Ásia Menor com o objetivo de recolher manuscritos gregos, os quais traduz ou — sob a sua direção — manda traduzir. Mais de cem livros de filosofia, matemática e medicina — as obras de Platão, Aristóteles e Galeno — foram traduzidos do grego para o árabe aos seus cuidados.
Hunayn ibn Ishaq é o anfitrião da Casa do Saber de Bagdá. Atualmente existe uma legenda sobre essa instituição, descrita ao mesmo tempo como biblioteca, oficina de tradução e lugar de reunião. Símbolo da idade de ouro da ciência árabe, a Casa do Saber talvez não tenha sido um espaço devotado ao livre ensino e ao debate de ideias. Rémi Brague[11] mostra que o estabelecimento, em realidade, era uma oficina de propaganda política e religiosa ao serviço do mutazilismo — uma variante do islã que os califas da época adotaram; quem fosse refratário a ela era vítima de um tratamento acerbo, que se atribui geral — e quase sempre erroneamente — à Inquisição. Mais uma vez o anacronismo espanta, sobretudo quando se demonstra seletivo.
Entre os pensadores do mundo muçulmano que mais devem à cultura grega, avultam-se três nomes: o músico Alfarabi (872-950), filósofo de inspiração platônica e aristotélica, que vivia em Bagdá; o médico Avicena (980-1037), filósofo e místico de origem iraniana, que opera a síntese entre o aristotelismo, o platonismo e o islã; e sobretudo Averróis (1126-1198), cádi de Sevilha e mais tarde de Córdoba, filósofo cuja obra – baseada nos comentários a Aristóteles — é objeto do ensino de Sigério de Brabante na Universidade de Paris, por volta de 1230, e da crítica de São Tomás de Aquino, até que finalmente a Igreja a condena em 1240.
Averróis já atraíra a atenção de Renan, que lhe traçara um retrato de muçulmano bem ao gosto do século XIX: apóstolo da razão e do progresso. Faz alguns anos agora que a personagem voltou à moda. Em 1997 ele aparece como o herói do filme de Youssef Chahine, O Destino. A primeira escola privada muçulmana da França, aberta em Lille em 2003, leva o seu nome. Os homens de hoje o consideram um humanista sábio, prefigurador das Luzes e do diálogo das culturas, cujo exemplo prova que o encontro entre o islã e o Ocidente pode se desenrolar com serenidade.
De novo se trata de um anacronismo. Na França Averróis é conhecido sobretudo pelo Discurso Decisivo, que representa tão-somente uma parte ínfima da sua obra. A partir desse texto é possível descrever o filósofo como uma pessoa de mente aberta e tolerante, mas à custa dum contrassenso: o Discurso Decisivo, explica Rémi Brague[12], é uma consulta jurídica em que o autor, prático de direito muçulmano, acredita que a atividade filosófica tem de ser interdita ao comum dos mortais, com o fito de evitar os erros que poderia cometer. Em todos os casos, segundo ele, a filosofia deve estar de acordo com a religião, no que respeita ao legal e ao ilegal, segundo as definições das normas islâmicas. Em caso de contradição entre a filosofia e o Corão, Averróis julga necessário – conforme demonstrou Dominique Urvoy[13] – recorrer ao sentido secreto do livro sagrado. Como grande cádi de Córdoba, ele é um magistrado religioso, em um tempo em que tudo pertence à seara da religião e em uma sociedade em que a religião é também código civil. A função de Averróis é aplicar a lei islâmica e, se fosse mister, proclamar a guerra santa contra os cristãos, caso os almóadas decidissem levá-la a cabo. Só por anacronismo, repisamo-lo, é possível conferir a ele características (razão, tolerância, progresso e até laicidade) que lhe não podiam pertencer.
Além disso, naquele tempo, Averróis foi denunciado como heterodoxo e condenado, as suas doutrinas foram proibidas e os seus livros queimados. O mundo muçulmano não o aceitou enquanto vivo, e o esqueceu depois da morte. Foram os cristãos e os judeus que lhe estudaram o pensamento e divulgaram as ideias. Ademais, a profissão de filósofo não existia no meio islâmico. No ambiente muçulmano, a filosofia – falsafa – era um assunto privado; na cristandade latina, ao contrário, a filosofia – classificada entre as artes liberais, ensinada nas universidades e obrigatória para os teólogos – gozava de reconhecimento oficial.
Alfarabi era antes de tudo músico, Avicena médico, e Averróis magistrado, o que não depõe contra o gênio filosófico deles. Segundo Rémi Brague, a filosofia árabe dos séculos IX e X é superior à praticada entre cristãos e judeus, mas por motivos não muito claros ela termina com Avicena e Averróis. Teria se cristalizado o pensamento muçulmano? Entretanto, em outras áreas do conhecimento, não se manifesta nos países muçulmanos essa anemia intelectual.
Já no Ocidente, o renascimento jurídico, literário e filosófico do século XII cria uma necessidade de conhecimento que explica a recepção do pensamento de Averróis no século seguinte. Com efeito, foi o século XIII o apogeu da influência que exerceram no Ocidente os filósofos de língua árabe, quer muçulmanos quer judeus. Alberto o Grande, Dietrich de Friburgo ou Mestre Eckhart se nutriram do confronto do pensamento de Avicena, de Maimônides ou de Averróis.
É aqui que temos de pôr em perspectiva a parcela de cultura helênica que transmitiram os árabes, quer quanto à natureza, quer quanto ao período referido.
Na filosofia de Avicena e Averróis, a influência de Aristóteles se deu essencialmente nos âmbitos da lógica e das ciências da natureza. No âmbito científico, a civilização islâmica transmitiu os algarismos ditos “arábicos”, vindos em realidade da Índia. Mas os cientistas árabes amiúde enriqueceram e superaram a herança grega nas matemáticas, na física e na astronomia. O Tratado de Óptica de Alhazem, em sete volumes escritos entre 1011 e 1021, foi uma verdadeira revolução que, recorrendo ao método experimental, representou um passo decisivo para a compreensão dos mecanismos da luz e da visão. Na medicina e na farmacologia, a contribuição dos árabes é considerável. Razi (865-925) é um persa a quem muito devem as áreas da cirurgia, ginecologia, obstetrícia e oftalmologia: escreveu ele 184 livros científicos, dos quais 61 tratam de medicina, todos em língua árabe. O Cânon da Medicina de Avicena, traduzido em latim, será de muita valia na Europa.
Todavia, outra parte há da herança grega que, transmitida aos árabes, não chegou ao Ocidente. É o caso da filosofia de Alfarabi, pouco traduzido na Idade Média, cuja importância na história da filosofia política há de se descobrir mais tarde.
Mas uma enorme fatia da cultura helênica, em compensação, não estava traduzida em árabe. Na filosofia, é o caso da Política de Aristóteles, e também das obras de Plotino, de Epicuro e dos estoicos, além de vários livros de Platão. Diga-se o mesmo de toda a literatura grega: a poesia épica (Homero, Hesíodo), a lírica (Píndaro), o teatro trágico (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes), e a comédia (Aristófanes); é ainda o caso dos historiadores (Heródoto, Tulcídides, Políbio), e decerto dos teólogos: os escritos dos Pais da Igreja em língua grega não interessavam ao islã; acrescente-se ademais as obras relativas às artes plásticas. Só tardiamente, no século XV, o Ocidente reconhecerá essa herança, que os letrados bizantinos trouxeram ao fugir da invasão turca.
Resumamos. O islã nasceu na península arábica, que era em parte helenizada. O primeiro período de desenvolvimento aconteceu na Síria, no Egito e na África do Norte – em regiões que pertenciam ao Império Romano do Oriente. Por um lado, os conquistadores árabes adotaram a cultura dos lugares que dominavam. Neste sentido, observa Rémi Brague, “o mundo muçulmano também é herdeiro da antigüidade, e herdeiro legítimo[14]”. Os árabes assimilaram e por vezes superaram a herança antiga, mas não receberam toda ela: o filtro dessa recepção era a compatibilidade (ou a incompatibilidade) com o pensamento muçulmano. Sylvain Gouguenheim, também neste sentido, está seguro ao escrever que “a helenização do mundo abássida assumiu uma natureza diferente à da Europa medieval[15]”.
Por outro lado, a Europa latina recebeu quase tudo dos gregos, mas convém distinguir entre o que o Ocidente conseguiu por si mesmo e recebeu de Bizâncio, e o quinhão oriundo da transmissão dos árabes.
Por acaso houve dissimulação do conhecimento grego que os árabes transmitiram? Após a sucessão de inúmeras gerações de orientalistas que mostraram a nossa dívida para com as nações islâmicas, esta afirmação aparece de maneira recorrente: estávamos diante de uma “herança esquecida”. A expressão data de 1987 e é da lavra da americana Maria Rosa Menocal, professora da Universidade de Yale, acerca do papel dos árabes na literatura medieval[16]. Esta autora se notabilizou por um livro em que amontoava todos os lugares comuns imagináveis sobre a tolerância entre muçulmanos, judeus e cristãos na Espanha medieval[17].
“Herança esquecida”: Alain de Libera adotou essa fórmula, com que intitulou um capítulo do seu livro sobre o pensamento medieval, e a aplicou à filosofia. “Que os árabes”, lemos ali, “desempenharam um papel determinante na formação intelectual da Europa [é uma coisa] que não é possível ‘discutir’, a menos que se negue a evidência. Exige a simples probidade intelectual que a relação entre o Ocidente e a nação árabe mencione atualmente o reconhecimento de uma ‘herança esquecida’[18]”. Estes não são termos inocentes: esquecer uma herança é esquecer uma dívida, ainda que seja moral; é revelar-se um ignorante ou ingrato – de qualquer forma, um culpado. Nós, os europeus, os ocidentais, estaríamos assim em falta ao desconhecer a nossa dívida para com “a nação árabe”.
“A nação árabe”? Estamos falando de árabes ou de muçulmanos? Nem todos os árabes são muçulmanos, e nem todos os muçulmanos são árabes. Os adversários de Sylvain Gouguenheim jogam com o sentido das palavras, ao afirmarem que o mundo islâmico medieval era território exclusivo dos muçulmanos. Contudo, eles se esquecem – como já dissemos – que os cristãos e os judeus não usufruíam os mesmos direitos que os muçulmanos (assim como, é certo, os judeus e os muçulmanos não gozavam dos mesmos direitos que os cristãos no Ocidente); tal omissão não é inocência mas mentira.
Ele admoestou Gougueheim porque teria vinculado Bizâncio à cristandade latina. Não há dúvidas de que a história milenar de Constantinopla é complexa, e que nessa história se deparam episódios de confronto com o Ocidente ou, ao contrário, de alianças com os potentados orientais. Também é certo que a cristandade ocidental só conheceu parcial e tardiamente a religião islâmica: quando aconteceram as primeiras cruzadas, os francos consideravam os habitantes do Oriente Médio pagãos, e não muçulmanos. Com tudo isso, uma coisa é evidente: em virtude da longa duração, o cristianismo deu ao Ocidente latino e ao Império do Oriente uma comunidade de civilização que mesmo o cisma de 1054 entre a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente e o saque de Constantinopla pelos cruzados em 1204 não eliminaram.
Nega-o John Tolan: em um texto que pretende ser uma refutação a Gougueheim, esse medievalista esboça o cenário de um Mediterrâneo de sonho: “A pesquisa atual tende a mostrar a complexidade e a riqueza das culturas que margeavam o Mediterrâneo. Ela evita as generalizações altaneiras sobre o islã e o cristianismo, sobre a Europa e o mundo árabe. Não se trata do caso de duas civilizações que se entrechocam, mas de múltiplas culturas que se cruzam e fecundam[19].” Nesta visão idílica o Mediterrâneo se assemelha a um caldeirão multicultural onde circulam apenas comerciantes pacíficos e letrados em busca de conhecimento. Onde foram parar o estatuto da dhimma, a jihad, as cruzadas, a pirataria e o tráfico de escravos?
Um dos livros coletivos contra Gouguenheim ataca o defunto Fernand Braudel, imenso historiador do Mediterrâneo, retrospectivamente taxado de racista e “islamofóbico”. Com a pretensão de “retorno à uma história matizada”, a obra conclama o “abandono do conceito de civilização[20]”. Mas as civilizações são realidades, e recusá-las junto com a noção de identidade — por via da acusação de essencialismo – não esclarece o passado nem o presente. As civilizações têm história, princípios norteadores e traços característicos de longa duração. As civilizações às vezes permutam entre si, às vezes se fecham em si: sucedem empréstimos e recusas ou ambos se manifestam simultaneamente. Este processo sutil e complexo ficou impresso na maneira pela qual a cultura helênica foi transmitida ao Ocidente e aos países islâmicos. Na Idade Média o mundo cristão e o mundo muçulmano formaram — em ritmos distintos e em áreas do conhecimento diferentes – grandes civilizações; mas não é lícito confundi-las, pois o sistema de explicação do mundo não é idêntico em ambas.
Tentaram instaurar um processo moral contra Sylvain Gouguenheim por “islamofobia”. Este termo é uma arma de intimidação em massa, forjada para desacreditar o contraditor, numa analogia com o racismo. Ora o islã é uma religião ou civilização, e não uma raça. Acusaram o autor de Aristóteles no Monte Saint-Michel de sair do campo da história, mas quando Alain de Libera denuncia a obra como um sintoma do “contexto político e ideológico com tintas de intolerância, ódio e recusa em que vive parte da Europa [...] em relação ao islã”, quando ele brada: “Esta não é a minha Europa; essa, eu a deixo para o ‘Ministério da Imigração e Identidade Nacionais’ e para os porões do Vaticano[21]” – é ele que sai do campo da história para ingressar no terreno político.
Os adversários de Gouguenheim estão cheios de preconceitos; ao apresentar a civilização islâmica medieval como uma civilização de tolerância e enriquecimento intercultural, estão passando um recado para os dias de hoje: a partir de um passado idealizado, querem sacar um exemplo para o nosso tempo – mas esta é uma interpretação ideológica do passado.
[Fonte: Historiquement incorret, ed. Fayard, 2011.]
Tradução: Permanência
[1] Sylvain Gouguenheim, La Sybille du Rhin, 1996; Les Fausses Terreurs de l’an mil, Picard, 1999; Les Chevaliers teutoniques, Tallandier, 2007.
[2] Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel. Les racine grecques de l’Europe chrétienne, Seuil, 2008.
[3] Os anexos, as notas e a bibliografia perfazem 75 das 277 páginas da obra de Gouguemheim [N. do T.]
[4] Jean Celeyrette e Max Lejbowicz (dir.), L’islam médiéval en terre chrétiennes. Science et idéologie, Septentrion, 2009.
[5] Les Grecs, les Arabes et nour, enquête sur l’islamophobie savante, sob a direção de Philippe Nüttgen, Alain de Libera, Marwan Rashed e Irène Rosier-Catach, Fayard, 2009.
[6] Rémi Brague, “Grec, arabe, européen, à propos d’une polémique récente”, Commentaire, nº 124, inverno, 2008-2009.
[7] Humanamente falando, entenda-se. [N. do T.].
[8] Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel, op. cit.
[9] Empregamos neste capítulo essas denominações geográficas apenas por comodidade. Não é preciso lembrar que os territórios soberanos da Idade Média não correspondem às fronteiras dos Estados atuais.
[10] Sylvain Guguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel, op. cit.
[11] Rémi Brague, Europe, la voie romaine, Gallimard, 1999.
[12] Rémi Brague, Au moyen du Moyen Âge. Philosophies médiévales en chrétienté, judaïsme et islam, Flammarion, “Champs”, 2008.
[13] Dominique Urvoy, Averroès, Flammarion, 2001.
[14] Rémi Brague, Europe, la voie romaine, op. cit.
[15] Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel, op. cit.
[16] Maria Rosa Menocal, The Arabic Role in Medieval Literary History: A Forgotten Heritage, Philadelphia, Pennylsvania University Press, 1987.
[17] Maria Rosa Menocal, L’Andalousie Arabe, Une culture de la tolérance, VIII-XV siècle, Autrement, 2003.
[18] Alain de Libera, Penser au Moyen Âge, Seuil, 1991.
[19] John Tolan, “Aristophane au Mont-Saint-Michel”, in L’Islam médiéval en terres chrétiennes, op. cit.
[20] Les Grecs, les Arabes et nous, op. cit.
[21] Télérama, de 28 de abril de 2008.